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A SOLIDÃO DOS CAMPESINOS: Bourdieu como sociólogo da modernização e seus descontentes

BOURDIEU, Pierre. . O baile dos celibatários: crise da sociedade camponesa no BéarnPulici, Carolina. . São Paulo: Unifesp, 2021

“O baile de Natal é realizado na sala dos fundos de um café. No centro da pista,...casais dançam com muita desenvoltura as danças da moda. São sobretudo ‘estudantes’...originários do burgo. (...) Dentre as dançantes, muitas jovens...das aldeias mais remotas, vestidas...com elegância,...e também outras...que trabalham em Pau ou Paris...(...) Elas têm todos os aspectos exteriores de uma citadina. (...) De pé na beira da pista,...um grupo de espectadores, mais velhos, assiste a tudo sem falar. (...) Aí estão todos eles, os celibatários” (p.110)

O MAL-ESTAR NA MODERNIZAÇÃO; OU BOURDIEU COMO SOCIÓLOGO DA MUDANÇA

Uma mirada panorâmica sobre a fortuna crítica da obra de Pierre Bourdieu não tardará a encontrar a objeção frequente, ainda que fraseada com variados graus de rigor analítico, de que sua sociologia seria mais afeita ao estudo da reprodução do que ao da mudança socioestrutural. Em compasso com tal acusação de “reprodutivismo”, Bourdieu também não costuma ser elencado dentre aqueles sociólogos que, dos clássicos Marx e Durkheim a contemporâneos como Giddens ou Habermas, ofereceram um diagnóstico da modernidade e da modernização. Ironicamente, a análise das circunstâncias sócio-históricas nas quais Bourdieu realizou sua conversão de filósofo a cientista social, abarcando a segunda metade dos anos de 1950 e o início da década de 1960, revela que a vocação sociológica do autor francês é, a bem da verdade, inseparável de uma preocupação com processos de mudança social acelerada e multidimensional, processos engendrados por forças modernizantes entrelaçadas, tais como o capitalismo, a urbanização e a centralização do poder estatal. Em outras palavras, o exame da mudança e da modernização está no berço mesmo da sociologia de Bourdieu

O caráter multidimensional da abordagem bourdieusiana a tais processos de transformação não se refletiu apenas no acompanhamento das inter-relações entre esferas diversas da vida social (e.g., demográfica, econômica, política, cultural), mas também na apreensão dos vínculos entre tendências macrossociais e seus desdobramentos microscópicos, seja na interação social cotidiana, seja na experiência interior dos indivíduos capturados por aquelas macrotendências. Dando origem a uma sociologia das fontes estruturais do sofrimento que o acompanharia por toda a sua carreira sociológica, Bourdieu conferiu uma ênfase especial, nos seus trabalhos de juventude sobre a modernização, aos impactos desintegradores que tendências modernizantes produziram sobre modos de vida tradicionais, especialmente aqueles de sociedades campesinas.

Se há certo nível de abstração ainda indesejável nos dois parágrafos anteriores, o motivo é proposital: oferecer caracterizações sociológicas aplicáveis tanto ao cenário sócio-histórico argelino no qual Bourdieu se transformou em cientista social autodidata, entre 1955 e 1961, quanto ao milieu campesino no Sudoeste da França do qual ele próprio era nativo, cuja crise ele também estudou por volta da mesma época. Como é sabido (Peters, 2017PETERS, G. De volta à Argélia: a encruzilhada etnossociológica de Bourdieu. Tempo Social, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 275-303, 2017.), o primeiro cenário foi fonte não apenas do trabalho etnográfico na comunidade cabila tradicional ao qual Bourdieu retornaria em tantos momentos decisivos de sua trajetória intelectual, mas também dos estudos sobre camponeses argelinos desterrados seja para “campos de reagrupamento” estabelecidos pelo domínio colonial francês (Bourdieu; Sayad, 1964BOURDIEU, P.; SAYAD, A. Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1964.), seja para ambientes capitalistas urbanos para os quais aqueles camponeses, socializados em economias rurais baseadas na dádiva, não estavam preparados (Bourdieu et al., 1963; Bourdieu, 2021BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 2021.).

As mudanças radicais e aceleradas que Bourdieu encontrou na Argélia envolviam as consequências da escalada de violência entre o exército colonial francês e as forças argelinas de libertação anticolonial. À parte tal diferença imensamente significativa, quando descrevemos as primeiras pesquisas sociológicas de Bourdieu como voltadas às consequências desintegradoras que processos econômicos, políticos e culturais de modernização impuseram sobre o campesinato tradicional, não caracterizamos somente o molde sociológico de seus estudos sobre o “outro” argelino, mas também das investigações mais ou menos simultâneas que Bourdieu conduziu no meio camponês do qual ele era nativo na França. A primeira investigação empírica de tal cenário social, já contendo o entrecruzamento de estatística e etnografia que Bourdieu aprendera nos seus anos de Argélia, se deu, grosso modo, na virada da década de 1950 para a de 1960. No entanto, o autor continuou a retrabalhar seus achados em décadas subsequentes, enriquecendo-os à luz de suas pesquisas posteriores em diversas áreas, tais como a sociologia do sistema educacional e do Estado francês.

O trânsito geográfico-cultural entre Argélia e França que marcou a formação de Bourdieu como cientista social se atrelou, desde cedo, a uma crítica a qualquer versão rígida da divisão disciplinar entre antropologia e sociologia. No seu lugar, o autor potenciou seu olhar sociocientífico mediante uma dialética analítica entre “alter-objetivação” e “auto-objetivação”. Os insights teóricos e empíricos obtidos no estudo de contextos sociais nos quais Bourdieu era estrangeiro, como a comunidade cabila tradicional e outros contextos argelinos, foram transpostos por ele ao exame sociológico de seus próprios ambientes sociais nativos. Assim, o fenômeno da “cumplicidade ontológica” entre estruturas sociais e estruturas mentais que ele apreendeu na Cabília tradicional, para dar só um exemplo, também seria discernido por ele na moderna sociedade de classes francesa em A distinção (2007) e no próprio mundo intelectual em que ele estava engajado em Homo academicus (2011).

A primeira instância dessa fertilização recíproca entre uma “sociologia do outro” e uma “antropologia do mesmo” aconteceu, contudo, bem antes dessas obras famosas, justamente quando Bourdieu começou a intercalar seus estudos da(s) sociedade(s) argelina(S) com uma objetivação sociocientífica de seu próprio meio camponês nativo, cujo feitio tradicional também se encontrava sob rápido assalto de tendências modernizantes. Por um lado, ao intitular seu primeiro livro “Sociologia da Argélia” (1958), Bourdieu já combatera uma divisão do trabalho intelectual entre a sociologia como elucidação das sociedades ocidentais “avançadas”, de um lado, e a antropologia como elucidação de cenários não ocidentais “primitivos”, de outro, divisão que frequentemente funcionava, no contexto argelino dos anos de 1950, como suporte ideológico da dominação colonial francesa. Por outro lado, de modo complementar, não surpreende que Bourdieu tenha descrito a intenção por trás de seu trabalho sobre a crise do campesinato bearnês como a de escrever “uma espécie de Tristes tropiques às avessas” (Bourdieu; Wacquant, 1992BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1992., p. 163). A escolha do livro de Lévi-Strauss como inspiração e referencial crítico se explica não apenas pelo peso decisivo do estruturalismo simbólico lévi-straussiano na conversão sociocientífica de Bourdieu, mas também pelo acento de ambos os trabalhos sobre a tristeza.

Tristes champs; ou “‘Tristes trópicos’ às avessas”

Conjugando escritos produzidos em etapas diversas da trajetória de Bourdieu, voltados à crise da sociedade camponesa no Béarn da qual ele próprio era nativo, O baile dos celibatários (2021) veio a lume como livro somente em 2002, ano da morte de seu autor. Brotando de uma inteligência ciosa da fertilização recíproca entre seus diferentes veios de investigação, a obra propicia múltiplas entradas heurísticas. Estudiosos da sociologia de Bourdieu poderão acompanhar, por exemplo, o desenvolvimento gradual de suas ferramentas teóricas a partir do embate reiterado com as mesmas questões de pesquisa. É o caso da diferença que o uso do conceito de habitus faz na segunda [p.173-209] e na terceira [p.209-242]) partes do livro, produzidas respectivamente em 1972 e 1989. Tal uso dá corpo a intuições sociológicas ainda imprecisas na primeira parte [p.27-162], que consiste no primeiro artigo devotado pelo autor ao celibato na condição camponesa [1962]. Movido por uma confessada solidariedade pelas vítimas do “choque de civilizações” (p.112) entre o novo urbano e o velho rural, vítimas dentre as quais estavam os vários primogênitos “incasáveis” que ele conhecia pessoalmente (p.229), Bourdieu oferece aqui um dos seus primeiros exercícios de sociologia reflexiva, o qual evidencia o quanto de sublimação científica de paixões tristes entrava na sua análise do mundo social.

E nem começamos a falar nas “subáreas” entrecruzadas que saem enriquecidas pelas sugestões teóricas e empíricas deste livro, como as sociologias rural, urbana, do gênero, do corpo e do casamento, entre tantas outras. Para dar somente um exemplo: ao integrar estas investigações sobre padrões matrimoniais à sua sociologia histórica do estado, Bourdieu pôde tomá-los como parte de um processo multidimensional de unificação do mercado nacional de bens simbólicos. Entrelaçada à dimensão material da centralização do poder pelo estado (e.g., a intensificação da circulação interna de bens, pessoas e informações devido a melhorias sociotécnicas em transporte e comunicação), esta unificação simbólica nacional significou a generalização de uma hierarquia de valor que situava a existência citadina acima da camponesa, inclusive na apreciação desigual e competitiva de potenciais cônjuges.

A revolução simbólica que consolidou a conquista do campo pela cidade produziu, entretanto, efeitos diferentes sobre diferentes categorias de agentes, como mostram os destinos típicos de mulheres, primogênitos e caçulas na conjuntura transformada. Bourdieu explica tais efeitos como resultantes do encontro – feliz ou infeliz, “cúmplice” ou “histerésico” – entre as dimensões objetiva e subjetiva do social: a “história feita coisa” (no caso, a “ampliação dos deslocamentos favorecida pela melhoria dos meios de transporte” [p.219], a “subordinação crescente da economia camponesa à lógica do mercado” [p.224], a “generalização do acesso ao ensino secundário etc.” [p.219]) e a “história feita corpo” (casu quo, a incorporação, variável segundo as disposições sociais já possuídas, dos esquemas de percepção, avaliação e ação característicos do mundo urbano). A análise de estratégias matrimoniais em uma França rural sob crescente pressão de valores e modos de vida urbanos, ao contrastar agentes com habitus bem e mal adaptados a tal transformação histórica, mostra que “cumplicidade ontológica” e “histerese” podem ser condições existenciais desigualmente distribuídas em um mesmo cenário social.

No contexto rural tradicional que Bourdieu esquadrinha na primeira parte, ainda intocado pela unificação nacional do mercado de bens simbólicos, as trocas matrimoniais permaneciam dirigidas pelo núcleo familiar. Atrelados a considerações coletivas sobre manutenção e transmissão de patrimônios fundiários, os casamentos conferiam aos primogênitos de famílias importantes um valor que se fundava menos em seus atributos pessoais do que na sua condição familiar intrínseca. Tal circunstância passa por transformações profundas e aceleradas conforme o contexto rural é cada vez mais penetrado por forças nacionais, calcadas em uma tendência à concentração dos capitais (i.e., dos recursos materiais e simbólicos socialmente eficazes e legítimos) nas capitais (i.e., dos centros mais urbanizados como Paris). Como um capital marital, a posição familiar e fundiária vai sendo rapidamente desvalorizada, assim, frente a posições de classe de alcance nacional, bem como aos signos distintivos associados a um estilo citadino de portar-se cuja atratividade, como quaisquer outros fenômenos de distinção, se constrói de modo diferencial, ou seja, pelo contraste com a crescente aversão provocada pelos modos camponeses.

A despeito da solene indiferença que Bourdieu devotou à sociologia da modernização reflexiva de autores como Giddens e Beck, este livro sobre a crise da sociedade camponesa mostra em detalhe um aspecto da individualização como tendência desenvolvimental da modernidade (p.69). Conforme a família perde seu poder de determinação dos casamentos, os laços matrimoniais passam a depender das iniciativas individuais de cortejo que ocorrem em ocasiões de encontro como os bailes. São esses cenários que exibem mais ostensivamente, a um sociólogo tão antenado com detalhes microinteracionais como Bourdieu, o quanto os modos de condução do próprio corpo (dança, gesto, fala, riso e tutti quanti) passaram a ser valorizados, especialmente pelas mulheres, com base em sua aproximação aos estilos citadinos de vida. Nesse contexto, a educação tradicionalista de gênero que orientava as mulheres a desenvolverem uma acutíssima sensibilidade à apresentação externa de si, como nos maneirismos corporais e no vestuário, termina por torná-las muito mais antenadas aos padrões de gosto que vinham de Paris, centro material e simbólico de poder (p.114-115). Ainda imersas em um sistema de trocas matrimoniais que as pressionava a circular “de baixo para cima”, as mulheres tinham, ademais, todo interesse existencial em trocar sua vida no campo pelas cidades, para as quais também estavam habilitadas devido ao grau historicamente novo de formação educacional e treinamento profissional a que foram expostas (p.118-120). Este, aliás, é somente um dos insights prévios de sua sociologia do sistema educacional que Bourdieu integrou à sua análise dos “tristes campos”, sublinhando o papel central da educação na inculcação de um reconhecimento da cultura urbana como cultura legítima.

Os primogênitos que terminaram celibatários se viram capturados, assim, em um efeito de histerese: formados em um cenário de socialização que os dispensava do aprendizado das práticas de cortejar, eles descobrem, em ocasiões como os bailes, que agora têm de se engajar em ações para os quais o seu corpo socializado não os preparou; na verdade, ações para as quais seu corpo socializado opera como uma espécie de sabotador espontâneo. Conectando uma microetnografia das festas a uma macrossociologia da modernização, Bourdieu toma o “pequeno baile de interior” descrito na epígrafe desta resenha como um “verdadeiro paradigma comportamental que condensa, numa forma sensível, um processo social complexo” (p.229). O inventário dos aspectos em que essa cena social revela a conquista de um território rural tradicional pela modernidade citadina invasora, como a substituição de músicas e danças camponesas por músicas e danças importadas da cidade, deve ter em mente que aqueles aspectos fazem sistema. Não se trata apenas de que a dança (assim como, aliás, o fato de não dançar) seja parte de um conjunto de técnicas de corpo globalmente alinhadas a uma hexis urbana nitidamente contraposta a uma hexis campesina, técnicas também manifestas nos modos de falar, andar, gesticular etc. A questão é ainda mais profunda, já que “as técnicas do corpo constituem verdadeiros sistemas solidários de todo um contexto estrutural” (p.112), solidariedade que pode ser intuída na prática pelo envolvidos.

O desajuste do camponês certamente não deriva de sua ignorância quanto à falta de valor que os seus modos de ser corpo possuem à luz do juízo citadino que preside ao baile. Ao contrário, sem poder abandonar uma maneira longamente interiorizada de conduzir sua própria corporeidade, ele assimila sua falta comparativa de valor social na forma de “uma consciência infeliz” e envergonhada de seu corpo. De modo bastante pessimista, Bourdieu toma a consciência do desvalor dos determinismos sociais que pesam sobre o próprio corpo como um agravante do problema. A consciência envergonhada desencoraja a chamada de atenção pública para o próprio corpo demandada pela dança, oportunidade privilegiada ou exclusiva de interação com esposas potenciais. A falta de prática na dança e em outras interações com as mulheres reforça, por seu turno, o caráter “desajeitado” da própria corporeidade, a qual, por sua vez, reforça a consciência infeliz de si...em um círculo vicioso que aprofunda a solidão desses homens campesinos (p.116; p.120).

Tomando o baile dos celibatários como ocasião “paradigmática”, Bourdieu se esforça por dar, afinal, um retrato multidimensional da transformação sócio-histórica em que, nos termos tomados de empréstimo a Koyré, o “mundo fechado” da sociedade camponesa tradicional foi crescentemente invadido e, por conseguinte, transformado pelo “universo infinito” da sociedade urbana (p.221). Na contramão daqueles que identificam sua sociologia do poder simbólico a um marxismo mais ou menos disfarçado, o sociólogo do Béarn apreende uma interdependência causal entre “base” e “superestrutura”. Por um lado, ele sublinha mudanças tecnoeconômicas decisivas, como o incremento em deslocamentos geográficos possibilitado por condições de transporte melhoradas (e.g., estradas, veículos etc.) e a intensificação da dependência produtiva da pequena agricultura em relação à economia citadina de mercado (e.g., compra de máquinas e fertilizantes, frequentemente mediante empréstimos contraídos a bancos da cidade). Por outro lado, ele não reduz a dimensão cultural das transformações no campo a um efeito “superestrutural” de tais mudanças econômicas, mas enfatiza a inter-relação causal entre as dimensões material e simbólica, o que inclui os efeitos desta sobre aquela (e.g., a distribuição demográfica da população entre campo e cidade depende de padrões de emigração, os quais são intimamente afetados pela interiorização de esquemas citadinos de percepção entre camponeses).

O macroprocesso sócio-histórico de “inversão da tábua de valores camponeses” (p.225) produz, nos agentes individuais, ressonâncias psicológicas e efeitos práticos explicáveis em termos de seus vínculos objetivos e subjetivos ao mundo camponês que se esboroa, bem como ao mundo citadino que se impõe: quanto mais desvantajosa a posição na ordem antiga, como no caso de mulheres e homens caçulas, mais rápida e intensamente se exerce a atração da cidade como destino geográfico e/ou forma de vida; quanto mais vantajosa a posição na antiga hierarquia camponesa, como no caso do homem primogênito, maior a resistência ao novo mundo, o qual não obstante vai impor ao recalcitrante os custos objetivos e subjetivos de sua inadaptação. (Não é preciso cair em uma denúncia fácil para reconhecer que as preocupações afetivas de Bourdieu se concentram, de modo bem androcêntrico, sobre o sofrimento dos homens celibatários, ao passo que uma visão mais global da situação poderia se demorar mais no que as estratégias maritais e sociogeográficas encampadas pelas mulheres representaram de emancipação frente à sua condição tradicional.)

A dupla competência de tradutora e intérprete que Carolina Pulici traz à sua participação neste volume se evidencia tanto na excelente apresentação introdutória (p.7-17) quanto na tradução conscienciosa do francês, i.e., do francês de Bourdieu. O aposto é dos mais importantes. Dou apenas um exemplo: tendo começado o livro com a sensação de que o termo “solteiros” capturaria melhor o sentido mais ordinário da palavra “célibataires” em francês, em contraste com sua conotação mais comumente restrita em português (e.g., o celibato autoimposto de freiras e padres), terminei convencido do acerto de se manter “celibatários”, por tratar-se de um texto cuja nota é, mesmo quando sublimada com o aparato metódico da ciência social, de dramática compaixão pelo destino dos “incasáveis”. Tal compaixão não aconteceu, por óbvio, porque Bourdieu abraçasse qualquer noção essencialista e conservadora do casamento como um sine qua non da autorrealização humana. Ela derivou, sim, da sua procura por uma apreensão precisa dos componentes estruturais, históricos e fenomenológicos de um sofrimento que, embora intenso, era confusamente apreendido por aqueles mesmos que o sentiam. Como tanto do que Bourdieu fez, O baile dos celibatários oferece, em última instância, uma sociologia do sofrimento.

REFERÊNCIAS

  • BOURDIEU, P. Sociologie d’Algérie. Paris: Presses Universitaires de France, 1958.
  • BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo/Porto Alegre, Edusp/Zouk, 2007.
  • BOURDIEU, P. Homo academicus. Florianópolis, UFSC, 2011.
  • BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 2021.
  • BOURDIEU, P. et al. Travail et travailleurs en Algérie. Paris/Haia: Mouton, 1963.
  • BOURDIEU, P.; SAYAD, A. Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1964.
  • BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology Chicago, IL: University of Chicago Press, 1992.
  • PETERS, G. De volta à Argélia: a encruzilhada etnossociológica de Bourdieu. Tempo Social, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 275-303, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2022
  • Aceito
    27 Dez 2023
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