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POLÍTICAS PÚBLICAS: temas da agenda atual

INTRODUÇÃO

No Brasil, as políticas públicas têm sido objeto de estudos cada vez mais frequente desde o final dos anos 1970, período em que ocorreu um crescente interesse acadêmico estimulado, dentre outros fatores, pelos impactos do processo de erosão da ditadura, o fraco desenvolvimento econômico, o anseio por algum grau de cidadania e a ausência de políticas de enfrentamento das imensas desigualdades sociais características do período autoritário. De lá para cá muito se andou. No caminho, evidenciou-se o crescimento contínuo da área se destacando abordagens teóricas, modelos de análise e procedimentos metodológicos mais rigorosos agregados a um conjunto de pesquisas empíricas que contribuíram para dar volume acadêmico, assim como dinamizar um processo gradual de institucionalização do campo que se tornou múltiplo. Se é verdade que na origem da disciplina acadêmica os ensaios sobre políticas públicas pautaram-se no debate sobre a racionalidade dos decisores, também é correto confirmar a consolidação posterior de um campo cujo eixo principal foi construído a partir de uma visão crítica a esses estudos “racionalistas”. Tal eixo enfatizou, em primeiro plano, o chamado ciclo tradicional da política pública levando a um desmembramento das distintas fases em objetos específicos de pesquisa. Mas essa fase também foi superada e outros aspectos do processo político bem como das instituições, notadamente agências estatais (e paraestatais) e suas burocracias, categorias de análise próprias para se compreender o conjunto de ações implementadas pelo Estado. Por fim, também vieram as ideias como fator central no desenvolvimento da área, cabendo - assim - um espectro que vem desde a estrutura das instituições e seus constrangimentos e regras, passando pela agência das instituições e dos atores envolvidos, até as crenças e ideias desses diversos atores no processo de formulação e implementação.

Neste percurso de fortalecimento e institucionalização do campo, foram estudos de caso, trabalhos em perspectiva comparada, análises histórico-comparativas, entre os métodos e desenhos de pesquisa, os responsáveis pelo desenvolvimento de teorias e modelos de análise, especialmente a partir da exibição empírica de padrões distintos de interação entre atores estatais e sociais, legados institucionais, valores, ideologias e contextos históricos. Esses estudos recolocaram a política nos estágios de decisão e execução, compreendendo-os enquanto processos dinâmicos e não hierárquicos e/ou circunscritos apenas às influências de orientações técnicas ou das regras estabelecidas de maneira unidirecional. São exemplos pioneiros os estudos de Pressman e Wildavsky (1973)PRESSMAN, J.; WILDAVSKY, A. Implementation (Berkeley, University of California Press, 1973., Lipsky (1980)LIPSKY, M. Street-Level Bureaucracy. New York: Russell Sage, 1980., Mazmanian e Sabatier (1983)MAZMANIAN, D. A.; SABATIER, P. A. Implementation and Public Policy. Glenview: Scott Foresman, 1983. e Kingdon (1984). A partir de então, cresceram esforços de reflexão sobre o imbricamento entre os desenhos de políticas, suas execuções, trajetórias e resultados em uma perspectiva menos segmentada e mais relacional. Podemos citar pesquisas robustas e inovadoras que refletiram sobre efeitos de policy na conformação de polity (Pierson, 1993PIERSON, P. When eff ect becomes cause: policy feedback and political change. World Politics, [s.l.], v. 45, July, p. 595-628, 1993.), de desdobramentos da politcs em novos desenhos de polity (Thelen, 2004THELEN, K. How institutions evolve. The political economy of skills in Germany, Britain, the United States, and Japan. New York, NY: Cambridge U. Press, 2004.) e, por sua vez, implicações da politcs na criação de policy (Weir, 2006WEIR, M. When does politics create policy? The organizational politics of change. In: SHAPIRO, I.; SKOWRONECK, S.; GALVIN, D. (ed.). Rethinking political institutions: the art of the State. New York, NY: New York University Press, 2006. p. 171-186.).

Outrossim, a história do campo da análise de políticas públicas aponta para o incremento e melhoria dos quadros teórico-analíticos, das abordagens metodológicas e inovações conceituais, impulsionando os acadêmicos a saírem de zonas de conforto e deslocarem as suas tradicionais variáveis dependentes e mecanismos processuais. De outro modo, investigações mais recentes trataram de destacar a agência dos atores, sem desconsiderar as estruturas institucionais, refletindo a respeito do papel das ideias, identidades e preferências na acomodação dos processos e resultados das políticas públicas e nos próprios desenhos institucionais. Grupos e indivíduos não são meros expectadores das mudanças bem como processos que interferem sobre as condições e equilíbrios de poder que os afetam, favorecendo ou desfavorecendo-os. Longe disso, são capazes de se organizar e atuar de modo a minar estruturas, criar aberturas e oportunidades para as mudanças que julguem necessárias no contexto político a fim de defender, manter ou fortalecer suas próprias posições (Przeworski, 2014). Porém, resultados institucionais não refletem necessariamente os objetivos de um grupo particular, eles são produtos dos conflitos entre grupos ou da ambiguidade das preferências destes (Mahoney; Thelen, 2010MAHONEY, J.; THELEN K. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. (ed.). Explaining institutional change – ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.).

Outra parte da literatura enfatiza como o desenho institucional ou os constrangimentos de mesma ordem seja no plano macro da polity, seja em um plano meso de uma determinada política setorial, por exemplo, determinam as possibilidades tanto da ação central por parte da União, ou de um dos estados, quanto da ação de implementação nos municípios. Nessa literatura há ênfase em entender melhor a insuficiência do federalismo para explicar a variação de políticas públicas (Machado, 2018), as relações intergovernamentais, as capacidades estatais, a capacidade de coordenação que tem o governo central e sua capacidade de obter cooperação por meio de mecanismos institucionais de indução dos entes subnacionais (Sátyro; Cunha, 2018; Bichir, 2016BICHIR, R. M. Novas agendas, novos desafios: reflexões sobre as relações entre transferência de renda e assistência social no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, [s.l.], ed. 104, v. 35, n. 1, 2016.;2019; Arretche, 2012ARRETCHE, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV/Editora Fiocruz, 2012.; Machado, 2018). Mais recentemente, a literatura tem enfatizado nas burocracias em todos os níveis de governo e também começa a se aprofundar a entender o uso de evidências para a formulação e implementação de políticas públicas.

Em consonância a esses aspectos, a presente proposta de dossiê temático objetiva contribuir para o fortalecimento de uma agenda na área de políticas públicas em termos de pesquisa empírica e densidade teórica, atualizando um debate presente em dossiê temático dos Cadernos CRH uma década e meia atrás, em edição organizada pela profa. Celina Souza. Assim, apesar de um olhar mais determinado aos aspectos teóricos e conceituais, os recortes empíricos receberão atenção, pois entende-se que a robustez teórica de uma determinada área de conhecimento não caminha sem o amparo de trabalhos empíricos conduzidos com rigor metodológico e inovação investigativa. Nesses termos, o dossiê está composto por seis artigos com distintas abordagens temáticas que ajudam o leitor e a leitora a se familiarizarem com boa parte da discussão recente. Para isso, de um lado, selecionamos artigos que trazem uma discussão conceitual mais institucionalista que engloba desenhos institucionais, capacidade estatal, coordenação de sistemas nacionais até a discussão da agenda local. De outro, realizamos um percurso pela literatura de theories of policy process trazendo discussão acerca de mudança institucional de políticas baseada em equilíbrio pontuado e modelo de coalizões de defesa, por exemplo. O leitor poderá também se atualizar com o debate recente relativo às políticas baseadas em evidências e terá ao seu alcance análises que extrapolam o Brasil e que integram também a América Latina, mas também discussões sobre mudanças de políticas e agenda dos municípios.

Desnecessário lembrar que a seleção dos textos originais presentes nesse dossiê não exaure o conjunto de trabalhos que tem buscado atualizar ou revigorar temáticas de uma agenda prévia. Desejamos que os textos selecionados sirvam de estímulos para afirmação de novas temáticas e objetos de investigação.

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O primeiro texto, intitulado Coordenação Federativa das Políticas Públicas: os Sistemas Nacionais Normatizados , de autoria de Celina Souza, versa sobre aquelas políticas que, por não serem constitucionalizadas, dependem da adesão voluntária dos Estados para sua implementação. Dialogando com teorias que ressaltam o papel das regras, dos incentivos e do desenho para a implementação de políticas em países federais, a autora argumenta que, a despeito do ativismo regulador do governo federal, a adesão dos Estados é condicionada por suas capacidades e que os entraves dos sistemas não foram objeto de avaliação sistemática. O texto seguinte, “Para além das Políticas públicas baseadas em evidências: o desafio da governança de evidências no serviço público brasileiro ”, dos autores Natália Koga, Pedro Palotti, Rafael Lins, Bruno Couto e Marcos Luz Soares Filho, inova investigações anteriores ao buscar compreender como as dimensões individual e organizacional interagem para ampliar a mobilização das evidências produzidas pela ciência. Os achados indicam que essas duas dimensões interagem positivamente para maior utilização das evidências científicas. No entanto, atenção especial deve ser dada à forma como as capacidades organizacionais são conceituadas e operacionalizadas.

Na sequência, o artigo “ Estado y bienestar. Aportes a partir de la noción de capacidad pública de protección social ”, de autoria de Analía Minteguiaga e Eliana Lijterman, objetiva desenvolver uma noção de capacidade do Estado para a proteção social que permita captar seus efeitos na configuração das condições gerais de reprodução da vida (individual e social) e superar visões formalistas da relação Estado-sociedade. Para isso, analisa as relações entre a sua dimensão institucional e a sua expressão político-cultural, entendendo que o alcance das políticas nos processos de satisfação de necessidades depende da legitimidade das instituições em que se materializa a relação protetora.

O próximo texto trata sobre como a literatura institucionalista, em especial a vertente histórica, tem discutido o fenômeno da mudança em instituições e políticas públicas e como os estudos nacionais desenvolveram esse debate ao longo dos últimos dez anos. No artigo “ Mudança Institucional: contribuições para uma agenda de pesquisa nacional”, Íris Gomes dos Santos e Natália Sátyro evidenciam uma série de lacunas presentes nas investigações brasileiras de ordem teórica e metodológica, em que se destacam: a lenta expansão da agenda, recortes temporais curtos, ausência de estudos comparados e subnacionais, baixa diversidade e críticas aos referenciais teóricos adotados e dificuldades na operacionalização de quadros analíticos e conceituais. Apresenta-se, então, um cenário de desafios para a consolidação dos estudos institucionais sobre mudança na Ciência Política brasileira, mas também alguns caminhos possíveis a serem enfrentados no campo.

Em continuidade, o artigo “O Modelo de Coalizões de Defesa na análise da Política de Transporte Marítimo no Brasil , dos autores Henrique Campos de Oliveira e Alvino Sanches Filho, estuda a formação de coalizões de defesa atuando na política do transporte marítimo no Brasil desde o período militar autocrático 1964/85. O artigo classificou as coalizões a partir de três crenças centrais da política: centralizar ou descentralizar as decisões sobre concessões e gestão orçamentária dos recursos oriundos da atividade marítima mercantil; exploração dos serviços vinculados ao setor pelo poder público ou pela iniciativa privada; a abertura ou não da participação de capital estrangeiro na exploração portuária e de navegação. Os autores argumentam que as coalizões apresentaram divergências mais acentuadas no tocante à privatização das atividades e à abertura para a participação do capital estrangeiro com tendência à privatização e abertura comercial, porém sem alterar o status dos principais portos públicos já consolidados.

Fechando o dossiê, o trabalho “Dimensões da capacidade decisória local, desenho institucional e mecanismos de coordenação: os espaços de autonomia dos municípios brasileiros”, de Raquel DÁlbuquerque, investiga como os arranjos institucionais e os aspectos relacionados à gestão e implementação das políticas determinam se os municípios têm maior ou menor espaço de decidir sobre a adoção e priorização de políticas, levando em conta os incentivos e o poder de coordenação exercido pelo governo federal. Além do desenho institucional das políticas, o trabalho destaca a importância de considerar as capacidades municipais e a sensibilidade às demandas locais na determinação da autonomia decisória municipal, a fim de oferecer uma análise abrangente da atuação dos governos locais no Brasil e destacando a complexidade das dinâmicas envolvidas na construção da agenda local.

REFERÊNCIAS

  • ARRETCHE, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV/Editora Fiocruz, 2012.
  • BICHIR, R. M. Novas agendas, novos desafios: reflexões sobre as relações entre transferência de renda e assistência social no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, [s.l.], ed. 104, v. 35, n. 1, 2016.
  • BICHIR, R. M.; SIMONI JR., S.; PEREIRA, G. A implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nos municípios brasileiros. In: LOTTA, G. (org.), Teoria e análises sobre implantação de políticas públicas no Brasil. Brasília, Enap, 2019.
  • KINGDON, J. W. Agendas, alternatives and public policies 2. ed. New York, NY: Longman, 1995.
  • LIPSKY, M. Street-Level Bureaucracy. New York: Russell Sage, 1980.
  • MAHONEY, J.; THELEN K. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. (ed.). Explaining institutional change – ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
  • MAZMANIAN, D. A.; SABATIER, P. A. Implementation and Public Policy Glenview: Scott Foresman, 1983.
  • PIERSON, P. When eff ect becomes cause: policy feedback and political change. World Politics, [s.l.], v. 45, July, p. 595-628, 1993.
  • PRESSMAN, J.; WILDAVSKY, A. Implementation (Berkeley, University of California Press, 1973.
  • PRZEWORSKI, A. Entrevista com Adam Przeworski. Fernando Lattman-Weltman. Outubro de 2012, Nova York. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 53, p. 207-214, 2014.
  • SÁTYRO, N. G. D.; CUNHA, E. S. M. The path of Brazilian social welfare policy post-1988: the significance of institutions and ideas. Brazilian Political Science Review, [s.l.], v. 8, n. 1, 2014.
  • SOARES. M.; MACHADO. J. A. Federalismo e políticas públicas. Brasília: ENAP, 2018. p. 55-106.
  • THELEN, K. How institutions evolve. The political economy of skills in Germany, Britain, the United States, and Japan. New York, NY: Cambridge U. Press, 2004.
  • WEIR, M. When does politics create policy? The organizational politics of change. In: SHAPIRO, I.; SKOWRONECK, S.; GALVIN, D. (ed.). Rethinking political institutions: the art of the State. New York, NY: New York University Press, 2006. p. 171-186.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
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