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TRABALHO, IDENTIFICAÇÃO E RECONHECIMENTO: uma reflexão e duas questões sobre meritocracia e normatividade

WORK, IDENTIFICATION, AND RECOGNITION: one consideration and two questions about meritocracy and normativity

TRAVAIL, IDENTIFICATION ET RECONNAISSANCE: une réflexion et deux questions sur la méritocratie et la normativité.

Resumos

O artigo discute a relação entre trabalho e reconhecimento, tomando como mote a ideia de Axel Honneth, de que a meritocracia possui um caráter normativo. Para isso, vale-se de uma revisão bibliográfica e também de excertos de entrevistas semiestruturadas. Na primeira parte (I), estabelece uma conexão entre trabalho, identificação e reconhecimento, e procura expor uma versão qualificada da tese da divisão do trabalho, segundo a qual há uma normatividade própria à meritocracia, expressa no entrelaçamento entre trabalho socialmente organizado, identificação funcional com a reprodução social e reconhecimento social. Depois (II), trata do diagnóstico do estado corrente da divisão do trabalho, valendo-se da noção de barbarização. A seguir (III), são discutidos trechos de duas entrevistas exemplares da relação entre trabalho e reconhecimento, por meio das quais se apontará para um modelo de sociologia do trabalho centrada no reconhecimento (IV). Trata-se de uma reflexão conceitual acompanhada de indícios informativos sobre o modo como a percepção da meritocracia afeta o entrelaçamento de trabalho, identificação e reconhecimento.

Divisão social do trabalho; Reconhecimento recíproco; Meritocracia; Normatividade; Trabalho autônomo


This article deals with the relations between work and recognition. It takes as its point of departure Axel Honneth’s idea of a normative character from individual acknowledgements. To do this, the article presents a review of relevant literature and also discusses exerpts of semi-estructured interviews. The first section (I) tries to connect the concepts of work, identification and recognition in order to show a differentiated version of the thesis of division of labor, in which socially organized labor, functional identification and social reproduction are connected through social recognition. Following that, it discusses (II) Honneth’s diagnosis of a barbarization of the social conflict as a diagnosis of the current state of division of labour. On the third section (III), the article presents sections of two interviews made by the author, which will help (IV) delineate a model of sociology of work based on the theory of recognition. On the whole, here is presented a conceptual reflection accompanied by informative insights about how perceptions of merit affects the relations between work, identification, and recognition.

Social division of labor; Reciprocal recognition; Meritocracy; Normativity; Self-regulated work activities


Cet article parle sur la relation parmi le travail et la reconnaissance en envisagent l’idée d‘Axel Honneth sur lequel la méritocratie a un facteur normatif. Donc, on revise la bibliographie et des entretiens semi-structuré. Dans la première part (I) on present une relation entre les bulout, l’identification et la reconnaissance avec la proposition d’une thesis sur la division du travail selon lequelle il y a une normativité propre à la méritocratie. Elle s’exprime dans le travail socialement organisé, l’identification du métier avec la reproduction et la reconnaissance social. En seconde (II), s’utilise de l’idée de la barbarisation à fin de construire un diagnostic de la division du travail. Deux entretiens exemplaires sur la relation entre le travail et la reconnaissance sont discutés en suit (III) a fin de proposer un modèle de sociologie du travail focalisé dans le reconnaissance (IV). Enfin, cet article expose une réflexion théorique sur la forme que la méritocratie affect les relations parmi des trois catégories, le travail, l’identification et la reconnaissance.

La division social du travail; Reconnaissance réciproque; Méritocratie; normativité; activité de travail autonome


INTRODUÇÃO

A ideia do presente artigo é colocar à prova uma hipótese de Axel Honneth a respeito da relação entre trabalho, reconhecimento e mérito. Para isso, é apresentada uma revisão bibliográfica informada por três entrevistas realizadas com trabalhadores autônomos a respeito da representação do esforço individual. O texto começa com uma apresentação da hipótese de que, por meio da diferenciação entre mercado e capitalismo, Honneth adota em sua teoria mais recente uma perspectiva na qual está implícita a tese de que o princípio de reconhecimento recíproco permite que se fale de pressupostos morais dos mercados e do capitalismo, opondo às patologias sociais do egoísmo instrumental e da postura social autointeressada a norma implícita de uma divisão do trabalho moralmente qualificada pela percepção de que mercados são esferas de satisfação recíproca de necessidades e de co-determinação individual (Honneth, 2008, 2011a, 2015a).

A hipótese de uma divisão do trabalho qualificada serve, em primeiro lugar, a uma reconstrução normativa da eticidade moderna na esfera da satisfação de necessidades materiais e, em segundo lugar, de critério de crítica social à organização prática do modo de produção capitalista. No primeiro caso, o autor procura demonstrar que a teoria social, e particularmente a teoria crítica, teriam muito a ganhar assumindo uma perspectiva reconstrutiva, uma vez que assim o acesso às normas e valores de legitimação das sociedades contemporâneas seria mais realista do que na teoria política normativa e na crítica transcendental. No segundo caso, tendo acessado quais normas e ideais legitimam uma determinada sociedade e suas esferas de ação coletiva, seria possível realizar uma crítica dos limites das práticas sociais frente às suas próprias normas de legitimação. No caso particular do mercado de trabalho, isto é, da esfera de compra e venda da força de trabalho em suas mais diversas formas e da consequente ativação desse produto e das relações sociais que esse processo todo engendra, a sociologia reconstrutiva de Honneth lidaria com as normas implícitas de legitimação da esfera do mercado pelas pessoas que nela tomam parte, e o caráter crítico dessa perspectiva remontaria à avaliação das condições efetivas de realização dessa relação comercial. Assim, seria possível propor uma crítica interna à esfera do mercado, mas ela se basearia naquilo que as envolvidas poderiam esperar do mercado, e não em seu funcionamento. De modo geral, isso parece significar que a crítica sociológica se apoiaria em uma investigação das representações que as pessoas fazem a respeito de sua situação social no mercado de trabalho.

Ocorre, porém, que além de servir à reconstrução interna e ao estabelecimento de critérios de crítica, a tese de uma divisão do trabalho moralmente qualificada pelo princípio do reconhecimento poderia servir a uma terceira função. Essa seria a de identificar, de modo prospectivo, mudanças nas próprias normas e valores que legitimam as relações sociais de um determinada sociedade. Essa é, evidentemente, uma hipótese contraintuitiva e também contrária ao próprio movimento de Honneth. Contra Honneth porque, em sua teoria, há uma clara passagem das normas para as práticas e só então para a crítica. O presente texto se propõe a historicizar a ideia de normas; contraintuitiva porque justamente normas e valores seriam o quadro de orientação das práticas sociais, e não um efeito delas.2 2 A inspiração para essa tese de que normas são historicamente constituídas também enquanto práticas tem sua forma mais bem acabada n’O processo civilizador, de Elias, muito embora as lições de Durkheim sobre a sociologia da moral e dos costumes me pareçam operar nessa mesma lógica. Todavia, em um pequeno artigo chamado “Barbarizações do conflito social” (Honneth, 2011b, 2014), o autor aponta para a possibilidade de que um desmonte das formas históricas de realização do reconhecimento recíproco tenderia a gerar uma barbarização do conflito social em si. É frente a esse cenário de eventual barbarização que se coloca a discussão aqui proposta a respeito da relação entre trabalho, reconhecimento e mérito.

As entrevistas que irei discutir dizem respeito à representação do trabalho individual entre profissionais autônomos. Ela serve menos ao propósito de generalizar conclusões a respeito da atual situação das relações de trabalho do que àquele de indicar formas de representação da participação individual em uma configuração trabalhista considerada desregulamentada, vulnerabilizada e precarizada. Aqui serão apresentadas entrevistas com trabalhadores de dois grupos profissionais, dois representantes comerciais autônomos e um motorista de automóveis contratados por aplicativo de telefone celular, que se encaixam no perfil autônomo de profissionais em situação de desregulamentação das relações contratuais. O objetivo das entrevistas foi analisar suas representações a respeito de sua situação laboral e de sua participação no mercado de compra e venda de trabalho a partir da atividade autônoma. Com isso, espera-se poder identificar nos discursos a respeito do trabalho autônomo pistas que se liguem às ideias de reconhecimento e mérito individual.

No texto, inicialmente a tese honnethiana da divisão do trabalho qualificada pelo princípio do reconhecimento (I) será apresentada de modo um pouco mais detido. A seguir, será apresentada a tese da barbarização do conflito social, mas com uma mudança de ênfase a fim de relacioná-la ao mundo do trabalho (II). Na seção seguinte, quero discutir o quadro teórico montado até então à luz das entrevistas, que tomarei como exemplares de formas discursivas relacionadas a cada uma das profissões tratadas aqui (III). Ao final, quero retomar a ideia da mudança prospectiva das normas de reconhecimento recíproco, a fim de explorar algumas consequências teóricas do modelo de análise do capitalismo proposto por Honneth (IV). Se tudo isso der certo, pretendo sugerir que, mais do que uma justa crítica às limitações da teoria da moralidade dos mercados capitalistas formulada por Honneth, o que se abre diante de uma sociologia reconstrutiva crítica é a possibilidade, e mesmo a necessidade, de historicizar o próprio modelo de reconstrução normativa como crítica social.

DIVISÃO DO TRABALHO PARA HONNETH: TRABALHO, IDENTIFICAÇÃO E RECONHECIMENTO (I)

Nos escritos recentes de Axel Honneth, há uma versão da tese da divisão do trabalho qualificada pelo princípio do reconhecimento. Essa versão, por sua vez, possui um fio condutor: a ideia de meritocracia como identificação de valor social das próprias contribuições. Isso se daria porque a hipótese de Honneth a respeito da divisão do trabalho é ligeiramente diferente da tese histórico-funcionalista de Durkheim. Como se sabe, o francês via, no processo histórico de diferenciação, uma função, a criação da moral moderna, que, por sua vez, se baseia na crescimento da solidariedade orgânica e em sua preponderância gradual sobre a solidariedade mecânica (Durkheim, 2010DURKHEIM, É. Da divisão do trabalho social. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010., 2016DURKHEIM, É. Lições de sociologia. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.). Honneth, por outro lado, parece supor que a legitimidade moral de todo o sistema capitalista advém do fato de que a divisão do trabalho possui um potencial de entendimento implícito entre os indivíduos a respeito da satisfação recíproca de necessidades. Em seu estudo O direito da liberdade, essa inversão do ordenamento da legitimidade do mercado e da constituição do capitalismo é apresentada como a discussão do “problema de Marx” e do “problema de Smith” (Honneth, 2011a, p. 326). De acordo com Honneth, a discussão sobre a legitimidade e os limites do mercado moderno se organiza ao redor de temas centrais para cada um desses autores, mas ambos investigam as chances da ampliação da liberdade individual diante dessa nova configuração social (idem, p. 325). Assim, tanto Marx quanto Smith, e as respectivas tradiçções que derivam de seus pensamentos, na qual Honneth inclui Hegel e Durkheim, partiriam da necessidade de investigar a relação entre mercado e liberdade. No caso de Marx, a postura é fundamentalmente crítica, uma vez que os produtores de valor na economia moderna não seriam capazes de exercer sua liberdade na relação contratual devido à falta de alternativas (idem, p. 326).3 3 Esta é, evidentemente, uma leitura limitada do problema da compra e venda da força de trabalho em Marx e, mais ainda, uma leitura que deixa de fora toda a tese da exploração da força de trabalho na esfera da produção. Para críticas cuidadosas do modelo que Honneth adota aqui, Cf. Jütten (2015) e Kuch, (2018). O interessante, porém, é que Honneth apoia sua refutação da condenação geral que Marx faz do sistema capitalista naquilo que ele chama de “funcionalismo normativo”, isto é, a ideia de que uma esfera institucional não se mede somente por sua existência, mas pela disposição dos indivíduos em aceitarem e participarem dos valores que a sustentam (idem, p. 332-333). Nesse sentido, o mercado de compra e venda da força de trabalho nunca poderia aparecer como uma esfera de pura dominação, pois o processo de troca permanece sustentado por normas e valores pré-mercadológicos, mesmo quando as normas de mercado tendem a ferir os princípios do mercado (idem, p. 346). Para Honneth, o capitalismo, e particularmente sua forma neoliberal, que é mercada pelo egoísmo estratégico, representa modos de agir que atentam contra as normas implícitas de qualquer troca porque ferem o princípio moral de reciprocidade que legitima os mercados.4 4 É de notar que Honneth critica Marx pelo caráter especulativo de sua visão do capitalismo, lembrando que é empiricamente improvável que alguém prove a existência da pressão pela aceitação de um contrato de trabalho, ao passo que o modelo de Smith (e Durkheim) tem a vantagem de expressar uma aceitação tácita às regras de compra e venda da força de trabalho. A consequência desse funcionalismo normativo é, então, a separação entre o processo de troca organizado por um princípio de reciprocidade e satisfação recíproca, um mercado, e o modo de produção, distribuição e regramento da esfera de trocas, no caso presente, o capitalismo. Isso porque, a divisão do trabalho não é mais observada a partir de sua função, mas a partir de seu princípio, que é o da satisfação recíproca de necessidades materiais, ou seja, o princípio do reconhecimento em sua forma específica na esfera da produção.

Graças a essa mudança de foco, o desdobramento do argumento de Honneth é que não é o resultado moral da divisão do trabalho que legitima sua forma, mas seu pressuposto é que faz com que apareçam como mais ou menos legítimas as formas de realização do trabalho social – como normais ou anômicas, para usar o vocabulário durkheimiano. Todavia, é preciso que exista adicionalmente um processo social de reconhecimento das contribuições individuais à vida coletiva. Caso contrário, todo tipo de atividade poderia ser considerada social, desde que a pessoa realizadora assim o considerasse. Simplificadamente, enquanto Durkheim via a consciência da interdependência como um critério de autojustificação da divisão do trabalho, Honneth parece querer ver nessa interdependência o motivo pelo qual é impossível evitar uma norma implícita de reciprocidade nas sociedades modernas. No entanto, em um segundo momento, é preciso que a atividade individual satisfaça, ao menos potencialmente, necessidades de outra pessoa, pois do contrário a realização individual não é parte de uma rede de cooperação. Logo, o princípio de reciprocidade se realiza no trabalho social e é medido com o reconhecimento de que as realizações de uma pessoa servem à sociedade – em outros termos, que seu trabalho é socialmente necessário ou desejável.

A ideia de cooperação assume lugar central nos textos de Honneth apenas após as críticas de Nancy Fraser, no livro publicado conjuntamente por ambos (Fraser; Honneth, 2003). Antes disso, ele já aludira a seu papel como um ideal da democracia (Honneth; Farrell, 1998HONNETH, A.; FARRELL, M. M. Democracy as reflexive cooperation: John Dewey and the theory of democracy today. Political Theory, [S. l.], v. 26, n. 6, p. 763-783, 1998. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/191992. Acesso em: 22 nov. 2023.
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), mas no debate com Fraser, ela, entre outras coisas, critica uma tendência à “psicologização do conflito social”, pois Honneth entende a demanda por reconhecimento na esfera pública como uma demanda por estima social. Buscando responder a isso, Honneth passa a atribuir centralidade a um princípio de mérito na demanda por reconhecimento, de modo que este ganhasse uma mediação pública. Mais recentemente, ao responder às críticas de que sua teoria da moralidade do capitalismo teria abandonado o teor crítico que marca a tradição da Escola de Frankfurt, ele procurou mostrar que formas de cooperação democrática seriam o corretivo tanto à intensificação do egoísmo autocentrado quanto do burocratismo tecnicista (Honneth, 2015a, cap. 3 e 4). Finalmente, em um artigo chamado “Is there an emancipatory interest? An attempt to answer Critical Theory’s most fundamental question” (2017), Honneth assume a ideia de cooperação como o mecanismo central de organização das sociedades modernas. Nesse texto, a ideia de cooperação possibilitaria entender as formas de interação em uma sociedade a partir de seu potencial de conflito, porém não reduziria as formas desse conflito aos interesses imediatamente econômicos de classes sociais, mas sim aos interesses latentes de reconhecimento do próprio valor expresso por grupos e coletivos de pessoas em situação de desvantagem social:

In the tradition that includes Hegel and Dewey as its main exponents, the source of recurrent social struggles is thought to lie in the fact that any disadvantaged social group will attempt to appeal to norms that are already institutionalized but that are being interpreted or applied in hegemonic ways, and to turn those norms against the dominant groups by relying on them for a moral justification of their own marginalized needs and interests (Honneth, 2017HONNETH, A. Is there an emancipatory interest? An attempt to answer Critical Theory’s most fundamental question. European Journal of Philosophy, [S. l.], v. 25, p. 908-920, 2017. Disponível em: https://blogs.law.columbia.edu/critique1313/files/2019/09/Is-There-an-Emancipatory-Interest.pdf. Acesso em: 22 nov. 2023.
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, p. 914).

Particularmente interessante nesse trecho não é a ideia de reinterpretação crítica das normas sociais, embora esse – que é centro de gravidade do texto, para a proposta de Honneth – seja um ponto importante. Antes, essa tradição na qual Honneth quer ver um potencial de conflito social tem a propor sociologicamente a ideia de que normas sociais são permanentemente interpretadas e aplicadas como formas de interação social. Isso significa, no que diz respeito à esfera do mercado e do trabalho social, que o que nós vivenciamos como a divisão social do trabalho é, essencialmente, a tradução prática institucionalizada de uma interpretação da norma de que, em sociedades modernas, nós trabalhamos umas e uns para os outros e as outras.

Retomando de modo preliminar a ideia aqui exposta, Honneth teria iniciado sua reconstrução normativa da moralidade na esfera do mercado notando que há uma norma implícita que legitima essa esfera aos olhos dos participantes. A seguir, ele teria exposto como essa norma, na modernidade, ganha a feição de um princípio de consciência da reciprocidade, isto é, de um princípio de reconhecimento recíproco das pessoas com quem interagimos. Com isso, ele espera ter identificado uma esfera prévia à troca capitalista de mercadorias, uma esfera moral à qual se poderia chamar genericamente de mercado de compra e vendada força de trabalho. Finalmente, nesse mercado de compra e venda das habilidades e contribuições individuais, o que propiciaria às pessoas a chance de participação ativa na vida social é que suas contribuições sejam socialmente necessárias ou desejáveis, alçando-as assim a um segundo nível de reconhecimento, desta vez não mais referente ao princípio interno de reciprocidade, e sim à esfera social do mercado. Nessa esfera de circulação do reconhecimento é que as contribuições são medidas como atividades profissionais, de modo que, ao realizá-las, sujeitos estariam mobilizando as normas institucionalizadas e interpretadas de uma maneira particular como critérios de avaliação da sua capacidade de cooperar socialmente.

A consequência teórica disso tudo, inicialmente, é que haveria uma normatividade própria à meritocracia, e ela se expressaria no entrelaçamento entre trabalho socialmente organizado, identificação funcional com a reprodução social e reconhecimento social. Esse entrelaçamento de trabalho, identificação e reconhecimento se daria justamente pela mobilização de méritos individuais em um contexto de produção social. E é uma visão bastante condizente com a ideia de uma divisão do trabalho qualificada, se imaginamos um mundo de garantias estáveis à atividade laboral, um mundo no qual a associação pública e coletiva a grupos de representação de interesses é fomentada pela solidariedade funcional, um mundo no qual a esfera do mercado é capaz de absorver de modo organizado as contribuições individuais porque se rege pelo paradigma da integração social por meio da produção socialmente útil. Em suma, um mundo diferente do nosso.

A BARBARIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO E O MUNDO DO TRABALHO (II)

A seguir, pretendo, em um primeiro passo, tentar demonstrar que, a despeito de seu caráter fortemente normativo, o entendimento de Honneth a respeito da divisão social do trabalho não deixa de ser adequado para a compreensão das relações de trabalho atuais por dois motivos. Por um lado, porque o autor não a toma como um modelo ideal de relações de trabalho, mas como o quadro de referências histórico no qual o moderno mercado de trabalho se formou e, justamente por preceder o processo, do qual as relações atuais se descolam. Essa é a tese honnethiana da “barbarização do conflito social” (Honneth, 2011b, 2014).

Por outro lado, porque a tese da barbarização parece direcionada ao princípio da reciprocidade e não à esfera do trabalho e do mercado, ela poderia ainda ser interpretada como uma reconfiguração histórica da interpretação e institucionalização de normas societárias. Desse modo, seria possível defender a tese de que a reconstrução normativa de Honneth teria de ser entendida a partir de três dimensões: histórica, normativa e sociológica, nessa ordem.5 5 O modelo do livro O direito da liberdade seria, em oposição a essa ordem de desdobramentos, organizado como se as normas legitimassem um movimento histórico, implicando assim numa análise de duas dimensões: normas e história sociológica, nessa ordem.

Comecemos pela tese da barbarização. No texto em questão, Honneth explica que, em algumas análises de Talcott Parsons, encontra-se a tese de que o que move os indivíduos é o medo de perder o respeito social ao qual aspiram, de modo que o impulso à ação viria de normas a respeito de obrigações recíprocas, que são tornadas socialmente vinculantes (Honneth, 2014). Dentro dessas esferas de ação, porém, ao menos nessa versão não oficial da teoria parsoaniana, os subsistemas de ação estariam propensos à reinterpretação de suas normas constitutivas na medida em que os indivíduos não buscam apenas integração às normas vigentes, mas também satisfação para suas necessidades de autorrespeito, ou seja, lutam também por reconhecimento (idem). Dentro desse quadro, as disposições para a obtenção do autorrespeito por vezes são barradas por uma organização que aparece aos olhos dos sujeitos como injusta. Nesse caso,

estas esferas institucionais de reconhecimento funcionalmente especializadas oferecerão uma razão para conflitos sociais sempre que alguns dos participantes acreditarem identificar motivos para a suposição de que aqueles parâmetros normativos prejudicam suas próprias contribuições ou sequer lhes oferecem qualquer chance de conquista do respeito (Honneth, 2014HONNETH, A. Barbarizações do conflito social. Lutas por reconhecimento ao início do século 21. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 154-176, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/civitas/a/7VtYhWD8PvQfSfVNQQVBzWM/?lang=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
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, p. 157).

Assim como no texto sobre o potencial emancipatório da noção de cooperação, aqui Honneth estabelece a ideia de um ordenamento implícito do reconhecimento recíproco como o quadro dentro do qual se move a interação social. Mas aqui, mais explicitamente do que no outro texto, o conflito é atribuído a uma percepção de autorrespeito pelas próprias contribuições. Uma consequência dessa proposição é que, ao tratar da cooperação e da reinterpretação de normas, ele se ocupava primordialmente em destrinchar uma lógica interna de movimentos emancipatórios, ao passo que aqui ele se ocupa com a explicitação de uma gramática interna do próprio conflito social.6 6 Não por acaso, no artigo “Barbarizações do conflito social” há uma tentativa de aproximação entre Parsons e uma perspectiva interacionista, perspectiva essa da qual Honneth vinha se afastando já desde antes do debate com Fraser. Ocorre que essa apropriação que Honneth faz de certos escritos de Parsons o deixa em uma espécie de meio do caminho entre dois pontos de sua trajetória: se no período em que escreveu seu primeiro livro da perspectiva de uma teoria do reconhecimento, Luta por reconhecimento (2003b; ver também 2018) importava ao autor descrever o mecanismo de indignação moral que poderia vir a instigar a publicização de demandas por reconhecimento, isto é, descrever as experiências de injustiça, no livro O direito da liberdade, como já visto acima para o caso do mercado, o tema é o desvelamento de uma ordem de legitimação implícita. Entre ambos os textos, então, há uma passagem da esfera da motivação dos conflitos para a esfera do diagnóstico de patologias e falsos desenvolvimentos das estruturas normativas da sociedade. O papel do conflito social, que fora tão central na primeira monografia, acaba perdendo espaço para a ideia de legitimação, no segundo livro.

Ao recuperar a teoria marginal de Parsons, no entanto, Honneth identifica a ideia de que

os quatro complexos institucionais do moderno sistema social, a saber, a economia, a democracia parlamentar, o direito e a família, assumem para Parsons cada qual a dupla função: de uma performance de serviços mantenedores do sistema concomitante com a satisfação normativamente regulada de expectativas de reconhecimento. Cada uma das instituições mencionadas deve, então, encarnar os valores generalizadamente aceitos na modernidade de tal forma que permita aos membros individuais da sociedade executarem as tarefas deles esperadas dentro da divisão do trabalho com a perspectiva normativamente estabelecida de serem recompensados com uma forma determinada, institucionalmente específica, de reconhecimento (Honneth, 2014HONNETH, A. Barbarizações do conflito social. Lutas por reconhecimento ao início do século 21. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 154-176, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/civitas/a/7VtYhWD8PvQfSfVNQQVBzWM/?lang=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
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, p. 158-159).

Em Luta por reconhecimento (2003b, cap. 8), fundamentalmente, os conflitos sociais eram encarados como um mecanismo de ampliação das próprias normas de socialização, de modo que seu sucesso coletivo significava, em primeiro lugar, um processo de progresso moral e, em segundo lugar, um processo de afirmação da diferença. Como, porém, o progresso moral associado aos movimentos sociais não poderia ser enquadrado em um chave tipicamente marxista, Honneth evitara qualquer alusão a uma noção de vida boa que fosse mais substancial do que a autorrealização individual. No trecho citado acima, contudo, a mudança é patente, dado que as recompensas esperadas pelos indivíduos sob a forma do reconhecimento estão ancoradas em uma perspectiva normativamente orientada”. Nesse pequeno texto, o argumento do autor parece menos rígido do que em O direito da liberdade porque, ao invés de incorporar a participação dos indivíduos em uma dada esfera de ação como índice de sua estruturação enquanto encarnação do princípio de reciprocidade, ao preparar o terreno para tratar da barbarização do conflito social, ele situa um espaço específico do conflito social na busca por recompensas orientadas por normas legitimadas.

Novamente, se isso estiver correto, não se trataria aqui de pensar uma história moral do ponto de vista do reconhecimento, como em Luta por reconhecimento, e nem de pensar uma crítica interna da autorrealização dos princípios de legitimação das sociedades modernas, como em O direito da liberdade. Antes, nesse meio de caminho, o problema seria identificar, descrever e eventualmente criticar sociologicamente a maneira como se dá a relação entre cooperação, conflito e reconhecimento, e quais as suas consequências para a ordem social. A partir de agora, quero tratar desse programa de pesquisa como uma teoria sobre a sociologia do trabalho orientada pela noção de reconhecimento.

Antes de prosseguir, então, é preciso somente notar que essa conexão entre cooperação, conflito e reconhecimento aparece como privilegiadamente sociológica porque os temas da cooperação e do conflito são expostos por Honneth como funções da reprodução social, como se fossem “obrigações de papéis”, que possuem efeitos éticos sobre as sociedades (Cf. Hardimon, 1994HARDIMON, M. O. Role obligations. The Journal of Philosophy, [S. l.], v. 91, n. 7, p. 333-363, 1994. https://doi.org/10.2307/2940934
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). Desse modo, toda a argumentação de Honneth após o debate com Fraser – e já antes segundo Jean-Philippe Deranty (2005)DERANTY, J.-P. Les horizons marxistes de l’éthique de la reconnaisance. Actuel Marx, [S. l.], n. 38, p. 159-178, 2005. https://doi.org/10.3917/amx.038.0159
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– se baseia em uma forma de submersão dos imperativos funcionais do reconhecimento em imperativos comunicativos. Disso decorre que, enquanto o trabalho de reconstrução normativa, exatamente por ser normativo, é uma investigação na qual devem ser expostas as bases filosóficas de uma sociedade, ao lidar com o conflito social enquanto demanda por reconhecimento, é das interações entre grupos sociais e de suas pressões interpretativas sobre as normas da sociedade que se trata.

Dito isso, finalmente, é possível tentar demonstrar que a ideia de barbarização do conflito social ou, posto de outro modo, do descolamento entre os pressupostos que fundamentam o mercado de trabalho e as práticas ali desenvolvidas, é direcionada ao princípio de reciprocidade. A tese de Honneth, no artigo, é de que o sistema de compensações através do reconhecimento depende daquelas “perspectivas normativamente estabelecidas”. No entanto, ao tratar dos limites do modelo parsoniano para a análise do presente, o alemão não ataca o argumento de um sistema de compensações, mas seu conteúdo histórico:

Com as mudanças políticas, culturais e econômicas ocorridas no último terço do século 20 também se deslocaram imperceptivelmente as interpretações normativas que nos três complexos institucionais do direito, da economia e da família emprestam aos princípios constitutivos seu respectivo sentido atual e praticamente relevante (Honneth, 2014HONNETH, A. Barbarizações do conflito social. Lutas por reconhecimento ao início do século 21. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 154-176, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/civitas/a/7VtYhWD8PvQfSfVNQQVBzWM/?lang=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
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, p. 164, grifo nosso).

Essa afirmação, sociologicamente autoevidente, Honneth quer usar como indício de que Parsons já levara em consideração a possibilidade de “desenvolvimentos sociais que pudessem afetar consideravelmente o complexo de reconhecimento social assentado sobre compensações” (idem, p. 165), mas é notável que aqui ele não fala mais do conflito suscitado pela experiência do desrespeito, e sim sobre uma “interpretação normativa” que dá sentido “praticamente relevante” às demandas por reconhecimento. Lembremos então que, no movimento cooperativo de reconfiguração interpretativa de normas hegemônicas em favor de formas de justificação pública de interesses de grupos sociais marginalizados, era possível identificar um aspecto intrinsecamente emancipatório das práticas sociais associado à atividade de interpretação (Honneth, 2017HONNETH, A. Is there an emancipatory interest? An attempt to answer Critical Theory’s most fundamental question. European Journal of Philosophy, [S. l.], v. 25, p. 908-920, 2017. Disponível em: https://blogs.law.columbia.edu/critique1313/files/2019/09/Is-There-an-Emancipatory-Interest.pdf. Acesso em: 22 nov. 2023.
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, p. 916). Ora, se isso é correto, seria possível também falar do aspecto contrário, isto é, da interpretação normativa de sentido prático em favor do descolamento entre princípios e demandas por recompensas.7 7 Porque pretende atribuir um sentido normativamente legitimado ao processo histórico de ampliação das relações de reconhecimento, Honneth não associaria esse descolamento entre princípios e práticas a uma interpretação normativa, mas a um “desvio” ou “falso desenvolvimento” (2011a, p. 230). Pinzani (2012, p. 211) mostra como Honneth entende que um falso desenvolvimento se refere à desconstrução de um patamar social de reconhecimento atingido por uma sociedade, mas o problema continua a ser demonstrar essa desconstrução de modo dinâmico. É nesse sentido que se poderia afirmar que a tese da barbarização do conflito social diz respeito ao princípio da reciprocidade como um todo, e não à esfera do trabalho.

Como quero expor, a seguir, uma hipótese interpretativa a respeito da alteração da normatividade da meritocracia frente a diagnósticos recentes sobre a mudança na lógica das relações de trabalho, é preciso agora tentar mostrar que, a despeito do caráter amplo da tese da barbarização do conflito social, seu cerne remonta às mudanças na esfera do mercado. Minha estratégia aqui será bem simples: por um lado, basta demonstrar que as mudanças interpretativas nas outras esferas de integração com as quais Honneth se ocupa (fundamentalmente a esfera das relações privadas e a esfera da política democrática) passam por mudanças exclusivamente devido às mudanças nas formas de produção e distribuição centradas no mercado. Por outro lado, essas mudanças pelas quais passa o trabalho possuem um caráter, em alguma medida, externo à sua própria legitimação.

Em primeiro lugar, então, caberia notar que Honneth separa três esferas de realização do princípio de reconhecimento na modernidade. Tanto na terceira parte de O direito da liberdade quanto no artigo sobre a barbarização do conflito social, essas esferas seriam as relações interpessoais (família, relações íntimas), o mercado e a esfera pública democrática. A respeito da esfera das relações pessoais, é notório que, nos últimos dois séculos, e de modo mais acelerado desde a metade do século 20, os rearranjos familiares e as formas de satisfação das carências emocionais e afetivas foram gritantes. Esses rearranjos, que em larga medida se apoiam sobre a entrada cada vez maior de mulheres no mercado de trabalho e na regulamentação do respeito à infância e à adolescência como etapas formativas dos indivíduos, alteram as chances de obtenção de compensações simbólicas, abrindo novas dinâmicas de obtenção de reconhecimento social para essa esfera. Ainda que Honneth dê pouca atenção à divisão sexual do trabalho (Cf. Young, 2007YOUNG, I. M. Recognition of love’s labor: Considering Axel Honneth’s feminism. In: BRINK, B. van der; OWEN, D. (ed.). Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of Critical Social Theory. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2007. p. 189-214.), seu modelo parece assumir que a mudança na ordem familiar de demandas por reconhecimento é fundamentalmente motivada pelos efeitos que a nova dinâmica de mercado possui sobre a esfera da intimidade e da divisão sexual do trabalho (Rössler, 2007RÖSSLER, B. Work, recognition, emancipation. In: BRINK, B. van der; OWEN, D. (ed.). Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of Critical Social Theory. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2007. p. 135-163.). Além disso, nessa nova situação, crianças e adolescentes ocupam novos papéis familiares, não mais como meros educandos, mas especialmente como provedores de capital social e de reconversões de valores e obtenção de reconhecimento público para si e para os pais por meio da educação, de modo que a oferta e a comercialização de vagas escolares e universitárias parece se alterar não apenas para cumprir imperativos capitalistas, mas porque a oferta desse tipo de serviço pode prover formas de distinção e diferenciação (Honneth, 2015b). Do mesmo modo, rearranjos democráticos são efetivamente sediados nas demandas por participação, mas as ocupações públicas de espaço estão intimamente ligadas à capacidade de que pessoas possam participar de modo ativo na vida pública por meio da obtenção de condições dignas de exercício da cidadania, como diferentes autoras e autores vêm insistindo ao afirmar a indissociabilidade das lutas por reconhecimento das lutas por redistribuição. Nancy Fraser é, certamente, a mais famosa dentre essas, mas sua posição é de que o conceito mesmo de reconhecimento utilizado por Honneth está errado. Quando, porém, esse exercício é realizado a partir do ponto de vista das condições de participação, um dos critérios frequentemente mencionados para a publicização de lutas por reconhecimento é a capacidade, geralmente atribuída ao Estado, de fornecer meios econômicos aos atores sociais para que possam participar da vida pública (Cf. Silva, 2017SILVA, J. P. Nota crítica sobre a (in)condicionalidade. Revista Brasileira de Sociologia, [S. l.], v. 5, n. 10, p. 5-29, 2017. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6227068. Acesso em: 22 nov. 2023.
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).

Quanto ao segundo problema, seria impossível, nos limites deste texto, retomar a antinomia entre o “problema de Smith” e o “problema de Marx” a fim de criticar a ordem de prioridade afirmada por Honneth, mas é importante notar que a leitura que Honneth faz do problema da dominação em Marx tende a minimizar a maneira como este último atribuía um caráter ambíguo aos contratos de trabalho, particularmente na famosa passagem do primeiro livro d’O capital, em que a compra e venda da força de trabalho são consumadas graças à dupla liberdade do trabalhador, uma situação que Marx caracteriza como historicamente não natural (Marx, 2013, p. 244; para comentários a esse respeito, Cf. Lohmann, 2018LOHMANN, G. Von der Entfremdung zur Entwürdigung. In: DANNEMANN, R.; PICKFORD, H.; SCHILLER, H. (ed.). Der aufrechte Gang Im windschiefen Kapitalismus: Modelle Kritischen. Wiesbaden: Springer Fachmedien Wiesbaden, 2018. p. 3-36., Kuch, 2018KUCH, H. Liberdade social e socialização do mercado. Civitas, Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 580-610, 2018. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2018.3.31415. Disponível em: https://www.scielo.br/j/civitas/a/VJ77MdRhb3T3hfGsSq4bL6L/?lang=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
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). Ora, aceitando-se o caráter duplo da liberdade do fornecedor de força de trabalho, é possível identificar na descrição que Marx faz do mercado uma relação que é, ao mesmo tempo, de subordinação e de legitimidade. Finalmente, isso significaria que o movimento histórico “não natural” – em termos marxistas, o imperativo de valorização capitalista por meio da criação de capital – depende também de formas comunicativas e de interpretações das normas de integração vigentes. No que interessa ao presente texto, isso significa tão somente que as formas de interpretação cooperativas de normas são pressionadas externamente por processos históricos de reorganização do mundo do trabalho.

DOIS DISCURSOS, DUAS SENTENÇAS (III)

Até aqui foi montado um quadro teórico no qual tentei resgatar uma ideia quase soterrada na obra de Honneth e relacioná-la, em primeiro lugar, ao programa de uma teoria crítica sociologizada e fortemente voltada aos processos de interpretação cooperativa das normas de integração; e, em segundo lugar, a um quadro mais amplo de uma teoria da sociologia do trabalho, que é o que sugiro que se trate como uma sociologia do trabalho orientada pela ideia de reconhecimento. Na presente seção, quero submeter o quadro assim delineado à discussão das entrevistas aludidas na introdução do texto.

Essas entrevistas são tidas como exemplares de possíveis alterações no quadro de referências das recompensas sociais oferecidas em forma de reconhecimento através da mudança na oferta de atividades autônomas. Para isso, foram selecionados dois grupos de profissionais tomados como modelos estilizados de atividade autônoma de diferentes momentos históricos das relações trabalhistas no Brasil.

O primeiro grupo profissional selecionado é formado por vendedoras e vendedores autônoma(o)s, ou representantes comerciais, que realizam suas atividades laborais por meio da venda de mercadorias em representação a grandes firmas atacadistas, mas que não são oficialmente contratados por essas firmas, e sim microempresários que recebem seus salários por comissão. A despeito dessa situação, representantes comerciais não são os proprietários dos produtos que vendem, de modo que sua relação com as firmas atacadistas é a de uma representação comissionada. O segundo grupo profissional selecionado é formado por trabalhadores envolvidos na prestação de serviços de mobilidade automotiva e que realizam suas atividades profissionais graças à mediação de aplicativos de celular, como, por exemplo, na Uber ou no Táxi 99. Nesse caso, ao contrário do outro grupo, há um acordo firmado diretamente pelo aplicativo entre o proprietário do automóvel e a empresa.

A escolha desses grupos profissionais se deveu a algumas especificidades em sua constituição histórica, que acredito que podem servir como elementos para refletir a constituição de um sistema complexo de divisão do trabalho. Assim, a representação comercial foi legalmente regulamentada já em 1965 e experimentou o estabelecimento de seu Conselho Federal em 1966. Quanto ao Uber, não se trata de um emprego direto, mas de uma prestação de serviços cuja natureza jurídica ainda vem sendo discutida. Inicialmente, é possível notar que uma das principais diferenças entre as atividades é a posição da trabalhadora ou do trabalhador frente aos meios de produção. Mas um olhar mais atento demonstra que, além da mudança de posição, o contexto histórico em que cada uma delas se firma como parte da paisagem do mundo do trabalho não apenas está associado com épocas históricas do Welfare (sua consolidação nos anos 1960 e seu desmonte neoliberal nos anos 2010), mas principalmente com a mudança em uma lógica de prestação de serviços. Essa mudança, que deverá ficar clara a seguir, se associa diretamente com a passagem de um contexto no qual serviços oferecidos demandavam que o prestador satisfizesse interesses já estabelecidos do comprador para um contexto no qual o prestador se enxerga como um facilitador. Essa mudança, como se verá, tem impactos sobre a demanda por autorrespeito sob a forma de reconhecimento social.8 8 Esses impactos, evidentemente, não devem ser tomados como tendências gerais, mas como indícios do modo como o ideário do trabalho individual meritocrático está presente no ideário dos indivíduos envolvidos. A respeito da presença dos discursos sobre o trabalho no ideário de atores sociais, Cf. Silva (1996).

No presente texto, quero apresentar passagens de três entrevistas que considero exemplares da discussão com a qual finalizei a parte anterior, isto é, a de que novas formatações do trabalho exercem pressão sobre as interpretações cooperativas das normas de reconhecimento e autorrespeito no mercado, que, por sua vez, permitem aos indivíduos, primeiro, reivindicar o reconhecimento social da própria atividade e, segundo, identificar-se com a participação em uma forma qualificada de divisão do trabalho. As entrevistas foram realizadas de modo semi-estruturado, seguindo um questionário com ligeiras modificações devido à natureza das profissões. As questões eram divididas em quatro eixos temáticos e visavam uma investigação sobre a representação de cada um dos entrevistados a respeito de seu mérito individual e profissional frente à situação de sua atividade profissional no mercado de trabalho.9 9 Salvo quando informado o contrário, as notas de rodapé do resto desta seção do texto serão trechos das entrevistas e serão mencionadas diretamente entre aspas. Os trechos em negrito são minhas intervenções e os demais são trechos dos entrevistados.

A primeira entrevista foi realizada com o representante comercial Antônio Cláudio Vieira, do Atacado Vila Nova. Vieira tinha 58 anos à época da entrevista e trabalhava para o Vila Nova há 18 anos. Antes disso, fora balconista de uma mercearia e trabalhara por dez anos em um banco. Iniciando por sua autorrepresentação profissional, Vieira entende a si mesmo como “empregado e empregador” devido à necessidade de atentar para os lucros da firma, que vê como diretamente conectados aos seus:

Eu sou os dois, sou empregado e empregador. [Ãh-rã. E por que que você acha que, que você se descreve desse jeito?] Ah, porque eu tenho que olhar meu lado como patrão, como dono da empresa, certo? Que se eu vender…se eu fizer coisa, vamos supor: tem um produto lá que eu sei que o peço tá errado, tá muito barato demais. Se eu vender, concorda que o patrão tá tendo prejuízo? [Hum-rum] Então, é melhor a gente não vender. Então vamos ver o lado do patrão, agora, do empregador. Se eu fizer isso aqui vou ferrar a empresa, então não faço. Então vamos vender o que realmente dá lucro para a empresa. Aí entra o lado do empregado, né? O empregado tem que dar lucro para a empresa, porque se a empresa não tiver lucro, meu filho, eu tô sem emprego (Entrevista de Antônio Vieira da Silva, grifo nosso).

A entrevista de Vieira é a única em que a ideia de “liberdade” da atividade não é central para sua escolha da profissão e nem entre os aspectos mencionados como atrativos na profissão – de fato, o entrevistado não menciona a palavra liberdade ao longo da entrevista. Respondendo às questões desse complexo temático, Vieira enfatiza as experiências individuais e o acúmulo de conhecimento, tanto de pessoas como de relações, como aquilo que lhe pareceu mais atrativo no momento da escolha da profissão.

Já nessa apresentação, é possível identificar que se trata de uma percepção da atividade profissional para a qual a presença de relações interpessoais desempenha um papel relevante. Essa interpretação parece ganhar força por recorrentes referências à percepção de que sua profissão é realizada como uma prestação de serviços para o cliente, mas que é feita por meio de uma relação pessoal que vem se abalando com a inserção de novas tecnologias de comunicação: “Você tem que vender preço e prestação de serviço. O cara que fica no whatsapp, ele tá fazendo só preço […] por whatsapp você não sabe nem se a mãe do cara está viva”. Para além dessa percepção das relações interpessoais, porém, o entrevistado menciona que delas decorre um respeito entre o vendedor e seu cliente, mas que essa relação depende justamente do fato de que há uma certa compreensão da atividade profissional. Assim, por exemplo, há a seguinte explicação:

Pergunta: Você considera que sua atividade individual recebe reconhecimento social?

Resposta: O respeito que os próprios clientes tem com você, certo? Porque você tá ali prestando um serviço, inclusive, pra eles. Muitos encaram assim, já… já tá amadurecendo aquele negócio, “você não veio aqui tomar meu dinheiro, você veio aqui me dar dinheiro.” Antigamente muita gente… “Ô, lá vem o vendedor tomar dinheiro de mim!”. Não é assim. Nós vamos lá levar dinheiro pra ele (Entrevista de Antônio Vieira da Silva).

Tal posição, aqui formulada de forma lapidar, se repete em alguns trechos da entrevista e indica uma percepção indireta do papel do representante comercial na divisão do trabalho, mas também que o reconhecimento recebido se expressa antes em termos de conexão pessoal com os clientes. Essa forma de expressão é particular dessa entrevista e se opõe às outras entrevistas, nas quais o respeito é mencionado, mas sempre acompanhado pela menção às recompensas financeiras. Essa diferença é notável ao comparar uma resposta do entrevistado em questão, Antônio Vieira, com a de outro representante comercial do mesmo Atacado Vila Nova, Fábio Alexandre, de 40 anos, graduado em Administração, vendedor há 21 anos. Em resposta às questões sobre o reconhecimento social atribuído à sua profissão, Vieira havia dado a resposta mencionada acima, adicionando a seguir: “já fui em vários casamentos de filhos de clientes meus”. Fábio, por outro lado, parece ressaltar as fragilidades da percepção da atividade laboral frente a formas de trabalho não autônomas, mas entende que as compensações simbólicas advêm da percepção do sucesso profissional:

A gente era visto como meio que, vagabundo. Porque você não tem muito horário para sair de casa […] Porque na época em que eu comecei ficava em casa, tinha que trabalhar em casa ou no computador, “Não, mas o cara sai de casa dez horas da manhã para trabalhar, pô”. Não havia esse reconhecimento. Hoje não, né? Aí vê que acaba tendo sucesso, tendo uma condição de vida muito bacana, então aí acaba mudando o conceito […] Daí a partir da hora que começa a ter sucesso, começam a te olhar diferente, mas em si na representação acho que ainda acham que é meio vagabundão […] Aí as pessoas começam a acreditar no seu trabalho […] Aí já não é mais vagabundo, daí acaba sendo representante comercial, acaba sendo empresário (Entrevista de Fábio Alexandre).

A percepção das recompensas financeiras, no segundo caso, parece indicar uma prevalência da expressão do reconhecimento como assalariamento. Porém, assim como na entrevista anterior, também Fábio parece possuir uma percepção da avaliação social à qual está submetida sua própria atividade. Tanto Fábio quanto Vieira se apoiam em uma percepção indireta da divisão do trabalho, ainda que o modelo de recompensa seja mais ou menos associado à esfera do dinheiro e da distinção social. Ambos, porém, claramente associam a estima ao respeito atribuído a seus esforços dentro de um ambiente profissional.

Esse não é o caso da terceira entrevista, do motorista por aplicativo Alexandre Paiva, de 43 anos à época. Alexandre foi empregado de uma seguradora e ex-proprietário de uma pizzaria, que faliu, e era motorista de Uber em Florianópois desde outubro de 2016. Após o início de sua atividade na Uber, teve curta experiência como assessor político em Brasília, optando por voltar a Florianópolis rapidamente. Alexandre vê a si mesmo como um prestador de serviços e parceiro da empresa:

Eu me vejo como um fornecedor de serviços para a empresa. Eu tenho um automóvel, eles têm um cliente e a gente entre num consenso [...] Eu não me vejo como empregado, eu não dou satisfação para eles […] Eu não devo nada a eles, além de estar à disposição, e nem eles de pagar o que me devem […] É uma relação de confiança (Entrevista de Alexandre Paiva).

Ao contrário das entrevistas dos dois representantes comerciais, a conversa com Alexandre apontou a forte presença da recompensa financeira, mas descolando-a do reconhecimento social. De fato, respondendo ao complexo de questões diretamente formuladas a respeito do reconhecimento individual e profissional, o entrevistado ressalta: “Eu não busco reconhecimento social” e, na mesma direção, indica que sua contribuição específica para a sociedade por meio de sua atividade profissional é “prestar serviço à sociedade, que é levar e buscar os passageiros”, mas menciona que essa atividade contribui para a melhoria da qualidade de vida, contrapondo o transporte por meio do automóvel particular ao transporte coletivo, assim como a possibilitação da experiência do transporte automotivo para camadas populares. Todavia, esse momento de situação social da atividade aparece em apenas dois momentos da entrevista, que, via de regra, é mercada por um discurso de autoempreendimento e conquista individual possibilitada pela parceria com a empresa. Nesse sentido, mais do que se enxergar como uma pessoa que se relaciona com a empresa, Alexandre parece se considerar alguém que é capaz de instrumentalizar as ofertas de uma grande corporação, como na seguinte resposta:

Pergunta: você considera que tem sua força de trabalho explorada? Quem te emprega – inclusive se for você mesmo – explora sua força de trabalho?

Resposta: De maneira alguma, não me sinto explorado de maneira alguma […] Para o que a empresa se propõe a fazer, a empresa entrega […] Você pode puxar inclusive pelas propagandas. ‘Faça uma renda extra com o Uber’. Ela não se propõe a ser uma emprega-do-ra […] A Uber não te prometeu nada, então não existe exploração, não existe […] Existe uma cultura, eu acho que até do ser humano, também, você sempre quer mais, você sempre quer ganhar mais […] mas baseado no que a empresa propôs, no que você aceitou […] você vai ter o seu pagamento em dia, você não vai ter problemas, você não tem obrigação, você não tem exigência nenhuma da empresa […] como é que eu vou me sentir explorado se eu posso de repente desligar o aplicativo e não trabalhar mais? Você não vai ter nenhuma sanção se você decidir não trabalhar mais (Entrevista de Alexandre Paiva).

A disposição para o ganho pessoal, que na fala de Alexandre aparece naturalizada, é também mencionada em outros momentos, dos quais o mais importante é relacionado por ele à discussão sobre regulamentação das relações trabalhistas. Após já ter mencionado, em uma pergunta a respeito dos aspectos que lhe pareceram atrativos no momento de escolha da atual profissão, que, além da liberdade e do retorno financeiro rápido, a taxa de ganho também é interessante, pois o entrevistado dá uma longa resposta a uma pergunta direta sobre a comparação entre atividade autônoma e o trabalho regulamentado. Segundo ele, “você faz aí na média 20-25 reais por hora trabalhada, são dez horas por dia de trabalho, aí te dá 250 reais, então se você tiver um custo bem controlado você consegue ganhar pelo menos 200 reais por dia, o que empresa nenhuma te dá”.

Perguntado sobre como vê a relação entre as duas formas de trabalho, autônomo e regulamentado, inicialmente, ele afirma que: “Tem gente que está satisfeita com a suposta estabilidade […] com um salariozinho de 2 mil reais por mês... agora se a pessoa quer algo mais, é a hora de entrar, ir pra alguma coisa autônoma”. Em seguida, afirma ser a favor da flexibilização como um acordo entre patrões e empregados, entendidos por ele como fornecedores de mão de obra. E então o trecho em que a disposição para o ganho pessoal aparece de modo mais explícito na entrevista:

[...] estou muito satisfeito com essa minha atual situação, porque o meu ganho depende só do meu esforço. Quanto mais horas eu dirigir, mais eu vou ganhar, sendo que, na CLT, você é obrigado a trabalhar só 8 horas, aí se você quiser ficar mais é tão caro para o patrão te pagar hora-extra que ele nem te bota pra pagar hora-extra […] você vai ter que ganhar só aquilo ali e deu. Eu não, se eu quiser trabalhar 20 horas por dia – se eu tô na disposição, como eu já fiz, em várias situações, né? O movimento está bacana, vamos trabalhar, legal – pô, você faz 500 reais num dia. Qual empresa te faz 500 reais num dia? Entendeu? Então, quer dizer, eu acho que esse engessamento que a CLT dá é prejudicial pro todo, pro conjunto da sociedade, na minha opinião (Entrevista de Alexandre Paiva).

A continuação da resposta é uma defesa da capacidade de geração de empregos da Uber, inclusive com um breve – e aparentemente inadvertido comentário sobre a condição do trabalho e do assalariamento proposto pela empresa10 10 “Mas eu acho que é errado no Brasil você querer fazer com que a empresa Uber dê estabilidade pro motorista. Eu acho isso que… isso vai acabar prejudicando a criação de postos de trabalho e oportunidade de emprego. Por que vamos supor: aí interdita a Uber, agora imagina qualquer outro tipo de empresa puder fazer a mesma coisa, com certeza os postos de trabalho vão ser ampliados. A gente vai acabar com o desempr… mas talvez você não tenha aí uma alta renda pra todo mundo, mas pelo menos não vai ter desempregado […[ Então, você não pode criar muita regra para que as empresas criem oportunidades, na minha opinião, então eu acho vantajoso que as empresas possam, sim, não ter esse vínculo. E o, a mesma coisa o empregado. Você não tem vínculo nenhum como eu te falei, eu já fiquei três quatro meses sem trabalhar e […] e tem uma outra opção também: a gente pode trabalhar onde a gente vai, né? Isso é fantástico. Com a regulamentação que tá sendo convocada, isso é proibido, que eles querem colocar a placa do carro da cidade só […] Então, quer dizer, essa liberdade é fundamental, eu acho isso fantástico. E quando o empregado ali, é, é vive naquela mesma mentalidade do passado, começa a sentir essa liberdade, o cara nunca mais quer mais voltar […]” (Entrevista de Alexandre Paiva ao autor). – mas o que me interessa aqui é tomar esse trecho e compará-lo com a disposição ao ganho e à autoexploração expressos pelo representante comercial Antônio Vieira em resposta à mesma pergunta sobre a exploração da força de trabalho. A resposta também é longa, e Vieira inicia dizendo que a exigência é internalizada, e não propriamente expressa pelo empregador. Ainda que tenha metas de vendas a cumprir, o representante não se ocupa somente com elas, mas com a pressão concorrencial interna à firma, com a perda do emprego. Assim, o objetivo da atividade, inicialmente, parece ser o de cumprir as metas propostas pela firma por meio da internalização de uma disposição à exploração da própria força de trabalho por tanto tempo quanto for necessário:

[…] hoje não exige assim… que você venda, vamos supor, no sábado, certo? Só que você por si, se sente obrigado a vender, porque vai ter ajudar a fechar aquele objetivo seu. […] Como a gente é, éhh, é representante, se você não produzir, você não ganha. Que vai acontecer? Se você não produzir, você não vai ganhar e o seu patrão vai tirar fora você, vai pôr em outro lugar. Concorda comigo? Então é aonde eu acho que… é…hoje o Vila Nova até exigiria, mas quem exige é a gente mesmo. É nós mesmo nos exigimos pra poder alcançar os números. […] o Vila Nova não obriga você a trabalhar no sábado, vamos supor, só que eu me sinto na obrigação porque eu preciso produzir (Entrevista de Antônio Vieira).

Porém ocorre que, nesse caso, a instrumentalização da possibilidade de ganho não é realizada em função de uma disponibilidade ampliada para a autoexploração, mas pelo seu contrário, o estabelecimento de barreiras. Assim:

Tem muitas vezes que às vezes na segunda, na terceira semana do mês, você já tá com a cota tudo fechada, então na quarta semana o que você faz? Você tira o pé, dá uma relaxada, dá uma esfriada na coisa. Agora, há, se você num tá, se você não conseguir fechar, você vai ter correr atrás pra fazer (Entrevista de Antônio Vieira).

A diferença na instrumentalização da disposição ao trabalho autoexploratório e à consequente mobilização da possibilidade ampliada de ganho, no caso do primeiro entrevistado, parece indicar que o representante comercial possui uma percepção indireta não apenas da sua situação no quadro geral da divisão social do trabalho, como já visto, mas também das formas de exploração e autoexploração em que sua profissão se insere.11 11 Evidentemente, é preciso levar em consideração que as disposições geracionais e familiares, bem como as trajetórias empregatícias, desempenham um papel relevante tanto nas diferentes perspectivas entre os representantes comerciais quanto entre esse grupo e outros grupos profissionais. Disso, afinal, é possível inferir ainda uma diferença nas percepções do mérito social de cada uma das profissões.

Ao longo da conversa com o motorista Alexandre, o principal aspecto positivo atribuído por ele à atividade foi a possibilidade de ganhos financeiros rápidos e adequados propiciada pela liberdade no compromisso estabelecido entre empresa e empregado. A despeito das frequentes afirmações de que o trabalho para a Uber deveria ser visto como um trabalho temporário, o entrevistado reitera que essa é uma alternativa de empregabilidade fundamentalmente positiva e a associa ao acesso assalariado ao mercado. Ainda comparando as condições de empregabilidade em empregos regulamentados ou autônomos, ele afirma:

[…] a empresa tendo ali um vínculo empregatício com você, ela já não ia contratar tão facilmente., ia ser mais difícil pra ela contratar. A gente aqui tem a estimativa de que são três mil motoristas em Florianópolis. Jamais a empresa ia contratar três mil pessoas se fosse na CLT, isso é fato. Então tem uma opção a mais pra quem tava desempregado, né, de uma maneira rápida ali. Como eu te falei: você tem que entender qual a proposta. Desde o início, a Uber se propõe a ser uma renda extra, ela não se propõe a ser uma profissão. […] você nunca vai pensar “Eu sou uma criança, meu sonho quando crescer é ser Uber”. Não! É uma maneira rápida de ganhar dinheiro, ponto (Entrevista de Alexandre Paiva).

Para Alexandre, a Uber aparece, por um lado, como alternativa a ser instrumentalizada em momento de crise, mas, por outro lado, a própria atividade ali proposta é vista como algo com o qual não se encontra uma identificação em termos de reconhecimento profissional. Em oposição a isso, o representante comercial Antônio Vieira situa sua própria atividade profissional em uma rede de interdependências:

Pergunta: Como você avalia sua contribuição profissional individual para o mercado de trabalho?

Resposta: Eu faço uma contribuição simbólica, até. Eu gero mais empregos, né? Mais mercado de trabalho, mais trabalhador na área […] Eu vou lá gerar mais empregos. Eu dependo de um monte atrás de mim e depois de mim ainda tem mais um monte que vai pra frente (Entrevista de Antônio Vieira).

UMA TEORIA SOCIOLÓGICA SOBRE A RELAÇÃO ENTRE TRABALHO E RECONHECIMENTO (IV)

Como deve estar claro desde o início, as entrevistas aqui citadas não possuem uma intenção de generalização. Antes, elas servem ao propósito de identificar indícios de uma eventual mudança na percepção do mérito individual e profissional de trabalhadores autônomos frente à emergência de novas formas do trabalho autônomo e a consequente institucionalização e fixação de um quadro de relações trabalhistas nas quais essas profissões são normalizadas. A literatura especializada já conhece muito bem formas de trabalhos que são, por assim dizer, naturais desse contexto – ou ainda, formas de trabalho cuja natureza é a tensão entre autonomia, criatividade e serviço.

Os indícios apresentados aqui, porém, se relacionam com outro aspecto: a percepção institucionalizada de que certas formas de atividade profissional se tornam naturais do processo histórico de transformação do mundo do trabalho. Como aludido anteriormente, a consolidação da associação profissional de representantes comerciais e a impossibilidade de associação coletiva entre motoristas por aplicativo indicam que a reconfiguração de relações trabalhistas causam um efeito de percepção das próprias atividades laborais mediado por um discurso individualista, meritocrático e individualizado. Essa parece ser a posição exemplarmente representada nas falas de Alexandre Paiva, uma vez que ali se encontram interpretações e mecanismos discursivos de aceitação da situação de instabilidade, de defesa da contratação individualizada e, principalmente, da valorização da disposição ao trabalho autoexploratório e por meio da mobilização da possibilidade ampliada de ganho. Em oposição a isso, o exemplo encontrado na entrevista do representante comercial Antônio Veira demonstra recurso a uma percepção indireta da própria situação no processo de divisão do trabalho social e também a estratégias de defesa frente às tendências impostas de autoexploração.

Evidentemente, expostas como casos limite, ambas as entrevistas talvez façam parecer que se trata de uma defesa das relações trabalhistas “menos precarizadas” em que os representantes comerciais se encontram, mas não é esse o caso – ou não apenas esse, já que, efetivamente, a difusão de uma perspectiva altamente individualizada e atomizada de condições de utilização dos ‘meios de produção’ efetivamente representa um retrocesso frente à fase do capitalismo regulamentado.

O objetivo principal aqui foi tomar esses dois exemplos como expressões de uma mudança naquilo que, ao tratar da barbarização do conflito social, Honneth chamara de “perspectiva normativamente estabelecida” para a busca por recompensas sociais na forma do autorrespeito (Honneth, 2014, p. 159). Assim, esses indícios dos quais tentei tratar poderiam servir à tentativa de justificar aquela conexão entre as interpretações cooperativas das normas de reconhecimento de que o autor fala e o diagnóstico de uma barbarização do conflito social. No entanto, ao assumir que as mudanças no quadro interpretativo podem ser identificadas nas percepções que os indivíduos expressam a respeito de sua participação imediata no sistema de divisão do trabalho social, a barbarização não se limitaria ao princípio do reconhecimento, mas sim à institucionalização e proliferação de critérios interpretativos mobilizados pelos sujeitos dentro de um quadro historicamente mutável e, no presente caso, tipicamente destrutivo de certos patamares de seguridade social associados ao reconhecimento.

Nesse sentido, ao propor aqui uma conexão entre a forma como Honneth se apropria da teoria da interpretação cooperativa e seu diagnóstico de uma barbarização do conflito social, o presente texto o faz tendo em vista que, com isso, seria possível qualificar certas mudanças na configuração do trabalho como formas de desreconhecimento (Souza, 2018SOUZA, L. G. C. Reconhecimento, desreconhecimento e demarcação simbólica: uma contribuição conceitual à análise do lado negativo do reconhecimento. Sociologias, Porto Alegre, ano 20, n. 49, p. 294-317, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/soc/a/fvvDVCgBcXwPP6TsvzwjqJR/?lang=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
https://www.scielo.br/j/soc/a/fvvDVCgBcX...
, 2019SOUZA, L. G. C. Reconhecimento, redistribuição e desreconhecimento: um debate com a Teoria Crítica de Axel Honneth. Florianópolis: Editora UFSC, 2019.). Porém, mais importante é que, por meio dessa conexão, espera-se que seja possível desdobrar como consequência teórica uma historicização e uma sociologização do modelo de reconstrução normativa que teria, por sua vez, efeitos sobre a sociologia do trabalho, caso esta assumisse a perspectiva do reconhecimento. Finalmente, tudo isso só pode ser realizado se, graças aos indícios encontrados nas entrevistas, a perspectiva do reconhecimento for conectada com aquela versão qualificada da divisão do trabalho por meio da ideia de que o mérito individual é o mecanismo pelo qual se pode demandar reconhecimento social, mas também encontrar suas distorções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS (IV)

O presente artigo partiu da ideia, apresentada por Axel Honneth, de uma versão qualificada da tese da divisão do trabalho. Essa ideia afirma que não é a interdependência dos sujeitos, mas a normatividade de relações sociais baseadas em um princípio de reconhecimento recíproco que a legitimaria. Consequentemente, no espaço do trabalho socialmente organizado, a meritocracia está relacionada à identificação com atividades funcionalmente produtivas e nas quais sujeitos poderiam, por um lado, corporificar suas relações de reciprocidade e, por outro, demandar estima social, autorrespeito e, afinal, reconhecimento. Desse modo, seria possível estabelecer uma ligação entre trabalho, identificação funcional e reconhecimento recíproco dos méritos individuais, particularmente dos méritos laborais. Assim, quanto ao primeiro complexo de problemas de que tratou este artigo, foi discutida esta versão qualificada da tese da divisão do trabalho e suas consequências normativas para a análise da legitimidade dos mercados. Foi apresentada, então, a ideia própria da teoria do reconhecimento, de que não se trata de considerar a lógica da eficiência como um critério de legitimidade do mercado de compra e venda de trabalho, mas a promessa de satisfação recíproca como uma norma de legitimação levada a cabo pelos próprios participantes do processo de divisão do trabalho. É nesse sentido, aliás, que se pode falar da necessidade de legitimação do próprio mercado: ainda que, ao longo do artigo, a hipótese defendida tenha sido a de que existem imperativos sistêmicos que se desenvolvam como verdadeiras forças produtivas, a imposição histórica das transformações do mundo do trabalho aos sujeitos que dele participam não se faz sem que disputas discursivas a respeito da transformação penetrem um certo ideário (Cf. Silva, 1996SILVA, J. P. Três discursos, uma sentença: Tempo e trabalho em São Paulo – 1906/1932. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1996.). A fim de justificar esse pressuposto, o texto recorreu à ideia honnethiana de que interpretações cooperativas de normas possuem um caráter emancipatório que se consolida justamente como formas de reciprocidade ativas. Por outro lado, ao submeter esta caracterização da divisão do trabalho e do reconhecimento a uma aproximação com o diagnósticos da barbarização das relações sociais, mais especificamente dentro do mundo do trabalho, foram levantados alguns indícios interpretativos a respeito de eventuais mudanças na lógica normativa da meritocracia e suas consequências para a efetivação daquela forma qualificada da divisão do trabalho. Posteriormente, esses indícios foram aproximados de algumas outras indicações, buscadas em entrevistas com trabalhadores autônomos, da hipótese de mudanças nas normas interpretativas a respeito da cooperação social. Aqui seria preciso encarar a pergunta, muito mais complexa, sobre a direção da relação de influência entre história, normas e práticas. Ao fazê-lo, seria possível se perguntar se, ao invés de os desdobramentos históricos da organização do mercado ofuscarem os princípios de reconhecimento, não seriam formas individualizadas de reconhecimento que legitimariam a estrutura – por assim dizer, natural – de um funcionamento do mercado centrado na atividade egoísta e autointeressada dos sujeitos. A conexão proposta aqui entre a barbarização e os discursos dos entrevistados tende, a meu ver, a indicar que, mesmo que o reconhecimento individualizado sirva como apoio a um mercado desregulado de compra e venda da força de trabalho, a entrada nesse mercado depende grandemente de demandas que decorrem das transformações do próprio mercado.

Deste modo, foram perseguidos dois objetivos: em primeiro lugar, caracterizar mais especificamente como a relação entre trabalho, identificação e reconhecimento representa uma forma qualificada de divisão do trabalho centrada sobre uma normatividade específica à meritocracia; e, em segundo lugar, esboçar uma interpretação sobre a possível alteração deste pano de fundo normativo frente aos recentes diagnósticos sobre o mundo do trabalho. Decorrente desse segundo ponto, de modo meramente alusivo, foi esboçada uma crítica ao tipo de relação de trabalho autônomo que emerge nessa fase diagnosticada, resultante de tendências históricas à barbarização das relações de trabalho.

Essa última crítica não se fez fundamentalmente do ponto de vista da segurança do trabalho, que é ameaçada pela precarização. Antes, o que quero indicar que está em jogo – e que deveria ser o objeto de uma sociologia do trabalho que fosse mais do que meramente descritiva – é o empobrecimento e a degradação das próprias expectativas normativas dos sujeitos. Não é, portanto, o caso de sugerir que a mera legitimidade de uma esfera a caracterize como justa, mas, pelo contrário, que se apontem para sentidos de legitimação que sejam objeto da crítica social e tomem como critério a relação entre reconhecimento e segurança no acesso às fontes de reconhecimento (Cf. Rosenfield; Pauli, 2012ROSENFIELD, C. L.; PAULI, J. Para além da dicotomia entre trabalho decente e trabalho digno: reconhecimento e direitos humanos. Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. 65, p. 319-329, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/XYTJrcXrh65bZPTRwN39Kw/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
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).

Tudo posto, o texto tratou daqueles dois complexos de problema esboçados acima e que poderiam ter sido expressados na seguinte questão: se o pano de fundo das sociedades modernas é o reconhecimento recíproco das contribuições individuais para a reprodução da vida coletiva e para a integração social (tese da divisão do trabalho), é possível falar de identificação com as atividades de trabalho em uma condição social caracterizada pela desregulamentação de esferas de reciprocidade e pela individualização da ideia de meritocracia (diagnóstico da barbarização do conflito social)? Ou ainda em outros termos: o reconhecimento bem-sucedido implica na identificação com atividades socialmente mediadas, mas em um contexto de barbarização das atividades laborais, quais consequências se pode identificar ou esperar? Os indícios aqui discutidos apontam para uma situação complexa, mas também – assim espero – para a importância de se pensar sobre a própria sociologia do trabalho.

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  • 2
    A inspiração para essa tese de que normas são historicamente constituídas também enquanto práticas tem sua forma mais bem acabada n’O processo civilizador, de Elias, muito embora as lições de Durkheim sobre a sociologia da moral e dos costumes me pareçam operar nessa mesma lógica.
  • 3
    Esta é, evidentemente, uma leitura limitada do problema da compra e venda da força de trabalho em Marx e, mais ainda, uma leitura que deixa de fora toda a tese da exploração da força de trabalho na esfera da produção. Para críticas cuidadosas do modelo que Honneth adota aqui, Cf. Jütten (2015)JÜTTEN, T. Is the market a sphere of social freedom? Critical Horizons, [S. l.], v. 16, n. 2, p. 187-203, 2015. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/74370826.pdf. Acesso em: 22 nov. 2023.
    https://core.ac.uk/download/pdf/74370826...
    e Kuch, (2018)KUCH, H. Liberdade social e socialização do mercado. Civitas, Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 580-610, 2018. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2018.3.31415. Disponível em: https://www.scielo.br/j/civitas/a/VJ77MdRhb3T3hfGsSq4bL6L/?lang=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
    https://doi.org/10.15448/1984-7289.2018....
    .
  • 4
    É de notar que Honneth critica Marx pelo caráter especulativo de sua visão do capitalismo, lembrando que é empiricamente improvável que alguém prove a existência da pressão pela aceitação de um contrato de trabalho, ao passo que o modelo de Smith (e Durkheim) tem a vantagem de expressar uma aceitação tácita às regras de compra e venda da força de trabalho.
  • 5
    O modelo do livro O direito da liberdade seria, em oposição a essa ordem de desdobramentos, organizado como se as normas legitimassem um movimento histórico, implicando assim numa análise de duas dimensões: normas e história sociológica, nessa ordem.
  • 6
    Não por acaso, no artigo “Barbarizações do conflito social” há uma tentativa de aproximação entre Parsons e uma perspectiva interacionista, perspectiva essa da qual Honneth vinha se afastando já desde antes do debate com Fraser.
  • 7
    Porque pretende atribuir um sentido normativamente legitimado ao processo histórico de ampliação das relações de reconhecimento, Honneth não associaria esse descolamento entre princípios e práticas a uma interpretação normativa, mas a um “desvio” ou “falso desenvolvimento” (2011a, p. 230). Pinzani (2012PINZANI, A. O valor da liberdade na sociedade contemporânea. Novos Estudos CEBRAP, [S. l.], n. 94, p. 207-215, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/c7QkTZ86yCqnzNQxvYLckSp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 22 nov. 2023.
    https://www.scielo.br/j/nec/a/c7QkTZ86yC...
    , p. 211) mostra como Honneth entende que um falso desenvolvimento se refere à desconstrução de um patamar social de reconhecimento atingido por uma sociedade, mas o problema continua a ser demonstrar essa desconstrução de modo dinâmico.
  • 8
    Esses impactos, evidentemente, não devem ser tomados como tendências gerais, mas como indícios do modo como o ideário do trabalho individual meritocrático está presente no ideário dos indivíduos envolvidos. A respeito da presença dos discursos sobre o trabalho no ideário de atores sociais, Cf. Silva (1996)SILVA, J. P. Três discursos, uma sentença: Tempo e trabalho em São Paulo – 1906/1932. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1996..
  • 9
    Salvo quando informado o contrário, as notas de rodapé do resto desta seção do texto serão trechos das entrevistas e serão mencionadas diretamente entre aspas. Os trechos em negrito são minhas intervenções e os demais são trechos dos entrevistados.
  • 10
    “Mas eu acho que é errado no Brasil você querer fazer com que a empresa Uber dê estabilidade pro motorista. Eu acho isso que… isso vai acabar prejudicando a criação de postos de trabalho e oportunidade de emprego. Por que vamos supor: aí interdita a Uber, agora imagina qualquer outro tipo de empresa puder fazer a mesma coisa, com certeza os postos de trabalho vão ser ampliados. A gente vai acabar com o desempr… mas talvez você não tenha aí uma alta renda pra todo mundo, mas pelo menos não vai ter desempregado […[ Então, você não pode criar muita regra para que as empresas criem oportunidades, na minha opinião, então eu acho vantajoso que as empresas possam, sim, não ter esse vínculo. E o, a mesma coisa o empregado. Você não tem vínculo nenhum como eu te falei, eu já fiquei três quatro meses sem trabalhar e […] e tem uma outra opção também: a gente pode trabalhar onde a gente vai, né? Isso é fantástico. Com a regulamentação que tá sendo convocada, isso é proibido, que eles querem colocar a placa do carro da cidade só […] Então, quer dizer, essa liberdade é fundamental, eu acho isso fantástico. E quando o empregado ali, é, é vive naquela mesma mentalidade do passado, começa a sentir essa liberdade, o cara nunca mais quer mais voltar […]” (Entrevista de Alexandre Paiva ao autor).
  • 11
    Evidentemente, é preciso levar em consideração que as disposições geracionais e familiares, bem como as trajetórias empregatícias, desempenham um papel relevante tanto nas diferentes perspectivas entre os representantes comerciais quanto entre esse grupo e outros grupos profissionais.
  • 1
    O presente artigo resulta de uma pesquisa financiada pela Alexander von Humboldt Stiftung, que incluiu uma estadia de pesquisa no Institut für Sozialforschung an der Johann Wolfgang Goethe Universität, em Frankfurt am Main, onde fui recebido por Stephan Voswinkel e Axel Honneth. Agradeço à Fundação Humboldt e especialmente a Stephan Voswinkel, que me me recebeu no Arbeitskreis Arbeit, onde pude discutir resultados preliminares da pesquisa, e a Thiago Aguiar Simim, que participou ativamente das discussões. Uma versão prévia do texto foi exposta no “Encontro de pesquisa em capitalismo, justiça e reconhecimento”, organizado pelo Grupo de Pesquisa em Trabalho e Justiça Social (JusT), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para o qual Thays Mossi e Cinara Rosenfield gentilmente me convidaram a debater com elas e com Patricia Mattos. A Thays, Cinara, Patricia e às e aos participantes do encontro, meus profundos agradecimentos pela vívida e rica discussão e pelas contribuições ao texto. Finalmente, agradeço às duas ou dois pareceristas pelas correções e sugestões. Todos os erros e imprecisões são meus.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2019
  • Aceito
    08 Nov 2023
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