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MICHAEL LÖWY, LEITOR DE LUKÁCS

MICHAEL LÖWY, READER OF LUKÁCS

MICHAEL LÖWY, LECTEUR DE LUKÁCS

Resumos

A reflexão sobre a trajetória intelectual e as obras de Georg Lukács no período compreendido entre 1909 e 1929 constitui parte ponderável dos primeiros escritos de Michael Löwy. O presente artigo acompanha seus comentários, destacando como seu fio condutor os conceitos de anticapitalismo romântico e reificação.

Michael Löwy; Georg Lukács; Anticapitalismo romântico; Reificação; Marxismo


The reflection on the intellectual trajectory and the works of Georg Lukács in the period between 1909 and 1929 constitutes a significant part of Michael Löwy’s first writings. This article follows his comments highlighting the concepts of romantic anti-capitalism and reification as its main thread.

Michael Löwy; Georg Lukács; Romantic anti-capitalism; Reification; Marxism


La réflexion sur la trajectoire intellectuelle et sur les travaux de Georg Lukács dans la période entre 1909 et 1929 constitue une partie non négligeable des premiers écrits de Michael Löwy. Cet article fait état de ses commentaires en soulignant comme principe directeur les concepts d’anticapitalisme romantique et de réification.

Michael Löwy; Georg Lukács; Anti-capitalisme romantique; Réification; Marxisme


A EVOLUÇÃO POLÍTICA DE LUKÁCS

O primeiro livro de Michael Löwy sobre Georg Lukács foi “Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários” (Löwy, 1979LÖWY, M. Para uma Sociologia dos intelectuais revolucionários. São Paulo: Editora Ciências humanas, 1979.). Trata-se, sem dúvida, da obra mais conhecida e difundida do autor. O livro, publicado na França em 1976 e, posteriormente, traduzido nas principais línguas do Ocidente, é citado na bibliografia da maior parte dos comentários que abordam a obra de Lukács.

A segunda edição em português, de 1998, contém apenas uma modificação, não inteiramente secundária: um título distinto do da edição original. O livro passou a se chamar “A evolução política de Lukács: 1909-1929” (Löwy, 1998LÖWY, M. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.). No Prefácio à nova edição, Löwy justifica tal metamorfose com uma simples frase, nem por isso menos peremptória: “Trata-se, na verdade, de um livro sobre Lukács e não de uma sociologia dos intelectuais revolucionários” (Löwy, 1998LÖWY, M. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998., p. 11).

A questão do nome não é tão bizantina quanto parece. A oscilação do autor acerca do que seria mais importante em seu livro revela, além de uma mudança no “espírito do tempo”, questões inerentes à estruturação da obra. Ela se compõe de três blocos bem delimitados: o esboço de uma sociologia dos intelectuais revolucionários (na metade inicial do primeiro capítulo e na conclusão); uma breve história das ideias anticapitalistas na Alemanha e na Hungria, no início do século XX; e um longo e preciso acompanhamento da trajetória intelectual de Lukács entre 1909 e 1929, destacando seus textos e suas ideias mais importantes, além das oscilações de sua posição política.

Diante da descontinuidade patente do livro, evidente na enumeração dos assuntos ali tratados, Löwy, sabiamente, evita forçar a mão na articulação entre as partes ou buscar uma relação de causalidade estrita, escapando da armadilha de supor que o exame de um caso particular daria aval a generalizações acerca das causas sociais e ideológicas da passagem dos intelectuais tradicionais às fileiras do movimento operário. De certo modo, a heterogeneidade entre os blocos deriva de uma necessária adequação do método ao assunto, uma exigência inerente a cada gênero, adaptada cuidadosamente em cada um dos três movimentos.

A tentativa de compreender a conversão dos intelectuais à política revolucionária, examinada em dois momentos-chave – após 1917 e em torno de 1968 –, como o título original indica, é feita no registro sociológico, mais precisamente como um caso particular de um possível alinhamento de setores da “pequena-burguesia” com o proletariado (em situações em que a burguesia nacional desistiu de seu papel revolucionário). A análise marxista das classes, matriz da determinação inicial do objetivo da investigação, se insere num diálogo com a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e com a versão francesa dessa disciplina, capitaneada por Lucien Goldmann. Deriva daí talvez a subordinação da explicação histórica do fenômeno à busca de determinações sociológicas, o que talvez tenha acarretado a mudança do ponto de vista de Löwy acerca da importância dessa parte no conjunto do texto.

Aliás, no “Prefácio à segunda edição”, ele considera que esse bloco do livro envelheceu, sobretudo, quando se leva em conta o momento histórico. Atualmente, a pesquisa acerca da compreensão da trajetória dos intelectuais destaca o movimento inverso: a adesão desse estrato às teses e aos interesses da grande burguesia financeira, fenômeno presente não só no Brasil como em todo o mundo.

No segundo bloco – um estudo sobre a intelligentsia radical na Alemanha e na Hungria nas duas primeiras décadas do século XX –, a sociologia cede lugar à história das ideias. Acompanham-se aí, em breves exposições, as críticas – em geral, apenas culturais – ao capitalismo, dos membros dos círculos pelos quais passou Lukács (uma lista que quase se confunde com a enumeração dos intelectuais burgueses mais importantes da época): Ferdinand Tönnies, Theodor Storm, Max Weber, Georg Simmel, Paul Ernst, Robert Michels, Ernst Toller, Ernst Bloch (na Alemanha), Esdre Ady, Ervin Szabo e Karl Mannheim (na Hungria).

No tratamento desse tópico já se manifesta a preocupação de Löwy com a recorrência romântica, tema que se tornará uma das preocupações centrais de sua obra subsequente e será abordado de forma mais desenvolvida em Revolta e melancoliao romantismo na contramão da modernidade (Löwy, 1995LÖWY, M. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.). Por romantismo ele entende não somente a escola literária do século XIX, mas o grande movimento de protesto contra a civilização capitalista e industrial moderna, geralmente feito em nome de valores do passado, numa linhagem que se estende de Jean Jacques Rousseau ao surrealismo, denunciando as desolações da modernidade burguesa: reificação, mecanização, quantificação, dissolução da vida comunitária, desencantamento do mundo. Em A evolução política de Lukács (Löwy, 1998LÖWY, M. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.), o autor ainda concebe a trajetória do pensador húngaro e, de certo modo, do próprio Marx como uma passagem do anticapitalismo romântico para a tradição oposta, iluminista e democrática. Sua leitura posterior da obra de Lukács tende, no entanto, a relativizar cada vez mais esse juízo.

Ao renomear seu livro privilegiando a descrição do itinerário de Lukács, Michael Löwy não deixa de fazer justiça à superioridade do terceiro bloco, reconhecida, aliás, pela recepção internacional do livro. Trata-se de uma apresentação, bem amarrada e executada, da obra de Lukács desde A história da evolução do drama moderno (1909) até as Teses de Blum (1928), passando pelos clássicos A alma e as formas (Lukács, [1910] 2015LUKÁCS, G. A alma e as formas: ensaios. 1ª edição [1910]. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.), A teoria do romance (Lukács, [1916] 2000LUKÁCS, G. A teoria do romance. 1ª edição [1916]. São Paulo: Duas cidades: Editora 34, 2000.) e História e consciência de classe (Lukács, [1923] 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.). Nessa parte, o modelo já não é mais a sociologia do conhecimento, nem a história das ideias, mas uma arguta exposição teórica e política da trajetória intelectual de um pensador importante.

Um dos muitos méritos do livro reside na riqueza de informações, no domínio e no manejo de conhecimentos de diversas áreas e também na clareza, isto é, na facilidade de Löwy para destacar e explicar o que há de mais decisivo em obras geralmente pouco acessíveis (e, de certo modo, quase herméticas) ao leitor não especializado. Trata-se, em suma, de uma aplicação exitosa dos valores próprios da visão educacional do iluminismo.

O itinerário de Lukács é reconstituído, em certa medida, a partir do caminho traçado por ele próprio em uma série de esboços autobiográficos, recapitulações, revisões de sua evolução, “autocríticas”, depoimentos e entrevistas. Löwy filtra com sabedoria essas informações, evitando se fiar sempre na reconstrução levada a cabo por Lukács acerca de sua trajetória. Não é segredo que ela, muitas vezes, se orienta por objetivos políticos imediatos (e feita, em larga medida, sob a pressão do stalinismo). Löwy segue, assim, o preceito materialista segundo o qual cabe, antes, investigar a motivação histórica do agente do que tentar compreendê-lo pela justificativa da ação (em geral, fruto de uma “ilusão”).

A história da economia capitalista e das lutas de classes (num período em que o embate entre burguesia e proletariado ainda ditava os rumos da humanidade) fortalece o esforço de Löwy para evitar o paradoxo de tentar explicar a evolução política de um ativista e intelectual marxista exclusivamente pelos textos dele. Löwy é ciente de que quem procede assim, além de configurar uma rendição metodológica ao idealismo (em grande medida, matriz de histórias das ideias convencionais), recai na suposição metafísica (rejeitada por Marx, Nietzsche e Freud) de que a ação e a orientação de um teórico sejam impulsionadas apenas por suas adesões intelectuais.

Na análise teórica e política de História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), Löwy mostra o caráter “leninista” do livro, sem ignorar os artigos que reivindicam explicitamente o legado de Rosa Luxemburg, salientando ainda as críticas de Lukács a Bernstein e Kautsky. Dedica-se, também, apesar do título da segunda edição, à compreensão do itinerário de Lukács após 1929. Encontramos, aí, breves e instigantes comentários acerca das vicissitudes e oscilações de Lukács nesse período. Aqui, Löwy se dispensa da obrigação de examinar um a um os livros publicados nesses anos, deixando de lado a análise pormenorizada de textos e concentrando-se nas linhas mestras do debate político. É verdade que, na maior parte do livro de Löwy, essa questão se faz presente, ainda que entremeada pela investigação dos pressupostos teóricos, mas é nesse último bloco que a orientação da exposição faz jus plenamente ao novo título do livro, trazendo ao primeiro plano a evolução política de Lukács.

ROMANTISMO E MESSIANISMO

Após a publicação, em 1976, de “Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários” (Löwy, 1979LÖWY, M. Para uma Sociologia dos intelectuais revolucionários. São Paulo: Editora Ciências humanas, 1979.), Löwy redigiu uma série de artigos sobre Lukács, a maioria reunidos em “Romantismo e messianismo” (Löwy, 1990fLÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990f.). Seu objetivo foi tanto o de desdobrar tópicos pouco desenvolvidos em sua obra inicial como abordar temas que constituíam lacunas em seu primeiro livro. O fio organizador de sua investigação é o conceito de anticapitalismo romântico, um tópico apresentado por Lukács que Löwy não hesita em atribuir a uma parcela ponderável da obra do filósofo húngaro.

O primeiro artigo de Romantismo e messianismo (Löwy, 1990fLÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990f.), significativamente intitulado “Marxismo e romantismo revolucionário” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34.), consiste na tradução de um texto do livro homônimo editado na França em 1980. Nele, Löwy examina a afinidade do romantismo, seja com a obra de Karl Marx e Friedrich Engels, seja em seu desdobramento em outros autores marxistas, com destaque, como não poderia deixar de ser, para Georg Lukács.

Löwy inicia o artigo indagando sobre o caráter político do romantismo. Diz ele: “Será o romantismo um movimento essencialmente conservador e reacionário? Ou conterá também potencialidades revolucionárias pela sua oposição ao capitalismo e à sociedade burguesa?” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 11). A resposta a essa questão ressalta a ambiguidade da constelação romântica. Ele salienta como características das manifestações culturais e políticas do romantismo sua nostalgia das sociedades pré-capitalistas e sua crítica ético-social ou cultural do capitalismo.

Essa definição traz em germe a resposta à questão da afinidade entre marxismo e romantismo. Para tanto, o passo seguinte consiste em precisar a compreensão do tópico da nostalgia. Define-a, de modo geral, como “a predominância de valores qualitativos (valores de uso ou valores éticos, estéticos e religiosos), da comunidade orgânica entre os indivíduos, ou ainda o papel essencial das ligações afetivas e dos sentimentos” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 13). Esse quadro de valores indica a rejeição da ordem capitalista “fundada na quantidade, no preço, no dinheiro, na mercadoria, no cálculo racional e frio do lucro, na atomização egoística dos indivíduos” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 13).

Löwy elabora, então, uma classificação segundo a qual os autores românticos, no que tange à sua posição política, podem ser inseridos em quatro correntes: o romantismo passadista ou retrógado, que visa a voltar ao mundo medieval; o romantismo conservador, que almeja preservar ou retomar a situação anterior à Revolução Francesa; o romantismo desencantado, para o qual o retorno ao passado é impossível, restando resignar-se e conviver com uma ordem social odiosa; o romantismo revolucionário, “que recusa, ao mesmo tempo, a ilusão de retorno às comunidades do passado e a reconciliação com o presente capitalista, procurando uma saída na esperança do futuro” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 16).

Depois desse introito esclarecedor, Löwy adentra propriamente na questão principal do artigo, isto é, nas relações entre o marxismo e o romantismo revolucionário. Avalia Karl Marx como um autor que, embora tenha se desenvolvido no contexto iluminista, jacobino, antifeudal e democrático-revolucionário, possui uma “dimensão romântica inegável, mesmo que este não seja o aspecto dominante de seu pensamento” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 17).

Löwy procura, por conseguinte, rastrear os traços românticos presentes na obra de Marx. Relembra a valorização, no Manifesto Comunista (Marx, 2010MARX, K. Manifesto comunista. São Paulo: Hedra, 2010.), das tendências anticapitalistas das diversas linhagens românticas, bem como sua avaliação da revolução industrial como um movimento ao mesmo tempo libertador e opressor. Além disso, ressalta o interesse de Marx e Engels, a partir de 1860, por certas formações sociais pré-capitalistas como a comunidade primitiva descrita por Morgan e, em menor escala, por certas comunas rurais pré-capitalistas, em especial a russa.

Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (Engels, 1978ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978.), Friedrich Engels é mais contundente que Marx. Recusa a concepção de progresso que apresenta a sociedade capitalista como superior às formas sociais anteriores, ressaltando o caráter contraditório desse processo. Além disso, não hesita em afirmar que, em certos aspectos, a civilização industrial capitalista constitui um retrocesso em relação às comunidades primitivas.

Essa dimensão do marxismo foi, no entanto, sepultada pela geração posterior, matriz de um pensamento radicalmente antirromântico. G. V. Plekhánov ignora o interesse de Marx pela comunidade russa, manifestado em uma série de cartas a Vera Zassulitsh. Autor decisivo no combate teórico às ideias dos narodniks, ele concebe a linhagem marxista como essencialmente iluminista, evolucionista e adepta do progresso, determinando, em larga medida, a recepção dessa corrente na Rússia.

Concepção semelhante também vigora no marxismo alemão, delineando a teoria que serviu de base para a constituição e para a prática política do partido socialdemocrata e, a partir dele, para a Segunda Internacional. Löwy exclui dessa caracterização antirromântica, predominante na passagem do século e nas primeiras décadas do século XX, a obra de Rosa Luxemburg. Ela teria retomado, de certo modo, as considerações e o interesse de Marx e Engels pela comunidade primitiva, como se pode constatar em parte de sua obra, especialmente na série de palestras coligidas no livro Introdução à economia política (Luxemburg, 1978LUXEMBURG, R. Introdução à economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1978.).

Löwy se debruça com mais vagar no exame da posição de Georg Lukács, dissecando, uma a uma, as múltiplas fases de sua obra. Caracteriza a produção intelectual do jovem Lukács como fortemente impactada pela corrente anticapitalista romântica. Suas referências às formas sociais pré-capitalistas são, no entanto, diferentes das mencionadas por Marx e Engels. Segundo Löwy (1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 27), “são, antes, certas configurações culturais: o universo grego-homérico, a espiritualidade (literária e religiosa) russa, o misticismo cristão, hindu ou judeu”. Ele destaca ainda a proximidade do jovem Lukács do romantismo alemão do final do século XVIII e do início do século XIX, assim como da vertente neorromântica do século XX.

Segundo Löwy, essa dimensão romântica não desaparece mesmo depois da adesão de Lukács ao marxismo e de sua participação na Revolução Húngara de 1919. Ele seleciona e comenta alguns textos em que essa vertente aflora, não apenas de forma subterrânea. Afirma que, até mesmo em História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), seria possível encontrar, ainda que como pano de fundo, afinidades com o romantismo.

Na obra posterior de Lukács, sobrevém uma inversão. Löwy enfatiza que

[...] é aproximadamente no final dos anos 1920 que o pensamento de Lukács adquire um sentido hostil ao romantismo, o que não acontece sem contradições e reviravoltas súbitas. Tem-se a impressão de que, durante uma quarentena de anos, sua alma é dilacerada entre uma tendência aufklärer e democrático-liberal, e um demônio romântico anticapitalista (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 27).

Na análise de alguns textos específicos, Löwy procura mostrar que, embora a dimensão aufklärer continue predominante, em certas passagens a tendência romântica emerge em sua vertente revolucionária. Num artigo sobre Dostoievski, por exemplo, Lukács atribui à obra do escritor russo uma caracterização – que corrobora – sintetizada na frase: “é a idade de ouro do passado que ilumina o caminho para o futuro” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 30).

No entanto, de modo geral, “na maioria dos artigos posteriores sobre o romantismo anticapitalista, temos, de um lado, o reconhecimento do caráter contraditório do fenômeno, de outro lado, uma tendência (às vezes excessiva) de considerar a predisposição reacionária e mesmo fascista como o polo dominante” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 29).

Após a Segunda Guerra, na obra de Lukács, as considerações que, mesmo parcialmente, ressaltam a ambiguidade, abrindo espaço para a valorização relativa de tendências românticas, são abandonadas. Segundo Löwy, esse ponto de vista “atingirá seu apogeu com A destruição da razão (1953), livro que apresenta toda a história do pensamento alemão, de Schelling a Tönnies e de Dilthey a Simmel, como um imenso confronto entre a ‘reação’ e a ‘razão’”. Para ele, todas as correntes românticas “desde a escola histórica do direito até Carlyle”, teriam conduzido, necessariamente, a uma “irracionalização geral da história” e, mais tarde à “ideologia fascista” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 32).

Löwy menciona ainda outra reviravolta, mesmo que momentânea, no pensamento de Lukács, caracterizada pela retomada da valorização da recorrência romântica. Encontra-a no famoso “Prefácio de 1967” à História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), que refuta a concepção predominante em sua obra de 1923. Ali, ele reconhece que o “o idealismo ético com todos os seus elementos românticos anticapitalistas” lhe trouxe “qualquer coisa de positivo” e que esses elementos “com múltiplas e profundas modificações foram integrados em sua nova visão de mundo (marxista)” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34., p. 32-33).

O segundo artigo de “Romantismo e messianismo” (Löwy, 1990fLÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990f.), à primeira vista, conteria apenas repetições e pequenos desdobramentos das teses delineadas em “Marxismo e romantismo revolucionário” (Löwy, 1990aLÖWY, M. Marxismo e romantismo revolucionário. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990a. p. 11-34.). O título muito semelhante ao do primeiro artigo tende a corroborar essa hipótese. No entanto, a crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51.) desenvolvem novas e decisivas contribuições, dissecando e explicitando, de forma mais nítida, a rejeição do marxismo e do romantismo à civilização industrial.

As primeiras manifestações do romantismo, iniciadas na segunda metade do século XVIII, abrangem, segundo Löwy, não apenas a esfera da literatura. Contemplam ainda economistas, teóricos da política ou da cultura, sociólogos etc. Mesmo no campo artístico, ele inclui, além de poetas e escritores essencialmente românticos, como Novalis, E.T.A. Hoffman, autores realistas como Balzac, Dickens e Thomas Mann, pintores do pré-rafaelismo, Delacroix, e movimentos como o surrealismo.

Esse elenco, ampliado em relação ao artigo anterior, é apresentado por Löwy a partir de novas determinações. O anticapitalismo romântico é definido por meio de conceitos desenvolvidos por Lucien Goldmann e Raymond Williams “como uma Weltanschauung, uma abrangente visão de mundo, um estilo de pensamento, uma estrutura básica de sentimento” (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51., p. 35, grifo do autor).

Löwy reitera a referência romântica ao passado, seja ela real ou imaginária. Define-a, sintetizando a classificação elaborada no artigo anterior, como conservadora ou romântica. Ilustrando o escopo delineado pela compreensão do romantismo como uma Weltanschauung e uma estrutura de sentimento, seleciona uma série de pensadores, nomes expressivos do conservadorismo e do movimento revolucionário: Burke e Rousseau, Coleridge e Blake, Balzac e Fourier, Carlyle e William Morris, Heidegger e Marcuse.

A ênfase e o fio condutor desse artigo e, de certo modo, da nova concepção de romantismo ensaiada por Löwy não é mais a nostalgia romântica. Sem ignorá-la, ele destaca, como elemento decisivo desse movimento, a crítica da sociedade capitalista. Diz ele: “a característica essencial do anticapitalismo romântico é uma crítica radical à moderna civilização industrial (burguesa) – incluindo os processos de produção e de trabalho – em nome de certos valores sociais e culturais pré-capitalistas” (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51., p. 35, grifo do autor).

O teor dessa crítica, às vezes, salienta as injustiças flagrantes no capitalismo, como foi o caso do romantismo do século XIX, que se opôs ao empobrecimento dos trabalhadores e ao aviltamento representado pelo trabalho infantil e pela draconiana lei dos pobres. Na maioria dos casos, no entanto, o anticapitalismo romântico ignora a exploração dos trabalhadores ou a desigualdade social. Contesta, sobretudo, a quantificação da vida, expressão da dominação do valor de troca, do gélido cálculo do preço e do lucro.

Como exemplo dessa visão de mundo, Löwy cita o caso da filosofia e da sociologia alemã no final do século XIX e início do XX, que “opõem Kultur, um conjunto de valores tradicionais do passado – sociais, morais ou culturais –, à Zivilisation, o desenvolvimento moderno, ‘despersonalizado’, material, técnico e econômico”, ou então a “Gemeinschaft, a velha comunidade orgânica de relações sociais diretas à Gessellschaft, a agregação mecânica e artificial de pessoas em torno de objetivos utilitários” (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51., p. 36).

Nesse elenco de anticapitalistas românticos, muitos lamentam a prevalência sobre a imaginação e a criação artística de uma rotina monótona, uniforme, entediante e cinzenta. Para eles, “o envenenamento da vida social pelo dinheiro, e do ar pela fumaça industrial, são captados como fenômenos paralelos, resultantes da mesma raiz infernal” (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51., p. 37).

Tendo em vista esse quadro teórico, essa estrutura de sentimentos, não surpreende que a questão do trabalho – tópico essencial das mudanças implementadas pela civilização industrial – seja pautada numa direção distinta das enfatizadas pela corrente socialista.

Os autores pertencentes à corrente do anticapitalismo romântico não podiam deixar de observar e rejeitar a subordinação do homem às máquinas, ao ritmo uniforme próprio desse processo. Recusam, portanto, a “absoluta predominância da produção meramente quantitativa, o domínio da máquina inanimada sobre pessoas vivas, os efeitos embrutecedores da divisão do trabalho, o caráter ‘repulsivo’ da labuta mecânica e sem vida, a degradação e desumanização do trabalhador” (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51., p. 40).

Essa corrente rejeita, na civilização moderna, industrial, o trabalho manufatureiro, a introdução da maquinaria pela Revolução Industrial, a segmentação do trabalho e, por conseguinte, do trabalhador. Muitos dentre esses autores contrapõem a essa uniformização quantitativa o trabalho artesanal. A modalidade e as técnicas de produção pré-capitalistas se pautariam por uma liberdade de criação, pela junção de pensamento e trabalho, pelo predomínio da criatividade e da invenção.

Löwy reconhece, após uma exaustiva análise da obra de Marx – na qual se debruça, em especial, sobre os Manuscritos econômico-filosóficos (Marx, 2004MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.) e O capital (Marx, 1983MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.) –, que o marxismo não pode ser considerado como uma visão de mundo essencialmente romântica. Suas outras fontes, o racionalismo, o materialismo francês, em sua vertente iluminista, e a filosofia clássica alemã prevalecem incontestavelmente. Reafirma, no entanto, que sua crítica da civilização moderna e, em especial, do processo de trabalho revela afinidades com o anticapitalismo romântico.

Marx, mesmo em O capital (Marx, 1983MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.), promove, à semelhança dos românticos, uma “crítica radical da natureza em si do trabalho industrial moderno” (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51., p. 45). Ele não deixa de comparar a produção industrial moderna, social e culturalmente degradante, com a atividade pré-capitalista, na qual ainda não predomina a fragmentação, o caráter abstrato, mecânico, modelado pela divisão capitalista do trabalho e pela introdução da maquinaria.

Ao lado de Rosa Luxemburg e Herbert Marcuse, Lukács é apresentado como um seguidor fiel da posição de Marx em sua crítica do processo de trabalho e, de modo geral, da civilização capitalista. Löwy atribui, no entanto, a esses autores uma ênfase não inteiramente presente na obra de Karl Marx. Esses membros da corrente mais radical e imaginativa do marxismo desdobram uma visão de futuro, uma concepção de socialismo que se caracteriza não “apenas como um sistema econômico onde a propriedade e os meios de produção serão coletivos, mas também como uma nova maneira de viver, na qual o trabalho voltaria a ser (como no passado) semelhante à arte – isto é, a livre expressão da criatividade humana” (Löwy, 1990bLÖWY, M. A crítica romântica e a crítica marxista da civilização moderna. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990b. p. 35-51., p. 45, grifo do autor).

Os dois primeiros artigos de Romantismo e messianismo (Löwy, 1990fLÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990f.) procuram delimitar os tópicos nos quais são mais evidentes as aproximações de Georg Lukács com a corrente anticapitalista romântica. Essas determinações, de modo geral, adotam, como ponto de partida, análises detidas das afinidades da obra de Marx com essa corrente. Lukács, um dos nomes mais representativo dessa linhagem, tenderia a acompanhar, em linhas gerais, as características principais dessa tradição. No entanto, em certos pontos decisivos, desenvolve inflexões que podem ser consideradas como radicalmente mais próximas do romantismo.

Esse movimento, desviante do padrão estabelecido por Marx, derivaria, em larga medida – eis a hipótese de Löwy –, de aspectos peculiares da obra inicial de Lukács, anterior à sua conversão ao marxismo. A importância desse período nas formulações da maturidade de Lukács foi ressaltada aqui e ali. O artigo “Romantismo revolucionário e messianismo místico no jovem Lukács (1910-1919)” (Löwy, 1990cLÖWY, M. Romantismo revolucionário e messianismo místico no jovem Lukács (1910-1919). In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990c. p. 53-67.) busca não apenas esclarecer as posições do primeiro Lukács, mas também fortalecer essa hipótese.

No livro “A evolução política de Lukács: 1909-1929” (Löwy, 1998LÖWY, M. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.), ele se debruça sobre as influências e aproximações de Lukács com a intelligentsia radical na Alemanha e na Hungria, nas duas primeiras décadas do século XX. Destaca, principalmente, as críticas dos membros dos círculos culturais que o pensador húngaro frequentou ao capitalismo, uma lista que congrega destacados intelectuais burgueses.

O ponto explorado por Löwy, nessa fase do itinerário de Lukács, é sua adesão à concepção de mundo anticapitalista romântica. O artigo “Romantismo revolucionário e messianismo místico no jovem Lukács (1910-1919)” (Löwy, 1990cLÖWY, M. Romantismo revolucionário e messianismo místico no jovem Lukács (1910-1919). In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990c. p. 53-67.) desdobra outro panorama. Destaca, sobretudo, os aspectos messiânicos presentes na “estrutura de sentimentos” do jovem Lukács.

Com a erudição que lhe é peculiar, Löwy apresenta diferentes manifestações extraídas de diversos materiais e discorre sobre elas, nas quais se torna nítida a adesão de Lukács a formas determinadas de espiritualidade messiânica. Essa seria, de certo modo, uma derivação mais enfática do renascimento religioso e místico, patente nos meios intelectuais da Alemanha na virada do século XIX para o século XX.

Acompanhado com vivo interesse e compartilhado por alguns autores, esse misticismo é explicado por Löwy como um subproduto do “desencantamento do mundo”, resultante do desenvolvimento do capitalismo e da sociedade industrial. O pano de fundo dessa concepção pode ser localizado no processo avassalador de transformação por que passou a Alemanha nesse período. A implementação repentina de uma industrialização acelerada gerou incessantes movimentos de rejeição à emergência e ao predomínio da sociedade burguesa. Os professores universitários, ciosos de sua condição de “mandarins”, tornaram-se o foco principal de disseminação dessa visão de mundo.

Lukács frequentou, por alguns anos, o círculo de Max Weber em Heidelberg. Lá conviveu com intelectuais que viam com simpatia a voga da espiritualidade messiânica. Convém lembrar que as diversas dimensões da religiosidade eram assuntos frequentes nas discussões, tópico incentivado por Weber, que, embora não fosse partidário dessas formas de religiosidade, interessava-se por elas, já que o assunto lhe fornecia elementos para a sua pesquisa acerca da história das religiões.

Lukács, no entanto, não estava preocupado em compreender o fenômeno religioso pelo viés do interesse científico. Suas leituras buscavam, sobretudo, concepções que fornecessem alternativas aos rumos da marcha civilizatória. Não deve causar espanto, por conseguinte, que ele vincule religião e socialismo. Sua posição ante esse par oscilava: ora entendia que o socialismo era incompatível com a religiosidade, ora destacava, em seus fundamentos, uma visão religiosa do mundo.

Para esclarecer essa simbiose, Löwy recorre a seu mestre: “numa comparação notável e penetrante entre as visões de mundo religiosa e socialista, Lucien Goldmann coloca em evidência seu fundamento comum: a relação com valores transindividuais (em oposição ao racionalismo individualista do tipo cartesiano)” (Löwy, 1990cLÖWY, M. Romantismo revolucionário e messianismo místico no jovem Lukács (1910-1919). In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990c. p. 53-67., p. 56). Tanto num caso como no outro, Lukács imagina a possibilidade de reconstituir uma comunidade viva, autêntica, orgânica.

Nesse período, Lukács se interessa por diversas manifestações religiosas: pelo cristianismo primitivo, pelo misticismo judeu, pela religiosidade hindu etc. Sua afinidade maior, no entanto, é com a espiritualidade russa. Junto com Ernst Bloch, seu fiel companheiro nessa busca, ele atribui à literatura de Tolstói e Dostoiévski a capacidade de ultrapassar o individualismo europeu. Seu interesse por Dostoiévski é tão intenso, que ele concebeu “A teoria do romance” (Lukács, 2000LUKÁCS, G. A teoria do romance. 1ª edição [1916]. São Paulo: Duas cidades: Editora 34, 2000.) como uma introdução a um estudo sobre esse autor russo, esforço que ficou registrado em anotações que delineiam o plano da obra.

Löwy acompanha, passo a passo, as ambiguidades e contradições presentes nos textos que Lukács redigiu entre a Revolução Russa de 1917 e sua adesão, em dezembro de 1918, ao Partido Comunista Húngaro. Convivem aí, “numa combinação sui generis, a crítica cultural neorromântica do capitalismo, uma espiritualidade semirreligiosa e uma aspiração revolucionária pela mudança social” (Löwy, 1990cLÖWY, M. Romantismo revolucionário e messianismo místico no jovem Lukács (1910-1919). In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990c. p. 53-67., p. 64).

Löwy permanece sempre atento às nuances, oscilações e hesitações que marcam a obra e a visão de mundo do jovem Lukács. Mesmo assim, ele não se exime de determinar o que considera a dimensão essencial da religiosidade do autor húngaro. Diz ele:

Seria falso concluir que Lukács se considerava espiritualmente ligado à Igreja católica ou a uma religião determinada. Ele é atraído tanto pelos cristãos místicos da Idade Média como pela filosofia religiosa russa moderna, pela religião hindu ou pelo misticismo judeu. O objeto de sua busca é mais uma determinada forma de espiritualidade que uma Igreja ou um dogma religioso, no sentido estrito do termo: trata-se de uma estrutura significativa complexa e contraditória que não deixa de se parecer com o que ele mesmo chama de religião ateia (Löwy, 1990cLÖWY, M. Romantismo revolucionário e messianismo místico no jovem Lukács (1910-1919). In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990c. p. 53-67., p. 58).

Após essa tentativa de compreensão da espiritualidade messiânica do jovem Lukács, Löwy desenvolve uma muito bem elaborada e pertinente análise de História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.). Esse comentário era necessário, uma vez que A evolução política de Lukács: 1909-1929 (Löwy, 1998LÖWY, M. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.) trata a principal obra de Lukács nesse período apenas de passagem.

O artigo “A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács” (Löwy, 1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85.) se propõe a preencher essa lacuna. Nele, Löwy procura abordar as diferentes dimensões de História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), explicitando sua complexidade por meio de uma investigação bastante esclarecedora. Ele não se mostra tão preocupado como antes em estabelecer as afinidades desse livro com o anticapitalismo romântico, ou em destacar a presença de resíduos de uma espiritualidade messiânica. Seu foco principal é a adoção por Lukács de conceitos marxistas para explicar o presente histórico.

O conceito central que Löwy acompanha na obra de Lukács, em seus múltiplos desdobramentos, é a categoria fetichismo da mercadoria, delineada por Marx no primeiro capítulo de O capital (Marx, 1983MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.). Na maior parte de suas alusões e determinações de variantes desse conceito, Marx mantém essa denominação. Em algumas passagens do livro III de O capital (Marx, 1983MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.), no entanto, ele a substitui pelo termo reificação, designação preferida por Lukács.

Outra fonte da qual Lukács teria se apropriado é a sociologia alemã da passagem do século XIX para o XX, particularmente as teorias desenvolvidas por Ferdinand Tönnies, Georg Simmel e Max Weber. Segundo Löwy, nessa vertente, é possível detectar ecos da crítica marxista da mercadoria, em especial sob a forma de uma recusa “da Gesellschaft moderna, de seu racionalismo impessoal e calculista, de sua mercantilização e mecanização brutal, de sua submissão ao poder totalitário do dinheiro” (Löwy, 1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 70).

Em História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), o conceito de reificação se torna o fundamento de uma compreensão original e fecunda do capitalismo. Na interpretação de Löwy, Lukács procura alicerçar, nessa categoria, “uma grade teórica capaz de decifrar a multiplicidade dos hieróglifos sociais de nossa época, desvelando a estrutura oculta comum aos principais fenômenos econômicos, políticos e ideológicos da sociedade industrial” (Löwy, 1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 69-70).

De forma bastante distinta das repercussões da reificação incorporadas pela sociologia alemã, Lukács não se atém a uma resignada descrição e explicação do mundo. Sua compreensão e aplicação desse conceito, em acordo com a tradição marxista, moldam-se por uma perspectiva crítica, premissa de uma ação transformadora. Nas palavras de Löwy (1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 70):

[...] o objetivo da teoria lukacsiana não é de opor à sociedade existente um ideal, um Sollen abstrato, uma utopia qualquer, e sim descobrir e iluminar criticamente as contradições objetivas do ser social, as antinomias reais do universo capitalista e as possibilidades objetivas de sua superação pela práxis revolucionária.

O processo de reificação – por meio do qual os produtos do trabalho se transformam em coisas e, por conseguinte, de determinações sociais nas relações entre coisas – é concebido por Lukács como o fenômeno fundamental, estrutural da sociedade burguesa. Trata-se de uma inferência assentada na consideração de Marx em O capital (Marx, 1983MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.), que aponta para a generalização, no capitalismo, da forma-mercadoria. Uma passagem – comentada por Löwy – de História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) esclarece que “se pode descobrir na estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa” (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 193).

Lukács também segue Marx na compreensão do processo de trabalho na fábrica mecanizada, característica determinante da grande indústria, modalidade generalizada a partir da Revolução Industrial. Destaca, no processo técnico de produção, a submissão completa do trabalhador à maquinaria. Lukács sustenta assim, nas palavras de Löwy, “que o capitalismo produz não somente certo uso das máquinas, mas também uma estrutura determinada das próprias máquinas e do sistema mecânico de produção, estrutura essa desumanizante, reificada e opressiva” (Löwy, 1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 74).

O direito constitui o primeiro dos desdobramentos da teoria apresentada em História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), segundo a qual a reificação se espraia pela totalidade da vida social, determinando outras esferas além da econômica. Lukács se apropria, para tanto, do aparato conceitual desenvolvido por Max Weber em Economia e sociedade (Weber, 1994WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1994.). Introduz, no entanto, uma modificação decisiva: considera a reificação como matriz das modalidades de sistemas jurídicos e burocráticos vigentes no capitalismo. Discorda radicalmente, por conseguinte, da apreciação weberiana que considera a burocratização da vida social e do campo do direito como um movimento inevitável.

De modo geral, Lukács (2003)LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. considera que, no âmbito do pensamento burguês, a consciência predominante se encontra perpassada por uma série de antinomias. Elas se caracterizam, esclarece Löwy (1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 76), “pelo dilema eternamente insolúvel entre o empirismo e o utopismo, o voluntarismo e o fatalismo: ante as ‘leis naturais’ da sociedade, objetivas/coisificadas, autônomas e inalteráveis, a subjetividade se fecha numa pura interioridade impotente e abstrata”.

Embora enfatize, em inúmeras passagens de História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), as insuficiências do ponto de vista da burguesia, no que tange a seu método cognitivo, a sua capacidade de compreensão do processo histórico e social, Lukács não descarta a integralidade do pensamento burguês. Na síntese de Löwy, “apesar de seu caráter unilateral”, a ciência produzida pelos grandes pensadores originais da burguesia constitui, segundo Lukács, “um momento necessário no edifício metodológico do conhecimento social”. De outro lado, “o pensamento burguês pode atingir uma visão clara de problemas particulares, de certas conexões de fatos econômicos” (Löwy, 1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 78).

Lukács, no entanto, rejeita peremptoriamente a possibilidade de o pensamento burguês compreender a reificação em seus fatores determinantes e em suas implicações históricas. Os cientistas e pensadores pertencentes a essa classe social, que mais se aprofundaram na apreensão desse fenômeno, como é o caso de Georg Simmel, consideram-no apenas no nível da aparência e como um mecanismo imutável.

O desvelamento do funcionamento da reificação, premissa indispensável à compreensão correta da totalidade da sociedade capitalista, compete exclusivamente ao proletariado. Somente seu ponto de vista torna possível apreender o substrato real das inúmeras manifestações desse fenômeno e gerar as condições para superá-lo por meio da transformação social.

Essa capacidade, na explicação de Lukács, deve-se a um conjunto de fatores. No resumo de Löwy, o mais determinante consiste no fato segundo o qual,

no proletariado, a reificação atinge seu paroxismo, sua forma mais completa e mais radical: ao contrário do capitalista, que tem a ilusão de uma atividade autônoma, o operário é explicitamente reduzido ao estado de pura mercadoria, a uma pura quantidade, a um puro objeto do processo de produção (Löwy, 1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 80).

A resistência do proletariado, seja à quantificação do tempo de trabalho determinada pelo capital, seja à sua condição de mercadoria sujeita à concorrência e às oscilações do mercado, constitui o fundamento de sua capacidade de compreender as diversas dimensões e os efeitos do fenômeno da reificação. Diz Löwy (1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 81):

o reconhecimento de que as formas de objetividade social não são coisas, mas relações entre seres humanos, conduz à sua completa dissolução em processo: a ‘coisidade’ do capital se dissolve no movimento de sua produção e reprodução pelo proletariado, que aparece agora como o verdadeiro sujeito desse processo.

Essa prioridade metodológica do proletariado não pode, de modo algum, ser atribuída à sua consciência empírica, à sua condição psicológica, à sua percepção social em dado momento. A variação desses estados afetaria o processo, não permitindo o esclarecimento, a partir da perspectiva da classe trabalhadora, das determinações corretas da reificação na sociedade capitalista. Lukács contorna essa aporia recorrendo a um conceito desenvolvido por Max Weber. Sublinha, nas palavras de Löwy, “que o ponto de vista do proletariado oferece somente a possibilidade objetiva de um conhecimento mais adequado da sociedade capitalista e de suas formas reificadas” (Löwy, 1990dLÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85., p. 81, grifo do autor).

Além desse conjunto de análises imanentes da obra de Lukács, destacando, em especial, sua trajetória até a publicação de História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), Löwy desdobra seu campo de pesquisas propondo-se a investigar – no artigo Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista (Löwy, 1990eLÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110.) – as afinidades do filósofo húngaro com um de seus contemporâneos, o italiano Antonio Gramsci.

Löwy inicia seus comentários sobre o assunto rejeitando, de antemão, o conceito de marxismo ocidental, que avalia como superficial. Como se sabe, Perry Anderson, em Considerações sobre o marxismo ocidental (Anderson, 2004ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004.), atribui aos dois autores a paternidade desse movimento. Segundo Löwy, trata-se de uma determinação muito vaga, incapaz de apreender as similitudes existentes entre Gramsci e Lukács.

Löwy prefere a definição de Althusser – invertendo seu juízo de valor –, que atribui aos dois autores uma comum interpretação humanista-historicista do marxismo. Adiciona, no entanto, a essa caracterização das afinidades entre Gramsci e Lukács, uma terceira e decisiva determinação:

parece-me que a tentativa de superar a versão positivista do marxismo — quer dizer, de fato, a interpretação dominante tanto na Segunda como na Terceira Internacional (principalmente depois de 1924) — é um dos principais traços comuns dessas duas filosofias, ao mesmo tempo, dialéticas e revolucionárias, humanistas e historicistas (Löwy, 1990eLÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110., p. 97, grifo do autor).

Tal convergência, explica Löwy, não deriva de influências diretas ou indiretas, seja de Lukács sobre Gramsci ou vice-versa. Os Cadernos do cárcere (Gramsci, 1999GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999.), obra magna do marxista italiano, redigidos entre 1929 e 1935, só foram publicados após a Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, esse livro cita Lukács apenas uma única vez, numa passagem na qual se comenta a tese, apresentada em História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), de que só se pode aplicar a dialética à história humana. A contestação da dialética da natureza, à qual Engels concedeu tanta importância, constitui, sem dúvida, o ponto mais conhecido e contestado do livro de Lukács. A condenação enfática dessa premissa no IV Congresso da Terceira Internacional, em 1924, ocorreu dois anos antes da prisão de Gramsci pela polícia fascista.

A explicação, ensaiada por Löwy, do repúdio de Gramsci e Lukács ao mecanicismo da Segunda Internacional, passa tanto por similitudes intelectuais no processo de conversão dos dois autores ao marxismo como pela participação deles em experiências revolucionárias.

O artigo “Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista” (Löwy, 1990eLÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110.) enumera algumas influências comuns que marcaram as trajetórias de Gramsci e Lukács em seu caminho para o marxismo. Apresenta-as como a junção inesperada de duas vertentes distintas: o hegelianismo antipositivista e o voluntarismo ético-romântico. Nessa última, manifestam-se ecos do idealismo moral de Kant e Fichte, assim como adesões parciais às teses de Geoges Sorel acerca do sindicalismo revolucionário, posições que supera quase simultaneamente.

Lukács aprofundou e refinou sua concepção da teoria marxista no decorrer e como consequência de seu engajamento na Revolução húngara de 1919. Gramsci foi militante ativo nos conselhos operários de Turim (1919-1920). Na visão de Löwy, ao longo desses acontecimentos, os desdobramentos teóricos e políticos próprios do marxista italiano se desenvolveram com mais intensidade do que os do filósofo húngaro:

Se a referência a Rosa Luxemburg e sua concepção do movimento de massas é comum aos dois, os escritos de Gramsci durante esse período, no hebdomadário Ordine Nuovo, são muito mais concretos e ‘políticos’ que os ensaios de Lukács. Ele substituirá, mais rapidamente que Lukács, o ‘bolchevismo ético’ por uma concepção mais realista da luta do proletariado (Löwy, 1990eLÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110., p. 102).

A recepção de Cadernos do cárcere (Gramsci, 1999GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999.) e de História e consciência de classe (Lukács, 2003LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 1ª edição [1923]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) destacou, num esforço comparativo, uma série de convergências entre os dois livros. Podem ser enumerados aí: o reconhecimento da importância de Hegel na constituição da teoria de Marx; o destaque concedido à dialética entre sujeito e objeto; a consideração dos fatores subjetivos, premissa dos conceitos de “consciência de classe” e de hegemonia; o repúdio às vertentes do marxismo que se pautam pelo materialismo metafísico, ou pelo economicismo, etc.

Sem ignorar a existência de divergências, Löwy, por sua vez, detalha sua compreensão da convergência antipositivista entre Gramsci e Lukács, adicionando e privilegiando outros tópicos.

Ressalta, em primeiro lugar, o historicismo radical dos dois pensadores. Segundo Löwy – em sintonia com as observações desenvolvidas por Karl Korsch em Marxismo e filosofia (Korsch, 2008KORSCH, K. Marxismo e Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.) –, ambos defendem a aplicação do materialismo histórico a si mesmo, assim como a delimitação de seus limites históricos. Ele extrai desse ponto a seguinte consequência:

[...] é o método resolutamente historicista de Gramsci e de Lukács, sua afirmação da historicidade necessária de todos os fenômenos sociais, que os opõe de maneira decisiva a todas as variantes do materialismo científico-naturalista, a todas as doutrinas semipositivistas da Naturgesetzlichkeit da vida social (Löwy, 1990eLÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110., p. 105).

Outra similitude entre Gramsci e Lukács, ressaltada por Löwy, reside na unidade indissolúvel de teoria e prática. Enfatizando essa dimensão, ele contesta a concepção de Althusser e sua escola, que apresenta Marx como fundador de uma ciência, comparando-o a cientistas como Galileu e Lavoisier. Supera-se, assim, também o equívoco da tese própria ao austro-marxismo, resumida por Hilferding no Prefácio a O capital financeiro (Hilferding, 1985HILFERDING, R. O capital financeiro. São Paulo: Nova cultural, 1985.), que separa – reintroduzindo um dualismo inspirado em Kant – o marxismo como ciência do movimento socialista. Diz Löwy:

Esta Weltanschauung coerente não pode ser decomposta em uma ciência positiva, por um lado, e uma ética de outro; ela supera, numa síntese dialética, a oposição tradicional entre ‘fatos’ e ‘valores’, ser e dever-ser, conhecimento e ação. No que se refere à filosofia da práxis, a unidade de teoria e prática permite ao marxismo quebrar aquilo que Lukács chamou ‘o dilema da impotência’: a dualidade entre fatalismo das leis puras e a ética das puras intenções (Löwy, 1990eLÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110., p. 106).

Por fim, Löwy considera ainda outro fator na compreensão das afinidades entre os dois autores. Trata-se do vínculo entre método dialético e estrutura revolucionária. Destaca, neles, o papel da “revolução proletária como ponto central de toda reflexão teórica, como elemento unificador (implícito ou explícito) do conjunto das questões filosóficas, históricas, culturais ou políticas” (Löwy, 1990eLÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110., p. 106).

Desse modo, a investigação das similitudes entre Gramsci e Lukács desvenda aspectos da obra do pensador húngaro que complementam os comentários elaborados anteriormente por Löwy. A comparação entre autores marxistas abre, portanto, uma via profícua para a compreensão da trajetória intelectual e política de Georg Lukács.

REFERÊNCIAS

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  • LÖWY, M. A sociedade reificada e possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990d. p. 69-85.
  • LÖWY, M. Gramsci e Lukács: em direção a um marxismo antipositivista. In: LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990e. p. 97-110.
  • LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990f.
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  • LUKÁCS, G. A teoria do romance 1ª edição [1916]. São Paulo: Duas cidades: Editora 34, 2000.
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  • WEBER, M. Economia e sociedade Brasília: Editora UnB, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2018
  • Aceito
    04 Jun 2018
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