Acessibilidade / Reportar erro

A DOUTRINA AMORIM: diplomacia do Brasil na América do Sul

AMORIM, Celso. . Laços de Confiança: O Brasil na América do SulCastro, Antonia García. . São Paulo: Benvirá, 2022592.

Laços de confiança, construídos pela diplomacia brasileira, caracterizam as relações de Brasília com os países da América do Sul. Essa é a linha interpretativo-analítica na qual se fundamenta a narrativa de “Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul” do embaixador e ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.

O problema que motiva as reflexões é “mostrar que a realidade já foi outra e que é possível a construção de uma América Latina e Caribe fortes, unidos em sua diversidade” e que “(...) a América Latina e o Caribe, mais especialmente a América do Sul constituem nossa circunstancia imediata” (Amorim, 2022AMORIM, Celso. Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul. São Paulo: Benvirá, 2022. 592p., p.11). Convém ter presente o fato que o contexto atual é bastante diferente do retratado pelo ex-ministro, marcado, dentre outras questões, como a gravidade dos desafios às instituições democráticas e crises econômicas, por uma mudança na capacidade de diálogo na região, verificada nas hostilidades de países como Brasil e Colômbia contra Venezuela, que a partir de 2017-2019 criaram mais obstáculos que avanços nas relações da América do Sul.

Salienta-se o fato que texto se centra nos dilemas associados à construção da integração regional em uma América do Sul que não existe mais. A despeito da recente aprovação, pelo Senado em Brasília, da entrada da Bolívia no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), a região enfrenta desafios políticos, econômicos e sociais que não fazem parte da análise, como o crescimento dos movimentos de direita em todos os países e crises econômicas, a exemplo da Argentina.

Do ponto de vista teórico-conceitual, o livro adota uma narrativa oficial, fundamentada por um conjunto de memórias, que investiga e relata uma série de relações, encontros e posições do Brasil e vizinhos, que se codificaram em tratados e convenções. Nesse panorama, trata-se de abordagem muito mais próxima da história diplomática, limitada aos atos oficiais, na qual o importante são as relações entre governos e chancelarias, e não entre as sociedades.

Cabe registrar, entretanto, as razões para leitura do livro. O texto explora eventos, fatos e notícias das iniciativas brasileiras com os países da América do Sul e sua narrativa fundamenta-se em notas do período em que o autor foi ministro de Itamar Franco (1992-1995) e Lula da Silva (2003-2010). As notas são complementadas com documentos oficiais publicados pelo Itamaraty, como discursos, comunicados conjuntos, entrevistas e reportagens. Ademais, o texto examina o histórico das relações bilaterais, tratados, diálogos políticos, o fortalecimento da diplomacia presidencial, relações comerciais, dentre outros aspectos.

O mérito do trabalho é abordar em pormenor as relações do Brasil com os vizinhos na perspectiva de um dos principais agentes políticos da diplomacia brasileira. Ademais, enquadra as relações do Brasil na América do Sul no âmbito da noção confiança, que significa a existência de relações estreitas do país com os vizinhos, cujo fio condutor foi a construção política da integração regional baseada em diálogo entre Estado e mercado, sobretudo no âmbito do MERCOSUL e da União Sul-Americana de Nações (UNASUL), organismo que, no entanto, encontra-se abandonado.

O livro é constituído por doze capítulos, um por país sul-americano mais a Comunidade de Países do Caribe (Caricom), com exceção da Guiana Francesa e organizado em ordem cronológica. Contudo, em função da natureza do livro e da posição de quem o escreve, nota-se tratamento limitado em relação ao debate acadêmico sobre o tema da integração regional e das críticas dos países vizinhos ao papel do Brasil. Evidentemente, a obra se insere no campo da política externa brasileira, integração regional, relações bilaterais com países da América do Sul e das potências regionais, destinando-se também ao público mais amplo interessado nos rumos da política brasileira.

O primeiro capítulo, sobre a Argentina, narra o início do processo de aproximação com o Brasil no período democrático, desde o fim dos 1980 e início dos 1990. O estreitamento de “aliança estratégica” com a Argentina foi elemento central na dinâmica de integracionista da região, mas nunca esteve livre de problemas, avanços e retrocessos. Por exemplo, exploram-se o fato que Domingo Cavallo queria impedir a adoção da Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul por questões de política doméstica argentina, ou as relações da Argentina com os Estados Unidos, que poderia minar a integração do Cone Sul em função de um tratado de livre-comércio com a grande potência do Norte.

Em seguida, no capítulo sobre o Uruguai, narra-se como a relação foi dominada, no início do governo Lula, por questões de ordem comercial: a posição nas negociações na Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), problemas do Mercosul (assimetrias e negociações com países desenvolvidos) e natureza da integração comercial para além das fronteiras do Mercosul. Nas três posições o Uruguai se afastava do Brasil porque era atraído às negociações com países desenvolvidos, e a ALCA era uma prioridade. O autor evidencia como, apesar das dificuldades, manteve-se o “espírito sul-americano”.

O terceiro capítulo aborda o Paraguai, membro economicamente mais fraco do Mercosul, desde a década de 1990, momento no qual este se democratizou e negociou adesão ao GATT (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio). Apesar de manter posições liberais em comércio “Assunção acabou por alinhar-se às posições brasileiras, ainda que sem grande convicção” (Amorim, 2022AMORIM, Celso. Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul. São Paulo: Benvirá, 2022. 592p., p.154) no que diz respeito à integração do Mercosul. Ponto de destaque do capítulo são as negociações bilaterais sobre a “energia cedida” do Paraguai ao Brasil no marco do Tratado de Itaipu.

As relações com o Chile (quarto capítulo) são sintetizadas no subtítulo “uma amizade sem limites” e identifica a construção de uma relação próxima, na qual os países foram parceiros em temas multilaterais como a Ação Contra a Fome e a Pobreza nas negociações da Rodada de Doha. Ademais, ambos os países participaram da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), na qual Chile e Brasil ocuparam, respectivamente, os comandos civil e militar da Missão. No entanto, Santiago oscilou no apoio ao Brasil nos dois temas principais, do CSNU e do Mercosul.

Sobre a Bolívia, o quinto capítulo, um dos temas mais relevantes do relacionamento bilateral foi a questão dos hidrocarbonetos. Explora-se o aprofundamento de crise social na Bolívia e a interlocução do Brasil com o presidente Carlos Mesa, Evo Morales e seus respectivos chanceleres. Em 2007 Evo Morales fez sua primeira visita ao Brasil como presidente e, ao destacar a importância do diálogo presidencial entre ambos, Amorim enquadra as negociações sobre gás na perspectiva de uma parceria estratégica e explora as dificuldades enfrentadas nesse processo.

Na sequência, o sexto capítulo, sobre o Peru, aponta o importante papel do país na integração sul-americana e no lançamento da Comunidade Sul-Americana de Nações, de 2004, antecessora da Unasul, estabelecida em 2008. Para o autor, o acordo Mercosul-Peru (2005) foi chave para ampliar o livre comércio na América do Sul. Entretanto, o mesmo tipo de acordo, firmado entre Peru e Estados Unidos (2007), pode ter criado problemas na região. O Peru, por exemplo, deixou o G-20 em 2003 por pressão de Washington.

No sétimo capítulo, sobre o Equador, os temas principais que marcaram o relacionamento bilateral foram obras de infraestrutura com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), promoção de comércio bilateral, com o estabelecimento de créditos recíprocos, integração física (apesar da falta de fronteira comum, houve empenho em criar via interoceânica, entre o litoral do Pacífico e a Bacia Amazônica) e cooperação técnica. O Equador apoiou o pleito do Brasil em relação ao CSNU e o Brasil atuou como mediador na crise entre esse país andino e a Colômbia, quando Bogotá bombardeou bases das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) em território equatoriano, em 11 de março de 2008.

Nas relações com a Colômbia, no oitavo capítulo, o texto resgata os impulsos dados ao relacionamento bilateral desde os anos 1990, mas considera que a “Colômbia era menos receptiva que a Venezuela aos acenos do Brasil” (Amorim, 2022AMORIM, Celso. Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul. São Paulo: Benvirá, 2022. 592p., p.364). O autor explora as difíceis relações entre a Colômbia, Venezuela e Equador e a Comunidade Andina de Nações (CAN), mas também a intensidade de contatos oficiais entre Bogotá e Brasília em favor da integração regional. Um tema chave é a questão das bases norte-americanas na Colômbia, em relação às quais o Brasil se esforçou para conseguir algum tipo de “garantia” sobre o uso desse aparelho militar exclusivamente no território nacional.

A Venezuela é o tema do nono capítulo. Enquadram-se s relações com Caracas no pano de fundo das iniciativas tomadas nos anos 1990, e o autor destaca que “as relações com a Venezuela formaram um dos capítulos mais positivos da diplomacia brasileira no governo Itamar” (Amorim, 2022AMORIM, Celso. Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul. São Paulo: Benvirá, 2022. 592p., p.420). De fato, as relações entre ambos os países durante o governo Lula da Silva foram intensas. Chávez sofreu golpe em 2002 e, antes mesmo de empossado, Lula teve que atuar na crise política da Venezuela, visitando o país em dezembro de 2002. Por outro lado, a Venezuela “desconfiava” do Tratado de Livre Comércio da América do Sul, porque a visão de Caracas sobre a integração regional era mais estatizante que a brasileira. O texto descreve múltiplos encontros entre os presidentes, seus chanceleres e os vários instrumentos acordados.

Os últimos capítulos do livro, dedicados a Guiana (décimo capítulo), Suriname (décimo primeiro capítulo) e Caricom (décimo segundo capítulo), são os mais curtos. Um dos maiores desafios da política externa brasileira regional foi, segundo o autor, o “esforço de incorporar nossos dois pequenos vizinhos ‘não ibéricos’, Guiana e Suriname, ao convívio sul-americano” (Amorim, 2022AMORIM, Celso. Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul. São Paulo: Benvirá, 2022. 592p., p.505). Vale registrar que, no governo Lula, a Guiana ficou mais conhecida pela abertura de Consulado do Brasil em Lethem em 2007. A cidade fica na região de Essequibo, território reivindicado pela Venezuela. O Suriname, último país da América do Sul a ser visitado pelo presidente Lula, o Brasil assinou múltiplos acordos de cooperação técnica e participou de encontro da Comunidade do Caribe, encontro que “abriu as portas” do Caribe para o Brasil.

É forçoso observar, portanto, que a aproximação do Brasil a dois vizinhos da América do Sul que integram o Caribe, a Guiana e o Suriname, promoveu, a inserção do Brasil no âmbito da Caricom. Até o primeiro governo Lula, não havia diálogo profundo entre a Comunidade e o Brasil. O último capítulo aborda como as relações com esses dois países amazônicos e caribenhos rendeu a inclusão do Caribe na “rota da cooperação Sul-Sul” brasileira.

Nesse sentido, Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul (2022) é leitura útil para entender os determinantes políticos e econômicos da integração sul-americana, o papel da diplomacia brasileira e os contatos de mais alto nível que tornaram possíveis as iniciativas.

Contudo, cabe problematizar a posição do Brasil na América do Sul. Destradi (2010)DESTRADI, S. (2010) Regional powers and their strategies: Empire, hegemony, and leadership. Review of International Studies 36(4): 903–930 propõe uma tipologia para classificar o papel das potências na persecução de objetivos, sejam eles nacionais ou coletivos: império, hegemonia e liderança. No caso do Brasil, a autora argumenta que a proeminência regional país tem consistido em uma espécie de hegemonia que não se traduziu em liderança, visto que não há interesse coletivo consistente compartilhado por todos os países sul-americanos. Avançando nas definições, as hegemonias perseguem interesses nacionais, embora apresentando-os a Estados subordinados como coletivos.

Vale registrar, em conclusão, que a análise das relações do Brasil na América do Sul suscita uma ponderação muito importante: a existência de política de Estado operando na condução dos assuntos internacionais na região, ao abrigo de iniciativas no âmbito das relações bilaterais, Mercosul e Unasul. Essa política de Estado poderia ser chamada de Doutrina Amorim. Na Doutrina Amorim, enunciada ao longo do livro “Laços de Confiança” (2022), sem, contudo, ser articulada enquanto tal, o objetivo mais básico da diplomacia brasileira na América do Sul é a integração regional, fundada em amplo diálogo político, coordenação de posições comuns, fortalecimento do comércio através de tratado de livre-comércio, cooperação técnica em múltiplos setores e intensas visitas presidenciais.

REFERÊNCIAS

  • AMORIM, Celso. Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul. São Paulo: Benvirá, 2022. 592p.
  • BURGES, S.W. (2008) Consensual hegemony: Theorizing Brazilian foreign policy after the cold war. International Relations 22(1): 65–84
  • DESTRADI, S. (2010) Regional powers and their strategies: Empire, hegemony, and leadership. Review of International Studies 36(4): 903–930
  • GARCIA, M.A. (2011) Respostas da Política Externa Brasileira às Incertezas do Mundo Atual. Interesse Nacional 4(13): 3–9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Aceito
    28 Dez 2023
Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Centro de Recursos Humanos Estrada de São Lázaro, 197 - Federação, 40.210-730 Salvador, Bahia Brasil, Tel.: (55 71) 3283-5857, Fax: (55 71) 3283-5851 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revcrh@ufba.br