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Delirium e qualidade do sono na unidade de terapia intensiva: o papel da melatonina

CORRELAÇÃO ENTRE DELIRIUM E DISTÚRBIOS DO SONO

Pacientes internados em unidades de terapia intensiva (UTIs) frequentemente enfrentam dificuldades relacionadas a delirium e distúrbios do sono.(11 Ouimet S, Kavanagh BP, Gottfried SB, Skrobik Y. Incidence, risk factors and consequences of ICU delirium. Intensive Care Med. 2007;33(1):66-73.) Apesar de extensas pesquisas nos últimos anos, o delirium continua sendo uma condição complexa e com fisiopatologia incerta, e sua ocorrência está associada a desfechos desfavoráveis, bem como a uma maior duração do comprometimento cognitivo e funcional.(11 Ouimet S, Kavanagh BP, Gottfried SB, Skrobik Y. Incidence, risk factors and consequences of ICU delirium. Intensive Care Med. 2007;33(1):66-73.,22 Rego LL, Salluh JI, Souza-Dantas VC, Silva JR, Póvoa P, Serafim RB. Delirium severity and outcomes of critically ill COVID-19 patients. Crit Care Sci. 2023;35(4):394-401.) Embora até o momento não existam estudos que demonstrem uma forte relação entre delirium e sono, o desenvolvimento de delirium e distúrbios do sono em UTIs é frequentemente multifatorial, com vários fatores de risco relacionados, incluindo idade, comorbidades, gravidade da doença, fatores ambientais e intervenções iatrogênicas.(33 Gandolfi JV, Di Bernardo AP, Chanes DA, Martin DF, Joles VB, Amendola CP, et al. The effects of melatonin supplementation on sleep quality and assessment of the serum melatonin in ICU patients: a randomized controlled trial. Crit Care Med. 2020;48(12):e1286-93.)

A escassez de evidências que apoiem o uso de intervenções farmacológicas (como antipsicóticos ou sedativos) para a prevenção ou o tratamento do delirium na UTI(44 Barbateskovic M, Krauss SR, Collet MO, Larsen LK, Jakobsen JC, Perner A, et al. Pharmacological interventions for prevention and management of delirium in intensive care patients: a systematic overview of reviews and meta-analyses. BMJ Open. 2019;9(2):e024562.) ressalta a importância de intervenções direcionadas para mitigar o risco de delirium e suas condições predisponentes.(33 Gandolfi JV, Di Bernardo AP, Chanes DA, Martin DF, Joles VB, Amendola CP, et al. The effects of melatonin supplementation on sleep quality and assessment of the serum melatonin in ICU patients: a randomized controlled trial. Crit Care Med. 2020;48(12):e1286-93.,44 Barbateskovic M, Krauss SR, Collet MO, Larsen LK, Jakobsen JC, Perner A, et al. Pharmacological interventions for prevention and management of delirium in intensive care patients: a systematic overview of reviews and meta-analyses. BMJ Open. 2019;9(2):e024562.) As recomendações atuais para a prevenção do delirium enfatizam medidas não farmacológicas, como a otimização do cuidado humano (eCASH),(55 Vincent JL, Shehabi Y, Walsh TS, Pandharipande PP, Ball JA, Spronk P, et al. Comfort and patient-centered care without excessive sedation: the eCASH concept. Intensive Care Med. 2016;42(6):962-71.) o bem estabelecido pacote A a F(66 Morandi A, Brummel NE, Ely EW. Sedation, delirium, and mechanical ventilation: the "ABCDE" approach. Curr Opin Crit Care. 2011;17(1):43-9.) e esforços para minimizar os fatores de risco modificáveis. As diretrizes PADIS sustentam que o sono deve ser monitorado rotineiramente, sendo que as estratégias para melhorar a higiene do sono devem ser discutidas com os pacientes.(77 Devlin JW, Skrobik Y, Gélinas C, Needham DM, Slooter AJ, Pandharipande PP, et al. Clinical Practice Guidelines for the Prevention and Management of Pain, Agitation/Sedation, Delirium, Immobility, and Sleep Disruption in Adult Patients in the ICU. Crit Care Med. 2018;46(9):e825-73.) Apesar desses esforços, os distúrbios do sono, como a privação do sono, ainda são relatados por 66% dos pacientes de UTI(88 Shih CY, Wang AY, Chang KM, Yang CC, Tsai YC, Fan CC, et al. Dynamic prevalence of sleep disturbance among critically ill patients in intensive care units and after hospitalization: a systematic review and meta-analysis. Intensive Crit Care Nurs. 2023;75:103349.) e estão ligados à disfunção neurocognitiva, o que aumenta ainda mais o risco de delirium.(99 Dorsch JJ, Martin JL, Malhotra A, Owens RL, Kamdar BB. Sleep in the intensive care unit: strategies for improvement. Semin Respir Crit Care Med. 2019;40(5):614-28.)

QUALIDADE DO SONO NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA

Demonstrou-se que o sono na UTI é caracterizado por uma qualidade subjetivamente ruim, níveis elevados de sono fragmentado e latências de sono prolongadas. Além disso, quase 50% do sono na UTI ocorre durante o dia, o que afeta a reabilitação. Embora o sono seja considerado crucial para a recuperação do paciente, pouco se sabe sobre a associação do sono com a função fisiológica entre pacientes graves ou aqueles com desfechos clinicamente essenciais na UTI. Estudos envolvendo distúrbios do sono em UTIs são desafiadores devido à falta de métodos objetivos, práticos, confiáveis e escalonáveis para medir o sono e as etiologias multifatoriais de sua interrupção.(1010 Tiruvoipati R, Mulder J, Haji K. Improving sleep in intensive care unit: an overview of diagnostic and therapeutic options. J Patient Exp. 2020;7(5):697-702.,1111 Owens RL. Better sleep in the intensive care unit: blue pill or red pill or no pill? Anesthesiology. 2016;125(5):835-7.) Estudos de eletroencefalografia descreveram despertares frequentes, aumento do estágio 2 do sono não REM, redução ou ausência do estágio 3 do sono não REM de ondas lentas e do sono REM.(1010 Tiruvoipati R, Mulder J, Haji K. Improving sleep in intensive care unit: an overview of diagnostic and therapeutic options. J Patient Exp. 2020;7(5):697-702.)

A má qualidade do sono na UTI pode ser atribuída à luz artificial, ao aumento de ruído, ser uma consequência da doença crítica e se dar pelas intervenções de tratamento que afetam o ciclo dia-noite.(1010 Tiruvoipati R, Mulder J, Haji K. Improving sleep in intensive care unit: an overview of diagnostic and therapeutic options. J Patient Exp. 2020;7(5):697-702.) Considerando os desafios de melhorar o sono por meio do redefinição do fluxo de trabalho e do ambiente, têm-se utilizado amplamente terapias farmacológicas com soníferos tradicionais, como os benzodiazepínicos, aumentando o risco de desenvolvimento de delirium. Até mesmo os hipnóticos não benzodiazepínicos mais recentes, como zolpidem ou antipsicóticos atípicos (não aprovados pela Food and Drug Administration [FDA] para essa finalidade), estão associados a estado mental alterado e quedas hospitalares e podem não ser eficazes mesmo em pacientes menos agudamente graves.(1111 Owens RL. Better sleep in the intensive care unit: blue pill or red pill or no pill? Anesthesiology. 2016;125(5):835-7.)

O PAPEL DA MELATONINA NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA

A melatonina, um hormônio produzido pela glândula pineal, desempenha papel fundamental na regulação do ciclo sono-vigília. Sinais ambientais, especialmente a exposição à luz, influenciam em sua secreção, com os níveis máximos ocorrendo normalmente à noite. Na UTI, os pacientes são geralmente expostos à iluminação e a ruídos artificiais, o que perturba seu ritmo circadiano e a produção de melatonina.(1010 Tiruvoipati R, Mulder J, Haji K. Improving sleep in intensive care unit: an overview of diagnostic and therapeutic options. J Patient Exp. 2020;7(5):697-702.) A evidência de níveis deficientes de melatonina em pacientes graves torna teoricamente razoável esperar efeitos mais significativos da melatonina para melhorar a qualidade do sono e, consequentemente, reduzir a incidência de delirium em ambientes de UTI.(1212 Yan W, Li C, Song X, Zhou W, Chen Z. Prophylactic melatonin for delirium in critically ill patients: a systematic review and meta-analysis with trial sequential analysis. Medicine (Baltimore). 2022;101(43):e31411.)

No entanto, apesar dos resultados promissores da melatonina na melhora da qualidade do sono(33 Gandolfi JV, Di Bernardo AP, Chanes DA, Martin DF, Joles VB, Amendola CP, et al. The effects of melatonin supplementation on sleep quality and assessment of the serum melatonin in ICU patients: a randomized controlled trial. Crit Care Med. 2020;48(12):e1286-93.) e na prevenção do delirium em ambientes que não sejam de UTI,(1313 Aiello G, Cuocina M, La Via L, Messina S, Attaguile GA, Cantarella G, et al. Melatonin or ramelteon for delirium prevention in the intensive care unit: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. J Clin Med. 2023;12(2):435.) a eficácia da melatonina ou da ramelteona (um agonista da melatonina) na prevenção do delirium na UTI continua sendo objeto de debate, com achados contraditórios relatados em estudos recentes. Duas revisões sistemáticas e metanálises publicadas recentemente mostraram resultados divergentes e destacaram várias limitações metodológicas, como o número relativamente baixo de pacientes selecionados, a heterogeneidade das doses de melatonina e o uso de diferentes ferramentas de avaliação do delirium.(33 Gandolfi JV, Di Bernardo AP, Chanes DA, Martin DF, Joles VB, Amendola CP, et al. The effects of melatonin supplementation on sleep quality and assessment of the serum melatonin in ICU patients: a randomized controlled trial. Crit Care Med. 2020;48(12):e1286-93.,1313 Aiello G, Cuocina M, La Via L, Messina S, Attaguile GA, Cantarella G, et al. Melatonin or ramelteon for delirium prevention in the intensive care unit: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. J Clin Med. 2023;12(2):435.)

Bandyopadhyay et al. realizaram um estudo controlado e randomizado com um seguimento de 7 dias para comparar o tratamento padrão isoladamente ou associado a 3mg de melatonina enteral uma vez ao dia. O estudo foi realizado em uma UTI terciária em pacientes com perfil clínico-cirúrgico na Índia. O estudo incluiu 108 pacientes, e as medições da incidência de delirium foram realizadas nos dias 1, 3 e 7 de internação na UTI. O objetivo do uso da melatonina era reduzir os episódios de delirium nos pacientes. Embora o estudo tenha sido bem conduzido, com randomização de qualidade e padronização dos métodos de avaliação de desfechos, não demonstrou qualquer benefício para reduzir a incidência de delirium ao otimizar o ciclo sono-vigília. Os resultados desse estudo se somam a outros que não demonstraram o benefício do uso dessa medicação como profilaxia e/ou tratamento de pacientes com delirium. O autor discutiu o delirium como um distúrbio multifatorial complexo com mecanismos subjacentes e afirmou que a abordagem de apenas um desses mecanismos (interrupção do ritmo circadiano) pode não ser suficiente para determinar o tamanho do efeito inicialmente almejado nesse estudo. Entretanto, o estudo não utilizou nenhum método para medir a qualidade do sono dos pacientes em cada grupo.(1414 Bandyopadhyay A, Yaddanapudi LN, Saini V, Sahni N, Grover S, Puri S, et al. Efficacy of melatonin in decreasing the incidence of delirium in critically ill adults: a randomized controlled trial Crit Care Sci. 2024;36:20240144en.)

ESTRATÉGIAS À BEIRA DO LEITO PARA MANEJO DO DELIRIUM E DO SONO

Terapias não farmacológicas são fundamentais para promover a qualidade do sono e prevenir o delirium na UTI. Estratégias para melhorar a higiene do sono devem ser implementadas no ambiente da UTI, incluindo reduzir ruídos (não superiores a 40 dB), ajustar alarmes de bombas de seringa, garantir níveis de luz adequados, evitar procedimentos durante a noite, revisar todos os medicamentos atuais e a possibilidade de abstinência (incluindo nicotina ou substâncias aditivas recreativas), otimizar as configurações do ventilador e, até mesmo, implementar terapias alternativas para a promoção do sono, incluindo música, massagem ou técnicas de relaxamento.(99 Dorsch JJ, Martin JL, Malhotra A, Owens RL, Kamdar BB. Sleep in the intensive care unit: strategies for improvement. Semin Respir Crit Care Med. 2019;40(5):614-28.) Dada a natureza multifatorial dessas condições, é essencial uma abordagem holística que englobe intervenções farmacológicas e não farmacológicas.

Apesar da controvérsia quanto ao uso da melatonina para melhorar a qualidade do sono e, possivelmente, reduzir a incidência de delirium, é necessário realizar mais pesquisas para esclarecer sua eficácia e estratégias de dosagem ideais no ambiente da UTI. Além disso, pode ser necessário abordar outros fatores contribuintes além da perturbação do ritmo circadiano para obter melhorias significativas na prevenção e no controle do delirium.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2024
  • Aceito
    14 Mar 2024
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