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“Precisão” e política: algumas considerações etnográficas a partir de Codó (Maranhão)

“Need” and politics: some ethnographic considerations from Codó (Maranhão)

“Precisión” y política: algunas observaciones etnográficas desde Codó (Maranhão)

Resumo:

Este artigo é sobre a “precisão”, uma palavra que anuncia as adversidades enfrentadas pelas pessoas no interior de Maranhão. Discuto essa categoria a partir de uma etnografia realizada, nos últimos anos, em Codó, com pessoas de religião afro-brasileira e com quebradeiras de coco babaçu. Invisto em uma abordagem etnográfica da política institucional, vista a partir da “precisão”, que revela a distância entre as pessoas e os políticos, as formas de “exploração” e as estratégias utilizadas para manter a vida. Argumento que a política é vista como uma aposta ou “vereda”, no âmbito de uma sofisticada forma de perceber as relações sociais.

Palavras-chave:
Etnografia; Precisão; Política; Estado

Abstract:

This article is about “need”, a word that announces some adversities faced by people in Maranhão countryside. I discuss this category based on an ethnography carried out, in the last years, in Codó, with people of Afro-Brazilian religion and with babaçu coconut breakers. I invest in an ethnographic approach to institutional policy, seen from the “need”, which reveals how distant ordinary people and politicians are, the forms of “exploitation” and the strategies used to maintain life. I argue that politics are been seeing as a gamble or “path”, within the scope of a sophisticated way of perceiving social relations.

Keywords:
Ethnography; Need; Politics; State

Resumen:

Este artículo es sobre la “precisión”, una palabra que anuncia los desafíos enfrentados por las personas en el interior de Maranhão. Problematizo esta categoría a partir de una etnografía realizada durante los últimos años en Codó, con personas de religión afro-brasileña y con quebradoras de coco babasú. Propongo un enfoque etnográfico de la política institucional, vista a partir de la “precisión”, que expone la distancia entre las personas y los políticos, las formas de “explotación” y las estrategias utilizadas para mantenerse con vida. Argumento que la política es vista como una apuesta o “camino”, inmersa en una forma sofisticada de percibir las relaciones sociales.

Palabras clave:
Etnografía; Precisión; Política; Estado

Entre os temas estudados pela antropologia, a política sempre figurou de uma maneira significativa. Como nos lembra Balandier (1967)Balandier, George. 1967. Anthropologie Politique. Paris: PUF., preocupações em torno da política e do estado participam da própria constituição da disciplina – a distinguindo, por exemplo, de outras abordagens, como a filosofia política (Fortes e Evans-Pritchard 1961Fortes, Meyer, e Edward Evans-Pritchard. 1961. Introduction. In African Political Systems, organizado por Meyer Fortes e Edward Evans-Pritchard, 1-23. London: Oxford University Press.) –, e marcando a distinção entre pretensas escolas de pensamento e apostas metodológicas. Ainda sobre os estudos antropológicos da política, Cañedo-Rodrigues (2013)Cañedo-Rodriguez, Monteserrat, ed. 2013. Cosmopolíticas. Perspectivas antropológicas. Madrid: Trotta. lembra de ser este um recorte que tenciona ao máximo a forma conceitual da política no Ocidente e exacerba a necessidade do relativismo metodológico, ao tempo em que indica uma nova compreensão de etnografia.

No Brasil, há poucas décadas, se desenhou de forma mais evidente um conjunto de trabalhos que se convencionou chamar de antropologia da política. Um dos seus elementos centrais é a compreensão de que a definição de política não deve ser dada a priori, mas conceituada etnograficamente, a partir das experiências compartilhadas pelas pessoas (Peirano 1997Peirano, Mariza. 1997. Antropologia política, ciência política e antropologia da política. Série Antropologia 231: 15-26.; Goldman 2006Goldman, Marcio. 2006. Como funciona a democracia. Uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7 Letras.). Desta forma, os sentidos prévios de estado, a racionalidade ou mesmo a compreensão de política como uma esfera distinta de outras dimensões da vida social, como o parentesco e a religião, deveriam ser colocados em suspenso.

Este texto se ancora no escopo dessas investigações, na perspectiva de uma compreensão etnográfica da política, enfatizando a forma como as pessoas veem a política institucional (os políticos, os programas governamentais e as eleições). Sugiro fazer essa análise a partir de uma categoria que conheci durante pesquisas de campo2 2 A pesquisa de campo e a escrita da minha tese de doutorado aconteceram entre 2010 e 2013, quando fui bolsista do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A pesquisa com as quebradeiras de coco, na qual fui colaboradora, foi parte do projeto “Estratégias de enfrentamento da fome e construções de gênero: o cotidiano das quebradeiras de coco babaçu na Região dos Cocais”, financiada pelo CNPq, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A partir de 2014, já professora da Universidade Federal do Maranhão, desenvolvi dois projetos de pesquisa na região, “Mobilidade entre mestres e encantados do Terecô de Codó” e “Casa e Mobilidade, uma abordagem antropológica”, esse último financiado pela Fundação de Amparo ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema). que realizo há alguns anos no interior do Maranhão, a “precisão”. Alguém que vive em “precisão” ou cuja vida é marcada por ela, é uma pessoa que passa por dificuldades que em grande parte são financeiras. A ideia, entretanto, não pode ser resumida, me parece, à perspectiva de uma ausência de renda, uma vez que se relaciona com uma conjugação de fatores que deixa as pessoas vulneráveis, e combina dinheiro, dificuldades de acesso a recursos e serviços (como os da área da saúde), insegurança fundiária e desemprego.

Conheci a categoria “precisão” quando iniciei, há cerca de 10 anos, uma pesquisa etnográfica na cidade de Codó, localizada na região dos Cocais, leste do Maranhão, nordeste do Brasil. A ocasião era a investigação base minha tese de doutorado, defendida na Universidade de Brasília (UnB) em 2013. Naquele momento, busquei compreender as relações entre pessoas e encantados – termo que designa as entidades de uma religião afro-brasileira chamada terecô. Em Codó, se estima existirem mais de 250 tendas religiosas, chefiadas por pais e mães de santo, que se definem como sendo de terecô, umbanda e/ou candomblé (Ahlert 2021Ahlert, Martina. 2021. Encantoria: uma etnografia sobre pessoas e encantados. São Luís: Edufma.).

Além da pesquisa sobre o terecô, integrei uma equipe de estudantes e professoras que fez campo com mulheres quebradeiras de coco, sobre seu cotidiano, suas associações profissionais e as diferentes estratégias que utilizavam para enfrentamento da fome, como a participação em programas sociais. As duas pesquisas acabaram se aproximando, na medida em que não apenas os interlocutores se cruzaram, como diversos pais e mães de santo eram ou haviam sido trabalhadores rurais. Nesse sentido, mantiveram suas tendas e festas religiosas com recursos provenientes da roça e da quebra de coco babaçu. Esses interesses de pesquisa figuram na minha investigação atual realizada em Codó, que tem como foco as questões fundiárias e a construção de casas.

Neste texto, procuro esmiuçar algumas nuances da categoria “precisão”, com a intenção de olhar, a partir dela, para os sentidos etnográficos dados à política. Para tanto, tomo a liberdade de conectar variadas experiências dos últimos anos, que embora vividas em momentos distintos e com pessoas diferentes, conectam pontos de uma delicada percepção sobre quem se é e em que lugar se está, sobre como agir e como fazer existir a vida em um mundo que tem a “precisão” em sua constituição. Tendo isso em mente, em primeiro lugar, escrevo sobre o sentido dessa categoria e a necessidade de “correr atrás” para diminuí-la – o faço a partir de elementos da trajetória de duas mulheres, Luiza e Marta. Na sequência, penso a “exploração da precisão” na relação com o estado, a partir do relato de uma reunião de uma associação de pais e mães de santo. Por fim, a partir de um encontro de quebradeiras de coco com um deputado, penso em como a política é, diante da “precisão”, um contexto de apostas sempre aberto às tentativas de fazer a vida acontecer. Antes disso, entretanto, apresento às leitoras e leitores a perspectiva teórico-metodológica que me permite sustentar a escrita do artigo em uma categoria êmica; e algumas informações importantes sobre ética e etnografia.

Categorias êmicas e questões éticas

Conheci a palavra “precisão” durante as pesquisas em Codó e na mesma época li sobre ela no livro de Flávia Moura (2009)Moura, Flávia. 2009. Escravos da precisão. Economia familiar e estratégias de sobrevivência de trabalhadores rurais em Codó (MA). São Luís: Edufma.. A autora ouviu sobre “precisão” quando conversava com alguns trabalhadores na mesma cidade, que foram encontrados em uma fazenda, em situação análoga ao trabalho escravo. Eles lhe contaram sobre o “tempo da precisão” (Moura 2009Moura, Flávia. 2009. Escravos da precisão. Economia familiar e estratégias de sobrevivência de trabalhadores rurais em Codó (MA). São Luís: Edufma., 83), o momento do ciclo agrícola no qual ficavam mais vulneráveis e aceitavam o convite de agenciadores para trabalhar com o “roçado da juquira”, como é denominada a limpeza de uma área para pecuária, atividade considerada extenuante e inferior à lida com a roça. Ao perceber a reincidência dos homens em situações de trabalho degradante, Moura ouviu dos seus interlocutores a percepção de si mesmos como “escravos da precisão”, situação que os condicionava ao retorno às fazendas.

Tenho a impressão de que nos casos estudados por Moura (2009)Moura, Flávia. 2009. Escravos da precisão. Economia familiar e estratégias de sobrevivência de trabalhadores rurais em Codó (MA). São Luís: Edufma. e no meu campo são compartilhados os sentidos de “precisão”. Diante disso, eu pretendo, neste texto, considerá-la uma categoria êmica capaz de guiar nossa análise para a compreensão de um cenário histórico de adversidades. Esse exercício não é novo na antropologia: a necessidade de atenção às palavras empregadas pelos interlocutores de pesquisa é recorrente nos estudos clássicos e contemporâneos da disciplina. Em certos cenários, como na monografia clássica de Malinowski, Argonautas do Pacífico Ocidental (2018), se buscava valorizar a singularidade dos termos “nativos” (como a denominação “kula”, por exemplo) e ao mesmo tempo buscar equivalências entre as práticas por eles descritas e os elementos do contexto de origem do pesquisador. Desta forma, Malinowski foi capaz de comparar a circulação e a troca de objetos em Trobriand com os troféus ou com as joias da Coroa britânica.

Esta forma de criar paralelos comparativos foi fundamental na antropologia moderna, interessada nos processos de compreensão dos outros modos de vida. Mas, não passou incólume aos desdobramentos das décadas seguintes. Nelas, além de se evidenciar a necessidade de um olhar crítico aos conceitos utilizados pelos pesquisadores nas etnografias (ver, por exemplo, Leach 1995Leach, Edmund. 1995. Sistemas Políticos da Alta Birmânia. Um Estudo da Estrutura Social Kachin. São Paulo: Edusp.), inquiriu-se sobre a relevância das categorias êmicas e os cuidados necessários à criação de equivalências. Strathern (2006Strathern, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora da Unicamp., 2014Strathern, Marilyn. 2014. O conceito de sociedade está teoricamente obsoleto? In O efeito etnográfico e outros ensaios, organizado porMarilynStrathern, 231-239. Cosac Naify.), por exemplo, além de lembrar da dimensão histórico-política dos conceitos científicos, assume a possibilidade de incomensurabilidades entre os contextos aproximados pela experiência de trabalho de campo. Uma saída para a existência da comparação em antropologia, diante disso, seria observar com atenção as categorias utilizadas pelas pessoas e considerá-las de forma simétrica aos conceitos da antropologia. Seguindo essa premissa teórico-metodológica, ao centrar o texto na “precisão”, busco me aproximar de uma forma êmica de pensar as desigualdades e a política.

A aproximação entre “precisão” e “política” remete ainda às críticas de Sahlins (1972)Sahlins, Marshall. 1972. The original affluent society. In Stone age economics, organizado por Marshall Sahlins, 5-41. New York: Aldine de Gruyter. e Clastres (2013)Clastres, Pierre. 2013. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify. sobre a relação entre economia e estado. Segundo os autores, coletivos não ocidentais – como sociedades coletoras e caçadoras ou ainda povos indígenas – foram continuamente classificados como economias de subsistência: ora refreadas à busca incessante aos alimentos que não lhes permitia pensar (criar ou elaborar) além da satisfação de suas “necessidades básicas”; ora vistas como ignorantes diante do sentido do trabalho, dos cálculos da acumulação e da economia de mercado. Enquanto Sahlins se esforçou para questionar o sentido de escassez e acúmulo, ao pensar esses coletivos como sociedades da abundância, Clastres evidenciou a relação entre a ausência de mercado ou de economia e a ausência de estado. Ambas, para o autor, são aportes etnocêntricos que classificam grupos não sujeitos à lógica ocidental pelo critério da falta.

Considerando essas críticas, procuro indicar que a categoria “precisão” extrapola sentidos de escassez ou carência que sugerem olhares instrumentais ou meramente utilitários à política institucional e à relação com os políticos. Essa me parece ainda uma chave ética para pensar como as pessoas lidam com cenários nos quais constroem suas vidas e de suas famílias sem reduzir-se às lógicas de opressão, clientelismo ou dominação (Wagner 2010Wagner, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify.; Vieira 2015Vieira, Suzane A. 2015. Resistência e pirraça na Malhada. Cosmopolíticas quilombolas no Alto Sertão do Caetité. Tese em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Desta forma, o texto tem como eixo medular pensar nos sentidos dados à “precisão” e, a partir disso, compreender a relação com a política institucional. Ao fazê-lo, se pergunta sobre formas particulares de entender escassez, movimento e liberdade em cenários de adversidade.

As doações, os benefícios e o movimento

Codó é uma cidade de cerca de 120 mil habitantes, localizada entre o Maranhão e o Piauí. A região é conhecida por referência à quantidade de palmeiras de babaçu que têm presença expressiva na vegetação e que são a base da atividade extrativista de muitas mulheres da zona rural e urbana do município. O “interior” de Codó é marcado por fazendas agropecuárias, onde “a predominância da grande propriedade fundiária [...] têm na produção de gado e na manutenção da terra como reserva de valor sua principal função econômica” (Moura 2009Moura, Flávia. 2009. Escravos da precisão. Economia familiar e estratégias de sobrevivência de trabalhadores rurais em Codó (MA). São Luís: Edufma., 28).

Esse cenário é resultado do processo histórico da relação com a terra na região. O Maranhão desponta nas últimas décadas do século 18 como expressivo produtor de algodão, o que significou um incremento da mão de obra de pessoas escravizadas nesse período, momento que se estabelece uma economia de plantation em algumas regiões do estado – como Codó (Assunção 2015Assunção, Mathias R. 2015. De caboclos a bem-te-vis. Formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850. São Paulo: Annablume.). O declínio da produção desse item e a subsequente desvalorização da terra, somados a um campesinato autônomo e à permanência de comunidades negras em áreas rurais (Almeida 2002Almeida, Alfredo W. Berno de, org. 2002. Terras de preto no Maranhão: quebrando o mito do isolamento. São Luís: ECN; SMDH; PVN.), levou a uma configuração particular do campo, onde permaneceram diversas famílias não detentoras de documentos relativos à propriedade do espaço.

A possibilidade de permanência na zona rural se transformou nas últimas décadas do século 20. Nesse sentido, a configuração do contexto rural de Codó é expressiva da organização da cidade. A partir dos anos de 1970, com o incentivo de iniciativas como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a valorização das terras levou a processos não raro violentos e ilegais de expulsão de diversas famílias – ou mesmo de comunidades rurais negras inteiras – das localidades que ocupavam historicamente. Impossibilitadas de plantar e exercer diferentes ofícios onde viviam, muitas famílias mudaram para contexto urbano, para bairros recém-formados e ainda sem infraestrutura, que cresceram de modo expressivo nas décadas de 1980 e 1990. Os locais de trabalho das pessoas, entretanto, continuaram a ser na zona rural: as mulheres passaram a se deslocar cotidianamente para a quebra de coco babaçu, e homens e mulheres começaram a plantar “linhas de roça” em “terra alheia” arrendada para esse fim.

Dona Luizinha3 3 Quando me refiro às quebradeiras de coco, seu nome é fictício. Já as e os interlocutores da minha tese tiveram seus nomes verdadeiros registrados na escrita. Optei por mantê-los pois compreendi que gostariam de ter suas contribuições ao meu estudo registradas. se mudou para a cidade nesse contexto, assim como outros membros de sua família. Hoje, com mais de oitenta anos, ela mora em uma casa de porta e janela que possui, nos fundos, um salão de terecô – religião afro-brasileira local, como informei anteriormente – onde atua como mãe de santo. Luiza considera que vive uma vida simples, com poucos recursos financeiros que provém, exclusivamente, da pensão que recebe pela morte do marido que era trabalhador rural. Quando se tornou viúva, ainda muito jovem, ela saiu da roça onde vivia com seus três filhos e veio procurar trabalho na cidade. Como aponta Soares (1981)Soares, Luiz E. 1981. Campesinato: ideologia e política. Rio de Janeiro: Zahar., para outro contexto etnográfico próximo à Codó, a cidade surge para os moradores do campo como uma alternativa diante dos processos de valorização e perda de terra, como uma alternativa para fazer a vida e escapar às lógicas do cativeiro presentes nas ameaças de expulsão violenta.

Luiza não tinha casa no perímetro urbano e passou a morar com os filhos em espaços abandonados ou alugados. Depois de um tempo, encontrou um lote sem morador, com um telhado, próximo à casa de seus familiares. Ela mesma construiu as paredes de barro para viver com os filhos no local. Sua vida era então marcada pela “precisão”, pois mesmo aceitando diversos trabalhos, era árduo manter a casa. Certo dia quando foi fazer compras em um mercado, as coisas se transformaram. A proprietária do estabelecimento, mulher de uma importante família libanesa e esposa de um político, tendo reparado em sua presença anteriormente, lhe perguntou se ela sabia fazer bolos. Luiza então se surpreendeu quando a mulher lhe deu os ingredientes e sugeriu que vendesse os quitutes de porta em porta. Ela ouviu o conselho e em poucos dias ampliou seu comércio, buscando verduras no mercado central e revendendo aos vizinhos.

A repetição constante desse episódio em nossas conversas me fez considerar sua importância. Reconheço que minha primeira leitura foi sobre a percepção da desigualdade que marcou o encontro entre essas duas mulheres, separadas por condições e lugar no mundo: uma mulher com dinheiro, família afamada e de origem libanesa, esposa de político e portando um dos sobrenomes mais conhecidos da cidade até hoje; e uma mulher migrante da roça, jovem viúva, sem escolaridade e sem nome conhecido, “cabocla” (como se percebia), com filhos pequenos e uma situação de “precisão”. Rapidamente palavras como “desigualdade”, “dominação”, “caridade”, vinham a minha cabeça, resumindo o vivido pela mãe de santo.

Luiza, entretanto, indicava outros elementos a partir daquele encontro. Para a mãe de santo, a “precisão” era um fato sobre o mundo, algo que o constitui. Não existiam dúvidas sobre sua existência e não mais do que breves faíscas de esperança sobre a possibilidade de uma vida sem ela. Ela entendia, como outros dos meus interlocutores, que em certos momentos da vida a “precisão” aumentava – diante da perda de emprego, de uma doença que não permitia trabalhar ou da morte de um familiar – e em outros ela diminuía, quando se recebia um benefício governamental, se conseguia um trabalho, se conquistava a aposentadoria. Entretanto, a despeito disso, ela sempre estava presente.

A “precisão” era, nesse sentido, uma constatação e ler o encontro entre as duas mulheres apenas sob essa chave, colocava Luiza em uma posição passiva. Ela nunca ressaltou bondade ou caridade como características da situação, pois, sabia que a doação daqueles gêneros alimentícios não trazia qualquer forma de prejuízo à proprietária. O que ela reconhecia como positivo no acontecimento era que ela não havia “explorado sua precisão”. “Explorar a precisão”, para Luiza, acontece quando alguém deseja tornar o pobre mais pobre, pretende humilhar sabendo da condição de minoridade do outro. É tomar vantagem da condição de adversidade – e naquele dia, a mulher do mercado não o tinha feito, embora pudesse.

Ao contar esse episódio, Luiza falava também sobre si mesma como um polo ativo da doação, pois percebeu a oportunidade e a ampliou, não esmoreceu e “correu atrás”. A perspectiva de movimento está presente também na história de Marta, uma mulher quebradeira de coco de trinta anos que morava com o esposo e com seis crianças – dois filhos e quatro sobrinhos, que ela criava em virtude da migração e do falecimento de membros da família. Entre as diferentes estratégias encontradas por Marta para diminuir a “precisão” estava a participação no Programa Bolsa Família, uma iniciativa federal de transferência direta e condicionada de renda que existiu no Brasil entre 2003 e 2021.

Marta investia o recurso do benefício, especialmente, no gasto com as crianças, mas, em momentos de maior “precisão”, ela o utilizava para comprar comida, especialmente arroz. Quando as adversidades não eram tão intensas, era possível ficar um dia por semana sem quebrar coco e, nas palavras dela e de outras mulheres, dar um “luxo” aos filhos, como uma comida diferente, um dinheiro para um sorvete, uma peça de roupa ou material escolar do gosto das crianças. O “luxo” então se contrapunha à “precisão” e vinha da “ajuda” que recebiam do governo (Ahlert 2013Ahlert, Martina. 2013. Entre a “precisão” e o “luxo”: usos do benefício do Programa Bolsa Família entre as quebradeiras de coco de Codó – MA. Revista Política e Trabalho 1 (38): 69-86.).

Engana-se quem pensa, entretanto, que se entendia essa ajuda como gratuita e que poderíamos fechar essa cena em rótulos exógenos como o “assistencialismo”. Marta, nesse sentido, narrou os caminhos percorridos para conseguir receber o cartão do Programa: as idas aos diferentes serviços, os boatos sobre a vinda dos cartões, a espera, a emoção e o “correr atrás” (Ahlert 2013Ahlert, Martina. 2013. Entre a “precisão” e o “luxo”: usos do benefício do Programa Bolsa Família entre as quebradeiras de coco de Codó – MA. Revista Política e Trabalho 1 (38): 69-86.). Baseada na sua experiência e na de outras mulheres que conhecemos, parece-me possível dizer que o recebimento do Bolsa Família era visto como resultado de uma luta empreendida contra o estado, uma vez que o benefício não era garantido e as mulheres não poderiam ficar inertes o esperando: eram elas que procuravam os centros de assistência social, que descobriam os meandros dos cadastros mesmo sem saber ler, que se deslocavam a pé para perguntar sobre a chegada dos cartões, que dormiam em filas na rua esperando notícias.

A ideia de movimento presente na expressão “correr atrás” aparece em outras etnografias feitas no Brasil sobre as experiências de pessoas que são consideradas de classes ou grupos populares (Borges 2012Borges, Antonádia. 2012. Ser embruxado. Notas epistemológicas sobre razão e poder na antropologia. Civitas 12 (3): 469-488. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2012.3.13011.
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2012....
; Guedes 2013Guedes, André D. 2013. Na estrada e na lama com Jorge, um brasileiro: trabalho e moradia nas fronteiras do desenvolvimento. Horizontes Antropológicos 19 (39): 319-345. https://doi.org/10.1590/S0104-71832013000100013.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183201300...
). Ainda que certas narrativas – estigmatizadoras – relacionem as condições de pobreza com posturas de acomodação ou passividade, a literatura produzida no âmbito das ciências sociais indica o dinamismo presente no cotidiano das pessoas, as incansáveis e moleculares batalhas cotidianas diante da “precisão”.

Os papéis das “pessoas simples”

Marta narrou com detalhes a luta que empreendeu contra o estado para conseguir o seu cartão do Bolsa Família e as incertezas que, em parte, se dissiparam quando ela conseguiu o pequeno artefato plástico – o cartão, índice de um tempo de menor “precisão”. Sua narrativa era permeada por desencontros com a linguagem empregada pelo estado e por inúmeras tentativas de estabelecer uma relação com o programa social por intermédio dos procedimentos burocráticos, da produção e uso de documentos (Bachtold 2016Bachtold, Isabele. 2016. Quando o estado encontra suas margens: considerações etnográficas sobre um mutirão da estratégia de Busca Ativa no estado do Pará. Horizontes Antropológicos 22 (46): 273-301. https://doi.org/10.1590/S0104-71832016000200010.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183201600...
). Esses desencontros, para Das e Poole (2008)Das, Veena, e Deborah Poole. 2008. El estado y sus márgenes: etnografias comparadas. Revista Académica de Relaciones Internacionales 27: 19-52., questionam a racionalidade e a imagem de legibilidade a partir das quais o estado se apresenta (e mesmo é apresentado em certas abordagens teóricas). Um dos efeitos dessa imagem, segundo as autoras, é que as pessoas que vivem nas margens são percebidas como confusas, inaptas, não legíveis. Não seria possível, nesse enfoque, perceber como o estado é reformulado por pessoas como Marta, que passam a incorporar os papéis e documentos no seu “correr atrás”.

No âmbito das atividades das religiões afro-brasileiras em Codó, alguns pais e mães de santo (ou “mestres”) compreenderam a importância dos papéis como porta de entrada para um conjunto de recursos e conexões. Em torno do ano de 2009, antes mesmo do meu trabalho de campo, alguns deles passaram a se organizar em uma Associação. Ela era liderada por um filho de santo de um terreiro da cidade e tinha como objetivo auxiliar os religiosos a manterem suas tendas em funcionamento, além de desenvolver projetos sobre igualdade racial e tolerância religiosa.

Em 2011, a Associação ainda vivia uma fase inicial dos seus trabalhos e estava envolvida exatamente com os papéis. Por seu intermédio, muitas tendas conseguiram um registro em uma federação nacional e, por isso conquistaram os “certificados” de registro das casas. Mas, havia outras iniciativas ainda no âmbito da produção dos documentos que se davam no local: por um lado, se incentivou os mestres que fizessem estatutos de suas tendas religiosas e que mantivessem livros-ata registrando suas atividades; por outro, se iniciou um levantamento das tendas e dos quartos de santo4 4 As tendas são salões onde um pai ou mãe de santo reúne seus filhos de santo e realiza diferentes rituais. Os quartos de santo são cômodos destinados ao trabalho com as entidades, não é preciso ser mestre para possuir um. de terecô, umbanda e candomblé da cidade, para fazer um mapeamento representativo da quantidade desses espaços. O debate mais proeminente, entretanto, era sobre a possibilidade de cada tenda conseguir expedir seu número de Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Com esse número seria possível entrar em projetos e acessar recursos financeiros.

Esse foi o tema central da pauta de uma reunião que participei, há alguns anos. Nela, o presidente da Associação lembrou que completara um mês do dia em que procuraram o então prefeito para pedir ajuda para o pagamento dos CNPJ’s. O procedimento burocrático do Cadastro custava, na época, R$ 954, valor elevado para pais e mães de santo. Nesse período de trinta dias, não conseguiram nenhum retorno da prefeitura. Os mestres justificavam o pedido dizendo que eram, em sua grande maioria, pessoas que obtinham sua renda do trabalho na roça apesar de viverem na cidade – na quebra de coco e nas pequenas plantações, muitas vezes, destinadas apenas ao consumo doméstico. “Nós somos todos trabalhadores rurais”, disse um deles, pessoas “simples e humildes”.

As ideias de “humildade” e de “simplicidade” eram utilizadas corriqueiramente pelas pessoas para falar sobre as características de suas vidas, marcadas pela “precisão”. Na ocasião, alguns lembraram que eles próprios arcavam com o dinheiro para a realização das festas das tendas, parte das obrigações5 5 Uma “obrigação” é um compromisso religioso com uma entidade. Seu cumprimento é tema de preocupação e cuidado. com as entidades. Uma mestra, que eu então não conhecia, disse que dormia sempre preocupada, pensando “que a nossa festa está chegando, que o povo vem, que tem que dar comida, hospedagem [...] mostrar a força da nossa umbanda e cultura de Codó” (Diário de campo, 5 set. 2011).

Os festejos – como são chamadas as festas que possuem até nove noites de duração – eram vistos como exemplo de dedicação extrema à religião e envolviam despesas expressivas com a indumentária ritual, a decoração, a comida e o pouso oferecidos aos visitantes. “Eu faço as minhas festas no maior sacrifício”, disse um pai de santo chamado João. O presidente da Associação havia me dito, alguns dias antes, frase semelhante, quando reconheceu as dificuldades encontradas pelos mestres para manter essas celebrações diante da “humildade” de suas condições de vida, quando “ficam quebrando coco um tempo, pra conseguir pagar um festejo” (Diário de campo, 26 ago. 2011).

Gostaria de sugerir que a compreensão compartilhada nas falas era a de que quando a prefeitura não respondia às “pessoas simples” e “humildes”, ela “explorava a precisão”, pois se valia da vantagem de possuir, em suas mãos, canais de acesso aos recursos e não os compartilhava. Ideia semelhante foi expressa pelos interlocutores de Moacir Palmeira e Beatriz Heredia (2006)Palmeira, Moacir, e Beatriz Heredia. 2006. O voto como adesão. Teoria e Cultura 1 (1): 35-58., que compreendiam que os políticos e a política institucional eram uma fonte de recursos e acesso a programas, benefícios e possibilidades que não estavam acessíveis de outra forma - não eram, por exemplo, elementos vistos direitos compartilhados igualmente, antes sentidos como elementos mediados pelos políticos.

O relato da continuidade da reunião ajuda a compreender isso: Dona Maria, importante mãe de santo da cidade, sugeriu uma ida até a casa do prefeito, para uma conversa. Ela entendia aquele momento como um ato de “abrir uma vereda”, um caminho novo, uma nova forma de reconhecimento por intermédio do CNPJ. Tê-lo significaria uma autonomia, inclusive, em relação ao poder público, pois permitiria a cada casa “correr atrás” de recursos por intermédio de projetos. Outros indicaram a possibilidade de tentar um diálogo – uma audiência, talvez – com a então governadora do estado do Maranhão, afinal, Codó era afamada por suas tendas de religião de afro-brasileira.

Era consenso que eles deveriam agir antes do “tempo da política”, ou seja, antes do período de eleições (Palmeira e Heredia 2006Palmeira, Moacir, e Beatriz Heredia. 2006. O voto como adesão. Teoria e Cultura 1 (1): 35-58.). Nele, eles sabiam que seriam procurados em suas casas, seriam foco de atenção e de promessas. Mas o tempo da política era um tempo de “falso apoio”, pois “depois a maré esfria e o aperto de mão acaba” – disse uma mãe de santo presente. Ela associou a procura no “tempo da política” à uma forma de discriminação - pois no momento em que eles realmente precisavam de ajuda, eram ignorados. Em suas palavras, ela denunciava uma relação entre religião, raça e política, dizendo: “Nós não aguentamos mais essa discriminação, é preconceito racial, é por religiões” – e encerrou dizendo: “Por que temos que ficar calados? Temos voz e voz alta”. Sua fala foi seguida pela de um advogado que auxiliava o grupo, que disse: “Parece que a gente quer fazer umbanda, mas, eles [os políticos] querem é fazer política com a gente” – ou seja, desejavam enredá-los no “tempo da política”, nas eleições e na disputa de votos, e não os atender em suas demandas.

Em tom de animação, o final da pauta teve falas indicando a possibilidade, figurada e literal, do movimento: “Agora fila vai andar” e “Agora vamos andar com as nossas próprias pernas”. Em consonância com o “correr atrás”, o número do CNPJ – ainda que um documento pouco conhecido por alguns, distante dos seus cotidianos e de valor pecuniário expressivo – era a possibilidade de garantir o funcionamento das atividades das tendas, das quais a vida dependia no seu sentido mais profundo (uma vez que pessoas, famílias e casas são construídas nas relações com as entidades – Ahlert 2021Ahlert, Martina. 2021. Encantoria: uma etnografia sobre pessoas e encantados. São Luís: Edufma.). Restava fazer pressão, abrir uma vereda, construir uma parceria com os políticos, mesmo sabendo que eles, não sendo “humildes” e “simples”, estavam na posição confortável de explorar a precisão.

Um altar à espera de um santo

Assim como os pais e mães de santo discutiam formas de fazer a prefeitura escutar suas demandas, também as quebradeiras de coco organizadas nas associações do perímetro urbano utilizavam iniciativas para melhorar as condições de vida de suas associadas. Elas caminhavam, por exemplo, aos Centros de Referência em Assistência Social do município para solicitar a doação de alimentos ou à prefeitura para pedir uma reunião com o executivo; faziam abaixo-assinados requisitando a reforma de pontes ou a melhoria de estradas para chegar aos locais de quebra.

Uma das principais reivindicações de uma das associações de quebradeiras de coco, quando fizemos a pesquisa na cidade, eram cadeiras e ventiladores para tornar mais aprazível os encontros no prédio de alvenaria que elas tinham recém-construído com o auxílio de uma organização não governamental. Nele havia um salão com janelas e um segundo ambiente onde ficava uma prensa para extrair azeite das amêndoas do babaçu. As mulheres não tinham, entretanto, dinheiro para mobiliar o espaço e costumavam, para as reuniões, trazer cadeiras de plástico de suas próprias casas.

Elas encontraram uma potencial solução ao problema quando souberam da vinda de um deputado, nativo da cidade (mas que vivia na capital, São Luís) ao município. No dia esperado, faixas o saudavam na parte frontal do prédio e elas aguardavam sua chegada na parte interna do espaço, a despeito do calor intenso comum na cidade e mais evidente naquele ambiente sem ventilação. Elas tinham a companhia de mulheres, também quebradeiras de coco, de outras cidades, participantes do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco (MIQCB).

As quebradeiras de coco de Codó ainda estavam se aproximando do Movimento e da linguagem em torno da valorização de sua identidade profissional. Naquele dia houve o pronunciamento das lideranças, que ainda animaram o evento com cantigas conhecidas entre as mulheres. A presidente da Associação falou sobre a história do grupo, mencionou as características do árduo trabalho da quebra, citou o equipamento que possuíam para fazer o azeite de babaçu e deixou bem clara a intenção daquele encontro: elas esperavam do deputado um auxílio, a doação de cadeiras e ventiladores.

É importante aqui contextualizar a compreensão de trabalho presente na quebra. A atividade era considerada “pesada”, pois a rotina envolvia acordar muito cedo e voltar para casa no meio ou final da tarde (uma vez que moravam na cidade e faziam a quebra no campo). O ganho financeiro era, normalmente, diário, pois não raro se vendia o coco (partes dele, como a casca ou a amêndoa) no mesmo dia da quebra. Havia uma intensidade do emprego do corpo na atividade, pois depois da coleta, a quebra era realizada pelas mulheres que, sentadas no chão utilizavam um machado e um “porrete” para abrir o coco e separar seus elementos.

Falar apenas do caráter árduo da quebra, entretanto, era reduzir a forma como ela era percebida pelas mulheres que conhecemos, que tinham, como expressaram naquele dia, orgulho da atividade profissional. Havia, portanto, características no trabalho que eram valorizadas pelas mulheres. Retomo Marta, pois ela evidenciou essas características quando comparou a quebra com o trabalho doméstico – o único, segundo ela, disponível na cidade para as mulheres e considerado de baixa remuneração.6 6 Na época, havia empregadas domésticas que recebiam como salário mensal o valor de R$ 150. Segundo Marta, ser quebradeira de coco lhe garantia maior autonomia, além de poder morar em casa, e não na casa do patrão. O trabalho no coco, apesar de extenuante, tinha em contraposição a alegria e a liberdade do mato, segundo suas palavras: “No meu mato eu governo, arrumo meus cocos, [se cansar] eu me deito, eu tomo água” (Marta, com. pess., 16 ago. 2011).

A quebra de coco, além de permitir maior liberdade de gestão do tempo e do corpo, era vista como uma forma de trabalho tradicional e intergeracional. Como indicam outras etnografias e pesquisas de campo com as quebradeiras de coco do Maranhão (Almeida 1995Almeida, Alfredo W. Berno de. 1995. Quebradeiras de Coco: identidade e mobilização. Legislação específica e fontes documentais e arquivistas. São Luís: MIQBC.; Antunes 2006Antunes, Marta de O. 2006. As guardiãs da floresta do babaçu e o tortuoso caminho do empoderamento. In Prêmio Margarida Alves. Coletânea sobre estudos rurais e gênero, organizado por Ellen Woortmann, Renata Menache e Beatriz Heredia, 123-149. Brasília: MDA/IICA.; Barbosa 2006Barbosa, Viviane de O. 2006. A caminho dos babaçuais: gênero e imaginário no cotidiano de trabalhadores rurais no Maranhão. In Prêmio Margarida Alves. Coletânea sobre estudos rurais e gênero, organizado por Ellen Woortmann, Renata Menache e Beatriz Heredia, 35-64. Brasília: MDA/IICA.) a atividade extrativista é historicamente percebida como uma contribuição feminina à reprodução doméstica e associada à feitura das roças. Nesse contexto, é reiteradamente realizada a despeito das diversas ameaças (como de violência física) remetidas às mulheres, oprimidas em sua atividade laboral com maior intensidade a partir da década de 1970, período conhecido como de “coco preso”, quando as cercas passam a demarcar as terras e a circulação das mulheres entre os babaçuais passou a ser controlada de maneira mais evidente (Almeida 1995Almeida, Alfredo W. Berno de. 1995. Quebradeiras de Coco: identidade e mobilização. Legislação específica e fontes documentais e arquivistas. São Luís: MIQBC.).

Na sequência do evento, depois dessas falas, ouvimos o deputado. Ele discursou, lembrando sua origem familiar e sua identidade codoense. Mencionou aspectos de sua trajetória ligados à educação e ao ensino superior no Maranhão. Cumprimentou as mulheres e enfatizou algumas das características do seu trabalho como extrativistas. Para minha surpresa (que associei sua presença no local a uma afinidade com o modo de vida das quebradeiras), ele justificou o valor irrisório pago pelo quilo de coco afirmando ser um trabalho muito diferente “do que o de um médico”, que “tinha estudado” para desempenhar sua função.

Sua falta de empatia com a rotina e as condições de trabalho das quebradeiras não passou despercebida de alguns estudantes que assistiam ao evento. Eles também estranharam a fala, que lhes pareceu ofensiva e justificava o baixo valor pago ao trabalho das quebradeiras de coco com argumentos que ignoravam todas as desigualdades que configuravam as diferentes ocupações profissionais. A forma que demos àquela escuta, entretanto, não foi a mesma dada por algumas mulheres com as quais conversamos. Dona Mariza, depois de ouvir nosso comentário, ignorou nossa preocupação, dizendo que o mais importante era notar que “O altar está posto, agora só falta o santo”. Assim, ela nos disse que entendemos o evento de forma limitada. Nossa indignação obliterava o fato de que elas conseguiram trazer o deputado, em sua visita à cidade, até a sede da Associação; que contaram a ele sobre as condições de execução do trabalho e sobre as dificuldades que enfrentavam; e, ainda mais importante, que o fizeram reconhecer, na frente da audiência presente, que lhes concederia as cadeiras e os ventiladores. Dada a distância entre “os políticos” (que não são vistos como pessoas “simples”) e seu cotidiano, o encontro era um feito memorável, um exemplo da sua capacidade de mobilizar conexões.

Dona Mariza, me parece, também sabia que, a despeito de todos os esforços para promover aquele encontro, nada estava garantido: a partir daquele dia, o deputado não poderia dizer que não conhecia a condição de “precisão” das quebradeiras de coco, mas ele ainda poderia explorá-la – uma vez que, no altar, ainda faltava o santo.

Considerações finais

A “precisão” é percebida como algo que constitui o mundo e não como uma exceção. Como algo que aumenta ou diminui, que possui uma existência concreta, ela é uma forma de falar sobre as adversidades da vida. Não é, entretanto, uma espécie de sentença que induz à passividade, uma vez que nas situações aqui narradas, as ideias de movimento, de luta e de engajamento estão presentes (como na expressão “correr atrás”). Sugeri, no texto, essa como uma chave para pensar que Luiza, quando aceitou a doação dos ingredientes do bolo, ou Marta, quando recebeu o cartão do Bolsa Família, contaram esses episódios como marca de sua própria agência.

A “precisão” é respondida pelo movimento e, é nesse sentido que ouvi que a “precisão mais dura” era aquela que paralisava: uma doença que impossibilitava alguém de trabalhar ou de procurar emprego; uma distância geográfica tão grande que não permitia acessar informações, como acontecia com pessoas que tinham dificuldades de chegar nos serviços públicos; ou ainda, o uso de substâncias psicoativas de forma tão intensa que a pessoa “perdia sua vontade” e não podia mais “correr atrás”. Havia, ainda, o verdadeiro problema da precisão, o fato de que existiam pessoas dispostas a explorá-la, a ignorar os outros, a discriminá-los e humilhá-los.

É nesse sentido que, me parece, é possível pensar na “precisão” como algo que anuncia as possibilidades de cativeiro (Velho 1995Velho, Otávio. 1995. Besta fera: recriação do mundo. Ensaios críticos de antropologia. Rio de Janeiro: Relumé Dumará.) ou de perda de liberdade. Viver um momento de “precisão” mais intensa pode colocar as pessoas em situações de exploração. Entretanto, a análise da “precisão” e da sua relação com a política demonstra que o que está em pauta não é um cálculo simples sobre ter ou não dinheiro ou renda, por mais que se reconheça a importância deles no cotidiano. Igualmente não se trata de um cálculo sobre acúmulo ou escassez (Sahlins, 1972Sahlins, Marshall. 1972. The original affluent society. In Stone age economics, organizado por Marshall Sahlins, 5-41. New York: Aldine de Gruyter.), uma vez que recursos e dinheiro existem nesse cenário, mas são negados e não estão acessíveis. A “precisão” reflete um exercício reflexivo sobre os limites e as possibilidades da ação das pessoas diante das lógicas de dominação sem lançar mão de preceitos romantizados sobre o modo de funcionamento do estado.

Olhar a política institucional – os políticos e as eleições – a partir da “precisão” evidencia uma distância entre ela (seus recursos, seus contatos, sua capacidade de enxergar ou ignorar certas demandas) e as “pessoas simples”. Nessa separação surge a exploração, que associa, como disseram os interlocutores, questões de classe e raça, discriminando pessoas, trabalhos e pertencimentos religiosos. A percepção desse modo de funcionar da política institucional é um conhecimento acumulado, que permite às pessoas saber do caráter sazonal das doações, dos programas governamentais, da atenção interessada, porém não genuína, do “tempo da política”. É uma constatação que nasce do compartilhar de um processo histórico marcado pelo regime escravocrata do trabalho de mulheres e homens negros sujeitos à força; de uma insegurança fundiária que impossibilitou, para muitos, a vida contínua no campo, onde a lida com a terra na roça e na quebra de coco faziam mais sentido do que os salários de baixa remuneração do contexto urbano.

A constatação da distância entre os políticos e as pessoas, entretanto, não leva a uma recusa da política institucional, pois ela é considerada canal potencial de diminuição da “precisão”, ainda que não se configure como uma garantia. Nas duas reuniões narradas (a da associação das lideranças de religiões afro-brasileiras e a das quebradeiras de coco), a relação com a política institucional era vista como necessária, pois serviam de fonte de recursos diversos. Era preciso, em diferentes momentos, fazer pressão, escrever abaixo assinados, marcar reuniões, procurar o prefeito em sua casa, receber o deputado. Era preciso, portanto, se aproximar da política institucional, mesmo ela não sendo necessariamente positiva porque o estado pode potencializar ou diminuir a “precisão”. Deve-se acioná-lo, mas sem acreditar demais nos seus resultados – deve-se lidar com os regimes de aproximação e distanciamento que não permitam a instituição de uma captura (Mello 2017Mello, Cecília. 2017. Quatro ecologias afroindígenas. R@U 9 (2): 29-41. https://doi.org/10.52426/rau.v9i2.197.
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). Deve-se fazer, como sugeriu Dona Mariza, uma aposta com a política: colocar um altar e esperar para ver se um santo o ocupa.

Perceber a política institucional pela “precisão” é, sugiro, uma maneira de notar a parcialidade da crença na equivalência como critério que organiza a vida em uma democracia (Borges 2012Borges, Antonádia. 2012. Ser embruxado. Notas epistemológicas sobre razão e poder na antropologia. Civitas 12 (3): 469-488. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2012.3.13011.
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, 479). A “precisão”, enquanto condição ou característica perene da vida das pessoas e a constatação da “exploração da precisão”, questiona nossos pressupostos sobre igualdade e cidadania, e nos faz pensar na necessidade de sua revisão e debate. Anunciar a “precisão” é, portanto, uma forma de não se render ao acordo ou pacto da igualdade como proposta, diante de experiências nas quais ela nunca se efetiva – é, nas palavras de Vieira (2015)Vieira, Suzane A. 2015. Resistência e pirraça na Malhada. Cosmopolíticas quilombolas no Alto Sertão do Caetité. Tese em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro., negar um consenso ou contrato que disfarça as desigualdades – presente na ideia de um/unidade, da qual o estado é o representante (Clastres 2013Clastres, Pierre. 2013. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify.). É estar atento ao constante risco do cativeiro e, quiçá, à possibilidade de abrir uma vereda para outra política, que considere a liberdade do mato, o “luxo” às crianças, os encantados e a necessidade de seus festejos.

  • 2
    A pesquisa de campo e a escrita da minha tese de doutorado aconteceram entre 2010 e 2013, quando fui bolsista do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A pesquisa com as quebradeiras de coco, na qual fui colaboradora, foi parte do projeto “Estratégias de enfrentamento da fome e construções de gênero: o cotidiano das quebradeiras de coco babaçu na Região dos Cocais”, financiada pelo CNPq, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A partir de 2014, já professora da Universidade Federal do Maranhão, desenvolvi dois projetos de pesquisa na região, “Mobilidade entre mestres e encantados do Terecô de Codó” e “Casa e Mobilidade, uma abordagem antropológica”, esse último financiado pela Fundação de Amparo ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).
  • 3
    Quando me refiro às quebradeiras de coco, seu nome é fictício. Já as e os interlocutores da minha tese tiveram seus nomes verdadeiros registrados na escrita. Optei por mantê-los pois compreendi que gostariam de ter suas contribuições ao meu estudo registradas.
  • 4
    As tendas são salões onde um pai ou mãe de santo reúne seus filhos de santo e realiza diferentes rituais. Os quartos de santo são cômodos destinados ao trabalho com as entidades, não é preciso ser mestre para possuir um.
  • 5
    Uma “obrigação” é um compromisso religioso com uma entidade. Seu cumprimento é tema de preocupação e cuidado.
  • 6
    Na época, havia empregadas domésticas que recebiam como salário mensal o valor de R$ 150.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2021
  • Aceito
    30 Jun 2022
  • Publicado
    08 Dez 2022
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