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A ontologia social de Max Weber: uma releitura a partir do individualismo âncora de Brian Epstein

Max Weber’s social ontology: a rereading from Brian Epstein’s anchor individualism

La ontología social de Max Weber: una relectura a partir del individualismo de anclaje de Brian Epstein

Resumo:

O artigo apresenta uma releitura da sociologia de Max Weber com base no individualismo âncora de Brian Epstein. Após apresentar a reflexão de Gert Albert sobre a ontologia de Weber, reconstruímos, em suas linhas gerais, os conceitos de anchoring e grounding da ontologia individualista de Epstein. Demonstramos, assim, que para Weber o nível social está “ancorado” nos indivíduos concebidos em sua dupla dimensão de seres biopsicológicos e socioculturais. Em relação ao “fundamento” [grounding] do social, mostramos que o conceito de ação com sentido pode ser lido como uma forma de projeção mental que encontra sua tradução coletiva na dimensão das relações sociais institucionalizadas [ordem social]. Dessa forma, a relação entre o nível institucional e o nível individual não é pensada em termos de causação direta, mas enquanto “dependência” [grouding].

Palavras-chave:
Max Weber; Ontologia social; Individualismo âncora; Brian Epstein

Abstract:

The article presents a re-reading of Max Weber’s sociology based on Brian Epstein’s anchor individualism. After presenting Gert Albert’s thesis on Weber’s ontology, we reconstruct, in its broad outlines, the concepts of anchoring and grounding in Epstein’s individualistic ontology. We thus demonstrate that for Weber the social level is “anchored” in individuals conceived in their double dimension as bio-psychological and cultural beings. Regarding the “grounding” of the social, we show that the concept of meaningful action can be read as a form of mental projection that finds its collective translation in the dimension of institutionalized social relations [Social Order]. In this way, the relationship between the institutional level and the individual level is not thought of in terms of direct causation, but as “dependence” [grouding].

Keywords:
Max Weber; Social Ontology; Anchor individualism; Brian Epstein

Resumen:

El artículo presenta una relectura de la sociología de Max Weber basada en el individualismo de anclaje de Brian Epstein. Después de presentar la tesis de Gert Albert sobre la ontología de Weber, reconstruimos, a grandes rasgos, los conceptos de anclaje y fundamentación en la ontología individualista de Epstein. Demostramos así que para Weber el nivel social está “anclado” en los individuos concebidos en su doble dimensión de seres biopsicológicos y culturales. En relación con el “enraizamiento” [grounding] de lo social, mostramos que el concepto de acción con sentido puede leerse como una forma de proyección mental que encuentra su traducción colectiva en la dimensión de las relaciones sociales institucionalizadas [orden social]. De este modo, la relación entre el nivel institucional y el nivel individual no se plantea en términos de causalidad directa, sino de “dependencia” [grouding].

Palabras clave:
Max Weber; Ontología social; Anclar el individualismo; Brian Epstein

Quem diria que as ciências sociais descobriram o “ser” ou, pelo menos, o “ser social”. De fato, uma retomada das questões ontológicas é uma tendência cada vez mais presente no âmbito das ciências sociais contemporâneas (Sell 2021Sell, Carlos Eduardo. 2021. A ontologia social analítica: por uma interlocução com a teoria sociológica. Dados 64 (2): 1-33. https://doi.org/10.1590/dados.2021.64.2.238.
https://doi.org/10.1590/dados.2021.64.2....
). Em parte, este movimento resulta da superação do preconceito antiessencialista que se impunha nesta área de estudos, em particular, no campo das teorias do pós-estruturalismo e da pós-modernidade (ainda que não exclusivamente). Também no campo da filosofia em geral, na qual é a tendência analítica que ocupa o lugar hegemônico, os preconceitos ainda existentes deram lugar a discussões cada vez mais densas sobre problemas ontológicos.

A discussão ontológica não é mero discurso especulativo e possui incidência direta no modo como fazemos teoria social. Mesmo assim, discordamos do vínculo determinista que Archer (1995)Archer, Margaret. 1995. Realist Social Theory: the morphogenetic approach. Cambridge: Cambridge University Press. postula entre tipos de ontologia (o que é o social) e tipos de metodologia (como explicar o social). Buscando aprofundar as reflexões pioneiras de Gert Albert (2010)Albert, Gert. 2010. Warum und wann die verdinglichende Rede vom Sozialen richtig ist! Eine realistische Alternative zum sozialontologischen Fiktionalismus. In Dimensionen und Konzeptionen von Sozialität, organizado por Gert Albert, Rainer Greshoff e Rainer Schützeichel, 317-38. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften. e dialogando com as interpretações que criticam o suposto individualismo metodológico weberiano, pretendemos argumentar que uma releitura da ontologia de Max Weber à luz do anchor individualism de Brian Epstein (2015)Epstein, Brian. 2015. The ant trap: rebuilding the foundations of the social sciences. Oxford: Oxford University Press.2 2 Brian Epstein é professor associado de filosofia na Universidade de Tufts, localizada na cidade de Medford, em Massachussets (EUA). Ao longo de sua carreira tem se dedicado às questões da metafísica, da filosofia da linguagem e da filosofia das ciências sociais, com especial atenção à ontologia dos tipos sociais. nos permite sustentar que sua teoria é individualista apenas no que tange ao plano ontológico e que ela é compatível, no plano metodológico, com uma estratégia explicativa que supera a oposição micro-macro. Embora uma leitura inversa, ou seja, que demonstre como a ontologia individualista de Epstein já se encontra, de forma não totalmente desenvolvida, nos fundamentos da sociologia compreensiva, também pudesse ser realizada, entendemos que tal empreendimento se justifica na medida em que nos permitirá demonstrar, de forma inovadora, que já na perspectiva weberiana o individualismo ontológico e a síntese micro-macro não se excluem. Com base nos conceitos de Epstein, queremos mostrar que o social está “fundamentado” [anchoring] ontologicamente nos indivíduos, mas no plano metodológico a relação entre o nível institucional e o nível individual não é pensada em termos de causação direta e sim enquanto relação de “dependência” [grouding]. Isso nos deixa a porta aberta para pensar, em âmbito metodológico-explicativo, a articulação entre o nível micro e o nível macro do mundo social como elementos codeterminantes. Este exercício de releitura de Weber representa não apenas um ganho de inteligibilidade, mas também aponta, no plano sistemático, para os elementos de atualidade da sociologia weberiana. Após apresentar algumas investigações iniciais sobre a ontologia de Weber (parte 1), reconstruímos, em suas linhas gerais, a centralidade dos conceitos de anchoring e grounding para a peculiar ontologia individualista de Epstein (parte 2). Na terceira utilizamos esta grade teórica para interpretar os conceitos centrais da sociologia de Weber (ação social, relação social e ordem social) em chave ontológica.

A ontologia de Weber: a contribuição pioneira de Albert

Os teóricos do assim chamado neoweberianismo convergem na tese de que o esquema sociológico weberiano envolve três níveis básicos, a saber: ação social, relação social e ordem social (Schluchter 2005Schluchter, Wolfgang. 2005. Handlung, Ordnung und Kultur. Tübingen: Mohr Siebeck., 2014Schluchter, Wolfgang. 2014. Os conceitos sociológicos fundamentais: a fundamentação da sociologia compreensiva de Max Weber. In O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber, organizado por Wolfgang Schluchter, 193-225. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Lepsius 2005Lepsius, M. Rainer. 2005. Eingenart und Potenzial des Webers-Paradigmas. In Das Weber-Paradigma: Studien Zur Weiterentwicklung Von Max Webers Forschungsprogramm, organizado por Gert Albert, Agathe Bienfait, Steffen Sigmund e Claus Wendt, 32-41. Tübingen: Mohr Siebeck.). Enquanto o conceito de ação social deve ser localizado no plano micro, os conceitos de relação social e ordem social representam a dimensão macro de sua sociologia. Entre estes conceitos existe uma lógica de progressão, pois da composição e transformação das ações sociais emergem relações sociais que, caso orientadas por máximas vistas como modelos obrigatórios de conduta, adquirem um caráter permanente, configurando diversas ordens sociais: como o mercado, estado, ciência, entre outros. Com base nesta distinção vem se firmando a leitura de que Weber, ao invés de postular o individualismo metodológico, já pode ser considerado o primeiro grande autor de uma síntese sociológica que busca ir além da oposição indivíduo e sociedade, agência e estrutura ou micro e macro.

Esse debate representa um salto qualitativo nas leituras de Weber. No entanto, como ele está focado na dimensão metodológica, ou seja, na relação causal-explicativa (entre macro e micro), ele deixa em segundo plano a dimensão ontológica. Ocorre que não basta apenas esclarecer como combinar os níveis micro e macro na análise. Para sustentar a atualidade de uma teoria enquanto paradigma é necessário também investigar no que eles consistem quanto ao seu modo de ser, ou seja, é importante localizar neste esquema a dimensão ontológica.

É em Gert Albert (2010)Albert, Gert. 2010. Warum und wann die verdinglichende Rede vom Sozialen richtig ist! Eine realistische Alternative zum sozialontologischen Fiktionalismus. In Dimensionen und Konzeptionen von Sozialität, organizado por Gert Albert, Rainer Greshoff e Rainer Schützeichel, 317-38. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften., na Alemanha, que vamos encontrar os primeiros esforços para pensar a dimensão especificamente ontológica da sociologia de Max Weber. Para ele, a sociologia weberiana das ações e relações, e mesmo a ordem social, não são concebidas como substâncias, mas como eventos. Cada ação social é sempre um evento único, mesmo que possamos tipificá-las a partir de determinados critérios. Nas relações sociais, por sua vez, já temos um componente temporal permeado pela expectativa de que as ações sociais possam ocorrer de acordo com uma forma previsível. Relações sociais ainda são eventos, mas já podemos prever como elas ocorrem (MWG I-23, §3).3 3 O modelo de referenciado adotado nesta citação “(MWG I-23)” é utilizado com a finalidade de indicar: MWG = Max Weber-Gesamtausgabe; I = livros; 23 = volume. Contudo, existem relações sociais de dois tipos. De um lado, elas podem ser tão fluidas que parecem condenadas a desaparecer tão logo realizadas. De outro, temos relações sociais que se repetem continuamente, adquirindo, então, a marca da permanência e da previsibilidade. Weber (MWG I-23, §3) chega a falar inclusive em perenidade.

Tais diferenças de permanência temporal que observamos na tríade ação, relação e ordem não podem ficar desamparadas teoricamente. Para abordá-la conceitualmente, Albert (2010)Albert, Gert. 2010. Warum und wann die verdinglichende Rede vom Sozialen richtig ist! Eine realistische Alternative zum sozialontologischen Fiktionalismus. In Dimensionen und Konzeptionen von Sozialität, organizado por Gert Albert, Rainer Greshoff e Rainer Schützeichel, 317-38. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften. propõe distinguir entre eventos (ou processos) concebidos como “ocorrências” [Okkurrenten] ou como “continuidades” [Kontinuanten]. Dessa forma, temos que as ações e as relações sociais devem ser tratadas como “ocorrências” ou “eventos”, ainda que as ações sociais sejam eventos singulares e as relações sociais sejam eventos prováveis. Sem perder a características de processos, relações sociais também podem ser designadas, em linguagem ontológica, como “situações” ou “eventos situacionais”. Mas o processo de transição das relações sociais transitórias para as relações permanentes vem acompanhado da emergência de eventos ou situações “contínuas”. É desta forma que podemos categorizar, do ponto de vista ontológico, formações sociais de tipo coletivo: instituições ou estruturas sociais não são entidades substanciais em seu modo de ser (realidade sui generis), mas elas continuam a ser processos, ainda que, por esta ótica, processos contínuos ou recorrentes.

Resulta que, no que toca a sua concepção do social, a sociologia weberiana é ontológico-processualista, concebendo o social como feixe de eventos, fluxos ou processos. Não obstante, Albert sustenta que existe em Weber um elemento ontológico substancial e ele é condição anterior do processo social. Ocorre que, antes das ações sociais (e mesmo das ações desprovidas do caráter social) encontra-se o indivíduo, tratado como uma realidade que subsiste por si e em si: ele é um ente substantivo, “como a unidade mais baixa, como seu ‘átomo’” [als unterste Einheit, als ihr ‘Atom’]4 4 Tradução livre feita pelos autores, assim como as demais traduções presentes neste artigo. (MWG I/12, 404).

Apesar dos preciosos avanços na discussão, a leitura de Albert não logra articular analiticamente, de forma satisfatória, estes dois aspectos. Mais especificamente, ele não oferece nenhuma explicação sobre como, efetivamente, o social concebido como processo possui sua base no indivíduo concebido como substância. Não apenas o segundo aspecto é pouco aprofundado (o que é o indivíduo como substância), mas principalmente o modo de relação entre estes dois níveis não é esclarecido e nem desenvolvido. Frente a esta lacuna, a questão a ser desenvolvida neste trabalho consiste em demonstrar que o individualismo âncora de Epstein, e muito em particular seus conceitos de grounding e anchoring, nos oferece uma plataforma teórica pela qual, sem reduzir o social a um agregado de ações, os fundamentos ontológicos individuais da realidade social podem ser adequadamente pensados. Comecemos, pois, esclarecendo do que trata o individualismo âncora para, em seguida, utilizá-lo como ferramenta conceitual para uma releitura de Weber em chave ontológica.

O individualismo âncora de Epstein

Desde a metade do século 20 os estudiosos da ontologia disputam a definição do estatuto da natureza do mundo social. Eles dividem-se em dois grupos principais. Enquanto os individualistas, seguindo um princípio monista, e tomando como base a categoria de redução, defendem que não há uma “sociedade” como um ser sui generis, mas que ela é dependente dos indivíduos em interação; os holistas, baseando-se na categoria de emergência, postulam um princípio dualista e afirmam que existe uma substância social autônoma para além da interação entre indivíduos.

Mas há um terceiro princípio teórico – que vem sendo desenvolvido e aprimorado pelo individualismo ontológico desde a década de 1970 – que busca evitar a polarização entre o monismo da redução e dualismo da emergência: a superveniência. Essa tese ganhou notável reconhecimento por sua versatilidade (Epstein 2015Epstein, Brian. 2015. The ant trap: rebuilding the foundations of the social sciences. Oxford: Oxford University Press.), já que ela permite adotar posição individualista ontológica (uma vez que defende que fenômenos sociais são constituídos pela atividade indivíduos)5 5 Epstein (2014, 20) conceitua o individualismo ontológico como “uma tese sobre a determinação não causal na metafísica interníveis, em particular, sobre alguma relação de ‘construção exaustiva’ entre as coisas de nível individual e as coisas de nível social” [a thesis about non-causal determination in inter-level metaphysics, in particular, about some ‘exhaustive building’ relation between individual-level stuff and social-level stuff]. sem, todavia, recair em um individualismo metodológico (pois não reconhece a imprescindibilidade da relação causal micro-macro). Sob a perspectiva da superveniência a existência do mundo social depende da contínua atividade das pessoas individuais de modo que as propriedades sociais sofrem transformações na medida em que os indivíduos em interação mudam seus padrões de ação. É como se o mundo social fosse composto (mas não causado) por um conglomerado de ações individuais. Em termos técnicos, podemos afirmar que as características do nível emergente B (macro) não podem se modificar sem que as características do nível anterior A (micro) também se alterem, pois, as propriedades de ambos estão vinculadas ontologicamente.

Desafiando o consenso estabelecido no individualismo ontológico, Brian Epstein (2015)Epstein, Brian. 2015. The ant trap: rebuilding the foundations of the social sciences. Oxford: Oxford University Press. argumenta que a superveniência é falha porque (1) ela admite uma relação de determinação direta das propriedades individuais sobre as propriedades sociais (uma vez que prevê que as propriedades do mundo social só são fixadas a partir das propriedades individuais ou, em outras palavras, que as propriedades sociais covariam em função de mudanças nas propriedades individuais) e porque (2) ela desconsidera o indivíduo como o motor último da criação das propriedades sociais, tratando-o somente como um elemento na constituição [building] do mundo social. Em última instância, a superveniência “toma as pessoas como blocos de construção dos fatos sociais” (Epstein 2015Epstein, Brian. 2015. The ant trap: rebuilding the foundations of the social sciences. Oxford: Oxford University Press., 74).6 6 “Takes facts about people to be the building blocks of social facts” (Epstein 2015, 74). Na tentativa de sanar ambas as limitações do individualismo ontológico, Epstein (2015)Epstein, Brian. 2015. The ant trap: rebuilding the foundations of the social sciences. Oxford: Oxford University Press. desenvolveu o individualismo âncora. Nesse novo modelo de ontologia a superveniência é substituída pelo duplo princípio de grounding e anchoring, conforme sistematizado na Figura 1.

Figura 1
Modelo analítico do individualismo âncora

Com as plataformas grounding e anchoring é possível decompor a relação ontológica entre propriedades individuais e sociais em duas partes. O modelo grounding reconhece a dependência dos fatos institucionais para com os princípios estabelecidos pelos indivíduos. Já a relação de anchoring identifica o modo como os fatos individuais (como as projeções mentais realizadas pelos indivíduos, suas ações, hábitos ou ideias, por exemplo) possibilitam a emergência dos princípios da estrutura. Em certa medida, a plataforma anchoring trata das possibilidades e condições para que o mundo social surja e a plataforma grounding trata da constituição do mundo social propriamente dito. Ambos funcionam como modelos independentes (Epstein 2014Epstein, Brian. 2014. What is individualism in social ontology? Ontological individualism vs. anchor individualism. In Rethinking the Individualism/Holism Debate: Essays in the Philosophy of Social Science, organizado por Finn Collin e Julie Zahle, 17-38. Dordrecht: Springer.) e complementares (Epstein 2015Epstein, Brian. 2015. The ant trap: rebuilding the foundations of the social sciences. Oxford: Oxford University Press.) que, quando postos juntos na análise, identificam dois momentos diferentes da ontologia entre as pessoas e o mundo social. Com isso, Epstein soluciona a primeira falha da superveniência acima relatada.

Ainda que o modelo grounding admita que mudanças nas propriedades individuais (especificamente os princípios estabelecidos pelo grupo de indivíduos) podem acarretar mudanças nas propriedades sociais (nomeadamente os fatos institucionais), se não considerarmos um elemento anterior, a análise será insuficiente para compreender a dinâmica ontológica do social. Epstein acertadamente elabora uma teoria dos fatos individuais como ancoradores dos princípios sociais. Desse modo, a ontologia consegue dar “um passo atrás” para visualizar aquilo que permite que o mundo social emerja: as pessoas individuais e suas respectivas ações e projeções mentais sobre o mundo social.

A segunda deficiência da superveniência é solucionada quando Epstein ressalta a capacidade criadora dos indivíduos, ao invés de concebê-los como meras peças que compõem o mundo social. A ideia fundamental da ancoragem é a de que o mundo social é criado pelos indivíduos, pois somente eles têm capacidade de estabelecer princípios de ação, hábitos, práticas ou ideias (Epstein 2019Epstein, Brian. 2019. Anchoring and grounding: reply to Schaffer. Philosophy and phenomenological research 99 (3): 768-81. https://doi.org/10.1111/phpr.12644.
https://doi.org/10.1111/phpr.12644...
, 2014Epstein, Brian. 2014. What is individualism in social ontology? Ontological individualism vs. anchor individualism. In Rethinking the Individualism/Holism Debate: Essays in the Philosophy of Social Science, organizado por Finn Collin e Julie Zahle, 17-38. Dordrecht: Springer.). Sob essa perspectiva, “as coisas têm propriedades sociais em virtude das pessoas concebê-las, tratá-las ou agir de uma certa maneira em relação a elas” (Epstein 2014Epstein, Brian. 2014. What is individualism in social ontology? Ontological individualism vs. anchor individualism. In Rethinking the Individualism/Holism Debate: Essays in the Philosophy of Social Science, organizado por Finn Collin e Julie Zahle, 17-38. Dordrecht: Springer., 18).7 7 “Things have social properties in virtue of people conceiving of them in a certain way, or treating them in a certain way, or acting in a certain way” (Epstein 2014, 18). Assim, o individualismo âncora reconhece que são os fatos individuais que estabelecem as condições para que uma entidade social exista.

Weber à luz do individualismo âncora

Feitas as considerações iniciais sobre o modelo ontológico do individualismo âncora, podemos discutir o que essencialmente nos interessa neste artigo: a ontologia social de Max Weber. São três os motivos que nos levam a explicitar a ontologia pressuposta na teoria de Weber à luz da dupla matriz ontológica de Epstein (anchor-grounding). Em primeiro lugar, o individualismo âncora identifica os indivíduos como os únicos seres capazes de projetar/intencionar/atribuir princípios à estrutura, sendo vistos, portanto, como construtores do mundo social. Na teoria de Weber os indivíduos também são tratados como pré-condição para a existência do “social”, pois somente eles são “portadores” [Träger] de ações sociais dotadas de sentido. O indivíduo é visto aqui como um “ente substantivo”, um ser psicobiológico que serve como condição de possibilidade para a ação social.

Isso nos leva ao segundo ponto. Epstein distingue este ente de suas respectivas “criações”. Ele diferencia ontologicamente, portanto, os “indivíduos” (os seres substantivos com capacidade de criar o mundo social) dos “fatos individuais” criados por eles (suas ações, projeções mentais, ideias ou hábitos produzidos pelos indivíduos). Essa é uma estratégia analítica interessante porque nos permite identificar a natureza e as propriedades específicas a cada elemento de uma teoria. Quando examinamos a sociologia compreensiva vemos que também Weber coloca em planos ontológicos distintos o “criador” e sua “criação”, ou os indivíduos e suas ações sociais. Enquanto o indivíduo é visto como a entidade concreta e substantiva capaz de portar os sentidos das ações sociais, as ações sociais, por outro lado, conforme bem demonstra Gert Albert (2010)Albert, Gert. 2010. Warum und wann die verdinglichende Rede vom Sozialen richtig ist! Eine realistische Alternative zum sozialontologischen Fiktionalismus. In Dimensionen und Konzeptionen von Sozialität, organizado por Gert Albert, Rainer Greshoff e Rainer Schützeichel, 317-38. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften., são de natureza eventual e efêmera.

Por fim, mas não menos importante: a matriz anchor-grounding nos permite identificar duas transições ontológicas na teoria de Weber, quais sejam: as ações sociais como eventos efêmeros ancoradores dos conteúdos de sentido compartilhados pelos indivíduos nas relações sociais (anchor), as quais, por sua vez, quando orientadas por máximas obrigatórias, fundamentam as ordens sociais duradouras (grounding) – conforme sistematizado na Figura 2. O que permite o grouding das ordens sociais em Weber é precisamente a projeção mental do sentido (Sinn) intencionado subjetivamente pelos indivíduos em suas ações sociais.

Figura 2
Grounding e anchoring em Epstein e Weber

Mas ainda precisamos esclarecer em que medida podemos dizer que, para Weber, o social está ancorado nos indivíduos. Sabemos, por exemplo, que para ele “a ação como orientação compreensível pelo sentido do próprio comportamento” existe “unicamente na forma de comportamento de um ou vários indivíduos” (MWG 1/23, cap. I, §1, nota 09). Mas o que isto significa? Para responder a esta questão vamos abordá-la em dois níveis. Primeiramente esboçamos a concepção substantiva de indivíduo que, na visão de Weber, seguindo a conceituação de Epstein, serve de ancoragem dos fenômenos sociais [Anchoring]. Em seguida, esclarecemos processualmente de que modo esta ancoragem pode ser metodologicamente explicada, ou seja, como ocorre a passagem do nível dos pressupostos substantivos para o nível dos fenômenos sociais propriamente ditos [Grounding].

Anchoring: o indivíduo como ser natural e ser social

À primeira vista, tudo parece apontar para o fato de que a ação e o indivíduo, concretamente falando, estão em planos diferentes, especialmente se levarmos em conta a distinção weberiana entre comportamento e ação. O comportamento [Verhalten], que pertence à classe dos objetos e eventos alheios ao sentido, consiste no fazer humano regido mecanicamente pelo instinto. O comportamento é sempre uma reação a estímulos mecânico-instintivos provenientes do aparelho “físico-químico-biológico-psíquico” do ser humano. Por isso, o esquema analítico subjacente aqui é estímulo/resposta e, como tal, está radicado na natureza.

Sabemos que Weber rejeita a tese do fundamento psicológico da sociologia e, em última instância, uma suposta base psicofísica para ela. Podemos até conceber o indivíduo “como uma associação de células” ou um complexo de reações bioquímicas, ou sua vida “psíquica” como algo constituído por diversos elementos individuais” (MWG 1/23, cap. I, §1, nota 09). Não haveria nada de errado em “procurar observar e investigar, em princípio ao menos, o comportamento das unidades fisiológicas, das células, por exemplo, ou de elementos psíquicos quaisquer”. No entanto, a sociologia não deriva sua compreensão da ação humana a partir de nenhum desses elementos: jamais é este o caminho para chegar a uma interpretação do sentido intencionado. Weber insiste no fato de que “para a sociologia […] o objeto a ser investigado é precisamente o contexto de sentido das ações” (MWG 1/23, cap.01, §1, Parte I, nota 09).

Apesar disso, há um importante reparo a ser feito. Mesmo que uma ciência empírica da ação social não deduza a compreensão do sentido da ação dos agentes concebidos, concretamente, como se fossem (i) unidades fisiológicas, (ii) complexos de reações bioquímicas ou mesmo (iii) unidades psíquicas, isto não significa que o conceito de indivíduo não desempenhe um papel analítico fundamental no esquema sociológico de Weber. Ele adverte claramente para o fato de que “só estes são portadores [Träger] compreensíveis para nós de ações orientadas por um sentido” (MWG I/23, cap. I, §1, nota 09). Atividades humanas como resultado causal da ação dos fatores acima (ou seja, como “reação” a eles) são apenas comportamentos e não ações (que são comportamentos dotados de um sentido subjetivo dado pelo próprio agente). A atribuição de significado ao próprio agir não se encontra em algum ponto do continuum físico-químico-biológico-psíquico. Mas o indivíduo, como entidade psicobiologia, enquanto seu portador, é, obviamente, sua condição de possibilidade.

Com efeito, a linha demarcatória que separa o fazer humano entendido como “comportamento” daquele entendido como “ação” é o sentido ou função agentiva (Searle 1995Searle, John. 1995. The construction of social reality. Nova York: Free.), quer dizer, a capacidade humano-subjetiva de atribuir significado à realidade, como esta famosa passagem de A objetividade do conhecimento (1904) expressa muito bem: “o pré-requisito transcendental de qualquer ciência cultural não é que consideremos uma determinada cultura ou mesmo qualquer ‘cultura’ como valiosa, mas a de nós que somos sujeitos culturais dotados da capacidade e da vontade de tomar uma posição consciente frente ao mundo e de lhe conferir um sentido” (MGW I/07, 188-189). É a partir daí que nasce, enquanto sentido objetivado/institucionalizado, a cultura, definida por Weber nos seguintes termos:

A realidade empírica é para nós “cultura” porque e na medida em que ela é posta em relação com ideias de valor, ela engloba somente aqueles elementos da realidade que mediante aquela relação tornam-se relevantes para nós. Apenas uma parte ínfima da respectiva realidade individual que observamos é matizada pelo nosso interesse devido a essas idéias de valor; e tão somente ela tem relevância para nós; e ela o tem porque estabelece relações que são importantes para nós devido à sua conexão com idéias de valor. Tão somente e apenas na medida em que esse for o caso é que vale a pena conhecê-la na sua peculiaridade individual. (MGW I/07, 182).

Logo, o “indivíduo” weberiano é concebido como ser natural (um complexo físico-químico) e como ser cultural (sujeito posicionado no contexto cultural). Desse modo, Weber adota uma ontologia estratificada na qual o natural e o cultural são realidades distintas, ainda que o primeiro termo (ser natural) seja condição ou âncora para o segundo (ser cultural).

A categoria do “portador” [Träger] é a chave analítica que nos permite identificar na sociologia de Weber uma ancoragem ontológica no individual, no sentido de Epstein. Mais especificamente, é na “antropologia filosófica” de Weber que devemos encontrar a ancoragem ontológico-individualista de sua teoria social. Para ele, a unidade de observação da sociologia (seu objeto) não é o indivíduo, mas as ações que dele decorrem: indivíduos são entes concretos ou substâncias, enquanto ações são “eventos” ou processos que têm os indivíduos como seus portadores últimos. Mas o primeiro elemento é a condição para o segundo.

É o indivíduo quem estabelece condições para a existência das entidades sociais, pois ele atribui significado à sua ação considerando os possíveis comportamentos dos demais agentes. À medida em que há uma grande previsibilidade das ações alheias, pois determinados sentidos são tomados como máximas obrigatórias para a condução do comportamento, os “fatos institucionais” (ou as ordens sociais, na linguagem de Weber) passam a se firmar. Por esse ângulo, podemos dizer que, na medida em que os indivíduos consideram o “social” ao projetar o sentido de suas ações, eles também estão fornecendo condições básicas para o estabelecimento das ordens sociais. Para explicar este processo precisamos analisar o clássico conceito weberiano de ação com sentido.

Grounding: da projeção mental aos fatos institucionais

Onde podemos encontrar, em Weber, uma teoria da projeção mental do mundo social, bem como dos fatos institucionais? A resposta para esta pergunta exige uma releitura ontológica dos conceitos weberianos de (i) ação com sentido, (ii) relações sociais e (iii) ordem social.

Ação com sentido como projeção mental

A expressão “sentido” [Sinn] é, de fato, difícil de esclarecer, pois Weber parece nunca a definir explicitamente. É recorrente, inclusive, a crítica de que sua definição parece circular (Schütz 2018Schütz, Alfred. 2018. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes.), pois ele afirma que “‘sentido’ é o sentido subjetivamente intencionado” (MWG I/23, cap. I, §1, nota 01, parte I), sentença na qual o termo sentido aparece duas vezes, como referido e como referente. Mesmo assim, o melhor caminho ainda nos parece ser o exame do texto de Weber no qual lemos que o “‘sentido’ é o sentido subjetivamente intencionado”. Na falta de um entendimento geral de base do que seja o sentido em si, temos à nossa disposição pelo menos duas determinações particulares do mesmo (seu caráter subjetivo e intencional) que nos ajudam a esclarecer o seu estatuto analítico.

O que significa dizer que o sentido é algo “intencionado” [gemeint], quer dizer, “mentalizado” [de Meinung (substantivo) e do verbo meinen]? Existe uma sentença de Weber (MWG I/23, cap. I, §1, nota 05) que parece nos dar um claro acesso ao que ele quer nos dizer:

Em todos esses casos, incluídos os processos afetivos, designaremos o sentido subjetivo do evento e também o de contexto de sentido como sentido “intencionado” (ultrapassando assim o uso habitual que fala de “mentalizar” [meinen], neste sentido, somente quando se trata de ações racionais e planejadamente orientadas [rational und zweckhaft beabischtigen Handeln] por um fim).

Essa é a única passagem na qual vamos encontrar uma referência direta de Weber ao termo que está na raiz da expressão “mentalizar” [“meinen”], que também pode ser usado no sentido de “imaginar” ou “pensar” e que, por razões teóricas, preferimos traduzir como “intenção”. A sentença também pode ser analisada em duas partes. A primeira diz respeito ao conteúdo que Weber quer evitar, ou seja, ele se propõe a superar a identificação de “intencionado” com a “ação racional e intencionalmente orientada”. Visar (alguma coisa) não quer dizer buscar [beabsichtigen] algo de forma racional [rational] e orientado por um fim [zweckhaft]. A segunda parte da sentença faz o movimento contrário da restrição e indica uma ampliação de conteúdo, ou seja, “intencionar” inclui dois elementos: (1) o sentido subjetivo do evento e, um novo elemento, (2) o contexto de sentido, qual seja, o sentido institucionalizado no contexto cultural.

Para aprofundar nossa compreensão da ideia de “sentido subjetivamente intencionado” [subjektiv gemeint Sinn] em Weber em sentido exegético, vamos procurar ainda aproximá-lo das discussões contemporâneas sobre a temática da “intencionalidade”.

Na tradição filosófica existem importantes discussões sobre esse tema no campo da fenomenologia (Salice e Schmid 2016Salice, Alessandro, e Hans Bernhard Schmid. 2016. The phenomenological approach to social reality. Berlim: Springer.). Mas, em se tratando da teoria da ação, é a filosofia analítica que domina atualmente o debate (Kühler e Rüthe 2016Kühler, Michael, e Markus Rüther. 2016. Handbuch Handlungstheorie: Grundlagen, Kontexte, Perspektiven. Heidelberg: J. B. Metzler.). Nesta segunda linha de análise existem dois grandes modelos explicativos: causalista e teleológico. O primeiro postula que as razões invocadas pelo agente são a causa da ação. Já o segundo argumenta que as razões são apenas forma de justificação ex post do agir humano. O primeiro modelo remete às razões para o modelo da causalidade eficiente, enquanto o segundo privilegia a causalidade final.

Em termos estritamente histórico-textuais, parece não residir dúvida de que “o modelo de ação de Weber é intencionalista e teleológico” (Schluchter 2009Schluchter, Wolfgang. 2009. Grundlegungen der Soziologie: eine Theoriegeschichte in systematischer Absicht. Tübingen: Mohr Siebeck., 133). Tal corresponde às afirmações de Weber que, no escrito sobre Roscher e Knies, afirmava:

Onde quer que “entendamos”a ação humana enquanto condicionada por “fins claramente conscientes e intencionais”, com conhecimento preciso dos “meios”, temos que esse entendimento, sem dúvida, possibilita um grau especificamente alto de “evidência”. Se perguntarmos, então, por quê, rapidamente encontraremos sua razão de ser no fato de que a relação dos “meios” com o “fim” é racional e, até certo ponto, acessível a uma abordagem causal generalizante, no sentido de “formulação” de regularidades semelhantes à lei. (MWG I/07, 355-356).

A referência clássica da teoria causalista da ação é Donald Davidson (2001)Davidson, Donald. 2001. Actions, reason, and causes. In Essays on actions and events, organizado por Donald Davidson, 3-20. Oxford: Clarendon Press.. Sua teoria assume duas condições de partida. A primeira é enunciada por ele da seguinte maneira: “C1. R é uma razão primária pela qual um agente realizou a ação A sob a descrição d somente se R consiste numa atitude favorável do agente em relação a ações com certa propriedade, e da crença do agente de que A, sob a descrição d, tem tal propriedade” (Davidson 2001Davidson, Donald. 2001. Actions, reason, and causes. In Essays on actions and events, organizado por Donald Davidson, 3-20. Oxford: Clarendon Press., 687). A segunda premissa sustenta que “C2. Uma razão primária para uma ação é a sua causa” (Davidson 2001Davidson, Donald. 2001. Actions, reason, and causes. In Essays on actions and events, organizado por Donald Davidson, 3-20. Oxford: Clarendon Press., 693). Razão primária, acrescenta ele, “constitui uma combinação entre a atitude favorável (a), ou a crença relacionada (b), ou ambos” (Davidson 2001Davidson, Donald. 2001. Actions, reason, and causes. In Essays on actions and events, organizado por Donald Davidson, 3-20. Oxford: Clarendon Press., 693).

Davidson prossegue afirmando “que C1 exige: que o agente tem certas crenças e atitudes à luz das quais a ação é razoável” (Davidson 2001Davidson, Donald. 2001. Actions, reason, and causes. In Essays on actions and events, organizado por Donald Davidson, 3-20. Oxford: Clarendon Press., 691). Ao mesmo tempo, “central à relação entre uma razão e uma ação que aquela explica é a ideia de que o agente realizou a ação porque tinha a razão” (Davidson 2001Davidson, Donald. 2001. Actions, reason, and causes. In Essays on actions and events, organizado por Donald Davidson, 3-20. Oxford: Clarendon Press., 691). Do ponto de vista ontológico, a ação e sua razão de ser possuem ambas o mesmo estatuto e devem ser entendidas como eventos e não como substâncias. A diferença está no fato de que a razão (da ação) tem a propriedade de ser um estado mental.

Ao postular a tese de que motivos são a causa da ação [Gründe als Ursachen] ou, literalmente, a tese weberiana de que o “motivo” [é] o contexto de sentido que para o próprio agente ou para o observador aparece como a “razão” [Grund] de um comportamento quanto a seu sentido” (MWG I/23, cap. I, §1, nota 07) possui evidentes afinidades com a tese de Donald Davidson. Em função dessas semelhanças, Wolfgang Schluchter (2005Schluchter, Wolfgang. 2005. Handlung, Ordnung und Kultur. Tübingen: Mohr Siebeck., 23) é da opinião de que podemos considerar a teoria de Davidson como uma das melhores maneiras de reler ou retraduzir a teoria weberiana da intencionalidade nos termos da filosofia contemporânea. Portanto, se em termos históricos devemos considerar o modelo de ação de Weber como intencionalista e teleológico”, em termos contemporâneos vale dizer que se trata de um modelo “causal/mentalista”.

Relação social e ordem social como fatos institucionais

Em alguns casos o sentido (ou o motivo) transcende a ação social, de modo que podemos falar em “conteúdo de sentido de uma relação social” [der Sinngehalt einer sozialen Beziehung] (MWG I/23, 19). Nisto reside, conforme demonstra Schluchter (2014Schluchter, Wolfgang. 2014. Os conceitos sociológicos fundamentais: a fundamentação da sociologia compreensiva de Max Weber. In O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber, organizado por Wolfgang Schluchter, 193-225. Rio de Janeiro: Editora UFRJ., 216), o “umbral decisivo” da teoria de Weber: a passagem da orientação das ações sociais para a coordenação delas. Vamos explicar essa questão em pormenores.

No §1 de Conceitos Sociológicos Fundamentais Weber (MWG I/23, 01) define o objeto de sua sociologia compreensiva: “ação ‘social’, por sua vez, significa uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outro e é orientada por este em seu decurso”.8 8 “‘Soziales’ Handeln aber soll ein solches Handeln heißen, welches seinem von dem oder den Handelnden gemeinten Sinn nach auf das Verhalten anderer bezogen wird und daran in seinem Ablauf orientiert ist (MWG I/23, 01). Como vemos nessa passagem, tanto o sentido (dimensão subjetiva) quanto o curso externo (dimensão objetiva) da ação social são direcionados pela expectativa do modo como os outros indivíduos agirão. Uma ação “A” só é “social”, neste sentido, se ela levar em consideração a possível ação “B” do outro agente. Nisso consiste a orientação da ação.

Mas quando diversos agentes orientam o sentido e o curso externo de suas ações uns pela expectativa do comportamento dos outros estamos diante de uma nova realidade: a relação social. Aliás, na nota 1 do §3 Weber (MWG I/23, 18) fala em “relação recíproca de ações” [Beziehung des beiderseitigen Handelns], sinalizando para o fato de que na relação social há um grau mínimo de coordenação mútua das ações (Schluchter 2014Schluchter, Wolfgang. 2014. Os conceitos sociológicos fundamentais: a fundamentação da sociologia compreensiva de Max Weber. In O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber, organizado por Wolfgang Schluchter, 193-225. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.), levando a um ajuste [Einstellung] ou a uma adaptação recíproca dos seus conteúdos de sentido. A própria raiz da palavra “beiderseitigen” (beide = ambos) aponta para a correlacionalidade das ações. Não se trata de uma ação singular, mas múltiplas ações em correspondência umas às outras.

Isso não significa, todavia, que na relação social todos os agentes atribuem exatamente o mesmo sentido às suas ações sociais. Embora haja relações bilaterais (§3, nota 3) nas quais os conteúdos de sentido correspondem inteiramente, em grande parte dos casos as relações sociais se desenvolvem de maneira unilateral (§3, nota 3), isso é, os agentes atribuem sentidos diversos às suas ações. É possível, por exemplo, que em uma dada relação social o agente 1 oriente sua ação pela amizade, o agente 2 pela raiva e o agente 3, por sua vez, pela piedade.

Na medida em que o conteúdo de sentido de uma dada relação social se torna perene, ele passa a ser tomado como um modelo de comportamento, e isso leva a uma maior previsibilidade e regularidade das interações sociais. A existência das formações sociais (como as ordens ou as organizações) repousa, na teoria weberiana, precisamente nessa chance/probabilidade de que as ações correspondam ao conteúdo de sentido das relações. Sob essa perspectiva, o “estado”, as “religiões” ou a “política”, por exemplo, não existem na forma de estruturas sociais materiais e “isso deve estar sempre guardado na memória para se evitar uma concepção ‘substancial’ desses conceitos” (MWG I/23, 18).9 9 “Dies ist immer festzuhalten, um eine »substantielle« Auffassung dieser Begriffe zu vermeiden” (MWG I/23, 18).

Passemos ao tema da ordem social. Para Weber, “uma relação social pode ter um caráter inteiramente transitório [ganz vorübergehenden] ou pode implicar em permanência [auf Dauernd], quer dizer, que exista neste caso a probabilidade de a repetição contínua [kontinuerliches Wiederkehr] de uma conduta de sentido com o sentido de que se trata (quer dizer, tida como tal, em consequência, esperada)” (MWG I/23, cap. I, §3, nota 4). A diferença entre o tipo 1 (a relação social transitória) do tipo 2 (a relação social permanente) é o fato de que nesta segunda existe a “repetição contínua” [kontinuierlichen Wiederkehr] de determinadas ações sociais mutuamente ajustadas.

Weber (MWG I/23, cap. I, §3, nota 6) prossegue dizendo que “o conteúdo de sentido que constitui de modo perene uma relação social pode ser formulado na forma de ‘máximas’ cuja incorporação aproximada ou em termos médios permite que os participantes da relação possam esperar da outra ou das outras partes que se orientem por elas”. Quando os participantes da ação, pelo menos de modo aproximado, atribuem ao sentido que lhes serve de referência mútua o caráter de máximas, podemos esperar que a chance de que eles se orientem por elas cresça em intensidade e, ipso facto, em continuidade.

Conteúdos de sentido formulados como máximas produzem uma realidade inteiramente nova. No §5 dos Conceitos sociológicos fundamentais, Weber (MWG I/23, cap. I, §5, nota 2) explica que o “conteúdo de sentido de uma relação social será chamada de: 1) ‘ordem’ quando a ação se orienta (per tempo médio ou aproximadamente) por ‘máximas’ que podem ser assinaladas”. Repare-se que os termos adotados para definir a ordem praticamente repetem aqueles utilizados para definir a relação social permanente. Estas máximas não são apenas sugestivas, tratando-se, antes, de modelos obrigatórios/prescritivos. Na visão de Weber (MWG I/23, cap. I, §5, nota 2), “a circunstância de que, ao lado dos outros motivos, para pelo menos uma parte dos autores essa ordem manifeste-se como obrigatória ou como modelo, ou seja, como algo que deve ser, acrescenta a probabilidade de que a ação se oriente por ela e isso em um grau considerável”.

Considerações finais

A plataforma conceitual Anchoring-Grounding de Epstein possibilita uma interessante e produtiva releitura da sociologia de Weber em chave ontológica. Com base nela vemos que para Weber o nível social está “ancorado” nos indivíduos como concebidos em sua dupla dimensão de seres biopsicológicos e culturais. Mas a tese de que os indivíduos são os “portadores” nos quais se ancora [anchor] o mundo social não pode ser confundida com a tese de que de que são tais indivíduos, concebidos concretamente, o objeto da sociologia. Eles são, antes, sua condição de possibilidade. Isso nos obriga a perguntar, passo seguinte, qual é o “fundamento” [grounding] do social. Vimos, neste caso, que o conceito de ação com sentido pode ser lido como uma forma de projeção mental que encontra sua tradução coletiva na dimensão das relações sociais institucionalizadas [ordem social]. A relação entre o nível institucional e o nível individual, portanto, não precisa ser pensada em termos de causação direta, mas enquanto “dependência”’ [grouding]. Além disso, definidas como projeção mental e fato institucional, ação com sentido e relações sociais (em especial aquelas institucionalizadas) recebem uma determinação categorial ontológica.

Essa releitura reforça a tese já proposta por Albert segundo a qual em Weber uma ontologia substancial de base individual e uma ontologia processual no nível social (no plano micro da ação social e macro das relações e ordens sociais) se combinam. Embora não postulemos nenhuma identidade absoluta entre Weber e Epstein, evitando assim o risco de estreitar o pensamento do autor a um modelo pré-concebido, é neste último ponto que a interpretação de Epstein nos parece útil para uma releitura ontológica do esquema sociológico de Weber. O modelo social-processualista de Weber tem duplo princípio. As ações sociais funcionam como fatos ancoradores (anchoring) dos conteúdos de sentido compartilhados pelos agentes nas relações sociais. Ao mesmo tempo, este sentido projetado mentalmente pelos agentes, quando tomado como uma máxima normativa para a ação, é o que fundamenta (grounding) a ordem social, o que não quer dizer que estruturas sociais sejam meramente redutíveis ao seu fundamento individual, como postula o individualismo metodológico.

  • 2
    Brian Epstein é professor associado de filosofia na Universidade de Tufts, localizada na cidade de Medford, em Massachussets (EUA). Ao longo de sua carreira tem se dedicado às questões da metafísica, da filosofia da linguagem e da filosofia das ciências sociais, com especial atenção à ontologia dos tipos sociais.
  • 3
    O modelo de referenciado adotado nesta citação “(MWG I-23)” é utilizado com a finalidade de indicar: MWG = Max Weber-Gesamtausgabe; I = livros; 23 = volume.
  • 4
    Tradução livre feita pelos autores, assim como as demais traduções presentes neste artigo.
  • 5
    Epstein (2014, 20) conceitua o individualismo ontológico como “uma tese sobre a determinação não causal na metafísica interníveis, em particular, sobre alguma relação de ‘construção exaustiva’ entre as coisas de nível individual e as coisas de nível social” [a thesis about non-causal determination in inter-level metaphysics, in particular, about some ‘exhaustive building’ relation between individual-level stuff and social-level stuff].
  • 6
    “Takes facts about people to be the building blocks of social facts” (Epstein 2015, 74).
  • 7
    “Things have social properties in virtue of people conceiving of them in a certain way, or treating them in a certain way, or acting in a certain way” (Epstein 2014, 18).
  • 8
    “‘Soziales’ Handeln aber soll ein solches Handeln heißen, welches seinem von dem oder den Handelnden gemeinten Sinn nach auf das Verhalten anderer bezogen wird und daran in seinem Ablauf orientiert ist (MWG I/23, 01).
  • 9
    “Dies ist immer festzuhalten, um eine »substantielle« Auffassung dieser Begriffe zu vermeiden” (MWG I/23, 18).
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2022
  • Aceito
    11 Maio 2022
  • Publicado
    08 Dez 2022
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