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Articulando o lugar da resistência na Dialética do esclarecimento e em Lélia Gonzalez

Articulating the place of resistance in the Dialectic of enlightenment and in Lélia Gonzalez

Articulando el lugar de la resistencia en la Dialéctica de la ilustración y en Lélia Gonzalez

Resumo:

Este artigo se propõe a pensar o lugar da resistência, em sentido teórico-conceitual, articulando, para tanto, a assim chamada teoria crítica da sociedade, aqui tomada a partir de algumas reflexões de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, e a teoria social de Lélia Gonzalez. Ao fundamentar o olhar nessas duas perspectivas teóricas, gestadas em contextos históricos e sociais bastante distintos, busco apontar como podem se complementar e, desse modo, enriquecer a visada crítica sobre as manifestações contemporâneas do autoritarismo. Está pressuposto, portanto, que apesar das diversas mudanças ocorridas nas últimas décadas, há alguns elementos-chave constitutivos de como as formas de repressão e marginalização atuam no capitalismo, (re)produzindo uma miríade de desigualdades, sobretudo as de cunho étnico-racial. Consequentemente, fomentar a resistência permanece traço vital que deve estar no horizonte da prática intelectual das ciências sociais.

Palavras-chave:
Teoria crítica; Resistência; Teoria social; Racismo e antirracismo; Formas de dominação

Abstract:

This article seeks to reflect upon the place of resistance in a conceptual-theoretical sense, hereto articulating so called critical theory of society, based upon diagnosis brought forward specially by Max Horkheimer and Theodor W. Adorno, and the social theory of Lélia Gonzalez. By rooting its viewpoint in these two theoretical perspectives, conceived in very different historical and social contexts, I aim to address how they complement themselves and, as such, enhance the critical view on contemporary authoritarian manifestations. Notwithstanding the various changes taking place during the last decades, it thus presupposes that a number of key elements are constitutive of how the forms of repression and marginalization express themselves in capitalist societies, (re)producing an array of inequalities, foremost those of ethnic and racial kind. Hence, fostering resistance remains a vital quality to compose the horizon of intellectual practice of the social sciences.

Keywords:
Critical theory; Resistance; Social theory; Racism and anti-racism; Forms of domination

Resumen:

Este artículo propone pensar el lugar de la resistencia, en un sentido teórico-conceptual, articulando la teoría crítica de la sociedad, basada sobre algunas reflexiones de Max Horkheimer y Theodor W. Adorno, y la teoría social de Lélia Gonzalez. Basando la mirada en estas dos perspectivas teóricas, gestadas en contextos históricos y sociales bastante diferentes, busco señalar cómo pueden complementarse y, de esta manera, enriquecer la mirada crítica de las manifestaciones contemporáneas del autoritarismo. Se asume, por tanto, que a pesar de los diversos cambios que se han producido en las últimas décadas, existen elementos clave que constituyen la forma en que las formas de represión y marginación actúan en el capitalismo, (re)produciendo una miríada de desigualdades, especialmente las de origen étnico-racial. En consecuencia, fomentar la resistencia sigue siendo un rasgo vital que debe estar en el horizonte de la práctica intelectual de las ciencias sociales.

Palabras clave:
Teoría crítica; Resistencia; Teoría social; Racismo y antirracismo; Formas de dominación

Introdução2 2 Agradeço às estudantes de graduação com quem tive contato ao longo desses poucos anos de atuação na UnB e que contribuíram de maneira indelével para estimular e aguçar meu olhar no que concerne a esse tema. Agradeço, ainda, ao apoio financeiro concedido pela Capes (bolsa vinculada ao processo 88881.172272/2018-01) e pelo Decanato de Pesquisa e Inovação da UnB, bem como às valiosas sugestões das/os pareceristas anônimas/os.

Este artigo parte da reflexão sobre o lugar e o papel do conceito de resistência (Widerstand), conforme formulado por Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, tomando sua consagrada obra Dialética do esclarecimento como expressão metonímica de uma prática intelectual de resistência, ainda que de cunho radicalmente negativo, que visou expor a sua teoria crítica enquanto vetor de enfrentamento das contradições sociais e manifestações repressivas postas ao início do século 20. Considerando os processos históricos de caráter autoritário que vêm se manifestando em anos recentes nos mais diferentes contextos, e sem perscrutar toda a complexa argumentação delineada na Dialética, buscarei pensar possibilidades e limites de sua apropriação no contexto presente.

Para tanto, recorro à teoria duma cientista social mui invisibilizada, a saber, Lélia Gonzalez, que também elaborou um pensamento instigante e vivo em torno do papel da resistência, inclusive diferenciando o sentido, a relevância e o contexto histórico específico para as formas de resistência ativa e passiva, tendo como pano de fundo a repressão exercida sobre as populações escravizadas no âmbito do processo de colonização do Brasil e posteriormente à independência. Aproximar e construir pontes entre autora e autores de momentos tão distintos passa, evidentemente, pelo pressuposto de que as práticas de dominação se mostram, ambas, fruto dos projetos coloniais-civilizacionais da formação social capitalista, ao mesmo tempo em que, nem por isso, pode-se pressupor que detenham dinâmicas iguais e possam ser reduzidas a esse aspecto. Assim, entendo que a singularidade de cada olhar teórico, atentando a fatores distintos, traz chaves de leitura, de interpretação e de crítica social que continuam frutíferas para nossos esforços atuais de exercício intelectual, complementando-se mutuamente sem, no entanto, terem sido objeto de articulação.

A forma de articular e aproximar essas teorizações críticas passa pela contribuição da perspectiva sobre a outsider within, tal qual formulada por Patricia Hill Collins, que confere lugar privilegiado ao olhar e à reflexão de pessoas e grupos marginalizados. Nesse sentido, ainda que de maneiras bastante distintas, tomo como pressuposto que as perseguições e violências voltadas tanto à população negra no Brasil quanto à população judaica na Alemanha produziram condições que, paradoxalmente, incentivaram uma produção intelectual de resistência.

Sobre a resistência na Dialética do esclarecimento

A acepção de teoria crítica da sociedade, formulada de maneira programática e reflexiva no célebre ensaio de Max Horkheimer Teoria tradicional e teoria crítica ([1937] 1988)Horkheimer, Max. (1937) 1988. Traditionelle und kritische Theorie. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt, vol. 4, 162-219. Frankfurt am Main: Fischer., acabou por se desdobrar de modo plural. Ali encontram-se, embrionariamente, o pressuposto epistemológico e diretrizes teórico-metodológicas, indicando o caráter interdisciplinar da empreitada - que, não à toa, recebeu o qualificativo de, entre outros, materialismo interdisciplinar (Dubiel 1978Dubiel, Helmut. 1978. Wissenschaftsorganisation und politische Erfahrung: Studien zur frühen Kritischen Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp.). Publicada originalmente em 1944, a Dialética do esclarecimento (Horkheimer e Adorno [1944] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer.) expõe o diagnóstico de um contexto marcado por diferentes formas de opressão e autoritarismo: seja o caminho tomado pela racionalidade instrumental, que discutirei mais detalhadamente a seguir, seja a perseguição étnica no contexto da política de extermínio nacional-socialista na Alemanha.

A referida obra já foi objeto de uma miríade de debates e interpretações3 3 Para um comentário acerca de sua atualidade por ocasião dos 50 anos da publicação ver Gabriel Cohn (1998). e o objetivo, aqui, consiste em tão somente pontuar alguns elementos mais centrais para a reflexão proposta. Trago, assim, a menção a como os autores desvelam a ligação entre mito e razão e, notadamente, os desdobramentos antagônicos e contraditórios dos fundamentos da razão (Vernunft), na medida em que se transforma sob a égide da sociedade industrial. Conforme o dizem explicitamente, observar essa relação implica, necessariamente, atentar aos efeitos que detém no que diz respeito à lógica de dominação da natureza: “O primeiro ensaio, a fundação teórica dos seguintes, procura aproximar da compreensão o entrelaçamento de racionalidade [Rationalität] e realidade social, bem como aquele, inseparável do primeiro, de natureza e dominação da natureza” (Horkheimer e Adorno [1944] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 21). Esse entrelaçamento torna-se, portanto, objeto duma crítica imanente, isto é, olha-se para ele à luz dos pressupostos da própria razão.4 4 Os ditames da crítica imanente são mais bem desenvolvidos posteriormente por Adorno em sua Dialética Negativa. A reconstrução envolvendo as mudanças e especificidades do conceito ou da prática intelectual da crítica imanente pode ser encontrada em Musse (2009).

Como alertam Michael Löwy e Eleni Varikas (1992Löwy, Michael e Eleni Varikas. 1992. A crítica do progresso em Adorno. Lua Nova 27: 201-215. https://doi.org/10.1590/S0102-64451992000300010.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, 207, grifos no original), a ideia de progresso em Adorno se manifesta de maneira igualmente ambígua. Na medida em que aprofundar esse aspecto extrapolaria as possibilidades deste artigo, refiro-me ao argumento que identificam especificamente no que diz respeito à Dialética do esclarecimento: “Assim como a dialética das Luzes pressupõe um ponto de vista que é ao mesmo interno à Aufklärung e crítico dela, a dialética do progresso implica um ponto de vista que critica a ideia de progresso sem removê-lo do horizonte conceitual”. É nesse espírito, também, que se deve ler as tão limitadas quanto necessárias e relevantes formas de resistência apontadas por Horkheimer e Adorno: sem que representem uma grande esperança, dependendo do contexto, podem ser a única alternativa concreta diante dos cerceamentos sociais e políticos.

Em diálogo teórico com a perspectiva de Karl Marx ([1867] 1968)Marx, Karl. (1867) 1968. Das Kapital (v. 1) - Marx Engels Werke, vol. 23. Berlim: Dietz. acerca do capital e de sua reprodução, os autores se apropriam de sua abordagem para investigar como o pensamento passa a se estruturar no âmbito do capitalismo, notadamente na medida em que a formação social burguesa se desenvolve sob auspícios de sua produção industrial, que aprofunda os efeitos deletérios da divisão do trabalho, e alimenta as pressões acerca da necessidade de adaptação ou, conforme o diagnóstico da teoria crítica, de uma sociedade administrada. A dominação da natureza se coloca, por conseguinte, no registro da exatidão, da previsibilidade, do cálculo, um conjunto de expectativas que passam a ser associadas ao processo de racionalização.5 5 Horkheimer e Adorno encontram-se, aqui, também influenciados pelo diagnóstico que fora elaborado cerca de três décadas antes por Max Weber ([1917] 1992), que se refere, ainda, ao processo de desencantamento do mundo. De maneira contraditória a razão (Vernunft) volta-se contra si própria, isto é, perde sua veia crítica e passa a ter um caráter exclusivamente positivador ou afirmativo, pouco a pouco impedindo o estímulo às faculdades individuais de identificar possíveis contradições e, assim, do pensamento divergente e negativo.

O pensamento se reifica em um processo automático, que se desenrola autonomamente, imitando a máquina que ele próprio originou, para que, por fim, ela possa substituí-lo. [...] O modo de proceder matemático tornou-se, igualmente, o ritual do pensamento. Apesar da auto-limitação axiomática, ele se instaura como necessário e objetivo: por meio dele o pensamento se torna coisa, instrumento [...]. Ele [o conhecimento] não consiste na mera percepção, classificação e cálculo, mas precisamente na negação determinada do imediato. (Horkheimer e Adorno [1944] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 47, 48-49).

Quando refletem sobre as bases históricas de como se constituiu tal entrelaçamento, Horkheimer e Adorno remontam à Odisseia a fim de ilustrar o processo. Essa referência é importante na medida em que indica tratar-se de processo anterior à sociedade capitalista, mas que nela atinge um novo grau ou se reorganiza qualitativamente, algo devido, sobretudo, às singularidades das relações sociais de produção. O esclarecimento propriamente dito pressupõe, por sua vez, a organização sistemática e fechada das ideias. Como os autores apontam, isso por si só traz um elemento autoritário, haja vista que o pensamento divergente ou que se volta contra o sistema já é objeto de reprimenda e censura (Horkheimer e Adorno [1944] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 104-105).

Se Adam Smith notara as consequências da repetitividade característica da divisão do trabalho, para Marx ([1867] 1968)Marx, Karl. (1867) 1968. Das Kapital (v. 1) - Marx Engels Werke, vol. 23. Berlim: Dietz., são a manufatura e a grande indústria que ampliam o alcance e a profundidade de seus efeitos sobre a psiquê e o pensamento humanos. A dominação adquire novos contornos que exigem análises específicas a fim de permitir um diagnóstico crítico e fomentar a resistência, cerne da reflexão que me proponho a aprofundar ao longo deste texto.

Não são as influências conscientes, que adicionalmente contribuem para tornar burros os seres humanos reprimidos e subtraí-los da verdade, mas sim as condições de trabalho concretas da sociedade de classes que compelem ao conformismo. A impotência dos trabalhadores não é apenas uma finta dos dominantes, mas a conseqüência lógica da sociedade industrial, na qual o antigo destino, sob o esforço de escapar-lhe, acabou por finalmente transformar-se. Essa necessidade lógica, porém, não é irrevogável. Ela permanece atada à dominação, simultaneamente como seu simulacro e seu instrumento. (Horkheimer e Adorno [1944] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 60).

É frequente o entendimento de que o cenário apresentado por Horkheimer e Adorno implicaria um fechamento completo e hermético da sociedade, ou uma reificação total. Uma leitura cuidadosa da obra mostra, no entanto, que efetivamente argumentam haver uma tendência a esse tipo de reificação, e que justamente em virtude disso se torna um pilar da teoria crítica da sociedade encontrar e suscitar formas de resistência nesse contexto, realizando o possível para estimular e manter vivo o exercício do pensamento crítico. Dito de outra maneira: a capacidade reflexiva precisa ser aguçada e afiada continuamente a fim de preservar suas condições de existência, o que explicita a relevância de qualquer forma de resistência (Widerstand), mesmo aquela passiva que se expressa na produção intelectual.

Ao renunciar ao pensamento negativo, o esclarecimento encerra as suas potencialidades críticas que germinaram com o contexto iluminista, malgrado suas ambiguidades e contradições: “Com a renúncia ao pensamento, que se vinga dos humanos que dele esquecem por meio de sua forma reificada [verdinglicht], como a matemática, a máquina e a organização, o esclarecimento abjurou de sua própria realização” (Horkheimer e Adorno [1944] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 65).

Como é sabido, uma parcela relevante do diagnóstico de Horkheimer e Adorno é permeada pela contribuição da psicologia social freudiana, em particular no que concerne ao papel exercido pela repressão. Se o cerne deste texto perpassa outros traços quanto a esse aspecto, cabe destacar o jogo de cena da relação entre os processos de adaptação das pulsões psíquicas e o contexto social - ou, melhor, a ideologia - em que ele se insere, conforme pode ser mais bem observado no trecho a seguir.

Desde que o pensamento se tornou um mero setor da divisão do trabalho, os planos dos peritos e líderes [Führer] encarregados tornou supérfluos os indivíduos que planejavam a sua própria sorte. Para o indivíduo, a irracionalidade da adaptação irresistida e assídua à realidade torna-se mais razoável do que a razão. Se outrora os burgueses haviam introjetado a coerção e a consciência a si próprios e aos trabalhadores, agora todo o ser humano passou a ser o sujeito-objeto da repressão. (Horkheimer e Adorno [1947] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 234-235).

Tendo vivenciado os horrores das perseguições perpetradas pela ideologia e, sobretudo, pela prática repressiva e genocida nacional-socialista, eles entendem que não se tratou de um episódio isolado, mas, antes, que esse processo expressava as contradições marcantes dos esforços de civilização, administração e adestramento capitalistas.6 6 Duas décadas mais tarde, em Educação após Auschwitz, Adorno retoma esse ponto e o desdobra diante do amplo e detalhado conhecimento acerca das práticas de perseguição e genocídio nacional-socialistas. “Um esquema que se confirmou na história de todas as perseguições é que a raiva se volta contra os mais fracos, sobretudo contra aqueles que são percebidos como socialmente fracos e, ao mesmo tempo - justa ou injustamente -, como felizes. A isso me arrisco a acrescentar, sociologicamente, que a nossa sociedade, enquanto se integra cada vez mais, ao mesmo tempo gesta tendências de desmonte [Zerfallstendenzen]. Muito próximas à superfície da vida civilizatória, ordenada, essas tendências de desmonte encontram-se bastante avançadas. A pressão do todo dominante sobre cada particular, sobre os seres humanos individuais e as instituições individuais, possui uma tendência de esmagar o particular e o individual junto à sua capacidade de resistência [Widerstandskraft]. Juntamente com sua identidade e sua capacidade de resistência os seres humanos também abrem mão daquelas qualidades com base na qual têm condições de se opor àquilo que, a qualquer tempo, volta a atrair a atrocidade” (Adorno [1966] 2004, 91).

Conforme pode ser visto já no prefácio à obra, Horkheimer e Adorno enfatizam a maneira por meio da qual o conjunto do processo afirmativo característico da sociedade burguesa contribui para impedir o recurso aos meios de resistência, notadamente aqueles existentes no pensamento e na crítica, e destroem o âmago do processo de individuação. Trata-se de uma observação tão criteriosa quanto incisiva: se nas décadas anteriores haviam elaborado as críticas à obtusidade da prática científica positivista, que vinha se aprofundando desde as guinadas ocorridas no século 19, e que também se espraiaram para as ciências humanas e a filosofia, agora é como se identificassem esse processo em um nível mais fundamental, mais básico, afetando o edifício do pensar como um todo. Com base nisso afirmam: “no colapso contemporâneo da civilização burguesa, não apenas o empreendimento, como o sentido da ciência se tornou duvidoso” (Horkheimer e Adorno [1947] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 16). É como se as intenções e possibilidades desse tipo de prática estivessem em questão, configurando uma aporia que se expressa na formulação da “autodestruição do esclarecimento” (Horkheimer e Adorno [1947] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 18).

Ambos se opõem a esse processo ao entender que os fragmentos - lembrando o título original da obra - elaborados expressariam uma contribuição à necessidade fundamental do que denominaram a compreensão teórica (theoretisches Verständnis). Estamos, portanto, diante duma defesa intransigente da importância de preservar a individualidade: “Na autonomia e incomparabilidade [Unvergleichlichkeit] do indivíduo cristaliza-se a resistência contra o poder cego e repressivo do todo irracional” (Horkheimer e Adorno [1947] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 273). É desse ponto de vista que a interpretação aqui exposta, diferentemente do que costuma ser o tom predominante, enxerga no conjunto de reflexões da Dialética do esclarecimento uma pedra de toque da resistência intelectual,7 7 Não à toa, ao se referirem aos objetivos da primeira parte da obra, os autores afirmam: “A crítica ao esclarecimento aqui exercida deve preparar um conceito positivo dela, que possa livrá-la do enredamento junto à dominação cega” (Horkheimer e Adorno [1944] 1987, 12). do pensamento negativo tomado enquanto negação da reificação.

A crítica da crítica: atentando aos elementos raciais do autoritarismo

Apesar de tantas mudanças ocorridas nos modos concretos de organização das relações sociais de produção, no seio das diferentes formas do capitalismo na passagem do século 20 para o 21, diversos desses mecanismos continuam presentes, validando o diálogo com o olhar acima. Não obstante, elaborar interpretações críticas sobre as manifestações do autoritarismo contemporâneo exige a atenção a outros elementos secundarizados ou deixados de lado por completo na análise desses autores, em especial a questão racial, conforme esboçado a seguir.

Escrevendo na terceira década do século 21, o debate sobre a questão racial encontra-se significativamente mais arraigado e reconhecido do que no contexto em que Horkheimer e Adorno delinearam sua interpretação. Isso, no entanto, difere de se poder pressupor que lhes teria sido inviável pensar esse recorte, notadamente quando se considera o fato de terem emigrado para os EUA, em que essas tensões e formas de desigualdade eram muito mais escancaradas e formativas do que no contexto germânico.8 8 Basta remeter à contribuição de W. E. B. DuBois: The Philadelphia Negro ([1899] 1967) e The Souls of Black Folk ([1903] 2007). É nesse sentido que caminham as considerações a seguir: elas constituem um esforço de mapear pontos de contato, ainda que frequentemente deixados de lado, entre a teoria crítica da sociedade tal qual formulada no âmbito do Institut für Sozialforschung, e outra perspectiva crítica que, como busco fundamentar adiante, justificaria esse diálogo.

Com base nisso mobilizo Lélia Gonzalez (1935-1994), antropóloga e filósofa brasileira, a fim de compor a constelação interpretativa que esboçarei nas páginas seguintes.9 9 O motivo de deixar de lado, neste momento, o diálogo com a tão relevante abordagem delineada por Angela Davis (2016), entre outros, deve-se ao fato de ela não abarcar o contexto específico do Brasil. Tendo sido marginalizada durante tempo significativo, tal qual ocorreu outrora com a teoria crítica, dedico algumas linhas a contextualizar a autora. Lélia Gonzalez foi pioneira nos esforços de articular as categorias de classe, raça e gênero a fim de desenhar a sua arguta crítica social (Rios e Ratts, 2016Rios, Flavia e Alex Ratts. 2016. A perspectiva interseccional de Lélia Gonzalez. In Pensadores negros - pensadoras negras. Brasil, séculos XIX e XX, organizado por Ana Flávia Magalhães Pinto e Sidney Chaloub, 387-403. Belo Horizonte: Fino Traço.).10 10 A reflexão de Dinora Hernández (2020) a respeito do patriarcado e da importância da teoria crítica feminista que incorpora esse debate também merece destaque, ainda que extrapole os limites deste artigo. Engajou-se, ainda, na organização do Movimento Negro Unificado (MNU), a ponto de, inclusive, contribuir diretamente junto aos debates da Constituinte de 1987.

Mesmo essa sumária apresentação já retrata alguns traços de proximidade em relação à organização da teoria crítica da sociedade: proponho colocar em diálogo diferentes olhares teóricos os quais, justamente por desenharem suas críticas de pontos de vista distintos, podem oferecer pontes deveras profícuas a fim de fomentar a crítica ao autoritarismo que seja capaz de lidar com as frestas de suas manifestações e reprodução no capitalismo contemporâneo, o qual já passou por uma miríade de mudanças desde que Marx, Horkheimer e Adorno redigiram suas obras.

Tanto a reflexão sobre o autoritarismo, em geral, quanto a aproximação das perspectivas aqui mobilizadas, em particular, encontram no genocídio um elemento relevante. Uma referência central, para Gonzalez, é a análise de Abdias do Nascimento (1978Nascimento, Abdias do. 1978. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), que enxerga na organização estatal a justificativa para que se deva falar no genocídio do negro brasileiro. Quando Gonzalez ([1985] 2020)Gonzalez, Lélia. (1985) 2020. O Movimento Negro Unificado: um novo estágio na mobilização política negra. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 112-126. São Paulo: Zahar. aborda o MNU também se pode identificar como, em diversos momentos da história brasileira, há laços estreitos entre nacionalismo e autoritarismo, um fator adicional que permite pensar pontos de contato das abordagens aqui colocadas.

Assim, Lélia Gonzalez expõe uma arguta teoria social crítica capaz de dar conta tanto das especificidades das formas de dominação e opressão no Brasil quanto, também, aponta sua articulação com a lógica de opressão mais geral característica ao capitalismo. A distinção de capitalismo competitivo e capitalismo monopolista, na chave do capitalismo dependente (Gonzalez [1980a] 2020Gonzalez, Lélia. (1980a) 2020. A questão negra no Brasil. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 183-190. São Paulo: Zahar.), permite visualizar de que maneira o estado age enquanto mediador da opressão racial. Ou seja: há instrumentos e formas de legitimação da hierarquia, das desigualdades e dos processos de discriminação racial que detêm sua capacidade tão somente em decorrência do reconhecimento e atuação estatais. No caso do Brasil isso é constatado, por exemplo, quando se observa as diferenças entre as taxas de mortalidade de jovens negros face à juventude branca, sendo uma parte significativa da violência exercida pelas forças de repressão e controle estatais - e isso em um regime que, do ponto de vista legal-constitucional, é democrático. Pode-se melhor compreender, a partir desse olhar, de que modo o autoritarismo, sob a égide da ideologia liberal-capitalista, encontra plenas condições de se manifestar e reproduzir independentemente da forma de governo ou do regime estatal adotado.

Outro foco da crítica de GonzalezGonzalez, Lélia. 2020. Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima. São Paulo: Zahar. caminha no sentido da - contínua e repetida - negação do racismo enquanto constitutivo de determinada sociedade ou cultura. Historicamente isso foi percebido de diferentes maneiras. No contexto do Brasil, o exemplo mais frequente é o reconhecimento de que há racismo no país, mas que nenhuma pessoa, individualmente, se assume ou admite as práticas racistas que realiza. A outra menção busca, na contraposição aos EUA, afirmar que naquele país há racismo, enquanto, em terras brasileiras, o que haveria seria uma miscigenação, resultante de como e quanto a população negra foi aceita e tornada parte da sociedade, ignorando por completo o signo da violência sexual que marcou parte do que, ao longo do tempo, recebeu a alcunha de democracia racial.11 11 Para mais detalhes sobre esse argumento ver Gonzalez ([1979b] 2020, 50; [1985] 2020, 125). Ela se dedica, portanto, a desvelar os labirintos de caráter ideológico que contribuem para naturalizar e legitimar processos de discriminação racial. Veja-se, a seguir, a maneira que Gonzalez encontra de retratar a cotidianidade das contradições que caracterizam o racismo no Brasil.

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas. Nem parece preto. Por aí se vê que o barato é domesticar mesmo. E se a gente detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando as marcas da africanidade que a constituem. (Como é que pode?) Seguindo por aí, a gente também pode apontar pro lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como pros diferentes modos de rejeição/integração do seu papel. (Gonzalez [1980b] 2020Gonzalez, Lélia. (1980b) 2020. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 75-93. São Paulo: Zahar., 78).

A menção à expressão cultural do racismo visa destacar o quão enraizada ela se encontra, sem que possa ser tomada como algo menor, passageiro, particular, e, sim, precisa ser lida enquanto um traço constitutivo dessa formação social. Conforme aponto a seguir, a referência explícita à construção ideológica é outro caminho que me leva a considerar o potencial de diálogo entre a teoria crítica da sociedade e a reflexão de Lélia Gonzalez. Destaca-se a distinção conceitual entre racismo e processos de discriminação racial.

Antes de mais nada, importa caracterizar o racismo como uma construção ideológica cujas práticas se concretizam nos diferentes processos de discriminação racial. Enquanto discurso de exclusão que é, ele tem sido perpetuado e reinterpretado, de acordo com os interesses dos que dele se beneficiam. (Gonzalez [1979b] 2020Gonzalez, Lélia. (1979b) 2020. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 49-64. São Paulo: Zahar., 55).

Mobilizar a distinção acima, decerto, contribui para complexificar e tornar mais profunda e rigorosa a crítica do capitalismo sob o recorte das desigualdades e opressões raciais. O conjunto de processos de discriminação racial são as práticas sociais cotidianas que garantem a manutenção do racismo enquanto constructo ideológico mais amplo. A própria autora, em diversos momentos de sua obra, remete - também em diálogo com a psicanálise - ao fato de haver atributos conscientes e inconscientes dessa lógica. Ou seja, frequentemente há uma posição ou interesse de se contrapor ao racismo; no entanto, essa tentativa acaba sendo dificultada em decorrência de quão profundamente arraigadas se encontram essas práticas discriminatórias.

Ela se volta, ainda, a apontar expressões mais contundentes dessas desigualdades raciais no âmbito do trabalho, que, como é sabido, constitui esfera vital de formação das relações sociais em suas mais diversas nuances, e identifica os meandros dessa estrutura que se reproduz. Nos termos da teoria crítica, poder-se-ia dizer que ela expõe uma rigorosa crítica da ideologia e crítica da cultura, dialogando com perspectivas teóricas marxistas e, igualmente, psicanalíticas, sem desistir de colori-las com seu olhar e sua experiência social particulares.

É nesse sentido que o racismo - enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas - denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema da estratificação social. (Gonzalez [1979a] 2020Gonzalez, Lélia. (1979a) 2020. Cultura, etnicidade e trabalho. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 25-44. São Paulo: Zahar., 35).

Aproximando essas abordagens defendo a importância de se falar num autoritarismo racial-cultural. Apesar de tantas diferenças entre os EUA, o Brasil e a Alemanha, a autora sinaliza o caráter estrutural e persistente das formas de repressão, exclusão e dominação racial, permitindo enriquecer perspectivas críticas contemporâneas. Gonzalez observa - repito - que o racismo percorre todas as formas socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Ela avança uma interpretação abrangente, sem ignorar as nuances presentes nos variados contextos em que se manifesta, ao mesmo tempo em que reconhece seu caráter geral.

Em paralelo, a sua visada explicitamente endereça e realça as formas de resistência que foram praticadas pela população negra escravizada, particularmente as mulheres. É o espaço dos quilombos e, desse modo, a rica metonimização da figura da mulher negra enquanto quilombola, expressão da resistência - também intelectual - formulada por Gonzalez, que avaliza extrapolar o contexto particular da escravização e pensar a cultura em sentido mais amplo.

Enquanto escrava, ela foi dirigida para diferentes tipos de trabalho, que iam desde aquele no campo (plantação de cana, de café etc.) até o trabalho doméstico. No primeiro caso, enquanto escrava do eito, ela estimulou os companheiros para a revolta, a fuga e a formação de quilombos. Enquanto habitante destes últimos, ela participou, como em Palmares, das lutas contra as expedições militares destinadas à sua destruição, nunca deixando de educar seus filhos dentro do espírito antiescravista, anticolonialista e antirracista. (Gonzalez [1981] 2020Gonzalez, Lélia. (1981) 2020. Mulher negra, essa quilombola. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 197-200. São Paulo: Zahar., 198).

Observa-se, portanto, um papel vital de liderança política e de cerne da resistência que fora - e continua sendo - desempenhado pelas mulheres negras. Se não o único, o principal elemento que contemporaneamente permanece enquanto vetor relevante é a atuação educadora destacada por Lélia Gonzalez. Se Horkheimer e, particularmente, Adorno estavam preocupados com as maneiras por meio das quais a educação poderia prevenir a repetição de Auschwitz, em Gonzalez encontra-se uma reflexão tão ou mais pertinente, ao dar conta de contexto ainda mais contundente, quando considerados os profundos efeitos dos processos de escravização e colonização, signos da expansão e consolidação capitalistas, bem como das formas de racismo que as acompanharam. A meu ver isso de modo algum desqualifica o tipo de preocupação advogada por eles, mas, antes, permite ampliar as preocupações e questões postas ao fomentar práticas de resistência.

Ainda acompanhando Gonzalez, a ênfase maior sobre a mulher negra, como visto acima, decorre do fato de ela desempenhar esse duplo papel: encontra-se inserida, ao mesmo tempo, nos espaços de poder e de reprodução - tanto sexual quanto cultural - da dominação e, ainda, nos contextos de organização da resistência e das revoltas.

E justamente por isso não se pode deixar de considerar que a ‘mãe preta’ também desenvolveu as suas formas de resistência: a resistência passiva, cuja dinâmica deve ser encarada com mais profundidade. […] Conscientemente ou não, ela passou para o brasileiro branco as categorias das culturas negro-africanas de que era representante. Foi por aí que ela africanizou o português falado no Brasil (transformando-o em ‘pretuguês’) e, consequentemente, a cultura brasileira. (Gonzalez [1981] 2020Gonzalez, Lélia. (1981) 2020. Mulher negra, essa quilombola. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 197-200. São Paulo: Zahar., 198-199).

Ela desenvolve a argumentação anterior, conferindo maior substância às maneiras por meio das quais a resistência quilombola fora exercida.12 12 Para uma reconstrução histórica concisa, ver o formidável texto de Beatriz Nascimento (1985). Considero esse recorte bastante importante haja vista que, para além da conceituação teórica rigorosa, Gonzalez a articula com manifestações empíricas da resistência passiva. Quando, finalmente, acrescenta e realiza a ponte com o elemento linguístico, fortalece as contribuições psicanalíticas que dialogam com as críticas da cultura e da ideologia. Não à toa afirma: “No Brasil, o racismo é profundamente disfarçado” (Gonzalez [1984] 2020)Gonzalez, Lélia. (1984) 2020. O racismo no Brasil é profundamente disfarçado. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 303-304. São Paulo: Zahar., isto é, apesar de tantas formas explícitas de discriminação, a ideologia dominante é capaz de disfarçá-lo por meio de suas naturalização e internalização.

Cabe explicitar que o viés étnico-racial da subordinação e opressão não se restringe à oposição binária de negritude e branquitude. Conforme argutamente exposto por Manuela Boatcă (2015Boatcă, Manuela. 2015. Global inequalities beyond Occidentalism. Farnham: Ashgate.), diferentes tradições marxistas, contaminadas pelo que ela denomina o ocidentalismo, ao menos marginalizaram quando não ignoraram por completo o lugar estrutural ocupado por esse tipo de dominação, e que, também internamente ao contexto europeu, se expressa, por exemplo, no modo pelo qual trabalhos precários são exercidos por pessoas brancas, porém oriundas de grupos subalternos, notadamente do ‘Leste Europeu’. Em suma, a dinâmica de produção de desigualdades está incompleta ao se deixar em segundo plano, e não colocar lado a lado às questões materiais e de gênero, o papel da opressão de cor ou étnica, o que, por sua vez, engendra a importância do reconhecimento das formas de resistência que enfrentem esse fenômeno.

A fim de situar um caminho para a articulação das duas perspectivas principais aqui mobilizadas, remeto à talvez mais célebre categoria formulada por Patricia Hill Collins (2016Collins, Patricia H. 2016. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado 31 (1): 99-127. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), a de outsider within.

Sociólogos podem se beneficiar ao considerarem seriamente a emergência da literatura multidisciplinar que denomino pensamento feminista negro, precisamente porque para muitas mulheres intelectuais afro-americanas a “marginalidade” tem sido um estímulo à criatividade. Como outsiders within, estudiosas feministas negras podem pertencer a um dos vários distintos grupos de intelectuais marginais cujos pontos de vista prometem enriquecer o discurso sociológico contemporâneo. Trazer esse grupo - assim como outros que compartilham um status de outsider within ante a sociologia - para o centro da análise pode revelar aspectos da realidade obscurecidos por abordagens mais ortodoxas (Collins 2016Collins, Patricia H. 2016. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado 31 (1): 99-127. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, 101, grifos no original).

Parece-me que, em alguma medida e com os devidos cuidados, ela também poderia ser atribuída ao contexto de vida, experiência e, portanto, intelectual dos nossos autores acima mencionados. Baseando-se sobre as reflexões de Georg Simmel ([1908] 1992)Simmel, Georg. (1908) 1992. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung. Frankfurt am Main: Suhrkamp. acerca do estrangeiro, Collins se refere ao fato de que a condição de outsider, enquanto pessoa marginalizada, produz um ponto de vista particular o qual, para a reflexão sociológica, pode acarretar vantagens epistemológicas a quem o ocupa.

A fim de prevenir a ideia de uma falsa simetria, saliento que as condições de desigualdade e exploração das mulheres negras às quais Collins se refere não podem ser equiparadas às circunstâncias dos autores supramencionados. Ainda que Horkheimer e Adorno tenham sido alijados de desempenhar certos papeis e, naquele contexto histórico específico, a população judaica e outros grupos tivessem sofrido perseguições sistemáticas pelo estado alemão, continuavam a usufruir de certas vantagens, tanto do ponto de vista material quanto associadas à branquitude, ao seu lugar enquanto homens e brancos, que acabam por distingui-los de Gonzalez. Ainda assim, parece-me que a marginalização à qual foram submetidos, sem serem excluídos por completo, justifica algumas aproximações.

O debate sobre a relação do particular com o geral, de um lado, e as expectativas quanto a conseguir representar um ponto de vista singular, de outro, destacam-se entre as diversas questões levantadas por Collins. Ao confrontar a invisibilização, sobretudo no espaço acadêmico, de certas perspectivas, contesta-se também as formas de distorção do conhecimento que a acompanham. Eis uma inquietação ainda mais premente para as teorias sociais críticas, que se dedicam a investigar a gênese das variadas formas de desigualdade que conformam a nossa realidade. Toma-se, desse modo, a pluralidade como um aspecto chave que deve caracterizar a produção de conhecimento e, por conseguinte, amplia-se o reconhecimento quanto a quais pessoas e grupos encontram-se legitimadas enquanto sujeitas do conhecimento. Entendo que se trata de uma maneira relevante de enfrentar as profundas desigualdades epistêmicas que continuam se reproduzindo sob os auspícios da democracia liberal, e que as distintas expressões de resistência encontradas nas abordagens aqui discutidas podem contribuir nesse sentido.

Considerações finais

Inicialmente retomo, nestas considerações finais, a distinção conceitual de Gonzalez exposta acima entre racismo, de um lado, e processos de discriminação racial, de outro. Ela abre a porta para nutrir formas de resistência: sem apresentar uma receita, indica uma preocupação fundamental com relação às possibilidades concretas de se fomentar uma postura antirracista, que necessita combinar discurso e prática. Ao desenvolver diretamente a reflexão sobre o lugar da resistência passiva, que aparece como imperativa naqueles momentos em que as desigualdades de poder se mostram tão profundas que seu combate clama por formas singulares, porém igualmente relevantes, de enfrentamento, Gonzalez permite entrever o histórico relevante da postura social crítica que continua reverberando nos tempos atuais.

Com isso em mente, relembro que o esforço feito ao longo deste texto, ao mobilizar o aporte teórico de Gonzalez, que pode contribuir ao ser articulado com a perspectiva da teoria crítica da sociedade, consistiu em indicar algumas limitações no recorte inicialmente proposto por Horkheimer e Adorno. Ao associar a importância de apontar omissões e distorções em teorias sociológicas ao foco sobre elementos fundamentais da sociedade a serem estudados, ela combina a temática ou os eixos de análise com os sujeitos do conhecimento. Reafirma que houve recorrentes ausências nos temas prioritários e legitimados no âmbito das ciências sociais - o que vale, igualmente, para a filosofia - e coloca, lado a lado, o problema da exclusão no que se refere a quem produz conhecimento. Desvenda, com isso, outra dimensão de como esse autoritarismo complexo, em um viés racializado, se manifesta: a autoridade reconhecida e legítima para falar de e sobre os assuntos canônicos, para produzir conhecimento, pertence à população branca e, durante muito tempo, foi atributo quase exclusivo de homens brancos. O que se encontra, aqui, é tanto o problema de omissão, quando as abordagens teóricas ignoram certos assuntos, quanto, também, de distorção, na medida em que excluir certos pontos de vista traz profundos prejuízos às próprias condições teórico-epistemológicas de produzir interpretações críticas da realidade.

É desse modo que tomo os sentidos de articular alguns traços argumentativos expostos pelos autores do que se tornou, muitas vezes, conhecido por ‘primeira geração’ da teoria crítica da sociedade, com o olhar de Gonzalez. Como exposto acima, o arcabouço da crítica imanente permanece uma forma atual e coerente de diagnosticar e interpretar criticamente a realidade, assim como a posição da resistência (Widerstand) ainda configura uma prática social vital, tanto estritamente intelectual quanto mais amplamente política, de enfrentar as formas e manifestações de autoritarismo - inclusive epistêmico - do capitalismo em suas variantes.

Entendo, ainda, que ao destacar as manifestações culturais subalternas, Lélia Gonzalez sinaliza uma via que permite matizar a aporia expressa no conceito de indústria cultural. Isto é: o espaço encontrado para que a resistência possa ganhar corpo é precisamente a disputa em torno dos sentidos, das raízes e referências da cultura, frequentemente sub-reptícios e inconscientes, podendo proporcionar condições de avançar o embate ideológico que, como os últimos anos mostram, é um confronto fundamental quando se trata de mitigar desigualdades e opressões. Espera-se que, ao enfatizar a importância dessa contribuição invisibilizada, sejam criadas oportunidades de forjar maiores diálogo e reconhecimento.

Last but not least, gostaria de encerrar com uma consideração reflexiva quanto aos termos da prática teórico-epistemológica crítica. Uma dificuldade costumeira em termos da diversidade e pluralidade da produção teórica se deve aos diversos cerceamentos quanto ao exercício concreto - ou, ao menos, o seu reconhecimento em pé de igualdade - da teoria. Assim, o cânone masculino e branco, mesmo após algumas décadas de críticas, continua arraigado, e apenas muito lentamente vem sofrendo transformações. Diante disso, cabe destacar a dupla importância da argumentação e da mobilização de Lélia Gonzalez neste texto.

De um lado, trata-se de autora periférica, que escreveu a maior parte de seus textos nas décadas de 1970 e 1980, ou seja, antecedeu muitos teóricos que detêm renome atual. Ela expressa, portanto, o duplo caráter das formas de desigualdade, invisibilização e marginalização. A produção teórica do lugar e contexto em que escreve é notoriamente subalternizada, na medida em que oriunda de espaço acadêmico menos legitimado na divisão centro-periferia de produção do conhecimento em nossa realidade social (Keim 2010Keim, Wiebke. 2010. Pour un modèle centre-périphérie dans les sciences sociales. Revue d’anthropologie des connaissances 3: 569-597. https://doi.org/10.3917/rac.011.0570.
https://doi.org/https://doi.org/10.3917/...
) e, simultaneamente, vivenciou a desqualificação em virtude da discriminação de cor e de gênero. Ao lhe conferir visibilidade, existe uma expectativa de que possa ser mais lida e reconhecida nos espaços acadêmicos do centro.

De outro lado, enquanto mulher negra, Gonzalez enfrenta a sobreposição do conjunto de fatores que contribui para a sua periferização. E, desse ponto de vista, quando se trata de discutir o lugar da razão (Vernunft), algo tão vital para Horkheimer e Adorno, vemo-la endereçar explicitamente algumas das diferenças sociais que são, frequentemente, tomadas enquanto inatas. Para isso ela cunha o conceito de racismo cultural (Gonzalez [1979a] 2020Gonzalez, Lélia. (1979a) 2020. Cultura, etnicidade e trabalho. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 25-44. São Paulo: Zahar., 43-44), isto é, aborda os elementos linguísticos e sociais que modelam certos processos, tão recorrentes quanto cotidianos, de discriminação racial, e aponta a necessidade de se reconhecer, efetivamente, a diversidade humana sem hierarquização. Trata-se, assim, de legado que tanto revitaliza a crítica quanto estimula a pluralidade epistemológica.

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  • 2
    Agradeço às estudantes de graduação com quem tive contato ao longo desses poucos anos de atuação na UnB e que contribuíram de maneira indelével para estimular e aguçar meu olhar no que concerne a esse tema. Agradeço, ainda, ao apoio financeiro concedido pela Capes (bolsa vinculada ao processo 88881.172272/2018-01) e pelo Decanato de Pesquisa e Inovação da UnB, bem como às valiosas sugestões das/os pareceristas anônimas/os.
  • 3
    Para um comentário acerca de sua atualidade por ocasião dos 50 anos da publicação ver Gabriel Cohn (1998)Cohn, Gabriel. 1998. Esclarecimento e ofuscação: Adorno & Horkheimer hoje Lua Nova 43: 5-24. https://doi.org/10.1590/S0102-64451998000100002.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    .
  • 4
    Os ditames da crítica imanente são mais bem desenvolvidos posteriormente por Adorno em sua Dialética Negativa. A reconstrução envolvendo as mudanças e especificidades do conceito ou da prática intelectual da crítica imanente pode ser encontrada em Musse (2009)Musse, Ricardo. 2009. Theodor Adorno: filosofia de conteúdos e modelos críticos. Trans/Form/Ação 32 (2): 135-145. https://doi.org/10.1590/S0101-31732009000200008.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    .
  • 5
    Horkheimer e Adorno encontram-se, aqui, também influenciados pelo diagnóstico que fora elaborado cerca de três décadas antes por Max Weber ([1917] 1992)Weber, Max. (1917) 1992. Wissenschaft als Beruf. In Max Weber Gesamtausgabe, organisiert von Wolfgang Schluchter, Abt. I, vol. 17, 70-111. Tübingen: J. C. B. Mohr/Paul Siebeck., que se refere, ainda, ao processo de desencantamento do mundo.
  • 6
    Duas décadas mais tarde, em Educação após Auschwitz, Adorno retoma esse ponto e o desdobra diante do amplo e detalhado conhecimento acerca das práticas de perseguição e genocídio nacional-socialistas. “Um esquema que se confirmou na história de todas as perseguições é que a raiva se volta contra os mais fracos, sobretudo contra aqueles que são percebidos como socialmente fracos e, ao mesmo tempo - justa ou injustamente -, como felizes. A isso me arrisco a acrescentar, sociologicamente, que a nossa sociedade, enquanto se integra cada vez mais, ao mesmo tempo gesta tendências de desmonte [Zerfallstendenzen]. Muito próximas à superfície da vida civilizatória, ordenada, essas tendências de desmonte encontram-se bastante avançadas. A pressão do todo dominante sobre cada particular, sobre os seres humanos individuais e as instituições individuais, possui uma tendência de esmagar o particular e o individual junto à sua capacidade de resistência [Widerstandskraft]. Juntamente com sua identidade e sua capacidade de resistência os seres humanos também abrem mão daquelas qualidades com base na qual têm condições de se opor àquilo que, a qualquer tempo, volta a atrair a atrocidade” (Adorno [1966] 2004Adorno, Theodor W. (1966) 2004. Erziehung nach Auschwitz. In Erziehung zur Mündigkeit, 88-104. Frankfurt am Main: Suhrkamp., 91).
  • 7
    Não à toa, ao se referirem aos objetivos da primeira parte da obra, os autores afirmam: “A crítica ao esclarecimento aqui exercida deve preparar um conceito positivo dela, que possa livrá-la do enredamento junto à dominação cega” (Horkheimer e Adorno [1944] 1987Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno. (1944) 1987. Dialektik der Aufklärung. In Gesammelte Schriften, organisiert von Gunzelin Schmid-Noerr e Alfred Schmidt , vol. 5, 16-290. Frankfurt am Main: Fischer., 12).
  • 8
    Basta remeter à contribuição de W. E. B. DuBois: The Philadelphia Negro ([1899] 1967)DuBois, William E. B. (1899) 1967. The Philadelphia Negro. Nova Iorque: Schocken Books. e The Souls of Black Folk ([1903] 2007)DuBois, William E. B. (1903) 2007. The Souls of Black Folk. Nova Iorque: Oxford University Press..
  • 9
    O motivo de deixar de lado, neste momento, o diálogo com a tão relevante abordagem delineada por Angela Davis (2016)Davis, Angela. 2016. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo., entre outros, deve-se ao fato de ela não abarcar o contexto específico do Brasil.
  • 10
    A reflexão de Dinora Hernández (2020)Hernández, Dinora. 2020. Imágenes dialécticas del patriarcado. Para una teoría crítica feminista. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica 11-12: 353-381. a respeito do patriarcado e da importância da teoria crítica feminista que incorpora esse debate também merece destaque, ainda que extrapole os limites deste artigo.
  • 11
    Para mais detalhes sobre esse argumento ver Gonzalez ([1979b] 2020Gonzalez, Lélia. (1979b) 2020. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 49-64. São Paulo: Zahar., 50; [1985] 2020Gonzalez, Lélia. (1985) 2020. O Movimento Negro Unificado: um novo estágio na mobilização política negra. In Por um feminismo afro-latino-americano, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima , 112-126. São Paulo: Zahar., 125).
  • 12
    Para uma reconstrução histórica concisa, ver o formidável texto de Beatriz Nascimento (1985)Nascimento, Beatriz. 1985. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora ano 3 (6/7): 41-49..
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do autor antes da publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
  • Publicado
    12 Jul 2022
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