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As novas tecnologias legais na produção da vida familiar: Antropologia, direito e subjetividades

New legal technologies in family life production: Anthopology, law and subjectivation

Resumo:

Nesse artigo, exploramos a possível parceria entre a antropologia do direito e a teoria da biopolítica. Formulamos nossa contribuição a partir de uma pesquisa sobre os usos da tecnologia de DNA em investigações de paternidade realizada em diferentes instâncias do sistema judiciário de Rio Grande do Sul. Aproveitamos observações etnográficas nesses espaços institucionais para entender como determinadas situações produzem (reforçando ou modificando) sentimentos associados à família. Depois de apresentar uma cena etnográfica inicial em que objetivamos dar cor e vida aos sujeitos que povoam os tribunais, seguimos o roteiro traçado por Rabinow e Rose (2006)RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. O conceito de biopoder hoje. Política e Trabalho, n. 24, p. 27-57, 2006. para entender a cadeia de influências entre uma nova forma de conhecimento, rearranjos na hierarquia de poder, e novos “modos de subjetivação”. Em outras palavras, propomos mostrar que o sistema legal faz mais do que “solucionar conflitos”. Cria tensões, redefine relações e molda novas subjetividades.

Palavras-chave:
antropologia do direito; biopolítica; modos de subjetivação; família

Abstract:

In this article, we explore the possible dialogue between legal anthropology and the theory of biopolitics. We formulate our contribution on the basis of research on the uses of DNA technology in paternity investigations carried out in different spaces of the Rio Grande do Sul judicial system. Ethnographic observations in these institutional settings help us to understand how certain situations produce (reinforcing or modifying) sentiments associated with family life. After presenting an initial ethnographic scene through which we mean to give color and life to the subjects who populate the courtrooms, we follow an agenda traced out by Rabinow and Rose (2006)RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. O conceito de biopoder hoje. Política e Trabalho, n. 24, p. 27-57, 2006., in order to throw light on the chain of influences between new forms of knowledge, shifting hierarchies of power, and new “modes of subjectivation”

Keywords:
legal anthropology; biopolitics; modes of subjectivation; family

Em 1989, June Starr e Jane Collier, numa coletânea intitulada “Novas direções para a antropologia do direito”, esboçaram uma série de inovações teóricas que rompiam com o estrutural-funcionalismo tradicional. Os cientistas sociais da época estavam problematizando sua relação com as ciências jurídicas, procurando consolidar uma antropologia ou sociologia do direito em termos que não fossem reduzidos às demandas dos juristas (ver Sarat e Silbey, 1988SARAT, Austin; SILBEY, Susan. The Pull of the Policy Audience. Law and Policy, v. 10, n. 2-3, p. 97-166, 1988.). Além de situar suas análises dentro de um tempo histórico e um sistema mundial, rejeitavam a ideia de uma justiça neutra. Em vez de procurar regras – normas supostamente consensuais, responsáveis pela manutenção da ordem –, punham o acento nos processos, conflitos e jogos de poder entre categorias desiguais. Tal proposta, nos anos 1980, representava um avanço incontestável. Mas hoje, vinte anos depois, diante das mudanças no nosso mundo social, político e acadêmico, cabem sem dúvida novas “novas direções”.

Trazemos para esse debate uma contribuição a partir de uma pesquisa sobre os usos da tecnologia de DNA em investigações de paternidade, realizada em diferentes instâncias do sistema judiciário de Rio Grande do Sul. O material coletado entre 2002 e 2004 – na defensoria pública, no setor médico jurídico, numa corte de conciliação, numa Vara de Família – envolve dados de mais de cem processos. Já descrevemos em outros lugares vários desses casos que ilustram práticas e atitudes ligadas a gênero, geração e classe (Fonseca 2002FONSECA, Claudia. A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea. In: BRUSCHINI, Cristina; UNBEHAUM, Sandra (orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Editora 34, 2002.; 2005FONSECA, Claudia. DNA e paternidade: a certeza que pariu a dúvida. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 13-34, 2005.; 2009bFONSECA, Claudia. Quando convergem tecnologia, lei e família: pensando questões de gênero e geração em conexão com testes de paternidade. Revista Antropolitica, Niterói/Rio de Janeiro, n. 26, p. 19-36, 2009b.). Aqui, pretendemos colocar os dados (fruto de interações etnográficas tanto quanto da leitura de dossiês jurídicos) a serviço de uma discussão sobre a “produção de subjetividades”. Em outras palavras, indo além dos aportes de Starr e Collier (1989)STARR, June; COLLIER, Jane F. (eds.). Introduction: dialogues in legal anthropology. In: SILVEIRA, Rosa Mair Godoy; DIAS, Adelaide Alves; FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra; FEITOSA, Maria Luíza Pereira de Alencar Mayer; ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares (orgs.). History and power in the study of law: new directions in legal anthropology. Ithaca and London: Cornell Univ. Press, 1989., propomos mostrar que o sistema legal faz mais do que “solucionar conflitos”. Cria tensões, redefine relações e molda novas subjetividades.

Partimos da premissa, como a maioria dos antropólogos especializados no estudo do direito, de que nossas análises devem chegar além dos discursos formalistas de princípios jurídicos para alcançar as “práticas de justiça”. Para fundamentar essa noção, recorremos à perspectiva de Sally Falk Moore (1978)MOORE, Sally Falk. Law as process: an anthropological approach. London: Routledge, 1978., que procura entender como as pessoas manipulam, contornam e refazem os efeitos da lógica normativa encerrada na legislação1 1 Diferentemente de outros autores que enfatizam o lado “avesso” do sistema legal em situações poscolonialistas (Kant de Lima, 1995; Comaroff, 2006), Moore está falando de uma dinâmica intrínseca em qualquer “processo de regulamentação”. . Também (à inspiração de Geertz, 1983GEERTZ, Clifford. Local knowledge; fact and law in comparative perspective. Local knowledge: further essays in interpretative anthropology. New York: Basic Books, 1983.) nos interessa pela sensação de justiça (ou injustiça) vivida pelos sujeitos que frequentam o sistema – o que envolve uma discussão da “dignidade” e da “equidade” discutidas por Cardoso de Oliveira (1996)CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto; CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Ensaios Antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.. Situamos nossas indagações dentro de um sistema de governo que, refletindo uma tendência global, judicializa cada vez mais elementos da vida social. Para tanto, encontramos pistas na experiência de pesquisadores – tais como Debert, Gregori e Piscitelli (2006)DEBERT, G.G.; GREGORI, Maria Filomena; PISCITELLI, Adriana Gracia (orgs.). Gênero e Distribuição da Justiça: as delegacias de defesa da mulher e a construção das diferenças. Campinas: PAGU/Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP, 2006., Debert, Gregori e Oliveira (2008)DEBERT, G.G.; GREGORI, Maria Filomena; OLIVEIRA, Marcella Beraldo de (orgs.). Gênero, família e gerações: Juizado Especial Criminal e Tribunal do Júri. Campinas: Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP, 2008. e Rifiotis (2007aRIFIOTIS, T. Derechos humanos y otros derechos: aporías sobre processos de judicialización e institucionalización de movimientos sociales. In: ISLA, Alejandro. (org.). En los márgenes de la ley. Inseguridad y violencia en el cono sur. Buenos Aires, Barcelona, México: Paidós, 2007a. e 2007bRIFIOTIS, T. Direitos Humanos: Sujeitos de direitos e direitos dos sujeitos. In: SILVEIRA, Rosa Mair Godoy; DIAS, Adelaide Alves; FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra; FEITOSA, Maria Luíza Pereira de Alencar Mayer; ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares (orgs.). Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007b.) – que focam suas energias nos juizados e nas delegacias especiais, ressaltando os efeitos ambíguos de transformar certas categorias em vítimas. Finalmente, a moda de Adriana Vianna (2005)VIANNA, Adriana de R. Direitos, moralidades e desigualdades: considerações a partir de processos de guarda de crianças. In: Antropologia e Direitos Humanos 3. Niterói: Editora da UFF, 2005. p. 13-67., entendemos a esfera legal não como simples “ordenador[a] de relações sociais”, e, sim, como uma arena de “moralidades em disputa” onde os usuários podem exercer considerável impacto, muitas vezes com sua própria agenda moral (ver também Schuch, 2009SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.; Lugones, 2009LUGONES, Maria Gabriela. Obrando em autos, obrando em vidas: formas e fórmulas de “proteção judicial” dos tribunais prevencionais de menores de Córdoba, Argentina, nos começos do século XXI. Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2009. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Uniuveridade Federal do Rio de Janeiro, 2009.).

Coroando essa abordagem analítica, propomos por em relevo a biopolítica de Foucault, definida como um campo composto por tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais da existência humana, incluindo formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção (Rabinow e Rose, 2006RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. O conceito de biopoder hoje. Política e Trabalho, n. 24, p. 27-57, 2006.). A relevância dessa abordagem para o mundo contemporâneo, regido por novas “tecnologias de governança”, já foi particularmente bem demonstrada por antropólogos trabalhando na área médica (Rabinow, 1996RABINOW, Paul. Essays on the anthropology of reason. Princeton: Princeton Univ. Press, 1996., Heath, Rapp e Taussig, 2007HEATH, Débora; RAPP, Rayna; TAUSSIG, Karen-Sue. Genetic Citizenship. In: NUGENT, D.; VINCENT, Joan (orgs.). A companion to the Anthropology of politics. Oxford: Blackwell publishing, 2007.). Apontaram para a maneira em que novas tecnologias (reprodutivas e terapêuticas) têm penetrado na vida íntima, modificando subjetividades e alterando a relação do cidadão com o estado. Entretanto, apesar do próprio Foucault ter desenvolvido sua teoria a partir de análises sobre a medicina e o direito (2003, entre outros), a possível parceria entre a antropologia do direito e a análise da biopolítica tem sido pouco explorada. Ao falar de “novas tecnologias legais” no título desse artigo, é minha intenção deixar essa parceria mais explícita.

Não é novidade pensar a lei como instrumento de engenharia social. Nesse espírito, os vários estatutos brasileiros – da criança, do idoso, da mulher – gozam de grande popularidade, como se a edição de normas escritas fosse o pontapé para uma revolução de comportamentos sociais. Aqui, porém, deixamos de lado essas instâncias espetaculares para focar espaços mais banais. A preocupação estatal com a inclusão de um nome paterno na certidão de nascimento das crianças nos dirige para a “microfísica” da administração de justiça – os procedimentos rotineiros do aparato legal do estado moderno que visam contar, classificar e localizar em um lugar fixo os elementos da população (Lugones, 2009LUGONES, Maria Gabriela. Obrando em autos, obrando em vidas: formas e fórmulas de “proteção judicial” dos tribunais prevencionais de menores de Córdoba, Argentina, nos começos do século XXI. Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2009. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Uniuveridade Federal do Rio de Janeiro, 2009.). Aproveitamos observações etnográficas nos espaços institucionais do judiciário para entender como determinadas situações produzem (reforçando ou modificando) sentimentos associados à família. Para tanto, depois de uma cena etnográfica inicial em que objetivamos dar cor e vida aos sujeitos que povoam os tribunais, seguimos o roteiro traçado por Rabinow e Rose para entender a cadeia de influências entre uma nova forma de conhecimento, rearranjos na hierarquia de poder, e novos “modos de subjetivação” (Rabinow e Rose, 2006RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. O conceito de biopoder hoje. Política e Trabalho, n. 24, p. 27-57, 2006.).

Jéssica: uma nova moralidade feminina?

Encontrei Jéssica, uma morena magra e ágil, com cara de estudante universitária, na defensoria onde ela tinha chegado para estabelecer a identidade paterna de seus dois filhos. Era uma menina muito comunicativa que parecia ter gosto em contar as peripécias de seu pleito. Falando do pai do primeiro filho, insistiu que tinha ficado muito apaixonada. Namoraram durante mais de dois anos, mas cada um continuava na casa dos pais. Jéssica admite: “Chegou um momento – eu já tinha 18 anos – e queria muito um filho dele. Ele falou que se eu engravidasse, ele não ia assumir, mas não acreditei muito”. Agora, com o pai do segundo filho, foi completamente diferente: “Foi numa festa, eu tinha bebido bastante. Nem lembro bem. Foi só uma vez e olha no que deu”. Apesar de suas repetidas investidas, telefonando e batendo na porta do ex-namorado, Jéssica ainda não conseguiu persuadi-lo a colaborar com a investigação. Porém, o pai do segundo filho – um moço de quase 30 anos que Jéssica descreve como “aquele velho” – disse que ia comparecer à defensoria, conforme a convocação.

Sentada no escritório da defensora, esperando “o velho” chegar, Jéssica fala em tom enfático: “Para o homem é assim. ‘Fez, tem que assumir’... Não me importo de ralar com eles. Eles não se importaram comigo”. Mas a defensora manda “baixar a bola”. Explica que, ainda nesse início do processo, não é prudente falar em pensão alimentícia pois há outras estratégias bem mais persuasivas. Assim, logo que chega o “suposto pai”, a defensora se lança num longo discurso sobre a importância para uma pessoa saber quem é o pai. Conta detalhes de outro caso, de um menino já com 26 anos, que sofreu trauma a vida inteira por não conhecer o pai. E termina sentenciando, “se esse pai tem uma noção de ser humano, vai querer saber quem é o filho”.

A lição moral da defensora, quiçá, fosse um pouco precoce. Ainda faltava ao suposto pai a convicção de que era pai. Assim, o dia marcado para a coleta de sangue, o moço compareceu no Serviço Médico e, como Jéssica sublinha, até chegou a segurar o nenê nos braços. Entretanto, as tênues esperanças de Jéssica, que talvez crescesse uma relação entre esse homem e ela, foram aparentemente frustradas. Tendo demorado em arrumar o bebê, saiu da sala de coleta minutos depois do suposto pai. Deu uma olhada na sala de espera e suspirou: “O cara já se foi. Não está nem aí.” Restava a ver se o veredito do teste, a sair alguns dias mais tarde, faria uma diferença.

Afinal, o que Jéssica esperava desse exame? Uma pensão alimentícia? Uma relação conjugal? Uma paternidade afetiva? Suas expectativas, sem dúvida, foram tomando forma ao longo dos anos em uma negociação que envolve bem mais do que o casal de genitores. Logo após realizar a coleta de sangue, Jéssica telefonou para seu padrasto que ofereceu vir buscá-la. É ele que dá todo dia “cinco ou seis pila para comprar fraldas ou para buscar um lanche para os guris”. Podemos supor que ele e a mãe de Jéssica (que, evidentemente, colaboram intensamente na criação dos netos) tiveram uma mão na decisão tomada pela jovem de recorrer aos tribunais.

Mas o que merece particular destaque nesse episódio é que Jéssica não se apresenta como uma mocinha inocente seduzida por um macho espertalhão. Na primeira vez, quis engravidar, mesmo sabendo que seu namorado não queria e provavelmente não ia assumir um filho. Na segunda vez, ficou grávida depois do encontro de uma noite. Também fala livremente para nós, e para a defensora que, entre seus diversos empregos – ora como faxineira, ora como operária numa fabrica de roupas – já trabalhou em boate, mas não ficou porque “não se adaptou”. Em outras palavras, nossa personagem é tudo menos politicamente correta.

Será que esse comportamento é algo inusitado? Tudo indica que não. As pesquisas sobre sexualidade no Brasil atestam uma mudança de atitude nessas últimas décadas em todas as classes sociais. Em particular, as mulheres hoje atribuem muito menos importância à virgindade feminina e aceitam um leque muito mais amplo de práticas sexuais (Heilborn, 2004HEILBORN, Maria Luiza (org). Família e sexualidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004.). Sugiro que a novidade aqui não é tanto o comportamento pessoal de Jéssica, quanto o fato de ela assumir esse comportamento, publicamente, frente aos pesquisadores, frente à defensora e frente ao juiz.

A produção da verdade: de evidências morais a evidências técnicas

Para entender o quanto tem mudado nos tribunais dos últimos anos, basta considerar a linguagem encontrada nas folhas escritas dos processos judiciais. Nesse material, geralmente elaborado por advogados particulares ou da justiça gratuita, afloram estereótipos sobre o bom ou mau comportamento da mulher enquanto esposa, e do homem enquanto pai. A mulher que entra com queixa para obrigar algum homem a assumir a paternidade de seu filho costuma argumentar que teve com o réu uma “relação amorosa”, um namoro “público e aberto”, uma convivência de concubina. Apresenta-se como mulher de “conduta inatacável”, que, na época, dedicava “extrema fidelidade ao demandado”. Dirá que foi somente quando aprendeu que ela estava grávida que o namorado desapareceu e que, “por motivos pouco nobres, demonstrando imaturidade (apesar de sua idade, não pouca) e, por que não dizer, [uma atitude] irresponsável, não declarou o filho”.

Historiadores (Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.), tratando de casos semelhantes do passado, frisam que as mulheres (e seus tutores) frequentemente apresentavam seu pleito em termos de honra familiar. Processavam os supostos pais para obrigá-los a casar com a moça desonrada e, dessa maneira, “reparar” a honra não só da menina, mas também de seus pais e parentes. Nos arquivos que examinei, havia quase nada deste teor. Todo o argumento era direcionado para a responsabilidade paterna – conceito que, evidentemente, incluia tanto o sustento material quanto a educação moral. Por exemplo, encontramos diversas vezes a citação do jurista F. Raitani (morto em 1971) sobre a vilania do pai que não declara seu filho:

Homens incapazes da prática de um furto, não obstante se vangloriam de haver seduzido uma inocente moça e, no entanto, perpetram um delito mil vezes mais grave e iníquo, porque à vilania da sedução, acrescentam quase sempre o abandono deliberado do filho. Em sua consequência, não pensam que os delinquentes precoces, de cujo crime se horrorizam, o menor mendigo e vagabundo cuja vida repudiam, pode ser seu próprio filho, condenado pela covardia de quem os engendrou... (1995, p. 16)

Os homens, por seu lado, concentram suas defesas no contraste entre a sua própria respeitabilidade e a leviandade das mulheres. Um senhor casado, se declarando respeitável homem de família, chegou a solicitar ao tribunal que nenhuma notificação sobre esse assunto chegasse à sua residência “sob pena de... provocar a falência conjugal e familiar do réu e sua prole legal”. Muitas vezes, os supostos pais negam qualquer relação com a demandante ou, então, insistem que tiveram por poucas vezes “uma aventura sexual”, para “divertimento”, um “tênue relacionamento” sem nenhuma relação afetiva ou convivência social. Sua intenção descomprometida, antes de condenar o homem, aponta para a atitude inconsequente da mulher. A arguição de um office-boy com 20 anos de idade, ainda dependente dos pais, contra uma igualmente jovem estagiária de Escola Técnica, insinua essa atitude predadora da mulher:

Ora Excelência, fica claro que... [a mulher] manteve relações sexuais com o demandado já no mesmo dia em que o viu pela primeira vez e sem sequer procurar conhecê-lo melhor, buscando irresponsavelmente apenas a sua satisfação carnal... deixando claro a qualquer homem assediado de que a concepção seria impossível nessa situação, mormente a um jovem em início de sua atividade sexual.

Seguem então as acusações usuais: O jovem réu conheceu a mulher numa Cervejaria onde ela “sempre se fazia acompanhar de outros homens, inclusive, casados, [...] seu comportamento social passa[ndo] ao longe daquele exigido e externado por mulheres honestas, recatadas ou de reputação ilibada”.

Quanto mais antigo o processo, mais se constata como a mulher em particular sofria os constrangimentos da moralidade conservadora. O fato que o casal tinha se conhecido num bar, que os dois dormiram juntos no primeiro encontro, que a mulher ainda era (ou tinha sido) casada com outro homem, ou que ela morava com amigas solteiras – tudo podia ser incluído como evidência de exceptio plurium concubentium. De modo clássico, na lógica acionada por esses advogados, qualquer situação que indicava a possibilidade da mulher possuir mais de um parceiro sexual servia para exonerar qualquer homem de responsabilidade paterna. A persistência desses estereótipos surrados sugere que, até pouco tempo atrás, essa linguagem surtia efeito.

O interessante é que, hoje, conforme nossa observação das práticas do tribunal, esses argumentos morais não têm nenhuma influência sobre o procedimento do juiz. Independentemente da idade, situação financeira, estado civil ou trajetória sexual das partes, se um ou outro expressa o desejo de fazer um teste de DNA, o juiz passa logo para essa etapa da investigação. Se, conforme testemunhas, a mulher é virgem ou prostituta, se o homem é companheiro dela durante vinte anos ou uma só noite, a resposta do juiz é a mesma: vamos ver o que diz o DNA.

Ao que tudo indica, os juizes consideram essa inovação técnica como uma maneira de evitar discussões moralistas, fundamentadas em preconceitos antiquados. Hoje, pelo menos no circuito de Porto Alegre onde fiz minhas observações, os defensores rotulam as acusações contra a moralidade sexual da mulher de “absurdas” e, na Vara de Família, os juízes recebem essas acusações com aparente indiferença. Se a mulher teve um ou muitos parceiros sexuais simplesmente não é relevante. Já, em 1998, aparece na sentença de certo processo um enunciado do novo consenso: “O exame de DNA tornou-se de tal importância na prova de paternidade que afastou quase na sua totalidade a matéria de prova que poderia ser alegada em defesa. A tese clássica de ‘exceptio plurium concubentium’ restou afastada diante da prova material do DNA.”

Encontramos poucos processos em que o juiz chega a uma sentença sem recorrer ao teste – todos com circunstâncias excepcionais. Em um caso, a mulher tinha 12 anos quando começou o namoro com um homem mais velho; em outro, o homem tinha sido morto, baleado, e os seus próprios pais reconheciam a paternidade de seu neto. É comum que o juiz exija o exame de DNA mesmo quando ninguém duvida da identidade paterna. Penso, por exemplo, em outro jovem, assassinado quando seu segundo filho mal fazia um mês. Era o pai declarado do primeiro filho e, conforme testemunhas (uma costureira, um advogado e uma trabalhadora de serviços gerais), tinha vivido dez anos com a mãe de seus filhos. A mãe ainda apresentou o documento do hospital (de nascido vivo) no nome do falecido. Apesar dessas evidências e um consenso evidente entre todos os envolvidos, o juiz exigiu uma “prova material contundente” – o sangue dos pais do falecido – para demonstrar a “verdade real” das conexões antes de admitir a declaração de paternidade. Nesse caso, o juiz não parece ter a intenção de ofender as testemunhas, colocando em dúvida a veracidade dos depoimentos. Está simplesmente propondo convocar outros saberes e outras autoridades – os da biotecnologia – para convalidar o veredicto da corte.

As atitudes expressas hoje em dia por meninas como Jéssica passam, nesses termos, a ser compreensíveis. Até pouco tempo atrás, a demandante que iniciava uma investigação de paternidade era obrigada a se apresentar à corte como a mulher de um homem só. Tinha que encontrar amigos e vizinhos que aceitassem depor em seu favor, afirmando que era uma mulher “honesta”, etc. Caso contrário, não teria nenhuma esperança de ganhar seu pleito. Hoje, encontramos Jéssicas em todos os corredores da defensoria – meninas que não têm vergonha de assumir sua parte ativa nas relações afetivas e sexuais. Tal mudança teria sido difícil, senão impossível, sem a tecnologia do DNA e sua influência sobre as decisões do juiz. Em outras palavras, a introdução dessa nova forma de conhecimento – redundando em um novo estilo para a produção de evidência – tem transformado o processo decisório, deslocando o “regime de verdade” do tribunal para um patamar “técnico”, aparentemente livre de julgamentos morais (Jasanoff, 1995JASANOFF, Sheila. Science at the bar: law, science, and technology in America. Cambridge: Harvard University Press, 1995.).

Mais do que resolver disputas, moldar subjetividades

O efeito desses processos não se restringe, entretanto, à mera constatação dos fatos. Não há dúvida de que a investigação de paternidade ressoa nas atitudes dos sujeitos que estão sendo julgados – provocando rearranjos na sua constelação de afetos. Mas enquanto a natureza demorada do processo judicial tem a capacidade de construir relações (além de atiçar conflitos), o teste de DNA – especialmente quando é negativo – tem o poder de instantaneamente impor uma solução definitiva.

Para ilustrar essa afirmação, consideremos um processo que demonstra como os discursos de cada parte se modificaram ao longo da disputa. Trata-se de Lara, comerciária de profissão, que entra com um processo contra João, representante comercial, para regularizar a paternidade de seu bebê já com um ano de idade. Nas primeiras páginas do dossiê, Lara fala que teve um “relacionamento afetivo” com o réu, que ele e até os pais dele pareciam aceitar o nascimento do bebê, recebendo mãe e criança para visitas em sua casa. Trata-se de um argumento feminino recorrente que, em outros casos semelhantes, vem acompanhado de provas fotográficas – por exemplo, do casal festejando o aniversário do filho. João tem uma reação também “padrão”, que exemplifica os argumentos masculinos. Responde que mal conhecia a mulher: teve um só encontro com ela, sem relacionamento sexual, nunca a recebeu em sua casa. Ademais, na época do suposto namoro, Lara “estava casada e certamente mantendo relações sexuais com o marido... a quem a paternidade é presumida... pater is est quem nupciae demonstrant.”

Diante dessas alegações desencontradas, o juiz não hesita. A solução desse impasse é realizar um teste de DNA. Entretanto, ainda surgem complicações. O réu se esquiva às intimações oficiais, evitando assim a obrigação de comparecer no laboratório. Paira sobre ele a ameaça de ter que pagar “alimentos provisórios” até realizar o teste. O réu, então, recebe a intimação, mas – por três vezes – não aparece no laboratório no dia e hora indicados. Finalmente, um ano depois da abertura do processo, Lara e João se encontram numa audiência de conciliação. O clima parece estar mudando. Ela traz testemunhas para dizer que, na época da concepção, ela já era separada do marido e namorava apenas o réu. Ele admite que teve dois meses de relacionamento sexual com ela, e reconhece que os familiares dele “seguidamente dão presentes para [a criança]... porque têm sentimentos de paternalismo”. E – ainda mais fundamental – João se diz (finalmente) pronto para fazer o teste de DNA.

Há, todavia, novos motivos de atraso. Em vez de pagar mais de R$ 2.000 reais em um laboratório particular indicado pelo juiz, João quer esperar na fila da justiça gratuita. E, quando chega a vez do casal realizar o teste no Serviço Médico Judicial, agora é Lara que (tendo mudado duas vezes no ano) o oficial de justiça não consegue localizar. Finalmente, mais de três anos depois do início do processo, o réu aparece em audiência, triunfante, com o resultado negativo do teste de paternidade, e volta ao seu velho discurso de que “nunca manteve com a mãe da menor qualquer relacionamento duradouro ou estável, seja como namorado ou amante, não tendo havido relações íntimas...”. E, podemos imaginar que sua família não dá mais presentes para a menininha que tem, a essas alturas, mais de quatro anos.

O juiz, na sua sentença final, julga a petição da mãe “improcedente”, ao mesmo tempo em que chama atenção para a incoerência do réu que pende ora para a aceitação da criança, ora para a rejeição total. Sugerimos que, nesse caso, são as próprias tecnologias científicas e jurídicas envolvidas que produzem a “incoerência” nas atitudes de João. Em outras palavras, o que parece ser um simples procedimento administrativo é vivido pelas pessoas como algo capaz de provocar reviravoltas não somente no status social de pai declarado, mas também nas próprias relações afetivas.

Autoridades reforçadas, moralidades desautorizadas

É importante lembrar que as normas legais não caem no vazio. Assim, tal como Vianna (2005)VIANNA, Adriana de R. Direitos, moralidades e desigualdades: considerações a partir de processos de guarda de crianças. In: Antropologia e Direitos Humanos 3. Niterói: Editora da UFF, 2005. p. 13-67. nos alerta, em vez de supor que o Estado é todo poderoso, moldando os indivíduos a formas específicas de comportamento, talvez seja mais produtivo dirigir a análise para as outras ordens de normatividade – as menos formalizadas – que estão constantemente interagindo, reforçando ou competindo com a legalidade oficial. A partir de sua pesquisa em processos judiciais de guarda e adoção de crianças no Rio de Janeiro, Vianna dá exemplos dessas “outras ordens” da normatividade familiar. Ao lado da retórica do tribunal sobre “direitos” e “o interesse prioritário da criança”, encontram-se no pleito dos litigantes constantes alusões à “gratidão” e à “bondade”. É essa “linguagem moral”, sugere a autora, que constrói a “liga” entre o “poder de mando” (a autoridade legítima das cortes) e o “dever de obediência” (o reconhecimento desse poder pelos usuários), provocando ajustes de ambos lados.

Nas investigações de paternidade, seria tentador reduzir essas “outras ordens menos formalizadas” da moralidade familiar aos estereótipos sexistas formulados pelos advogados da defesa. Entretanto, um olhar mais demorado revela outros elementos importantes. Nas conversas de corredor, ouvi com frequência os usuários falarem da diferença que faz a relação do sangue. Enfatizavam traços hereditários, dando, como prova de filiação, o cabelo ruivo de um, a personalidade tagarela de outro... Nesses discursos, uma suposta conexão biológica (significada ora por sangue, ora por genes) carregava associações com claras implicações para os relacionamentos. Por outro lado, também se falava da obrigação familiar – de afeto e responsabilidade – em situações que independiam dos genes. Por exemplo, ao emitir opiniões como “pai é quem criou”, as pessoas estavam evocando um vínculo familiar construído nas interações do dia-a-dia – no trabalho, no lazer e na comensalidade. De fato, estudos do sistema “euro-americano” de parentesco têm sublinhado a maneira em que convivem classicamente esses dois critérios distintos de pertencimento familiar – o “natural”, calcado em “fatos biológicos” e o “social”, envolvendo uma margem de opção individual (Strathern, 1992STRATHERN, Marilyn. After nature: English kinship in the late twentieth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.). Nas suas práticas cotidianas, as pessoas negociam um tênue equilíbrio entre essas percepções de família-como-destino (“nasceu, não tem mais nada a dizer”) e família-como-escolha (“o amor é mais forte que todo o resto”). A questão é: o que muda nessa negociação quando a autoridade da ciência introjeta um elemento a mais?

M. Strathern, se apoiando no trabalho de Janet Dolgin, comenta a nova percepção de família provocada pela crescente importância da ciência genética. A “família genética” não seria “nem a família (...) tradicional com sua hierarquia ou comunidade em que os membros encontram seu lugar em relação uns aos outros (...), nem a família ‘moderna’, escorada na escolha autônoma em que o valor básico seria o indivíduo singular” (Strathern, 2005STRATHERN, M. Kinship, Law and the Unexpected: Relatives are always a surprise. Cambridge: Cambridge University Press, 2005., p. 75). A autora pergunta, então: em vista da suposta “amoralidade” da informação genética, como a lei pode recorrer a essa informação para regular as relações familiares? Segundo Strathern, o próprio discurso de direitos, fundado na igualdade e autonomia dos indivíduos, exerce um efeito antagônico aos sentimentos tradicionalmente associados ao parentesco, pois tende a rechaçar conotações de dependência, controle e coerção que, em muitos casos, são a energia propulsora das obrigações familiares. Tanto Strathern (2005)STRATHERN, M. Kinship, Law and the Unexpected: Relatives are always a surprise. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. quanto Vianna (2005)VIANNA, Adriana de R. Direitos, moralidades e desigualdades: considerações a partir de processos de guarda de crianças. In: Antropologia e Direitos Humanos 3. Niterói: Editora da UFF, 2005. p. 13-67. colocam tacitamente a questão: é possível operar com noções de parentesco sem um discurso moral que embasa as relações sociais?

Outra maneira de colocar a pergunta, talvez mais relevante apesar de menos catastrófica, é: como a introdução de uma nova forma de conhecimento, apoiada em certa autoridade (científica), modifica as relações de poder na negociação entre as pessoas envolvidas? O que acontece com o poder de barganha dos litigantes quando o próprio procedimento jurídico parece barrar a retórica moral? As narrativas pessoais são cada vez mais relegadas a uma etapa ritualmente preliminar do processo, tendo pouca ou nenhuma consequência para as decisões. É possível que os juizes se queixem de perder, eles também, uma margem de manobra, mas é a categoria profissional deles que decide aceitar ou não as “evidências”. É a autoridade deles que se engrandece com essa aliança entre direito e ciência. Ao revelar a verdade “real”, a expertise científica parece expurgar a moralidade da cena, estancando o diálogo entre possíveis ordens diversas.

Quando a confiança mútua é mediada pela tecnologia

É obviamente discutível se o gene é ou não “amoral”. Poderíamos dizer que a tecnologia genética, sob a aparência de objetividade, impõe um novo tipo de moralidade, uma nova maneira de pensar o sujeito e suas relações. Nos rearranjos morais que decorrem da introdução de uma tecnologia aparentemente neutra, surgem novas coalizões inesperadas em que antigas autoridades perdem espaço. Esse efeito se torna particularmente relevante na disputa entre homem e mulher pelo direito de dizer a verdade da filiação. Até pouco tempo atrás, a parturiente era a principal autoridade quanto à paternidade de seu bebê. Podemos supor que a confiança na “palavra” da mulher era um elemento tácito no entendimento conjugal, um tipo de moeda de troca que reforçava uma relação de dependência mútua e uma relação de longa duração. Substituir essa “palavra” por um novo tipo de expertise, exterior à relação conjugal, remove essa moeda da economia moral do casal – surtindo consequências a serem interrogadas.

Em outro lugar (Fonseca, 2005FONSECA, Claudia. DNA e paternidade: a certeza que pariu a dúvida. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 13-34, 2005.) já discuti como, em determinado contexto, as possibilidades abertas pelo teste de DNA parecem ter atiçado as dúvidas masculinas quanto à fidelidade sexual de suas mulheres. Agora, alguns últimos exemplos, tirados de meu diário de campo, dão pistas para entender como as mulheres se sentem diante da rotinização dos testes de DNA. Estes sentimentos, de difícil acesso nos processos escritos, aparecem com mais clareza nas entrevistas que realizei na sala de espera do serviço médico. Lembro, por exemplo, de uma mulher que, tendo morado durante cinco anos com seu ex-companheiro, se indignava: “Ele sabe muito bem que é o pai de nosso filho. Ele está pedindo o teste só para incomodar”. Em outro caso, um senhor ruivo, muito falante, fez questão de me apresentar a sua namorada e a criança deles, acrescentando que já estavam praticamente morando juntos. Quando ele se afastou para fumar um cigarro, sua namorada me contou outra versão dessa história. Viúva há uns três anos, ela tinha começado um namoro com esse vizinho. Mas o fato de ela já ter filhos do primeiro marido bastava para levantar as suspeitas de seu companheiro. Em tom de deboche, ela parodiou: “agora estamos aqui só para tirar uma dúvida”. “E”, ela completou, “posso garantir que não vamos morar juntos!”. Em ainda outro caso, foi a mãe da menina de 17 anos que comentou a relação do jovem casal que estava pajeando: “Tudo bem, ele está aqui para fazer o teste. Diz que quer que ela e o nenê venham morar com ele. Mas minha filha diz que terminou. Já sofreu humilhação demais. Vir fazer o teste foi a gota de água...”.

Essas reações nos lembram que, no fundo, o teste de DNA – aquilo que os homens estão vendo cada vez mais como seu “direito” e os defensores como uma rotina quase administrativa – é vivido pelas mulheres como uma afronta não à sua moralidade sexual, mas, sim, à sua honestidade. Com a nova forma científica de “dizer a verdade” caducou a validade da palavra da mulher. Acatando a provocação de Cardoso de Oliveira (1996)CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto; CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Ensaios Antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996., perguntamos se, nesse caso, o “justo” não está agindo em detrimento do “solidário”. Resta saber se, no clima de objetividade científica e direitos dos indivíduos autônomos, é possível uma nova linguagem moral para fazer “a liga” entre as decisões legais emitidas pelos juízes e a sensação de justiça (ou injustiça) das pessoas julgadas.

Lei e prática

Antes de concluir essa discussão sobre uma possível “nova direção” da antropologia do direito que aproveite insights da biopolítica, cabem duas ressalvas. Em primeiro lugar, é importante entender que nossos argumentos são formulados no intuito de provocar reflexão, e não de prever comportamentos. As “novas subjetividades” esboçadas nesse artigo são possibilidades, não fatalidades. Invocar os aportes da biopolítica não significa endossar perspectivas deterministas, nem denunciar o disciplinamento como uma força maléfica voltada à dominação dos subalternos. Vindo ao encontro da perspectiva de Moore (1978)MOORE, Sally Falk. Law as process: an anthropological approach. London: Routledge, 1978. evocada no início deste paper, citamos por fim recomendações de B. Latour: “[Na análise do pesquisador] a ação deve permanecer uma surpresa, uma mediação, um evento” (Latour, 2005LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Oxford: Oxford University Press, 2005., p. 45). Longe de agir como um déspota que determina unilateralmente o rumo da mudança, a tecnologia do DNA passa por muitas mediações capazes de “transformar, traduzir, distorcer e modificar” o significado dos elementos que transmite (Latour, 2005LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Oxford: Oxford University Press, 2005., 39). O trabalho do analista deve ser justamente de seguir a ação dos mediadores para melhor entender a variabilidade complexa das possibilidades.

A segunda ressalva diz respeito à necessidade de complementar as análises centradas nas “lógicas culturais” dos usuários por estudos que seguem as articulações para arenas mais amplas de atuação. Imaginar que os cientistas sociais devem se interessar somente por aquilo que passa nos tribunais arrisca endossar uma visão da legislação como algo puramente racional, “dado”, e, portanto, fora do alcance de análise. Pior, pode levar à ideia de que nossos estudos visam corrigir comportamentos “irracionais” ou superar “obstáculos” ao cumprimento da lei2 2 Ver Vauchez (2001) para uma análise crítica da “teoria da lacuna” (gap theory) sobre o descompasso entre as expectativas dos legisladores e as práticas dos usuários. . Acreditamos, pelo contrário, que o estudo adequado das “práticas de justiça” interroga não só a interação entre os diversos atores que frequentam a rede judiciária, como também a produção de leis (nacionais e internacionais), tomando estas como algo tão frágil e contextualmente situado quanto as táticas dos usuários.

Trata-se de uma orientação metodológica que não cabe no espaço de um artigo. Assim, desenvolvi em outro lugar elementos complementares fundamentais à análise. Rastreei as conexões de pessoas e ideias transitando entre o Brasil e arenas internacionais – localizando as instâncias que não somente decidem o conteúdo da lei, mas que ajudam a construir sua legitimidade (Fonseca, 2009aFONSECA, Claudia. Transnational negotiations of the mechanisms of governance: regularizing child adoption. [On-line] Vibrant, v. 6, n. 1, 2009a.). Busquei colocar em perspectiva como se produziu uma lei nacional fazendo do teste de DNA um direito de cidadão (Fonseca, 2010FONSECA, Claudia. O Direito ao Teste de Paternidade: acesso à justiça ou lógica consumista? In: SCHUCH, Patrice; FERREIRA, Jaqueline (orgs.) Direitos e ajuda humanitária: perspectivas sobre gênero, família e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010.). Ao seguir pistas – no congresso nacional, em documentos do movimento feminista, e nas dinâmicas da pesquisa universitária em biotecnologia – procurei entender a produção dos textos normativos oficiais (as leis e políticas sociais que visam reger os comportamentos). Meu objetivo era reiterar em termos etnografados algo que já é consensual no campo: que, na antropologia do direito, “a lei” e “a prática dos usuários” não devem ser colocadas em planos distintos. Da mesma forma que nossos informantes habituais – os usuários do sistema – têm interesses e artimanhas, a própria lei e as instâncias de poder que a atualizam também são o produto de negociações entre indivíduos envolvidos numa trama sofisticada de poder. Em outras palavras, os “atores” estão por todas as partes.

* * *

Em suma, seguindo a agenda da análise de biopolítica, procurei neste artigo apresentar as “práticas de justiça” envolvidas no teste de paternidade sob nova luz, rastejando as conexões entre regimes de verdade, hierarquias de autoridade e modos de subjetivação. Se, vinte anos atrás, a questão que se colocava era quem usa a lei, como usa e para quê, hoje estendemos nosso olhar para o horizonte de quem faz as leis e em quais circunstâncias. Se, apesar da ênfase em processos, os pesquisadores do fim da década de 1980 ainda recorriam a dicotomias envolvendo dominados a dominadores, hoje vemos “agency” (e resistência) por toda parte. Se, antes, a descoberta da importância das relações de poder impunha indagações sobre os interesses específicos de cada categoria em jogo, hoje, pensamos em termos de rearranjos de poder e coalizões de interesse. Enfim, se hoje estendemos nossa curiosidade além da adjudicação de conflitos para as “tecnologias de governança”, não é para renegar os avanços do passado. É, sim, para afiar nossos instrumentos de trabalho, adequando-os à complexidade das dinâmicas contemporâneas e para melhor entender como as leis interagem com uma série cada vez maior de atores (conectados por redes que se estendem de Chicago ao Chuí, da tecnologia de DNA às fotos amareladas de festa), para reformular as identidades e as emoções que compõem as subjetividades modernas.

  • 1
    Diferentemente de outros autores que enfatizam o lado “avesso” do sistema legal em situações poscolonialistas (Kant de Lima, 1995KANT DE LIMA, Roberto. A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.; Comaroff, 2006COMAROFF, John L.; COMAROFF, Jean. Law and disorder in the postcolony. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.), Moore está falando de uma dinâmica intrínseca em qualquer “processo de regulamentação”.
  • 2
    Ver Vauchez (2001)VAUCHEZ, Antoine. Entre droit et sciences sociales, Retour sur l’histoire du mouvement Law and Society. Genèses, Paris, v. 45, p. 134-149, 2001. para uma análise crítica da “teoria da lacuna” (gap theory) sobre o descompasso entre as expectativas dos legisladores e as práticas dos usuários.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2011
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