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Se virando no sistema da rua: Moradores de rua, conceitos e práticas

Getting by in the street system: Street dwellers, concepts and practices

“Se virando” en el sistema de la calle: Personas en situación de calle, conceptos y prácticas

Resumo:

Este artigo busca refletir sobre a articulação entre conhecimento e prática na experiência de vida de pessoas em situação de rua. Para isso, trabalho com as narrativas individuais de Roberto, morador de rua da cidade de Fortaleza, Ceará, e interlocutor de pesquisa de campo realizada entre dezembro de 2015 e outubro de 2016. A partir das categorias nativas de sistema da rua e de se virar, presentes em suas explicações sobre seu modo de habitar a rua, busco discutir como esses conceitos permitem compreender ações, movimentos e valores mobilizados em situações cotidianas da vida na rua, tomando como base etnográfica situações experienciadas por Roberto envolvendo questões de violência, mobilidade e modos de sustento na rua.

Palavras-chave:
Moradores de rua; Prática; Conhecimento; Movimento

Abstract:

This article seeks to reflect on the articulation between knowledge and practice in the life experience of homeless people. For this, I work with the individual narratives of Roberto, a homeless resident of the city of Fortaleza, Ceará, and interlocutor of field research conducted between December 2015 and October 2016. From the native categories of sistema da rua and of se virar, present in his explanations about his way of inhabiting the streets, I try to discuss how these concepts allow to understand actions, movements and values mobilized in everyday situations of the life in the streets, taking as an ethnographic basis situations experienced by Roberto involving issues of violence, mobility and modes of sustenance in the streets.

Keywords:
Homeless people; Practice; Knowledge; Movement

Resumen:

Este artículo busca reflexionar sobre la articulación entre conocimiento y práctica en la experiencia de vida de personas en situación de calle. Para ello, trabajo con las narrativas individuales de Roberto, personas en situación de calle de la ciudad de Fortaleza, Ceará, e interlocutor de investigación de campo realizada entre diciembre de 2015 y octubre de 2016. A partir de las categorías nativas de sistema da rua y de se virar, presentes en sus explicaciones sobre su modo de habitar la calle, busco discutir cómo estos conceptos permiten comprender acciones, movimientos y valores movilizados en situaciones cotidianas de la vida en la calle, tomando como base etnográfica situaciones experimentadas por Roberto involucrando cuestiones de violencia, movilidad y modos de sustento en la calle.

Palabras clave:
Personas en situación de calle; Práctica; Conocimiento; Movimiento

Introdução1 1 Esta pesquisa contou com financiamento do CNPq.

A ampla produção de pesquisas sociológicas e antropológicas sobre populações de rua permite revelar o rico cenário de relações que estas pessoas estabelecem com uma série de atores que circulam no meio urbano: outros moradores de rua, domiciliados, transeuntes, turistas, policiais, vendedores ambulantes, comerciantes, participantes de grupos de caridade, prostitutas, artistas de rua, funcionários de instituições voltadas à população de rua, entre outros. A lista se expande e se complexifica na medida em que se revelam diferenças internas a cada um desses grupos de atores. Além destes, podemos identificar uma série de actantes não humanos que também deixam rastros e efeitos nas ações (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.) de moradores de rua: alimentos, dinheiro, materiais recicláveis, chuva, animais de rua, roupas, colchões, árvores, marquises e muitos outros. Somam-se a eles as infraestruturas estabelecidas e em processo de estabilização que conformam, visível ou invisivelmente (Star, 1999STAR, Susan Leigh. The ethnography of infrastructure. American Behavorial Scientist. v. 43, n. 3, p. 377-391, 1999 <10.1177/00027649921955326>.
https://doi.org/10.1177/0002764992195532...
), as maneiras como muitos desses atores circulam no espaço da cidade.

Considero importante destacar essa profusão de atores com os quais moradores de rua se conectam porque eles, em larga medida, dizem respeito às próprias formas como essas pessoas constroem seus modos de habitar a rua. Em suma, trata-se de rastrear como o universo de relações estabelecidas nas ruas, em suas diferentes formas – seja por associação, conflito, utilidade ou outras formas de construir relação –, participa da produção desses sujeitos e é também por eles produzido. As próprias formas de nomeação da população de rua, concomitantemente à sua constituição como questão social, se constituem a partir de efeitos de diversos agentes, discursos e instituições (De Lucca, 2007DE LUCCA, Daniel. A rua em movimento: experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. São Paulo: USP, 2007. Dissertação de mestrado.).

Assim, viver na rua é também viver da rua (Magni, 2006MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006.), no sentido de que ela, enquanto espaço material e simbólico, apresenta conjuntos de possibilidades de sociabilidade, de obtenção de recursos e de manipulação de materiais (Magni, 2006MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006.). Portanto, se há a implicação de uma série de atores e processos sobre o morador de rua, este também é agente produtor de um modo de vida específico. A territorialização que pratica constitui-se enquanto modo próprio de ocupar o espaço público e construir nele tecnologias materiais de produção da vida cotidiana e “territórios temporários” (Kasper, 2006KASPER, Christian Pierre. Habitar a rua. Campinas: Unicamp, 2006. Tese de doutorado em Ciências Sociais., p. 125, 214).

Nesse sentido, mais atentos às relações associativas e menos às dimensões do conflito, alguns autores ajudam a compreender como laços são constituídos na rua, reconhecendo no morador de rua a capacidade de produzi-la enquanto lugar existencial e simbólico (Schuch e Gehlen, 2012SCHUCH, Patrice; GEHLEN, Ivaldo. A situação de rua para além de determinismos: explorações conceituais. In: Aline Dorneles; Júlia Obst; Marta Silva (orgs.). A rua em movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Belo Horizonte: Didática Editora do Brasil, 2012. p. 11-25.) e jogando sobre ele um olhar calcado na sua agência, e não na negatividade das rupturas e ausências. Boa parte desses trabalhos privilegia essa questão a partir das relações que moradores de rua constroem com seus pares. Magni (2006)MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006. aponta que mesmo as pessoas que mantém na rua uma vida mais solitária tendem “a agrupar-se por períodos de tempos variáveis – seja vinculando-se por laços de afinidade, seja por laços familiares” (Magni, 2006MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006., p. 62). Em sentido semelhante, Lemões (2013)LEMÕES, Tiago. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2013. mostra o estabelecimento entre moradores de rua de redes sociofamiliares calcadas na partilha de bens e solidariedade. Sobre a formação de grupos entre moradores de rua, Gregori (2000)GREGORI, Maria Filomena. Viração. Experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. mostra como as sociabilidades entre essas pessoas constroem redes de transmissão de saberes relativos a modos de habitar a rua. Marinho (2012)MARINHO, Camila Holanda. Afetos de rua: culturas juvenis e afetividades nos bastidores da cidade. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2012. Tese de doutorado em Sociologia. afere a dimensão sentimental dos vínculos entre jovens que moram na rua, apresentando trajetórias afetivas e sexuais; tomando o corpo como objeto analítico central, Frangella (2009)FRANGELLA, Simone. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo: Anablume, 2009. e Rodrigues (2005)RODRIGUES, Lídia Valesca. Vida nas ruas, corpos em percursos no cotidiano da cidade. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2005. Tese de doutorado em Sociologia. abordam questões concernentes a trajetos, territorializações e utilização de objetos. No que diz respeito às associações com outros agentes do espaço público, Lemões (2010)LEMÕES, Tiago. A rua como espaço de interação social: um estudo antropológico das relações entre população em situação de rua e grupos caritativos. Revista Antropolítica, n. 29, p. 131-149, 2010. explora a dimensão dos laços de solidariedade estabelecidos entre moradores de rua e grupos de caridade; Melo (2011)MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua. Curitiba: UFPR, 2011. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. e Lemões (2014)LEMÕES, Tiago. População em situação de rua e a linguagem dos direitos: reflexões sobre um campo de disputas políticas, definições de sentidos e práticas de intervenção. In: Anais da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, Natal, 2014. discutem as redes políticas formadas entre pessoas em situação de rua – destacando o Movimento Nacional da População de Rua – em sua interação com apoiadores e agentes e instituições do estado; De Lucca (2007)DE LUCCA, Daniel. A rua em movimento: experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. São Paulo: USP, 2007. Dissertação de mestrado. delineia historicamente essa complexa rede de agentes que produziram a questão social do morador de rua, elencando, entre eles, instituições religiosas, agentes do estado e o próprio Movimento.

Exposto isso, podemos ver que, entre os diversos atores que geram efeitos sobre a organização da vida da população de rua, existem duas dimensões de agência visíveis e amplamente debatidas ao estudarmos essa temática. Se o estudo da vida na rua revela uma série de condicionantes amplamente conhecidos relativos a processos de exclusão, invisibilização e redução das possibilidades de ascensão econômica e social (cf. Bursztyn, 2003BURSZTYN, Marcel (org.). No meio da rua. Nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.), existe também, como os trabalhos aqui citados mostram, uma perspectiva voltada à agência dos moradores de rua, evidenciando-os enquanto atores criativos que produzem relações, sentidos, materialidades – uma preocupação analítica conectada às tendências teóricas voltadas à questão da prática (Ortner, 2011ORTNER, Sherry. Teoria na antropologia desde os anos 60. Mana, v. 17, n. 2, p. 419-466, 2011 <0000-0002-9959-8561>.).

Em pesquisa etnográfica realizada entre dezembro de 2015 e outubro de 2016 em Fortaleza, Ceará – e que resultou em dissertação defendida no ano de 2017 (Holanda, 2017HOLANDA, Jorge Garcia de. O sistema da rua em ação: uma etnografia com moradores de rua em Fortaleza (CE). Porto Alegre: Ufrgs, 2017. Dissertação de mestrado em Antropologia Social.) –, entrevistei 18 pessoas em situação de rua. No âmbito desse artigo, trabalho com material etnográfico relativo às interlocuções que tive com Roberto,2 2 Nome fictício. um dos sujeitos da pesquisa. Interessa-me mostrar como essas duas dimensões de agência aparecem em narrativas trazidas por Roberto a partir dos conceitos nativos do sistema da rua e do se virar, desenhando na prática operações simultâneas de convencionalização e invenção (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.) no processo de habitar a rua. Analisando a narrativa individual a partir de suas potencialidades é possível observar a complexidade relacional entre as práticas e a reflexividade dos sujeitos. Como Biehl (2008, p. 423) aponta, “pesquisas etnográficas atentas a pessoas de carne e osso movimentam-se entre infraestruturas concretas e em tempo real, registrando as particularidades de cada situação”, de modo que a abordagem da singularidade da pessoa permite observar a subjetividade como aquilo que escapa aos campos sociais, “o que não pode ser fixado por uma norma ou numa forma” (Biehl, 2008, p. 422). Através da atenção às narrativas pessoais podemos estudar os modos como os atores constroem sua subjetividade a partir da influência de eventos passados sobre vivências cotidianas (Das, 2011DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, p. 9-41, 2011.). Assim, ao se partir de relatos individuais, encontram-se significados e repertórios contextuais derivados “do mundo da vida mais do que a partir de noções abstratas de semântica estrutural” (Das, 2011DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, p. 9-41, 2011., p. 19) que apontam para uma “cartografia de territórios existenciais reais e/ou em vias de existir” (Goldman, 2008GOLDMAN, Marcio. Os tambores do antropólogo: antropologia pós-social e etnografia. Ponto Urbe, v. 3, 2008 <10.4000/pontourbe.1750>.
https://doi.org/10.4000/pontourbe.1750...
, p. 2).

A seguir, apresento um breve relato sobre a chegada de Roberto à rua, destacando em seguida alguns de seus trajetos a fim de discutir como seu movimento pela cidade implica num crescimento de seu conhecimento sobre a rua. Depois disso, discuto como conhecimentos práticos sobre a rua são operacionalizados através das categorias nativas de sistema da rua e de se virar, indicando mais adiante, a partir das narrativas de Roberto sobre eventos de um dia específico de sua vida, como a dinâmica entre as dimensões de agência traduzidas por essas noções opera em suas ações e reflexões sobre a rua.

Roberto em movimento

Roberto tem 55 anos de idade e teve sua primeira experiência de morar na rua em meados dos anos 80. Nessa época, após viver durante a juventude com a mãe em Fortaleza, foi morar com uma irmã que havia migrado para o Rio de Janeiro. Depois de alguns meses, saiu de lá para São Paulo para trabalhar. Ao perder o emprego, foi para a rua. Após ser levado a uma instituição de assistência da prefeitura da cidade, esta lhe ofereceu duas opções: deveria escolher entre ser encaminhado para um novo trabalho ou retornar para sua cidade de origem. Roberto preferiu trabalhar, empregando-se por um mês numa oficina mecânica. Acabou voltando para a rua e, em seguida, mais uma vez para a instituição. Na segunda imposição àquelas mesmas duas opções, Roberto escolheu voltar para a casa da irmã no Rio de Janeiro, de quem receberia ajuda para voltar a Fortaleza. Retornou à casa da mãe, onde morou até o início dos anos 90, quando ela faleceu. Esse evento é narrado por ele como o fator decisivo para que retornasse à rua, onde permanece até hoje. Nessa época, já tinha filhos, com os quais hoje tem pouco contato. Roberto ainda vê a irmã que mora em Fortaleza visitando sua casa esporadicamente.

À época da realização da pesquisa de campo, o dia a dia de Roberto transcorria basicamente entre dois pontos da cidade: o centro de Fortaleza e a avenida Beira Mar, um dos principais pontos turísticos da cidade, situado no limite leste do centro. Nos fins de semana Roberto costuma ir à Beira Mar, onde um amigo que trabalha como cuidador de carro facilita sua inserção nesse disputado mercado, garantindo-lhe algum dinheiro. Além do retorno financeiro, Roberto diz escolher estar na Beira Mar nesses dias pelo movimento intenso de pessoas, que lhe permite ganho de dinheiro e outros bens com turistas e frequentadores da região, interação com outros moradores de rua que vão para lá também nos fins de semana e maiores estímulos para os momentos em que está sentado só em bancos de praça observando o ambiente ao redor – atividade que constitui boa parte do seu tempo diário. Entre segunda e sexta-feira seus trajetos se concentram no centro, dividindo seu tempo entre manhãs e tardes em praças (entre as que mais frequenta estão Passeio Público, praça do Ferreira e praça dos Leões) e noites na avenida Domingos Olímpio, no limite sul do centro. As alimentações diurnas são, em geral, conseguidas em restaurantes no centro; as noturnas, muitas vezes, com moradores de um prédio ao lado do ponto onde dorme.

Esse pequeno padrão de deslocamento, no entanto, não corresponde à totalidade de trajetos de seu cotidiano e nem é seguido à risca. Assim como acontece com tantos outros moradores de rua, a complexidade de trajetos escapa ao enquadramento em rotas fechadas. Muitos outros pontos da cidade, com as distâncias mais variadas, são somados aos seus trajetos, o que redesenha a organização espaço-temporal que apresentei anteriormente.3 3 As visitas à casa de sua irmã, situada a quase 5 km do centro, ou as idas a uma lagoa há mais de 13 km do centro, um dos lugares onde lava suas roupas, são alguns exemplos, cada um deles podendo ser associado, de um modo geral, a motivações diferentes (de ordem afetiva ou funcional). Além disso, os fluxos mais estabilizados no momento da pesquisa são formações dos últimos anos, pois outros bairros, praças, ruas, instituições (incluindo-se um período na prisão e em hospitais) e pontos da cidade já foram lugares recorrentes em seus trajetos e hoje por ele abandonados.

Podemos afirmar que os trajetos de Roberto se constituem em diferentes gradações de estabilização e de variação, articulando vários “modos de permanência” (Kasper, 2006KASPER, Christian Pierre. Habitar a rua. Campinas: Unicamp, 2006. Tese de doutorado em Ciências Sociais.). Se há para as populações de rua uma grande flexibilidade na noção de moradia – em contraste com o modelo do sedentarismo urbano – caracterizada pela transitoriedade e pela subversão das hierarquias entre público e privado (Magni, 2006MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006.), não deixam de existir tendências a padronizações, permanência e repetição. A perspectiva de Ingold (2015)INGOLD, Tim. Estar vivo. Petrópolis: Vozes, 2015. de que o processo de habitar corresponde a “estabelecer um caminho através do mundo” (Ingold, 2015INGOLD, Tim. Estar vivo. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 26) implicando num acoplamento entre ação e percepção que alinha movimento e formação de conhecimento ajuda a pensar a importância destacada por Roberto para suas andanças pela cidade.

Como afirma Roberto, uma das primeiras ações que se reaprende na rua é a de andar. Nos seus percursos, longas distâncias são atravessadas quase que diariamente, de modo que a própria definição do que é longe ou perto é muitas vezes deixada de lado em nome do próprio ato de caminhar. Além do aspecto de subversão dos códigos sedentários presente na mobilidade enquanto traço fundamental do modo de habitação de moradores de rua (Magni, 2006MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006.), é andando que se conhece a rua, e é no processo de conhecê-la que se aprende por onde andar. Isso implica numa relação com o ambiente na qual este produz interpelações constantes, de modo que percursos são marcados pelo entrecruzamento com diversos atores. Andando, Roberto encontra conhecidos seus; observa pessoas e é observado; escuta conversas; encontra objetos (revistas, papelões, peças de roupa); pratica o mangueio (categoria discutida mais adiante); localiza e escolhe lugares para sentar, descansar, dormir. Há um grau de abertura para os encontros que permite um mapeamento da cidade que não é calcado apenas nos espaços, mas no reconhecimento dos atores que cruzam esses espaços. Assim, aprender a andar na rua é aprender a conhecê-la e, ao mesmo tempo, construir um modo de existência.

O primeiro encontro que tive com Roberto ocorreu numa tarde na praça dos Leões. Sentado sozinho num banco observando o movimento na praça, foi solícito quando me aproximei dizendo que era pesquisador e que gostaria de sentar ao seu lado para conversar um pouco sobre a vida na rua. Durante a conversa, ele me perguntou se eu poderia lhe doar roupas e uma mochila, pois seus pertences haviam sido roubados. Combinamos um dia para lhe entregar esses objetos, e, daí em diante, passamos a nos encontrar quase semanalmente em praças do centro, onde conversávamos horas a fio. Em algum tempo, já havíamos criado uma relação de camaradagem, nos sentindo à vontade para compartilhar um com o outro nossas perspectivas e dilemas de vida. Eu também era um ator que reconfigurava seus trajetos pela cidade, assim como meus próprios trajetos eram modificados pela relação que criamos. Esse tipo de conversa informal, na qual meu lugar de pesquisador se via mesclado a outras motivações pessoais em estar com ele, acontecia também com outros interlocutores da pesquisa que estava realizando. No entanto, com Roberto, inversões do lugar de pesquisador ficavam ainda mais evidentes, na medida em que ele me apresentava uma visão mais sistemática e analítica de sua experiência na rua, ficando claro como também Roberto fazia uma antropologia da rua, e, concomitantemente, inventava uma cultura (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.). A seguir, apresento dois constructos teóricos presentes em suas falas, através dos quais é possível compreender seu modo de habitar a rua.

Sistema da rua e se virar

Na primeira vez em que conversamos, Roberto elaborou um longo relato dos reveses vividos na rua. Contou-me sobre disputas com outros moradores de rua, abusos policiais, problemas com instituições de apoio à população de rua, dificuldades nos períodos de chuva e várias outras adversidades envolvendo outros atores que atravessavam seu cotidiano. Ele terminou o relato dizendo: “o sistema da rua é complicado”. A frase continha um termo que era novo para mim até então, mas que se revelaria como expressão recorrente em suas falas e que surgiria também em conversas com outros interlocutores da pesquisa que eu realizava. Sistema da rua era um termo que se referia a um conjunto de experiências vividas na rua. Sua adjetivação enquanto algo complicado se encontrava no mesmo campo semântico de outras definições dessa categoria surgidas em campo: era difícil, pesado, cruel.

Ao se remeter ao sistema da rua, Roberto se refere a uma ampla gama de fatores que pesam contra a vida de moradores da rua na forma de processos de exclusão, privações, carências, violências e riscos. Trata-se, portanto, de uma definição negativa da experiência de viver na rua, que pode ser entendida em sua proximidade com a noção de “condição precária”, conceito que, tal como definido por Butler (2015)BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.,

designa a condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte. Essas populações estão mais expostas a doença, pobreza, fome, deslocamentos e violência sem nenhuma proteção (Butler, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015., p. 47).

Como a própria ideia de “sistema” indica, há nesse termo uma forma de codificação geral da experiência da rua. Nos usos feitos por Roberto, a ideia de sistema da rua corresponde ao modo geral de operação da vida na rua a partir da conjugação das agências de diversos atores e formador da singularidade da experiência de viver na rua. Em outras palavras, a lógica operada corresponde ao seguinte: quando se passa a viver na rua, é necessário que se submeta ao modo de organização da vida próprio da rua (há aqui, portanto, a noção de um processo de formação de sujeito), e ela é, por si mesma, limitadora, cruel e de grande exigência emocional e física; ela corresponde ao sistema da rua.

Na sequência dessa lógica, surge uma segunda categoria nativa, que é o se virar. A partir da constatação das privações, perigos e sofrimentos do sistema da rua, Roberto considera a necessidade de adaptação a esse sistema, e o caminho encontrado para isso é a aprendizagem de habilidades de se virar, ou seja, de construir caminhos criativos que o afastem da captura pelo sofrimento, possibilitando uma vida na rua não subsumida à experiência de uma negatividade. Em sua concepção, uma nova dimensão da vida na rua se apresenta, e nela a ação ganha um papel fundamental: aprender a se virar, nesse sentido, significa produzir-se como um novo sujeito, não limitado à ideia de passividade que Roberto atribui ao sujeito formado apenas pelo sistema da rua.

O tipo de relação aqui apontado entre se virar e sistema da rua pôde ser observado em outras narrativas de moradores de rua em Fortaleza na pesquisa que realizei. Além disso, a noção de se virar apresenta fortes paralelos com a categoria de viração, encontrada em campo por Gregori (2000)GREGORI, Maria Filomena. Viração. Experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. em sua etnografia com meninos de rua, designando a maleabilidade para obtenção de recursos na rua a partir de uma relação comunicacional com a cidade, através da qual são mobilizados personagens e outros recursos simbólicos que garantem sua sobrevivência e pautam sua relação com a cidade.4 4 Correlações com populações adultas de rua são destacadas por Frangella (2009) e Lemões (2013). Dialogando com a noção de viração a partir do contexto de seu campo, Lemões (2013)LEMÕES, Tiago. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2013. a sintetiza como “processo que abarca o conhecimento tácito de valores, comportamentos e condutas […] que concede uma habilidade maleável” (Lemões, 2013LEMÕES, Tiago. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2013., p. 238).

Os conhecimentos práticos atribuídos a saber se virar podem assumir formas diversas, indo dos conhecimentos mais gerais aos mais específicos: saber como e onde conseguir alimentos, roupas, água; saber cozinhar com os meios disponíveis; saber que materiais usar para montar um ponto de dormida; caminhar conhecendo os espaços e os atores encontrados nesses lugares; conseguir bicos; saber construir redes de relações através das quais se possa prover desde as necessidades básicas até a satisfação de prazeres etc. A forma paradigmática de se virar é a prática do mangueio, que corresponde a todo um conjunto de habilidades retóricas para obter recursos na rua (seja alimentos, dinheiro, bebidas, roupas, cigarros ou outros bens) através de negociação direta com outras pessoas. A prática é também encontrada em outros contextos de campo com moradores de rua sob o mesmo significante (Melo, 2011MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua. Curitiba: UFPR, 2011. Dissertação de mestrado em Antropologia Social.; Oliveira, 2012OLIVEIRA, Luciano Márcio Freitas de. Circulação e fixação. O dispositivo de gerenciamento dos moradores de rua em São Carlos e a emergência de uma população. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2012. Dissertação de mestrado em Sociologia.).

Para Roberto, a importância de saber se virar se destaca frente à valoração negativa dada por ele à noção de espera, ou seja, ao que entende como uma posição passiva, dependente da ajuda de outras pessoas e instituições e detectada por ele em outros moradores de rua. A ideia de ser ajudado ou dependente, para ele, não corresponde a todo tipo de relação em que um morador de rua obtém recursos de outras pessoas, mas apenas àquela que identifica como produzida em posição de passividade. Trazendo o exemplo da obtenção de alimentos, Roberto tem a perspectiva de que, deixando de se agir para conseguir comida, a condição da fome – que seria em sua perspectiva um dos aspectos do sistema da rua – só poderia cessar pela iniciativa de terceiros. Como explica, até tem gente que dê comida, sendo que elas não aparecem toda dia nem toda hora que bate a fome. Ele afirma que, se o morador de rua sabe se virar, não falta comida, tem sempre onde comer e dá pra comer bem; o acesso a uma rua cuja imagem é a da abundância alimentar, portanto, dá-se através da adaptação à política de busca ativa do alimento.

Portanto, na relação entre os dois termos aqui discutidos, se virar funciona como uma dimensão agentiva individual na qual conhecimentos práticos são utilizados para a criação de saídas do horizonte do sistema da rua – no qual um conjunto de agências limitadoras das possibilidades de ação individual operam para produzir um sujeito reduzido à condição precária. Complementarmente a isso, a habilidade de se virar, na visão de Roberto, corresponderia à própria capacidade de percepção do funcionamento do sistema da rua enquanto uma infraestrutura, tanto quanto o é a própria cidade, cabendo àquele que sabe se virar reverter a seu favor essa rede de “distribuição” de limitações na agência, identificada com a noção de sistema da rua.

Nesse contraste complementar entre sistema da rua e se virar, no qual o primeiro termo sugere um peso estrutural que impele à condição de perda e carência e o segundo se refere à rua a partir das possibilidades de agência do morador de rua em sua inventividade e ação, podemos encontrar uma relação semelhante àquela apontada por Wagner (2012)WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012. entre as noções de convenção e invenção: a de uma interdependência entre contextos mais convencionais, percebidos como “todos, coisas ou experiências em si mesmos” (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 112), e expressões distintivas e inovadoras a partir de associações complexas de elementos. Como aponta o autor, a imbricação desses dois processos acontece porque esses contextos convencionais fornecem uma “base relacional coletiva”, que, ao garantir a própria comunicação, permite que a invenção ocorra pela sua atualização numa “infinita variedade de expressões possíveis” (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 112). Aquilo que corresponde à convenção só é percebido como algo em “si mesmo”, absoluto, ou seja, pela “ilusão de que algumas associações de um elemento simbólico são ‘primárias’ e ‘autoevidentes’” (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 115), o que coloca a questão de que ela também pode ser relativizada; também a invenção está sujeita a convencionalizações, sendo recriada em associações de elementos simbólicos que passam a ser tomados como autoevidentes. Em outras palavras, Wagner (2012)WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012. demonstra que, na relação entre convenção e invenção, a convenção também diferencia e a diferenciação também convencionaliza ou contrainventa.

O sistema da rua, à luz dos apontamentos teóricos de Wagner (2012)WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012., pode ser compreendido como uma noção que evoca um processo de convenção, uma associação de elementos sobre a experiência de se viver na rua que é tomada como algo explicado por si mesmo, autoevidente ao modo de vida da rua. Ao mesmo tempo, ela diferencia, na medida em que a partir da diferença se constrói a particularidade para um coletivo de pessoas – o que remeteria à própria invenção da cultura. Nesse sentido, o sistema de rua é entendido como uma “base comum” aos moradores de rua, pensado como uma “normalidade”, uma “habitualidade” (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.), incitando à construção do morador de rua como sujeito – um sujeito que, cabe destacar novamente, está associado a um enfoque específico da vida na rua (de privação, sofrimento, violência). Enquanto isso, o se virar pode ser entendido como algo da ordem da invenção, da expressão, associado ao campo da ação, como “realização espontânea e criativa” (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p. 110); no ato de se virar, fabrica-se o não convencional. E, é importante destacar, o não convencional contrainventa, na medida em que também assume formas convencionalizadas ao tornar a expressão do se virar uma nova forma de produção de subjetividade. Assim, sistema da rua e se virar são conceitos práticos que atuam mutuamente, de modo combinado; na prática, essas dimensões imbricam-se e invadem-se.

A seguir, apresento uma descrição de situações vividas em um dia na vida de Roberto e por ele narradas. Elas giram em torno de um evento de violência entre moradores de rua por ele presenciado e permitem discutir como as noções de sistema da rua e de se virar são operacionalizadas na prática.

Vivendo o sistema da rua, sabendo se virar: um dia na vida de Roberto

Numa manhã de segunda-feira, Roberto chegava ao centro de Fortaleza, vindo caminhando da avenida Beira Mar. Havia passado o fim de semana lá, como era de costume. Depois de parar por algumas horas num banco de praça, voltou a andar a fim de conseguir comida para almoçar. Para isso, mangueou uma marmita num restaurante – poderia ter obtido comida num outro estabelecimento no qual já mangueava com frequência e cujo dono já conhecia, mas resolveu buscar almoço num lugar novo, movido pelo desejo de experimentar outra cozinha. Bem sucedido no mangueio, levou a marmita até um banco do Passeio Público, comeu e deitou para cochilar.

Acordando no fim da tarde, Roberto encontrou no banco ao lado Zé,5 5 Nome fictício. morador de rua que o conhecia, bebendo cachaça discretamente numa garrafa plástica. Ele lhe ofereceu a bebida com o cuidado de não ser notado consumindo álcool. Como explica Roberto, sempre há policiais militares no Passeio Público e é comum que, ao verem moradores de rua bebendo, os obriguem a derramar o líquido no chão. Assim, expunham a garrafa apenas no momento do gole; de resto, mantinham-na guardada no bolso. Depois de algum tempo de conversa, quando já começava a escurecer e a cachaça de Zé acabava, caminharam juntos até a praça do Ferreira. Dali, se Roberto seguisse caminho por mais dez quarteirões, chegaria até o ponto onde costumava dormir, na avenida Domingos Olímpio. No entanto, desejava beber mais, e esperava fazê-lo encontrando outros amigos no centro com bebida, pois não queria manguear naquele momento e não tinha dinheiro para comprar cachaça. Como relata, sua decisão de permanecer ali se baseou não só em desejar mais cachaça, mas em outros dois fatores: como tinha comido muito no almoço, ainda sentia seu corpo pesado, estando indisposto para andar; além disso, se ficasse tomando cachaça, já “enganaria a fome” e não precisaria jantar. Foi até a praça dos Leões, logradouro próximo àquele no qual se encontrava, deparando-se ali com outros moradores de rua conhecidos seus. Eles lhe ofereceram cachaça e Roberto passou a noite ali. Como estavam num trecho mais ermo da praça, longe do movimento comercial e dos transeuntes, e como naquele dia não havia policiais por ali, sentiam-se à vontade, sem precisarem se preocupar em ter a cachaça confiscada ou em serem expulsos da praça.

Até aqui, algumas práticas que remetem às habilidades de se virar podem ser destacadas. A obtenção do almoço através do mangueio, como mencionada anteriormente, é a primeira dessas ações. Nesse caso, no entanto, é possível notar como a realização do mangueio não é movida pela simples subsistência, mas pode se adequar também a outros desejos. Assim, se a prática, por si só, se baseia numa negociação na qual reside o risco de não se obter aquilo que se pede, Roberto sente-se confortável para arriscar a negociação em outros estabelecimentos, expandindo suas redes de mangueio. Na praça, o tipo de cuidado que ele e Zé exibiam ao beber a cachaça era uma técnica desenvolvida pelo conhecimento experiencial da repressão policial característica do funcionamento do sistema da rua. Ao mesmo tempo, o uso da cachaça durante a noite para “enganar a fome” é outro modo de lidar com a ausência de comida – ausência essa que, nesse caso, Roberto não entende como ocorrendo por uma restrição externa, mas por decisão individual de naquela noite não manguear. É, no entanto, interessante notar como, ao basear o desejo pela bebida na possibilidade de outras pessoas lhe oferecerem cachaça, explicita-se um vazamento na sua construção de sujeito que busca ativamente a obtenção do que quer; ao mesmo tempo, isso não deixa de corresponder também a uma forma de ativar uma rede de relações através da qual obtém aquilo que deseja.

Voltando ao relato da noite de Roberto, já era madrugada quando os amigos com quem bebia se dispersaram. Roberto resolveu permanecer na praça dos Leões e ali dormir. Esse era um logradouro do centro no qual costumava pernoitar apenas quando bebia com outros moradores de rua. Não iria para a avenida Domingo Olímpio porque não queria caminhar bêbado. E preferia dormir nessa praça ao invés da praça do Ferreira, próxima a ela, um dos principais pontos de concentração de moradores de rua à noite na cidade, pois, ao descrevê-la a partir da ótica dos conflitos violentos entre alguns dos moradores de rua que dormem ali, associava-a a aspectos do sistema da rua.

Na praça dos Leões, naquela noite, havia apenas Roberto e outros três moradores de rua. Eles dormiam próximos uns aos outros. Por volta das 4 horas da manhã, Roberto acordou com o som de algumas vozes cortando o silêncio da praça. Ainda deitado, sem mexer o corpo, observou que cerca de seis moradores de rua se aproximaram do lugar onde ele e os colegas estavam deitados. Roberto conta que sentiu medo quando notou que alguns desses homens carregavam barras de ferro. Eles chegaram perto do amigo que estava ao seu lado ainda dormindo. Roberto ouviu um deles dizer: É esse aí, esse aí já levantou faca pra a gente umas três vezes. Nesse momento, começaram a espancar o homem com as barras, socos e chutes. Bateram nele até morrer e foram embora da praça em seguida.

Ao amanhecer, apareceram policiais e repórteres de jornais e de programas policiais de televisão. Todos bombardearam Roberto com questões sobre a morte do amigo, e para todos ele tinha uma única resposta: não vi nada, tava dormindo. Roberto entende que, se disser que viu alguma coisa, pode perder a vida: Não pode se meter nisso não, se não o próximo a morrer é quem testemunhou; esse código punitivo fazia parte do sistema da rua. Os policiais e repórteres não aceitam a resposta de Roberto e lhe perguntam: Como pode uma pessoa estar dormindo do lado de uma pessoa que morre espancada e não ver nada? É impossível. Numa situação como essa, Roberto explica, é necessário se virar: ele sabe que é absurda a afirmação de que não viu nada, mas essa negação é a estratégia que encontra para não se comprometer e não ter a vida ameaçada.

Antes da chegada de policiais e repórteres, Roberto já adotava a postura de quem nada viu. No momento em que o amigo era cercado e assassinado, manteve-se na mesma posição em que estava, de olhos fechados, fingindo dormir e não notar nada do que se passava ali. Ele sabia que era claro para aqueles moradores de rua que ele estava ciente de que o amigo estava sendo morto. No entanto, manter o corpo estático, não olhar e simular dormir eram formas de comunicar algo para os agressores. Silenciosamente, apenas corporalmente, Roberto havia encontrado um meio de lhes dizer que não queria se envolver no que estava acontecendo e que não iria intervir.

Pela manhã, Roberto caminhou até o Passeio Público para recuperar a noite mal dormida. Estava em choque pelo ocorrido, estarrecido com a cena do amigo morto, sangrando e com o crânio esmagado. Nesse dia, à tarde, encontrei-o, e minha presença acabou sendo-lhe oportuna. Afinal, havia uma dissociação entre o que Roberto estava sentindo e o tipo de postura que se via precisando adotar, de modo que eu era a única pessoa com quem ele sentia que podia conversar naquele momento, dadas as diferenças entre nossos universos de relações: com as outras pessoas que viviam o sistema da rua, falar sobre isso poderia gerar consequências graves para ele. Naquele momento, a estratégia de negar para os pares da rua o assassinato era o que o salvava de não ser consumido pelo sistema da rua; era, portanto, a habilidade de se virar sendo posta em prática. No entanto, isso era sentido por ele como um fardo do sistema da rua, pois significava sua capitulação num jogo de silenciamentos, pondo-o num lugar ambíguo entre ser testemunha de atos de violência e precisar construir a imagem de não testemunha. A possibilidade do diálogo no tipo de relação que tínhamos era, portanto, naquele momento, uma via através da qual criava um escape para aquela situação.

Roberto já havia me falado de situações semelhantes de violência e perigo ocorridas na praça dos Leões, ainda que aquela fosse a primeira vez em que estivesse presente. Após o ocorrido naquele dia, Roberto me diz que, definitivamente, irá retirar essa praça de seus trajetos e não dormirá mais ali. A mudança em seus caminhos, mais uma vez, era uma estratégia para lidar com os riscos de captura do sistema da rua. No entanto, ainda que buscasse se afastar desse lugar, Roberto continuava sendo associado àquele evento: nos dias subsequentes à sua aparição em programas policiais, encontrava amigos moradores de rua, vendedores ambulantes e donos de estabelecimentos comerciais que celebravam o fato de tê-lo reconhecido na televisão. Roberto me contava que se divertia com isso. Passadas mais algumas semanas, já havia reincorporado a praça dos Leões aos seus trajetos nas manhãs e voltado a dormir lá nos dias em que bebia com os amigos. A experiência do choque daquele evento havia se transformado numa memória que compunha suas narrativas sobre a rua, integrada a um conjunto de outros acontecimentos, convencionalizada nas suas descrições sobre o sistema da rua.

Considerações finais

A partir da aproximação analítica de categorias nativas operacionalizadas por uma pessoa em situação de rua busquei discutir como seus movimentos pela cidade são executados em consonância com conhecimentos práticos, conhecimentos estes que se desenvolvem através do próprio movimento e criadores de novos trajetos pela cidade. Através de relatos de Roberto ligados a um evento de violência vivido na rua foi possível desenhar a dinâmica entre seus movimentos e trajetos, entre ações ao lidar com problemas práticos e a reflexividade acerca do que considera formas desejáveis de habitar a rua. Através da análise das concepções de Roberto sobre sua vida na rua, esta é apresentada não como simples espaço no qual mora, mas como modo de vida, narrada a partir de experiências, valores, localizações e conjuntos de atores. Portanto, ao falar da rua, Roberto está falando da própria condição de viver na e da rua (Magni, 2006MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua em Porto Alegre. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006.) e da busca pela criação de um modo particular de experienciá-la.

Em suas concepções acerca da vida na rua, Roberto apresenta, através das categorias de sistema da rua e de se virar, definições acerca de modos distintos de habitar a rua e, consequentemente, de diferentes formas de produção de subjetividade. O sistema da rua, como referencial geral utilizado para se referir ao modo de vida da rua, como vimos, sustenta uma noção que se pretende totalizadora, uma codificação geral e convencionalizada das experiências de se viver na rua, mas que, ao mesmo tempo, está focada numa dimensão específica da vida na rua – a saber, aquela das limitações, privações e violências e numa noção de sujeito passivo, modificado “impassivelmente” pelas agências de outros atores e processos “externos”. A habilidade de se virar, enquanto isso, destaca-se como expertise necessária para se viver no sistema da rua sem que se seja capturado por ele, e é através dessa noção que se sustenta a concepção de um outro sujeito, calcado na imagem da ação individual criativa produtora de novas práticas e sentidos no processo de habitar a rua. Assim, o sistema da rua é entendido como contexto simbólico que pode corresponder a inúmeros e variáveis elementos que têm em comum um aspecto de negatividade, de imposição da falta. Contra essa noção – mas em constante diálogo como ela –, Roberto busca construir outro modo de habitar a rua, com uma ética e práticas que recriem sua vida na rua. É um modo de habitar onde o se virar, como habilidade criativa, improvisadora, “que resolve as coisas conforme se processa” (Ingold, 2015INGOLD, Tim. Estar vivo. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 35), tem o papel de trazer a agência individual enquanto produtora de novas práticas, sentidos e valores. Escapar ao sistema da rua, para Roberto, significa não ser capturado por uma espécie de “força totalizadora” – aqui, um paralelo pode ser traçado com o pensamento guarani contra o Um, tal como apontado por Clastres (2012)CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. São Paulo: Cosac Naify, 2012., no qual este termo está associado a uma “genealogia da desgraça”, signo da Imperfeição, “ancoragem da morte”, e contra o qual se organiza politicamente outro modo de vida; em termos mais gerais, trata-se de um processo micropolítico de contra-estado (Goldman, 2011GOLDMAN, Marcio. Pierre Clastres ou uma antropologia contra o estado. Revista de Antropologia, v. 54, n. 2, p. 577-599, 2011 <10.11606/2179-0892.ra.2011. 39640>.
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
).

No entanto, a divisão desses conceitos trazida por Roberto revela-se, através da prática, não como mutuamente excludente: há entre eles uma dinâmica de “dialética sem síntese” (Wagner, 2012WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.) através da qual o modo como Roberto habita a rua acessa essas duas dimensões em sua imbricação, em lugares onde suas fronteiras perdem a nitidez e onde se invertem e se invadem, na medida em que a experiência excede tais divisões categóricas, tornando-as negociáveis a partir de cada situação vivida.

  • 1
    Esta pesquisa contou com financiamento do CNPq.
  • 2
    Nome fictício.
  • 3
    As visitas à casa de sua irmã, situada a quase 5 km do centro, ou as idas a uma lagoa há mais de 13 km do centro, um dos lugares onde lava suas roupas, são alguns exemplos, cada um deles podendo ser associado, de um modo geral, a motivações diferentes (de ordem afetiva ou funcional).
  • 4
    Correlações com populações adultas de rua são destacadas por Frangella (2009)FRANGELLA, Simone. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo: Anablume, 2009. e Lemões (2013)LEMÕES, Tiago. A família, a rua e os afetos: uma etnografia da construção de vínculos entre homens e mulheres em situação de rua. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2013..
  • 5
    Nome fictício.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2018
  • Aceito
    03 Nov 2018
  • Publicado
    01 Mar 2019
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