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Crítica pós-colonial: Panorama de leituras contemporâneas

Postcolonial critique: A panorama of contemporary readings

ALMEIDA, Júlia; MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. GOMES, Heloisa Toller (orgs.).Crítica pós-colonial. : panorama de leituras contemporâneas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013

Crítica pós-colonial: os muitos sentidos da província

Os dezenove artigos reunidos por Júlia Almeida (linguística), Adelia Miglievich-Ribeiro (sociologia) e Heloísa Toller Gomes (literatura), são uma mostra singular da produção que se encontra hoje disponível em língua portuguesa sobre os estudos pós-coloniais. Como um tema recorrente no imaginário social brasileiro, ver a colônia desde a província, revela imagens instigantes de nós mesmos. Acostumados a imaginar e desejar a colônia, nos vemos, nesta coletânea, às voltas com a sua crítica contundente. A coletânea busca, em muitos momentos autocríticos, desconstruir esta imagem encravada nas mentes, corações e canetas deste lugar despossuído que é o do colonizado e denunciar os inúmeros lugares de reificação desta condição hierárquica de poder.

A coletânea foi dividida em quatro seções com a intenção de tornar inteligível as estratégias que estão na base da crítica pós-colonial, especialmente, busca situar a produção em língua portuguesa. Assim é que na primeira parte da coletânea buscam-se as “ancoragens e as especificidades” do texto pós-colonial brasileiro, embora extrapole este recorte geográfico que está mais interessado nos fluxos, apropriações e tensionamentos das categorias consolidadas da Crítica. A segunda parte da coletânea volta os olhares para as inscrições que a “África” ganhou em diferentes contextos da “fricção” da descolonização. Se a empreitada da primeira parte se dedicou a traçar alguns caminhos para descolonizar o Brasil, trata-se agora de entender como o pensamento social brasileiro foi/é também coautor na versão colonial do que seria a África, sugerindo margens, negociações e agências. Nisso, a terceira parte pode ser melhor lida se adotarmos a postura crítica sobre a institucionalidade do fazer colonial acadêmico, o que nos levará diretamente à reflexão sobre a crítica à colonização epistemológica de que somos herdeira(o)s quando pensamos, escrevemos e ensinamos. Exemplo do esforço constante desta tarefa pode ser acompanhado na quarta e última seção que se dedica a explicitar os modos de fazer dos movimentos sociais e as relações constitutivas de suas diferenças, não como barreiras intransponíveis, mas como possibilidades reais de inteligibilidade.

Por meio desta coletânea é possível acompanhar como pesquisadores brasileiros buscam se posicionar frente à crítica epistêmica pós-colonial que se faz no eixo sul-sul, mas também outros intelectuais fora de suas províncias a olhar a província alheia. Fruto de encontros realizados pela rede de pesquisadores com pesquisas de notória inserção no campo acadêmico, o livro traz, sob a ótica de uma complexa gama de temas e abordagens, uma reflexão sobre os diversos sentidos do pós-colonial.

Tema central da coletânea, a vasta paisagem colonial, de tantas formas de subordinação, é o cenário de vozes que buscam os inúmeros tons e nuances com os quais foram erguidas diferenças e desequilíbrios nas formas de conhecimento e poder. Não são os subalternos a falar, nem seus porta-vozes, ainda que vários autores tenham em suas experiências, como mulheres, africanos, afro-brasileiros, traços que os movam em direção à fala consubstanciada na escrita. Talvez como intelectuais públicos ou engajados à maneira de Edward Said, ainda que não o façam explicitamente, sua produção pode ser acompanhada na coletânea como uma modalidade de escrita do Outro, mediante a denúncia das condições de sua existência. O intelectual é parte do saber colonial, não somente porque é subalterno, negro, mulher e dos países periféricos, mas porque sua escrita carrega as marcas de produção da colonialidade da qual é preciso se despir.

A denúncia parece ser o índice mais evidente da existência desse campo social marcado pelo engajamento intelectual. A arte, a política profissional e as ciências humanas, por exemplo, tem este tema como estratégia de reprodução, cuja tarefa é denunciar os oponentes mediante a evidenciação de novos caminhos teóricos/epistemológicos. Trata-se da afirmação sobre a razão de ser do interesse da ciência para erguer novas condições de possibilidade e saberes disciplinares.

Denunciam-se projetos intelectuais institucionalizados, mas também os artefatos destas disciplinas de maneira que sujeito, tempo e lugar emergem como centrais no projeto denunciativo. Quem fala, como fala, de onde fala e em que tempo/espaço sua fala é situada configuram temas centrais na crítica póscolonial tratadas no livro. O projeto do sujeito soberano, além de suas possibilidades e contingências, é altamente questionado, bem como aqueles instrumentos teóricos e analíticos que o situaram em um universalismo sem história.

O que os estudos pós-coloniais denunciam? O “desassossego” dos exilados fora do lugar de um Edward Said? Colocar-se “fora” do lugar é, talvez, o exercício primeiro. O olhar dos estudos pós-coloniais se volta para o passado como construção social – porque é preciso não apenas desconstruir as teorias que fizeram emergir a modernidade, mas também descobrir as vozes dissidentes que não foram ouvidas nas formulações sobre outras perspectivas sociais. O compromisso pós-colonial também é com o presente –, porque é preciso desconstruir as práticas cotidianas que preenchem as lacunas institucionais e cotidianas, mas também morais com sua dose de violência epistêmica. Ademais, o futuro também é objeto da crítica pós-colonial – porque é sobre ele que se projetam todas as ficções da modernidade, os desejos coloniais feitos teoria, ciência e estado.

Primeiro é preciso dizer algo sobre a formação dos estudiosos, para depois descrever suas posições, interesses e obras. Se o lugar precisa ser reconstruído é preciso entender que lugar é este. E aqui aplico também os instrumentos de conhecimento dos estudos pós-coloniais, ou seja, demarcar uma posição segundo a qual nenhum conhecimento é fortuito, mas o resultado de relações, tensão de poder, embora tantas vezes esquecido/naturalizado como sublinha o artigo do professor Macamo.

Em segundo lugar, é necessário considerar que a denúncia e a acusação não são produzidas apenas em relação a um sujeito, mas a objetos que ocupavam zonas cinzentas não tão evidenciadas em seu discurso subjacentes às teorias, documentos públicos, e até mesmo em inocentes editais públicos. Tal formulação denuncia as relações de poder/saber nelas inscritas, mas também sugere uma intersubjetividade necessária à sua existência e que promete sempre girar em torno deste tripé. A crítica pós-colonial remete-se a uma voz que foi ou é silenciada, a uma visibilidade que se impôs sobre invisibilidades, ou seja, trata-se sempre de seres incompletos reconstituídos, recolocados e situados de forma arbitrária, sejam eles as sociedades indígenas, as mulheres ou a teoria bem protegida dos intelectuais.

Tais atos não se restringem a uma área de conhecimento, mas mostram-se relacionados a espaços amplos e transversais pois denotam formas de governo e produção de desejos e subjetividades. Os múltiplos espaços realinhados pela crítica pós-colonial refazem percursos históricos e opções intelectuais transformando-se em uma crítica incessante, de maneira que a busca pela enunciação da posição intersubjetiva passa a ser central em tais pesquisas, o que nos deixa menos preocupados com a superfície das respostas do que com a profundidade das perguntas.

O amplo panorama oferecido pela coletânea dá a dimensão de quão vasto são os campos de investigação, reflexão e mediação intitulados pós-coloniais. Ao ler os capítulos teremos também a dimensão radical do que deve ser o projeto de um pensamento pós-colonial. O texto é um convite não apenas aos especialistas de cada área acadêmica, mas também ao público em geral que quer se situar nas transformações provocadas por este fenômeno multifacetado definido como o “pós-colonial”. Os trabalhos apresentados oferecem caminhos para redimensionar a emancipação humana sob a ótica da arte, da estética, dos direitos humanos e das formas de sociabilidade, sem perder de vista a crítica às condições sociais de produção dos discursos acadêmicos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2015
  • Aceito
    15 Out 2015
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