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Correndo para não perder nada: temporalidade ansiosa e a frustração do (i)limitado

Running to miss nothing: anxious temporality and the frustration of the (un)limited

Corriendo para no perderse nada: temporalidad ansiosa y la frustración de lo (i)limitado

Resumo:

Este artigo analisa alguns fenômenos que fazem parte dos processos de “digitalização da vida” e são sintomáticos de mudanças nos modos de vivenciar a temporalidade. Entre eles, o hábito de maratonar produtos audiovisuais em plataformas de streaming; o uso de programas que permitem acelerar o consumo de vídeos e áudios; e a oferta de “conteúdos desacelerados” para recalibrar o bem-estar de forma eficaz e produtiva. Em todas essas práticas detecta-se certa ansiedade nos modos de lidar com o tempo, decorrente do conflito entre o estímulo para consumir ilimitadamente e a frustração pela persistência das limitações, sobretudo temporais. Trata-se de uma reflexão ensaística com base na perspectiva genealógica, que se debruça sobre um conjunto de reportagens midiáticas dedicadas ao assunto em foco, buscando identificar – nesses indícios – certas transformações nos regimes de saber e poder, na passagem da era moderna para a contemporânea.

Palavras-chave:
Aceleração; Speed watching ; Subjetividade

Abstract:

This article analyzes some phenomena that are part of the processes of “digitalization of life” and are symptomatic of changes in the ways of experiencing temporality. Among them, the habit of binge-watching audiovisual products on streaming platforms; the use of programs that speed up the consumption of videos and audios; and the offer of “slow content” to recalibrate one's wellbeing in an efficient and productive way. In all these practices, a certain anxiety is detected in the ways of dealing with time, resulting from the conflict between the stimulus to consume unlimitedly and the frustration due to the persistence of limitations, especially in time. This is an essayistic analysis based on the genealogical perspective, which analyzes a set of media articles dedicated to the subject matter in focus, seeking to identify – in these traces – changes in the regimes of knowledge and power in the transition from modern to contemporary era.

Keywords:
Acceleration; Speed watching; Subjectivity

Resumen:

Este artículo analiza algunos fenómenos que forman parte de los procesos de “digitalización de la vida” y son sintomáticos de cambios en las formas de vivir la temporalidad. Entre ellos, la costumbre de hacer maratones de productos audiovisuales en plataformas de streaming; el uso de programas que aceleran el consumo de videos y audios; y la oferta de “contenidos desaceleradores” para recalibrar el bienestar de forma eficaz y productiva. En todas estas prácticas se detecta cierta ansiedad en las formas de afrontar el tiempo, resultante del conflicto entre el estímulo para consumir ilimitadamente y la frustración por la persistencia de limitaciones, sobre todo temporales. Se trata de un análisis ensayístico basado en la perspectiva genealógica, que se centra en notas mediáticas dedicadas al tema en foco, buscando identificar – en esos indicios – ciertos cambios en los regímenes de saber y poder, pasando de la era moderna a la contemporánea.

Palabras clave:
Aceleración; Speed watching ; Subjetividad

Introdução

“Quando você assiste a algo na Netflix e vai ficando viciado, permanece acordado até tarde”, declarou Reed Hastings, cofundador e então diretor dessa exitosa empresa estadunidense que, desde 2011, dedica-se a fornecer filmes e séries através do serviço de streaming. Quando seus clientes – que, em meados de 2020, já eram 182 milhões em 190 países –2 2 Wakka, Wagner. Netflix: Brasil é 3º maior mercado e 2º em número de assinantes. Canaltech, 16 jul. 2020. Acessado 10 jan. 2021. https://canaltech.com.br/resultados-financeiros/netflix-brasil-e-3o-maior-mercado-e-2o-em-numero-de-assinantes-166515. protagonizam essa situação que se tornou tão habitual na última década, a principal concorrência da companhia não seria nenhuma das outras plataformas nem emissoras, mas o sono dos espectadores. Chega um momento em que o cansaço psicofísico se impõe e, então, a necessidade de dormir acaba vencendo a inércia de continuar consumindo esses produtos audiovisuais virtualmente ilimitados.

O sono do consumidor seria, portanto, um obstáculo enfadonho que atrapalha a continuidade do fluxo: quando essa fraqueza biológica do corpo humano se manifesta, o assinante desiste de continuar maratonando. “No limite, nós estamos competindo contra o sono”, concluiu o executivo da firma, de acordo com uma reportagem publicada no jornal The Guardian em 2017, acrescentando a sua inquietante expectativa sobre um nicho gigantesco que ainda poderia ser explorado, caso fosse possível vencer essa atávica necessidade de fechar os olhos para repousar: “há uma enorme reserva de tempo aí”.3 3 Hern, Alex. Netflix's biggest competitor? Sleep. The Guardian, 18 abr. 2017. Acessado 10 jan. 2021. https://www.theguardian.com/technology/2017/apr/18/netflix-competitor-sleep-uber-facebook.

Todos os minutos que os consumidores passam acordados se tornaram, de fato, um recurso valioso que o mercado deseja conquistar. São tantas as tentações disponíveis, várias delas oferecidas mais ou menos gratuitamente a um só clique (ou a um mero scroll) de distância nas telas dos artefatos digitais a que vivemos atrelados, que o tempo nunca é suficiente. “Não importa que planos façamos para nos organizarmos melhor”, observava o escritor catalão Francesc Miralles em um texto publicado no jornal El País em 2020. “No final do dia sentimos que nos falta tempo para tudo”, constatava em seguida, para depois alinhavar uma série de reflexões tentando responder à grande questão que, assim enunciada, parece refletir um verdadeiro mal de época: “Por que nunca tenho tempo?”.4 4 Miralles, Francesc. Por que nunca tenho tempo?. El País, 17 ago. 2020. Acessado 7 jan. 2021. https://brasil.elpais.com/brasil/2020/08/17/eps/1597678357_478707.html.

Este artigo se propõe um objetivo similar: indagar sobre a peculiar temporalidade implícita nos processos de “digitalização da vida” que temos atravessado nos últimos anos, com o uso crescente de dispositivos de comunicação e de informação que operam em rede e oferecem amplíssimos cardápios para o consumo online, disponíveis a todo momento e em qualquer lugar. Nessas condições, não é fácil sossegar a impressão de que estamos perdendo algo (ou muito!), sobretudo nos cada vez mais raros períodos em que permanecemos desconectados. Mas essa aflição não se detém quando estamos online, algo que acontece cada vez com maior frequência, mesmo que seja de modo intermitente e dispersivo. Tal dilema já tem um nome: FoMO, fear of missing out,5 5 Giantomaso, Isabela. “O que é FoMO? ‘Fear of missing out’ revela o medo de ficar por fora nas redes sociais”. Techtudo, 27 maio. 2017. Acessado 7 jan. 2021. https://www.techtudo.com.br/noticias/2017/05/o-que-e-fomo-fear-of-missing-out-revela-o-medo-de-ficar-por-fora-nas-redes-sociais.ghtml o medo de se perder alguma coisa, que acaba potencializando a compulsão por se conectar para tentar não perder nada – sem sucesso, obviamente.

Da aceleração moderna à contemporânea

Embora a “compressão do tempo-espaço” (Harvey 1993Harvey, David. 1993. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola.) seja um tópico que tem acompanhado a modernização do mundo desde, pelo menos, meados do século 19, são vários os sintomas que sugerem mudanças qualitativas – e não meros avanços quantitativos – nos modos de vivenciar a temporalidade em nossa cultura. Parece óbvio o vínculo dessa problemática com algo ocorrido nas últimas décadas: a nossa “compatibilização” com os aparelhos móveis e sempre conectados às redes informáticas, que desconhecem (ou desafiam) todo limite espacial e temporal. Há, porém, outros fatores em jogo que convém examinar. As tecnologias estão inseridas em um regime histórico que as produz e dissemina, mas também as excede, no qual convergem aspectos econômicos, políticos, sociais, culturais e morais. De acordo com a visão genealógica das formações sócio-históricas, trata-se de “regimes de poder e saber” (Foucault 1979Foucault, Michel. 1979. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.), cuja dinâmica é possível cartografar e contrastar com aqueles vigentes em outras épocas.

Levando em consideração esse panorama e recorrendo a essa perspectiva teórico-metodológica, exploraremos alguns dos novos hábitos que sugerem alterações nas formas de vivenciar a temporalidade. Entre eles, destacamos o costume de maratonar produtos audiovisuais em plataformas de streaming; o uso de programas que permitem acelerar vídeos e áudios; e a oferta de “conteúdos desacelerados” conhecidos como slow content, que prometem reestabelecer o bem-estar e a capacidade produtiva. Esses fenômenos serão analisados através de um conjunto de reportagens midiáticas que os noticiam, todas bastante recentes, configurando não apenas um campo de captação de sintomas como também um vetor para o seu assentamento. Com sua própria eficácia pedagógica, a mídia contribui tanto para nomear e dar sentido às novidades, como para convertê-las em “verdades” socialmente compartilhadas.

Em todas as práticas aqui enfocadas – cada uma com suas peculiaridades – é possível detectar certa ansiedade nos modos de lidar com o tempo que seria própria da cultura contemporânea. Essa inquietação decorre de um conflito inédito entre o estímulo para consumir ilimitadamente seja lá o que for, por um lado, e a frustração que implica constatar a persistência de certas limitações que constantemente desmentem tal promessa. De acordo com a nossa hipótese, trata-se de um importante deslocamento com relação às vivências modernas, que salientavam a tensão provocada pela existência de limites impostos aos indivíduos em nome de entidades transcendentes como o bem comum, a civilização, as instituições ou a própria natureza, com os quais era necessário compactuar recorrendo à repressão, ao sacrifício ou à sublimação.

No regime que vem se configurando nas últimas décadas, “tendo se flexibilizado a obediência tácita às normas e às hierarquias, bem como o respeito e o temor à autoridade internalizada no cerne da própria subjetividade” (Jorge e Sibilia 2019Jorge, Marianna Ferreira e Paula Sibilia. 2019. The online ‘addiction’ as a malaise of the 21st century: from repression by the law to ‘free’ unlimited stimulation. The International Journal of Psychoanalysis 100 (6): 1422-1438. https://doi.org/10.1080/00207578.2019.1702882.
https://doi.org/10.1080/00207578.2019.17...
, 1428), afloram frustrações inéditas. Essas não decorrem, nem exclusiva nem prioritariamente, da velha necessidade de se reprimir nem da insidiosa internalização da culpa. Ao contrário do que costumava ocorrer na era moderna, portanto, o mal-estar associado à experiência temporal que constitui o objeto deste artigo não é fruto das rígidas limitações plasmadas em regras e leis válidas para toda a população. Estaríamos nos distanciando, assim, desse drama diagnosticado por autores fundamentais que germinaram naquele fértil terreno: desde Friedrich Nietzsche com sua Genealogia da moral (1887) até Sigmund Freud com O mal-estar na civilização (1930), passando por vários outros clássicos como Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904) e Michel Foucault em Vigiar e punir (1975).

Embora boa parte dessa fina cartografia continue válida, em certa medida, hoje notamos que alguns aspectos desses mecanismos não funcionam como antes, mas têm se reconfigurado como fruto das transformações históricas decantadas nos últimos anos. Já na terceira década do século 21, uma inesperada fonte de sofrimentos remete a algo que parece não só alheio, mas até oposto àquele pathos opressivo que fustigou nossos antepassados imediatos: os protagonistas da febril e circunspecta era industrial. De modo tão perturbador como imprevisto, a ansiedade aqui enfocada costuma derivar daquilo que se assume como uma libertação do ideal normalizador e opressor vigente na sociedade oitocentista que estamos deixando para trás. O problema, nesses casos, não surge da excessiva severidade dos limites impostos aos cidadãos, mas da dificuldade para lidar com as possibilidades virtualmente ilimitadas que se oferecem aos consumidores.

Em suma, se a era moderna foi protagonizada pelo “homem confinado” em diferentes instituições e em vários sentidos, é também de diversas maneiras que nas sociedades pós-disciplinares nos tornamos sujeitos “endividados”, conforme intuíra Gilles Deleuze (1992)Deleuze, Gilles. 1992. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In Conversações: 1972-1990, 219-226. Rio de Janeiro: Ed. 34. em seu célebre ensaio “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Ao se multiplicarem as opções e as possibilidades de consumá-las, aumenta também a lista de desejos frustrados e, em consequência, a dívida que jamais conseguirá ser saldada. Entre outros motivos, porque ela acaba sendo funcional ao novo regime: o consumidor é, por definição, alguém insatisfeito; embora a sua voracidade seja constantemente atiçada, nunca deverá ser saciada.

Maratonas de sofá e o scroll infinito

Até 2010, a palavra streaming era desconhecida para boa parte da população mundial. Em menos de uma década, porém, essa tecnologia se tornou uma das vias mais usadas para consumir produtos audiovisuais e sonoros em todo o planeta.6 6 Breustedt, Hannes. 2017. O boom dos serviços de streaming. Carta Capital, 21 out. 2017. O número de clientes da Netflix, empresa ícone desse setor, cresceu de 23 para 104 milhões entre 2011 e 2017. Acessado 10 jan. 2021. https://www.cartacapital.com.br/economia/o-boom-dos-servicos-de-streaming. Trata-se de um sistema de distribuição digital que não exige a descarga dos arquivos para armazená-los no próprio dispositivo (televisor, computador, smartphone) mas permite usufruí-los online. Com isso, a quantidade de material à disposição dos usuários se amplia enormemente, já que não requer espaço de armazenamento local. Além disso, podem ser acessados a qualquer momento, sem depender de horários pré-fixados como acontecia com as emissoras tradicionais de rádio ou televisão.

Começaram a proliferar, assim, na segunda década do século 21, plataformas que oferecem produtos audiovisuais (como Netflix, Hulu, Amazon Prime, Disney+, Mubi) ou fornecem música e outros arquivos sonoros (como Spotify, Deezer, SoundCloud, Apple Music). Essas empresas têm em comum a oferta de um imenso catálogo sempre em crescimento a um custo relativamente baixo, por meio de uma taxa fixa que os assinantes pagam para dispor do serviço durante as 24 horas de todos os dias. A flexibilidade que se tem para escolher quando e ao que assistir é, de fato, um dos principais fatores que motivaram o estrondoso sucesso dessas iniciativas.

Essa “temporalidade 24/7” já era uma das características inerentes à internet, de um modo geral, pois ela funciona desse modo: permite assistir a toda sorte de vídeos, ler jornais, jogar, interagir com outras pessoas e fazer compras em qualquer momento do dia ou da noite, sem diferenciar entre feriados e dias úteis, e onde quer que o usuário se encontre desde que tenha um dispositivo conectado à rede. Foi inaugurada, assim, a “inscrição da vida humana na duração sem descanso, definida por um princípio de funcionamento contínuo”, conforme aponta Jonathan Crary em seu livro intitulado, precisamente, 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. “É um tempo que não passa mais, para além das horas do relógio”, complementa o autor, aludindo à instauração de uma temporalidade diferenciada daquela que costumava cronometrar as rotinas industriais (Crary 2014Crary, Jonathan. 2014. 24/7: capitalismo e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify., 18).

Essa experiência temporal ininterrupta vem sendo propiciada pela crescente conexão às redes digitais, que conseguem evadir os limites espaço-temporais simbolizados pelas paredes modernas (Sibilia 2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto.). As instituições que organizaram a vida dos cidadãos nas “sociedades disciplinares”, conforme analisou Michel Foucault (1987)Foucault, Michel. 1987. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes., eram minuciosamente pautadas pelas horas do relógio e pelos dias do calendário. Essa estrita dinâmica não concernia apenas às “instituições de confinamento” como a escola, o hospital, a fábrica e a prisão, com seus usos regulados do tempo e do espaço, mas envolvia também os modos de funcionamento das mídias analógicas, que tiveram seu auge nos séculos 19 e 20, do livro e do jornal impresso, até o cinema, o rádio e a televisão.

Essa rigidez do arsenal moderno contrasta com a fluidez dos modos contemporâneos de vivenciar (e gerir) o tempo. Ao se digitalizarem, todos esses meios passaram a operar de acordo com a nova lógica. Nas telas conectadas em rede, livros e jornais não têm mais páginas de papel para virar nem capas para abrir ou fechar; em vez disso, é mediante um scroll infinito que passamos os olhos de uma notícia para outra, de um assunto para outro. Mas não foram apenas as mídias que se tornaram 24/7 nesta mutação do analógico para o digital; a mesma tendência pode ser observada nas lojas, por exemplo, que foram se desvinculando das restrições ligadas a um espaço físico e aos horários de funcionamento. A experiência de compra, portanto, agora também acontece nessa espacialidade “virtual” e nessa temporalidade absoluta, tendo se ampliado exponencialmente o cardápio de produtos ofertados aos consumidores globais. Algo comparável acontece, inclusive, com os relacionamentos sociais, afetivos e sexuais, conforme mostra a popularização de redes como Facebook, Instagram, Twitter, Snapchat e TikTok, ou de aplicativos mais específicos como Tinder e Grindr.

Se o acervo é infinito, está cheio de tentações que sempre se renovam e o seu consumo é sedutoramente estimulado, as maratonas e os scrolls também tendem a ser infindáveis. Isso acaba tornando plausível “a ideia de trabalhar sem pausa, sem limites” (Crary 2014Crary, Jonathan. 2014. 24/7: capitalismo e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify., 19), algo que não acontece apenas na esfera laboral, mas também – e talvez sobretudo – no âmbito dos consumos. Se não há limites de horários para trabalhar, tampouco há restrições para consumir; e, nesse processo, o tempo – ou seja, cada um de nós – se consome. “Mesmo em repetições habituais permanece um fio de esperança – uma esperança sabidamente falsa”, avisa Crary (2014Crary, Jonathan. 2014. 24/7: capitalismo e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify., 97), “de que um clique ou toque a mais possa dar acesso a algo que nos libertaria da monotonia insuportável em que estamos imersos”. Em uma das reportagens aqui analisadas, o cineasta Fernando Meirelles confessa o que ele faz quando um filme via streaming lhe parece previsível ou entediante. Opta por “escaneá-lo”, na dúbia expectativa de ser cativado por alguma cena entrevista velozmente mais à frente: “acelerar para mim é o estágio que vem antes de abandonar”.7 7 Inácio, Lívia. Speed watching: o que você perde quando acelera a velocidade do filme? BBC News Brasil, 14 mar. 2021. Acessado 20 mar. 2021. https://www.bbc.com/portuguese/geral-56368238.

As palavras, como se sabe, são fontes borbulhantes de sentidos. Em inglês, a expressão usada para aludir à experiência de maratonar séries ou filmes é binge-watching, sendo que o verbo to binge alude aos excessos e à indulgência em atos como comer, beber ou fazer uso de drogas. Uma tradução mais ou menos literal seria “bebedeira”. Por isso, também se fala de binge regret, aludindo a uma sorte de arrependimento ou ressaca após ter passado tempo demais consumindo séries, filmes, games ou qualquer outro produto oferecido no hipnotizante streaming sem fim. Essa mesma ideia de fartura ou gula está embutida no neologismo infoglut, segundo o qual vivemos em uma era paradoxal, com acesso à informação como nunca antes, enquanto nos confrontamos com “a impossibilidade de estarmos totalmente informados”8 8 “the impossibility of everbeing fully informed”. (Andrejevic 2013Andrejevic, Mark. 2013. Infoglut: how too much information is changing the way we think and know. Nova Iorque: Routledge., 12).9 9 Salvo indicação em contrário, todas as traduções são nossas. A oferta, portanto, é imensa e virtualmente ilimitada, assim como o desejo de consumi-la; já o tempo disponível para poder fazê-lo é lastimosamente insuficiente.

Speed watching: acelerando para otimizar a multitarefa

As mudanças acima relatadas, que vêm afetando os modos de viver no compasso 24/7, têm contribuído para ampliar nossa capacidade de “prestar atenção” a vários assuntos ao mesmo tempo, na tentativa de administrar a enxurrada sempre crescente de atrações e distrações. É o que alguns autores vêm tematizando como “economia da atenção” (Davenport e Beck 2001Davenport, Thomas H. e John C. Beck. 2001. The attention economy: understanding the new currency of business. Boston: Harvard Business School Press.; Goldhaber 1997), um bem altamente cobiçado nos mercados contemporâneos, com os algoritmos da internet cada vez mais afiados nessa batalha (Bentes, Bruno e Faltay 2019Bruno, Fernanda Glória, Anna Carolina Franco Bentes e Paulo Faltay. 2019. Economia psíquica dos algoritmos e laboratório de plataforma: mercado, ciência e modulação do comportamento. Revista FAMECOS 26 (3): e33095. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2019.3.33095
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). Mas a centralidade dessa disputa na atualidade tem, também, uma genealogia eloquente. Os misteriosos mecanismos dessa habilidade humana, “a natureza da atenção”, constituíram um dos focos da psicologia entre as décadas de 1890 e 1930, conforme relata o mesmo Jonathan Crary em outra pesquisa de sua autoria, resumida no artigo “Espetáculo, atenção e contramemória”.

Naquela época, que compreende a passagem do século 19 para o 20, estavam em pauta questões como “a relação entre estímulo e atenção, problemas de concentração, foco e distração”, revela Crary, e “a quantas fontes de estímulo alguém podia prestar atenção simultaneamente”. Não surpreende que tais dúvidas se levantassem em um período de pujante impulso modernizador, quando as sociedades ocidentais precisavam alimentar suas indústrias com trabalhadores capacitados para operá-las, enquanto vivenciavam a “emergência de um campo social cada vez mais saturado com informações sensoriais” (Crary 2011Crary, Jonathan. 2011. Espetáculo, atenção, contramemória. Revista Arte&Ensaios (23): 196-209., 202). Se cem anos atrás essa problemática preocupava aos saberes e poderes em vigor, no seio de um projeto de mundo que precisava lutar contra tais estorvos, hoje a capacidade de concentração se encontra acuada pela multiplicação exponencial de estímulos aos quais ficou impossível prestar atenção simultaneamente.

É neste novo contexto que tem brotado fenômenos inéditos, nomeados com neologismos como procrastinação e multitarefa ou multitask. Tanto a mídia como os especialistas costumam dar conselhos para lidar com esses desafios,10 10 Souza, Elson. Confira aplicativos para ajudar você a fugir do vício digital. Techtudo, 6 out. 2015. Acessado 4 abr. 2021. https://www.techtudo.com.br/listas/noticia/2015/10/confira-aplicativos-para-ajudar-voce-fugir-do-vicio-digital.html. frequentemente baseados na gestão individualizada do próprio tempo, usando ferramentas propostas por outras – ou pelas mesmas – empresas de tecnologia, tais como os aplicativos Moment, RescueTime e Freedom. Não raro, essas “soluções” para os nossos descompassos existenciais também requerem o uso das onipresentes telas que, inclusive para nos livrarmos delas, somos convocados a visualizar sem pausa. Assim, aqueles que conseguem exercer “uma boa administração do tempo” são admirados e “aplaudidos por fazê-lo tão bem”, constata Sarah Sharma (2017Sharma, Sarah. 2017. Speed traps and the temporal: of taxis, truck stops, and taskrabbits. In The sociology of speed: digital, organizational, and social temporalities, organizado por Judy Wajcman e Nigel Dodd, 131-151. Oxford: Oxford University Press., 140) no capítulo “Speed traps and the temporal”, do livro Sociology of Speed: digital, organizational and social temporalities. A própria mídia se encarrega de dar visibilidade a tais personagens, como é o caso do empresário bilionário Elon Musk, que em uma entrevista contou ter ficado “tão louco de café que sentiu que estava perdendo a visão periférica”;11 11 Saturno, Ares. Executivos adotam rotinas diárias com muito trabalho e poucas horas de sono. Canaltech, 21 dez. 2018. Acessado 15 jan. 2021. https://canaltech.com.br/comportamento/executivos-adotam-rotinas-diarias-com-muito-trabalho-e-poucas-horas-de-sono-129621. contudo, “exaustão não faz com que o executivo se dedique menos às atividades que desempenha”, celebrava a reportagem:

Seus colegas de trabalho contam que às vezes é necessário chamar seu nome duas ou três vezes antes de obter uma resposta do CEO, quase sempre absorto entre suas ideias de vanguarda e o multitasking corporativo: é creditada à Musk a habilidade de responder e-mail enquanto lê outros documentos, fazer reuniões ao mesmo tempo que fala ao telefone e manda mensagens aos seus cinco filhos.10 10 Souza, Elson. Confira aplicativos para ajudar você a fugir do vício digital. Techtudo, 6 out. 2015. Acessado 4 abr. 2021. https://www.techtudo.com.br/listas/noticia/2015/10/confira-aplicativos-para-ajudar-voce-fugir-do-vicio-digital.html.

Apesar das proezas daqueles que conseguem triunfar na empreitada, há um problema inegável: continua sendo mínima a quantidade de imagens, textos e sons que podemos processar simultaneamente. As habilidades “multitarefa”, que se desenvolveram muitíssimo nos últimos anos, não dão conta da demanda; e, além disso, costumam nos exaurir. Por mais devoção que lhes dediquemos, nunca será suficiente, já que são múltiplos – e em perpétuo aumento – os estímulos e as exigências que nos interpelam sem cessar. Essa abundância, que por um lado é tão desejada e bem-vinda, imprescindível para uma vida plena e bem-sucedida, por outro lado, provoca uma saturação que vem atrelada à frustração de não poder lidar com ela. Diante disso, os recursos multitask e os utensílios para o gerenciamento pessoal possibilitam pequenas porções de tempo ganho, ou a ilusão de estar gerindo seu fluxo de forma otimizada. “Convites e expectativas para recalibrar permeiam o tecido social de distintas maneiras para diferentes populações”, afirma Sharma. O que as unifica, no entanto, ““é a expectativa crescente de que todos devem se tornar empreendedores no controle do tempo”12 12 “Invitations and expectations to recalibrate permeate the social fabric differently for different populations. What is shared, however, is the looming expectation that everyone must become an entrepreneur of time-control.” (Sharma 2017Sharma, Sarah. 2017. Speed traps and the temporal: of taxis, truck stops, and taskrabbits. In The sociology of speed: digital, organizational, and social temporalities, organizado por Judy Wajcman e Nigel Dodd, 131-151. Oxford: Oxford University Press., 133).

Entre as estratégias para uma organização mais eficiente das atribuladas agendas individuais, cabe destacar as ferramentas conhecidas como Speed Watching. Trata-se de funcionalidades ou aplicativos que permitem assistir a vídeos ou ouvir áudios em velocidades de reprodução mais rápidas do que o normal. “As economias de tempo são imensas”, dizia o jornalista Jeff Guo em uma reportagem de 2016 intitulada “Veja TV no modo acelerado. Todos vão se horrorizar. E você vai ficar mais inteligente”.13 13 Guo, Jeff. Veja TV no modo acelerado. Todos vão se horrorizar. E você vai ficar mais inteligente. Gazeta do Povo, 8 jul. 2016. Acessado 15 dez. 2020. https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/tv/veja-tv-no-modo-acelerado-todos-vao-se-horrorizar-e-voce-vai-ficar-mais-inteligente-ce8cnbbumgjmxuh6hp08wic2v. O texto celebrava a possibilidade então nascente, relatando a experiência em primeira pessoa: “Eu assisto TV como leria um livro. Eu pulo trechos. Releio. Às vezes acelero. Às vezes diminuo o ritmo”. E, em seguida, advertia sobre um curioso efeito da prática:

Confesso que essas novas técnicas de ver TV tiveram um efeito estranho na minha noção de realidade. Não consigo mais ver TV em tempo real. O cinema me parece sufocante. Preciso ter a liberdade de ir e voltar e acelerar e diminuir o ritmo, para poder dosar a minha atenção conforme necessário.14 14 Guo, op. cit.

Não surpreende que, ao se acostumar com o uso destas ferramentas aceleradoras, o usuário não suporte mais a temporalidade original dos produtos que consome. É provável, inclusive, que o ritmo do cotidiano fora das telas também lhe pareça lento demais e, portanto, igualmente “sufocante”, perante a impossibilidade de acelerar de acordo com a vontade do espectador – que é também, e sobretudo, um consumidor. Tampouco chega a surpreender que as plataformas de streaming e os aplicativos de mensagens já ofereçam esse serviço em seus pacotes, pois tais empresas fazem parte de uma cultura que estimula e recompensa tanto a aceleração como o consumo personalizado. Ambos os fatores contribuem para configurar, justamente, a nova temporalidade aqui em foco.

“Uma pesquisa da Faculdade de Medicina de Harvard mostra que, para alguns, a sala de cinema já está virando sala de tortura: cada vez mais americanos sentem desconforto em dedicar duas horas a um filme”, constatava em 2018 uma matéria publicada no jornal O Globo sob o título “Como a indústria está lidando com o nosso ritmo frenético de consumir cultura?”. O estudo dava voz aos jovens entrevistados, que usaram a palavra “ansiedade” para responder “por que consomem mídia de forma corrida”.15 15 Barros, Luiza e Emiliano Urbim. Como a indústria está lidando com o nosso ritmo frenético de consumir cultura? O Globo, 15 set. 2018. Acessado 15 dez. 2020. https://oglobo.globo.com/cultura/como-industria-esta-lidando-com-nosso-ritmo-frenetico-de-consumir-cultura-23071663. Assim, no contraste genealógico entre a temporalidade moderna e a contemporânea explorada neste artigo, cabe supor o seguinte: se os espectadores do século 19 se deparavam com certo estranhamento ao adentrarem as salas de cinema, no início do século 21 essa perturbação é de outra ordem. Não se trata de algo que assombra por ser fantasmagórico, como podia ser o caso da experiência moderna. Agora, a inquietação parece responder a outros motivos: o fato de demandar um uso do tempo homogêneo para todos os participantes, por exemplo, além de uma imersão em um ambiente coletivo com um único foco de atenção, algo que exige um esforço tão inusual como difícil de justificar.

A compatibilização com os velozes fluxos das telas digitais de uso individual, portanto, parece ter uma contrapartida: certa “descompatibilização” com o “tempo real”, ou com a velocidade demasiadamente lenta da realidade imediata – que, pelo menos por enquanto, não conta com um aplicativo capaz de adequá-la ao compasso personalizado de cada um. “Agora desejo que as pessoas falem mais rápido na vida real”, confiava um depoimento no artigo intitulado “Talking 2x Speed”.16 16 Siegler, M. G. Talking 2x Speed. 500ish, 22 fev. 2017. Acessado 20 dez. 2020. https://500ish.com/talking-2x-speed-36220fa64389. “Aumentar a velocidade de um vídeo parece poder afastar o tédio e ajudar as pessoas a manter o interesse”, reforçava outra das reportagens antes citadas; “com o ritmo mais lento, minha atenção acabava falhando, e eu me concentrava demais nos detalhes”.17 17 Guo, op. cit.

A partir de 2019, também se tornou possível acelerar as mensagens de áudio trocadas através de aplicativos como Telegram e WhatsApp; para esse último foi criado um app que permite ouvi-las em menos tempo, chamado TalkFaster. Em todos os casos, trata-se de um serviço adicional oferecido pelas empresas a seus usuários para que eles possam “ganhar” alguns segundos a mais, que poderão ser dedicados a outros consumos, muitas vezes usando até o mesmo dispositivo digital. Em uma cultura em que a rapidez se tornou sinônimo de eficiência e sucesso, “os poderosos são rápidos, os que não têm poder são lentos”18 18 “The powerful are fast, the powerless are slow”. (Sharma 2017Sharma, Sarah. 2017. Speed traps and the temporal: of taxis, truck stops, and taskrabbits. In The sociology of speed: digital, organizational, and social temporalities, organizado por Judy Wajcman e Nigel Dodd, 131-151. Oxford: Oxford University Press., 1). Assim, parece ter ficado obsoleto o velho lema que ditava: “a pressa é inimiga da perfeição”. Contra as antigas recomendações de pausar para refletir, premiam-se atitudes e respostas cada vez mais velozes, inclusive automatizadas.

“Estamos todos pagando um preço altíssimo por essa mudança brusca e ainda subdimensionada que encolheu ou mesmo eliminou o tempo dedicado à ponderação antes da ação ou reação”, constatava a jornalista Eliane Brum em um artigo publicado em 2020 no El País.19 19 Brum, Eliane. Quando o vírus nos trancou em casa, as telas nos deixaram sem casa. El País, 23 dez. 2020. Acessado 24 dez. 2020. https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-12-23/quando-o-virus-nos-trancou-em-casa-as-telas-nos-deixaram-sem-casa.html. “Não se trata apenas de velocidade ou de aceleração, mas de uma incitação à rapidez e ao imediatismo de conexões e desconexões, produzindo-se um esquecimento adequado à descartabilidade”, advertia Maria Cristina Franco Ferraz em um ensaio de 2015 dedicado a pensar essas questões à luz do conceito de “duração” formulado pelo filósofo Henri Bergson em seu livro Matéria e memória, de 1896. Essa “obsolescência programada” de todos os consumos acaba gerando não apenas a mencionada ansiedade, mas também um mal-estar ligado ao “excesso de fluidez” e à falta de coesão no processamento das vivências que se superpõem e embaralham (Sibilia 2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto.). “De um descarte a outro, se esgarça a sensação de continuidade”, corrobora ainda Franco Ferraz (2015Ferraz, Maria Cristina Franco. 2015. Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconectada. Rio de Janeiro: Garamond., 109), “corroendo-se a possibilidade do sentido e a sedimentação do vivido, sob o modo da experiência”.

A promessa de gozo ilimitado, que é própria da interpelação consumista, reside no âmago dessa ânsia de tudo devorar. Já o fato de que haja tanto para consumir, por sua vez, turbina essa ansiedade até a exasperação. Mesmo sendo evidente seu aspecto problemático, como sugerem várias das reportagens aqui examinadas, trata-se de uma dinâmica voluntariamente abraçada por milhões de pessoas todos os dias, sempre na tentativa de dar conta. As barreiras psicofísicas acabam se impondo, mas continuam sendo ignoradas ou solapadas na esperança de conseguir vencê-las ao lançar mão de recursos como o Speed Watching ou similares, como se bastasse com uma organização mais eficaz da própria agenda para, aí sim, conseguir tudo o que se deveria e/ou deseja.

Desacelerar: detox digital on demand

Muitas das ferramentas aqui estudadas compõem o arsenal que as plataformas digitais desdobram para impedir a desconexão de seus clientes, procurando prolongar o tempo que permanecem online. Com esse fim, as corporações passaram a efetuar pequenos ajustes em suas tecnologias, visando a capitalizar certas vulnerabilidades nesses jogos de recompensas. De acordo com um documento elaborado em 201320 20 Harris, Tristan. A call to minimize distraction & respect user's attention. Google, 2013. Acessado 6 dez. 2020. http://www.minimizedistraction.com. pelo cientista da computação Tristan Harris, então especialista em ética do Google, essas estratégias exploram – e, assim, potencializam – a incapacidade dos usuários de dimensionar o tempo que gastam ao atender a cada notificação das redes. Sintonizada com essas inquietações, a mídia costuma tratar esses fenômenos de duas maneiras principais. Por um lado, “educando” para o uso das novidades constantemente lançadas ao mercado. Por outro lado, endossando a narrativa de que cada um é responsável por gerir o tempo gasto em tais atividades, ainda que elas tenham sido criadas justamente com o intuito de fisgar os usuários para mantê-los online o máximo possível (Eyal 2014Eyal, Nir. 2014. Hooked: how to build habit-forming products. Nova Iorque: Penguin Group.; Alter 2017Alter, Adam. 2017. Irresistible: the rise of addictive technology and the business of keeping us hooked. Nova Iorque: Penguin Press.).

Por isso, o cardápio oferecido também inclui opções aparentemente opostas à aceleração. Assim como se noticiam diversas “soluções” para otimizar o uso do tempo permitindo o consumo de um volume maior de imagens, sons e outros produtos, também há uma vertente da indústria se dedicando a contrabalançar tais estímulos. São iniciativas que prometem desacelerar, trazer calma e propiciar o relaxamento ou a concentração, por exemplo. Nessa linha, cabe mencionar a “televisão lenta”21 21 Zeitchik, Steven. Com tanta tensão acumulada, Hollywood procura meios para nos acalmar. Público, 3 nov. 2020. Acessado 25 jan. 2021. https://www.publico.pt/2020/11/03/impar/noticia/tanta-tensao-acumulada-hollywood-procura-meios-acalmar-1937651. e os vídeos ASMR,22 22 ASMR (do inglês Autonomous Sensory Meridian Response) são vídeos utilizados para promoção de relaxamento, sono e bem-estar, que reproduzem sons e imagens considerados prazerosos e calmantes, como sussurros e ruídos repetitivos. que ajudariam a compensar o excesso de estímulos tendentes à aceleração. É significativo que não pareça haver contradição no fato de se tratar, em todos os casos, de apetrechos digitais ao alcance de alguns cliques nas mesmas telas que nos extenuam.

Em última instância, se ainda é inviável o sonho de prescindir do sono, há fortes investimentos na tentativa de intervir nos estados de prontidão e descanso, vendendo a proposta de ligar ou desligar o corpo conforme as preferências de cada um. Afinal, como afirma Crary (2014Crary, Jonathan. 2014. 24/7: capitalismo e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify., 24), “o tempo para descanso e a regeneração dos seres humanos é simplesmente caro demais para ser estruturalmente possível no capitalismo contemporâneo”. Diante disso, a promessa paradoxal já disponível é descansar de consumir, consumindo. Porque o relaxamento ou a desaceleração também devem acontecer on demand, e seu objetivo consiste em reestabelecer o bem-estar de forma eficaz, para que assim seja possível retomar as atividades produtivas e consumistas em plena forma.

Indo além da mera desaceleração temporária, a noção de JOMO, joy of missing out23 23 Rua, Martina. “Bienestar digital. Un plan para usar las pantallas en la era conectada”. La Nación, s. d. Acessado 10 jan. 2021. https://www.lanacion.com.ar/sociedad/tips-bienestar-digital-nid2530170. se refere a uma reivindicação do prazer de estar offline, enfatizando o alívio que implica se afastar do engajamento na veloz dinâmica das redes. Essa sorte de “alegria” da desconexão se propõe como uma alternância entre períodos de acesso contínuo e outros consagrados ao “detox digital”. Esses também seriam sempre escolhidos livremente e autogeridos, como mais uma opção oferecida aos consumidores contemporâneos. Esse geren ciamento pode – e sugere-se que deveria – ser assistido pelas telas digitais. Muitos aplicativos oferecem a possibilidade de saber por quanto tempo se esteve conectado e fazendo o quê, por exemplo; então, caberia a cada indivíduo o papel de enfrentar os eventuais excessos a que acaba se submetendo usando ferramentas criadas justamente para isso.

Assim, ao contrário do relaxamento que tais dispositivos sugerem, de acordo com Sharma (2017Sharma, Sarah. 2017. Speed traps and the temporal: of taxis, truck stops, and taskrabbits. In The sociology of speed: digital, organizational, and social temporalities, organizado por Judy Wajcman e Nigel Dodd, 131-151. Oxford: Oxford University Press., 150), eles “promovem uma fixação cultural mais profunda na administração do tempo, deixando a pessoa em um estado de constante insatisfação marginal”.24 24 “All of these techniques for staying in time actually foster a deeper cultural fixation on the management of time — leaving one in a state of constant marginal dissatisfaction.” De novo, portanto, constatam-se os conflitos inerentes à extenuante temporalidade contemporânea, em cujo cerne se debatem a ansiedade ligada à promessa do consumo ilimitado, por um lado, e a frustração diante da constatação dos próprios limites, por outro lado. Como resultado dessa equação, em vez de conquistar a tão buscada autonomia do empreendedor neoliberal, sempre se está aquém das “exigências de autoadministração contínua” (Crary 2014Crary, Jonathan. 2014. 24/7: capitalismo e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify., 54).

Considerações finais

Diante da afobação que estas novas vivências temporais suscitam, não surpreende que proliferem certas táticas de proteção, como silenciar as notificações dos aparelhos ou estabelecer pautas pessoais para diminuir seu uso. Mas não é fácil abandonar o estado de alerta e prontidão para embarcar em outras temporalidades que, com frequência, são desejadas. Mesmo sendo tão atraente, a “vida digitalizada” se tornou extenuante; e, em vários sentidos, converteu-se em um problema bastante sintomático do nosso presente. De fato, o acervo virtualmente infinito de informações acessíveis em todo momento e qualquer lugar, que desaparece ou se renova sem cessar, é um poderoso emblema da nossa época. Tanto de suas glórias e conquistas como de suas misérias e impotências.

Com tanto estímulo e tamanha abertura existencial, é inevitável suspeitar que sempre haverá algo mais interessante ou divertido, mais útil, prazeroso ou imprescindível para ver, ler, fazer, comentar, compartilhar etc. Mas jamais conseguiremos consumir isso tudo. A frustração, portanto, está garantida; bem como a ansiedade, o cansaço, e inclusive – talvez paradoxalmente – o tédio. Mesmo que pareça um conflito causado pelas tecnologias digitais, um olhar mais atento desmentirá esse diagnóstico. Esses artefatos integram mudanças históricas significativas nos modos de viver, que foram se gestando ao longo de décadas e terminaram provocando, entre outras consequências, tanto a sua invenção como a sua exitosa adoção em escala global; e, junto com elas, a reconfiguração temporal aqui em foco.

Estas tendências se acentuaram na segunda década do século 21, com a popularização das redes sociais, do acesso móvel à internet e do streaming. Então se delineou este novo problema: a crescente incapacidade para lidarmos com essa falta de limites que caracteriza tanto a vida online como o nosso papel de consumidores vorazes e full time. “Você pode”, diz a onipresente publicidade, um lema que sintoniza com o eufórico “eu quero” – e o consequente “eu mereço” – em contraposição ao severo “você deve” que rubricou os cidadãos dos séculos 19 e 20 (Sibilia 2020Sibilia, Paula. 2020. O mal-estar do ilimitado. In Fronteras, 33 Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis, 980-983. Montevidéu: Viento de Fondo.). Nesse horizonte ilimitado que a digitalização vem propiciando, tornou-se legítimo querer tudo, inclusive aquilo que não conseguimos – nem jamais conseguiremos – consumar, porque nossa experiência demasiadamente humana continua sendo fatalmente limitada.

Ainda assim, sofre-se ao assumir que deveríamos tudo poder, em vez de padecer limites rígidos como os que costumavam impor, de maneira consensual, tanto a lei como a moral da civilização oitocentista. Isto é, aquelas “jaulas de ferro” que restringiam as proezas individuais modernas em nome de valores ou contratos con siderados superiores. Ou seja, aqueles sacrifícios laicos que foram elucidados pelos autores antes mencionados: Nietzsche, Freud, Weber, Foucault, entre outros. Para além dos atávicos desamparos que marcam a humanidade como um todo, cada época enfrenta seus próprios labirintos. Na era moderna, um motivo de sofrimento crucial foi interpretado como a necessidade de reprimir ou sublimar desejos individuais em nome de entidades transcendentes. Esse drama alcançou seu apogeu no século 19 e boa parte do 20, irradiado a partir das metrópoles europeias rumo aos confins mais remotos do planeta sob a impronta da subjetividade burguesa com seu projeto modernizador e colonizador.

Os fenômenos aqui analisados parecem reforçar o nosso distanciamento com relação àquela dinâmica que carimbou os já antiquados tempos modernos com sangue, suor e lágrimas. Não sofremos mais – ou não exclusivamente, talvez sequer de forma prioritária — por ter que nos submetermos com certa docilidade à órbita do dever, essa violenta introjecção que levava a reprimir os mais obscuros quereres. Uma porção considerável dos mal-estares atuais parece vinculada a outra lógica, que se vislumbra quase oposta à tragédia anterior. Trata-se da problemática sondada neste artigo: a dificuldade que implica o autocontrole em uma cultura que incita ao consumo ilimitado baseado na “livre escolha” individual, enquanto carece de ferramentas para conviver com o fracasso e com as restrições, inclusive as temporais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2021
  • Aceito
    15 Abr 2021
  • Publicado
    24 Ago 2021
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