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Uma nota sobre filosofia política, relações internacionais e filosofia da história1 1 Uma versão preliminar desse texto foi lida no I CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas e realizado em 2009.

A note on political philosophy, international relations and philosophy of history

Resumo:

Este artigo tem como objeto explorar de que modo os recursos conceituais oferecidos pela filosofia política moderna, pela interpretação da história do direito internacional desenvolvida por Carl Schmitt, assim como pela filosofia da história de Kant nos facultam um entendimento mais preciso e profundo dos constrangimentos lógico-conceituais que enquadram a dinâmica evolutiva das relações internacionais. A primeira parte do texto procura reconstituir o modo como a atenção à peculiar geometria do espaço terrestre – seu caráter esférico – constitui um ponto focal no tratamento dado por Hobbes, Pufendorf e Kant aos temas das relações tanto entre indivíduos humanos, quanto entre as comunidades politicamente organizadas. Nessa parte o texto chama atenção para o fato de que as teorias contratualistas não podem facilmente estender o modelo de solução de conflitos contido na idéia de contrato social às relações internacionais. A segunda parte trata de reconstituir, resumidamente, a análise que Schmitt faz do modo como foram progressivamente normatizadas as relações internacionais ao tempo do chamado jus publicum europaeum, notadamente do modo como o mais deslavado cinismo político fez com que avançasse, progressiva e paradoxalmente, a regulamentação da política interestatal e a constituição de um verdadeiro direito das gentes. Na terceira parte, o artigo sugere que a filosofia da história, notadamente na versão kantiana, pode, de algum modo, conciliar a abordagem normativista das relações internacionais com a análise positiva, ou, como Schmitt certamente preferiria, existencial das relações políticas entre os Estados.

Palavras-chave:
contratualismo; direito internacional; Hobbes; Kant; política internacional; Schmitt

Abstract:

The main aim of this paper is to consider how the conceptual resources provided by modern political philosophy, by Carl Schmitt's interpretation of the historical evolution of international right and by Kant's philosophy of history may offer a better and deeper understanding of the logical and conceptual constraints which delimit the evolutional dynamic of international relationships. In its first part, the article tries to render the way in which the acute attention to the peculiar geometry of Earth's space – its spherical form – constitutes a productive focal point of the analyses made by Hobbes, Pufendorf and Kant of the formal properties of human interactions, being those considered at the individual level or as relations amongst politically organized collectivities. The analysis highlights here mainly the difficulties to easily extend the solution provided by the theories of social contract for the overcoming of internal conflicts to international rivalries and contests. The paper's second part presents a short résumé of Carl Schmitt's analyses of the process in the course of which the agonic disputes among European states have been progressively submitted to normative principles. The point emphasized in this section is the fact that this move forward moral progress results from the most impudent cynicism of the great political powers actions, to which we owe the constitution of the jus publicum europaeum. The third and conclusive part of the paper suggests that the philosophy of history, namely in its Kantian version, is the theoretical instrument allowing the conciliation of the normative approach to the evolution of international politics and the positive, or as Schmitt would surely prefer, existencial analysis of the evolution of political foreign affairs inside the system of sovereign States.

Keywords:
contractualism; Hobbes; international law; Kant; international politics; Schmitt

I

Samuel Pufendorf, em uma passagem dedicada à refutar ou, pelo menos, a opor-se à cogência da argumentação hobbesiana em favor da determinação do estado de natureza como sendo necessariamente um estado de guerra de todos contra todos, faz a seguinte ponderação:

O que produziu o estado de natureza foi a multiplicação dos homens, que já não lhes permitia formar somente uma única Sociedade, e que os obrigava a dividir-se em múltiplos corpos diferentes. […] Mas […] não falta com o que responder diretamente às razões de Hobbes: Aqueles que uma grande distância separa não podem imediatamente […] fazer mal uns aos outros, nem em suas pessoas, nem em seus bens, pois quando se faz mal a alguém em sua ausência, isso é feito por meio de outrem que se encontra presente. Assim, não vejo porque, enquanto estivemos distanciados dessa maneira, não nos tenhamos considerado mais como amigos do que como inimigos. E de nada adiantaria dizer que em tal caso permaneceríamos neutros, pois a simples ausência do desejo de prejudicar, junta à impossibilidade de fazê-lo efetivamente, pode fazer as vezes da amizade (Pufendorf, 1987PUFENDORF, Samuel. Le droit de Ia nature et de gens. Caen, França: Centre de Philosophie Politique et Juridique de I'Université de Caen, 1987., p. 163).

A ponta do argumento de Pufendorf contra Hobbes é, portanto, o de que o espaço, ou, mais precisamente, que as grandes distâncias e as igualmente grandes separações que lhes são correlatas são em si suficientes para mostrar que a explicação do estado de conflito entre os indivíduos humanos não pode ser feita a partir de inferências a priori, baseadas apenas em uma consideração conceitual e abstrata da natureza humana. Daí se segue que a demonstração da inelutabilidade de tais conflitos exige a introdução de considerações factuais e contingentes que tornam forçoso distinguir entre o que é necessário e o que é inelutável sob certas circunstâncias. Mais especificamente, o que é implicado pela posição de Pufendorf é que a pluralidade dos homens e seu desejo ilimitado de poder e mais poder não são condições suficientes para explicar-lhes os conflitos, sendo necessário a isso agregar a consideração dos termos e condições materiais em cujo âmbito têm lugar e se processam suas interações e intercâmbio. O ponto material e positivo apresentado por sua análise é então o de que as vastas paisagens e os agrupamentos diminutos e ralos induzem o distanciamento dos homens, ensejando o surgimento do que se pode talvez chamar um regime das autarquias dispersas, em cujo horizonte, espacialmente ilimitado, os contatos são acidentais e efêmeros, os deslocamentos andejos e vagos e os eventuais conflitos eventuais e sem herança.

Ora, ao refletir-se sobre essas considerações, adquire um interesse ímpar divisar no que diz Kant no § 13 da Doutrina do Direito, assim como no Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perpétua, uma linha de oposição ao argumento de Pufendorf, oposição que, porém, encontra-se baseada exatamente na mesma ordem de considerações em que este se colocara, na atenção aos efeitos do regime espacial terrestre, se assim posso dizer, sobre a dinâmica dos conflitos humanos. Com efeito, a passagem de A Paz Perpétua que tenho em vista, ao tratar das limitações do que denomina de direito à hospitalidade universal, diz o seguinte:

Não existe um direito de hóspede […] mas um direito de visita, que assiste a todos os homens para se apresentar à sociedade, em virtude do direito de propriedade comum da superfície da Terra, sobre a qual, enquanto superfície esférica, os homens não podem estender-se ao infinito, mas devem finalmente suportar-se uns aos outros, pois originariamente ninguém tem mais direito do que outro de estar num lugar determinado da Terra. Partes inabitáveis dessa superfície, o mar e os desertos dividem essa comunidade, mas o barco ou o camelo (o barco do deserto) tornam possível uma aproximação por cima dessas regiões sem dono e o uso do direito à superfície para um possível tráfico, direito que pertence ao gênero humano comum (Kant, 1988KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e outros estudos. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 137; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 8, 358).

Ora, deste texto, a tantos títulos tão precioso, importa primeiramente destacar a tese de que é a peculiar e contingente geometria do espaço terrestre que torna impossível, ou, mais exatamente, que torna necessariamente inviável o que acima propus denominar o regime das autarquias dispersas, dos contatos acidentais e efêmeros. O § 13 da Metafísica dos Costumes apresenta este mesmo ponto talvez de maneira ainda mais clara:

Todos os seres humanos estão originalmente […] numa posse da terra que está em conformidade com o direito, ou seja, eles detêm um direito de estarem onde quer que a natureza ou o acaso os tenha colocado. Este tipo de posse […] é uma posse em comum porque a superfície esférica da Terra une todos os lugares sobre si, pois se esta superfície fosse um plano ilimitado, as pessoas poderiam estar de tal forma dispersas sobre ela que não chegariam a formar nenhuma comunidade entre si e a comunidade não seria, então, um resultado necessário de sua existência sobre a Terra (Kant, 2003KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003., p. 107; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 6, 262).

Repare-se, antes de mais, que o ponto de Kant não é dizer que a Terra é pequena e as distâncias irrelevantes, mas antes o de sublinhar que a geometria esférica que lhe é própria é condição necessária e – supostas, como é dito expressamente na passagem do Terceiro Artigo definitivo, as invenções do engenho humano e, mais especificamente, a tecnologia de transporte cedo disponível, nomeadamente, camelos e barcos – também condição suficiente para a superação das separações geográficas e para a supressão das situações de isolamento e autarcia que delas decorrem.

Em segundo lugar, é preciso enfatizar que esses textos não apenas apresentam o endosso de Kant à tese hobbesiana de que os homens são originariamente possuidores de direitos iguais2 2 Na abertura do capítulo XIV de Leviatã lê-se o seguinte: “O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.” (Hobbes, 1974, p. 82) Ponto cujas implicações já haviam sido expressas com clareza meridiana no capítulo XIV dos Elements of Law, onde Hobbes, já dissera: “Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja a fazer qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e a usufruir todas as coisas que quiser e puder. Porque todas as coisas que ele deseja tem que ser boas segundo seu julgamento, eis que ele as deseja; e podem contribuir à sua preservação uma vez ou outra, ou assim ele pode pensar, e nós o fizemos o juiz delas, na seção 8. Segue-se daí que ele pode fazer todas as coisas justamente. E por esta causa é que se diz corretamente que Natura dedit omnia omnibus, que a natureza deu todas as coisas a todos os homens; de tal maneira que o jus e o utile, o direito (right) e o útil (profit), são a mesma coisa.” (Hobbes, 2003, p. 95. Tradução modificada). , mas vinculam a especificação de esse direito originário, como direito igual ao apossamento da terra, à especificidade geométrica do ecúmeno terrestre, uma vez que é porque superfície da Terra não é um plano ilimitado, mas sim uma esfera de dimensões finitas, que não é possível restringir a priori as pretensões de direito. É isso que leva Kant a dizer que todas as tomadas de terra se encontram em princípio legitimadas pela circunstância de que, sob tais condições, “originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra” (Kant, 2003KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003., p. 107; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 6, 262).

Em terceiro lugar, convém reparar que o verdadeiro interesse do Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perpétua, assim como de muitas das passagens sobre a aquisição da propriedade do início da Doutrina do Direito – a despeito de que vazados em uma linguagem que parece concernida com direitos, atitudes e situações de indivíduos – encontra-se no estabelecimento de uma regra para o contato e o desenvolvimento de relações entre coletivos humanos, sejam estes pessoas de direito privado ou de direito público, que se encontrem em situação de primeiro contato e cujos níveis de desenvolvimento sejam marcados por diferenças assimétricas. O ponto fica particularmente claro, como muito justamente chamou atenção Mario Caimi, quando Kant observa:

Deste modo, partes afastadas do mundo podem entre si estabelecer relações pacíficas, as quais por fim se tornarão legais e públicas, podendo assim aproximar cada vez mais o gênero humano de uma constituição cosmopolita. Se, pois, para comparar a conduta inospitaleira dos Estados civilizados da nossa região do mundo, sobretudo dos comerciantes, causa assombro a injustiça que eles revelam na visita a países e povos estrangeiros (o que para eles se identifica com a conquista dos mesmos). A América, os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc., eram para eles, na sua descoberta, países que não pertenciam a ninguém, pois os habitantes nada contavam para eles (Kant, 1988KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e outros estudos. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 137-8; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 8, 358) […], e tudo isso para potências que querem fazer muitas coisas por piedade e pretendem considerar-se como eleitas dentro da ortodoxia, enquanto bebem a injustiça como água (Caimi, 1997CAIMI, Mario, Acerca de la interpretación del Tercer Artículo Definitivo del ensayo de Kant Zum Ewigen Fieden. In: ROHDEN, Valério (Org.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Goethe Institut – Instituto Cultural Brasileiro-Alemão, 1997., p. 191).

O exame atento e o desdobramento virtual do debate entre Hobbes, Pufendorf e Kant que acabo de sugerir e, ainda mais importantemente, a inequívoca afirmação por parte de Kant de que a posição geográfica dos povos no globo terrestre, assim como a diversidade de seus graus de desenvolvimento, é normativamente indiferente, criando uma situação de igualdade de direitos cuja especificação vincula-se unicamente à precedência temporal da ocupação poderia e deveria ser comentada longamente, se meu propósito aqui fosse apenas o de esmiuçar esta zona do universo conceitual da filosofia moderna.

O que, contudo, está mais a me interessar é esclarecer as determinações conceituais que decorrem da atenção à peculiar geometria da Terra, pois é evidente que esta não somente implica, como acabamos de ver, o convívio forçado entre os agrupamentos humanos e uma correlata igualdade de direitos originários à ocupação desse espaço esférico, mas, ademais disso, coloca, ipso facto, a questão de saber como tal convívio deve ser regulado.

Ora, este ponto, aparentemente tão óbvio, é, contudo, complexo e difícil, o que fica claro tão logo se presta atenção ao caráter vago e obscuro da expressão que empregamos acima ao falarmos da inelutabilidade do convívio entre os agrupamentos humanos.

Com efeito, falar de agrupamentos humanos deixa oculto, ou, pelo menos, deixa com contornos pouco nítidos a natureza singular dos sujeitos de tal convívio forçado e o regime a que se encontra a priori submetida tal interação. Para dar-se bem conta da dificuldade que estamos a falar, é preciso entender que os sujeitos de cuja interação se cogita neste plano são, na verdade, as entidades políticas surgidas ao ensejo da dispersão espacial das populações humanas sobre a superfície terrestre e que foram formadas em resposta aos problemas fundamentais de, em cada caso, disciplinar-lhes internamente a convivência e de representá-las e protegê-las face à eventuais ameaças provindas de terceiros. Em segundo lugar é preciso dar-se conta também que tais sujeitos, ao mesmo tempo em que se encontram forçados e compelidos à vizinhança por força da peculiar natureza do espaço terrestre, entram nestas interações a partir de posições ao mesmo tempo soberanas e contrastadas, no horizonte das quais o conflito é uma possibilidade sempre presente.

No contexto da filosofia política moderna esse regime de convivência foi pensado como sendo o do estado de natureza. Uma expressão paradigmática deste ponto de vista se encontra, por exemplo, em Hobbes que, ao tratar desta questão, diz o seguinte:

No que se refere às relações [Offices] de um soberano para com outro, que estão incluídas naquele direito que é comumente chamado direito das gentes, não preciso aqui dizer nada, porque o direito das gentes e a lei da natureza são uma e mesma coisa. E qualquer soberano tem o mesmo direito, ao procurar a segurança de seu povo, que qualquer homem particular precisa ter para conseguir a segurança de seu próprio corpo (Hobbes, 1974HOBBES, Thomas. Leviathan. São Paulo: Abril Cultural, 1974., p. 214).

É fundamental observar, porém, que no pensamento contratualista clássico a hipótese de que o estado de natureza vigente nas relações internacionais pudesse ser superado pelo mesmo mecanismo pensado como solução para os conflitos existentes internamente nas comunidades humanas foi sempre vista como muito problemática, ainda que Kant, a despeito de ressalvas e cautelas a tenha defendido.

Na verdade, neste ponto há pelo menos duas grandes dificuldades. Em primeiro lugar, a que decorre da diferença nas condições em que tem lugar o exercício conceitual contratualista, pois se, no caso ordinário, a reconstituição e exibição da lógica de instituição de uma entidade política tem na existência prévia dos Estados realmente existentes um pressuposto que lhe dá plausibilidade e pregnância, no caso extraordinário, isto é, no exercício conceitual destinado a apresentar a rationale do que seria a instituição de um centro de poder supraestatal, não só não havia nenhuma entidade supraestatal cuja pré-existência pudesse garantir que não se estava a falar de possíveis meramente especulativos, mas, bem ao contrário, o que a realidade histórica tinha a mostrar era uma situação de conflito imemorialmente tida como inevitável e que, à diferença da situação apontada nas descrições do chamado estado de natureza pelos contratualistas, jamais fora pensada como impeditiva da continuidade da existência das sociedades humanas. Já a segunda grande dificuldade colocada ante a hipótese de uma solução contratualista para o problema das relações internacionais provinha da constatação de que os sujeitos que lhe são os protagonistas dispõem de uma independência funcional, de uma força bélica e de uma presunção de soberania que é incomensurável com a situação em que se encontram os indivíduos humanos sobre os quais se raciocina nos argumentos contratualistas standard.

Kant, no entanto, como se sabe, não recuou diante dessas dificuldades e defendeu a possibilidade e a racionalidade da extensão do modelo contratualista às relações internacionais, ainda que somente in thesi e embora tenha admitido, como sucedâneo mais realista, a criação de uma federação de Estados livres. Os detalhes da argumentação kantiana não precisam ser reconstituídos aqui mas não será demais observar que a tese de Kant sobre um igual direito de indivíduos e povos à posse da superfície terrestre não é em absoluto a defesa de uma espécie de posse coletiva e comunitária da terra, mas antes um princípio a priori de igualdade com relação ao direito de ocupação de parte da superfície do globo, o qual princípio, originariamente – e independentemente de um absolutamente incomprovável presumido e eventual comunismo primitivo3 3 É o que Kant diz no § 13 da Doutrina do Direito: “A posse de todos os seres humanos sobre a Terra que precede quaisquer atos de sua arte que estabeleceriam direitos […] é uma posse original em comum (communio possessionis originaria), cujo conceito não é empírico e dependente de condições temporais, que jamais pode ser provada.” Kant, 2003, p. 107; 1968, p. 6, 262. –, a todos titula igualmente para o apossamento de territórios, glebas e demais bens terrestres, sem prejuízo, porém, de que a ocupação real desses espaços repartidos exija um título específico, e segundo, mediante o qual é legitimada a exclusão dos demais com relação ao uso da parte assim ocupada.4 4 É o que nos é dito no § 62 da Doutrina do Direito onde se lê: “E uma vez que a posse da terra, sobre a qual pode viver um habitante da Terra, só é pensável como posse de uma parte de um determinado todo, e assim na qualidade de posse daquilo a que cada um deles originariamente tem um direito, segue-se que todas as nações originalmente se acham numa comunidade do solo, embora não numa comunidade jurídica de posse (communio) e, assim, do uso dele, ou de propriedade nele [….]” (Kant, 2003, p. 194; 1968, p. 6, 352).

Nesta altura, porém, eu gostaria de mudar a perspectiva de análise que venho seguindo e mudá-la para tentar ver, além do véu doutrinário conceitual da filosofia política moderna, em que termos o espaço condicionou o desenvolvimento das relações internacionais reais.

II

Se agora, deixando de lado, pelo menos provisoriamente, as abstrações normativistas, nos perguntarmos como teve lugar, não propriamente o processo efetivo de apossamento e divisão territorial do globo – assunto que afinal compete antes aos historiadores e aos geógrafos – mas, antes, a reflexão e a fundamentação conceitual produzidas rente à dinâmica real de ocupação territorial da Terra, creio que não é difícil perceber que o caminho de resposta nos leva diretamente à religião e ao direito: tanto mais à primeira quanto mais recuarmos no tempo, o inverso ocorrendo na medida em que nos aproximarmos dos tempos modernos.

Atendo-nos, porém, no presente contexto, somente à preocupação com o que o Direito nos pode ensinar sobre esta problemática complexa, o procedimento mais expedito – e, portanto, o único compatível com as restrições inerentes a uma comunicação em Congresso – parece-me ser o de encontrar um guia que nos possa orientar no espaço labiríntico do Direito Público e, mais especificamente, do Direito das Gentes. Ora, para tal fim, pelo menos com as informações e conhecimentos que estão ao meu alcance, a escolha natural parece ser a obra de Carl Schmitt, à vista, sobretudo, do propósito, do escopo, do alcance e da profundidade de O Nomos da Terra.

Nesta altura, porém, para tornar menos brusca a mudança do nível de análise que estamos a propor, talvez convenha, antes de mais, chamar atenção para os termos em que Schmitt retoma a discussão apresentada acima e, muito especialmente, as análises de Kant sobre a inelutabilidade dos contatos entre as sociedades humanas e sobre os atos fundamentais de apropriação da terra.

Schmitt, com efeito, ao mesmo tempo em que louva a clareza do reconhecimento por parte de Kant de que a propriedade suprema da terra por parte de um soberano é a condição de possibilidade de toda posse das coisas e de todo direito ulterior, seja público seja privado, o censura por não desenvolver esse pensamento em sentido histórico, mas tão somente como “a idéia meramente lógica da associação burguesa” (Schmitt, 2005SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005., p. 26). Expressa em termos positivos a crítica de Schmitt consiste em sustentar que é preciso:

[…] considerar a tomada da terra como um fato jurídico histórico, como um grande acontecimento histórico, e não como uma mera construção do pensamento, a despeito de que historicamente tais apoderamentos de terra se tenham produzido de modo algo tumultuado e o direito sobre a terra tenha surgido às vezes de migrações torrenciais de povos e expedições de conquista e outras vezes da afortunada defesa de um território frente a estranhos (Schmitt, 2005SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005., p. 26).

No artigo Apropriação [nehmen], partição [teilen], sustento [weiden)5 5 Bernardo Ferreira propõe traduzir Weiden por explorar, o que parece também razoável. Cf. Bernardo Ferreira, 2008, p. 336, nota 13. – Um ensaio para fixar as questões fundamentais de toda ordem social e econômica a partir do nomos, Schmitt precisa que nestes três sentidos que é preciso distinguir na palavra nomos – isto é, repetindo, apropriar-se, dividir e sustentar – se encontra “a essência do que apareceu até agora na história como ordenação jurídica e social” (Schmitt, 2005SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005., p. 364).

A agudeza da tese que Schmitt apresenta nestas páginas e o alcance da visão que a sustenta tornam-se mais claros quando da explicitação da ordem em que os tais três sentidos fundamentais do nomos precisam ser mantidos, como se pode bem ver no texto seguinte:

A apropriação da terra cria o título jurídico mais radical que existe, o radical title no sentido amplo e pleno da palavra. Esta causa primitiva que representa o solo, na qual se baseia todo direito e na qual convergem o espaço e o direito, a ordenação e o assentamento, foi percebida perfeitamente pelos grandes filósofos do direito (Schmitt, 2005SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005., p. 26-7).

Sublinhe-se que o ponto onde esta passagem aos conceitos fundamentais do direito corta – relativamente, é claro, às considerações filosófico-normativas de que partimos – reside em que essa mudança de perspectiva traz consigo a introdução da história do ordenamento espacial como base de toda normatividade digna de atenção. O que é também dizer que, segundo esta perspectiva de análise, a consideração da história real é teoricamente imperativa, uma vez que somente o exame dos casos concretos de apoderamento e delimitação territorial nos pode facultar acesso e entendimento da própria normatividade que enquadra e disciplina efetivamente as relações humanas realmente existentes. Além disso, é preciso também aperceber-se que desde tal perspectiva, torna-se igualmente forçoso reconhecer a inevitável contaminação da gênese do direito internacional por elementos circunstanciais, ligados às relações concretas de poder e às coordenadas ideológicas que são contingentemente inerentes a tais processos reais de fundação de ordens políticas e dos relacionamentos que a partir daí se instauram entre povos distintos. Em termos mais práticos, isto implica que a legitimidade de estruturas de relacionamento político é vista como inteiramente independente dos requisitos normativistas abstratos, sendo perfeitamente possível admitir como conformes ao direito relações agressivamente violadoras daquelas exigências.

Para os objetivos que perseguimos aqui, um segundo e extremamente relevante aspecto da passagem à consideração jurídica do modo em que os homens convivem na superfície da Terra, pelo menos da consideração jurídica proposta por Carl Schmitt, se encontra na tese de que toda ocupação política de territórios é, simultaneamente, um princípio de determinação epocal, no sentido de que tais atos fundadores são necessária e variadamente, segundo a ordem do tempo, acompanhados de uma certa e determinadacompreensão simbólica […] do planeta e do universo”, como diz Luiz Maria Bandieri, no prólogo a tradução de O Nomos da Terra que citei acima (InSchmitt, 2005SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005., p. 110). Mais especificamente, a propósito deste ponto, Schmitt diz:

A história de todo povo que se tornou sedentário, de toda comunidade e de todo império se inicia, pois, qualquer que seja a forma, com o ato constitutivo de uma tomada de terra. Isso também é válido com relação ao começo de qualquer época histórica. A ocupação da terra precede não só logicamente, mas também historicamente à ordenação que logo se seguirá. Desse radical title derivam todas as relações ulteriores de posse e propriedade: propriedade comunitária ou individual, formas de posse segundo o Direito público ou o Direito privado, o Direito Social ou o Direito das Gentes. Desta origem se nutrem – para utilizar a palavra empregada por Heráclito – todo direito posterior e todos os preceitos e ordens que são ditados ulteriormente (Schmitt, 2005SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005., p. 28).

A profundidade do que Schmitt tem em vista aqui, sobretudo a vinculação intrínseca entre os movimentos de apropriação da terra e as demais dimensões da vida social, é eloquentemente expressa na seguinte passagem de Terra e Mar:

A cada vez que as forças da história provocam uma nova ruptura, o surgimento de novas energias traz novas terras e novos mares para o campo visual da consciência dos homens, os espaços da experiência histórica sendo então submetidos a uma mudança correspondente. Assim aparecem novos critérios, novas dimensões da atividade política e histórica; novas ciências; novos sistemas sociais; nações nascem e renascem. A mudança de posição pode ser tão profunda e repentina que são alterados não apenas a perspectiva da qual vêem os homens, seus padrões e critérios, mas o próprio conteúdo da noção de espaço. É neste contexto que se pode falar de uma revolução espacial. De fato, mais frequentemente do que não, todas as mudanças importantes na história implicaram uma nova compreensão do espaço. O verdadeiro coração da mutação política, econômica e cultural global encontra-se aí (Schmitt, 1997SCHMITT, Carl. Land and sea. Washington D.C.: Plutarch Press, 1997., p. 29).6 6 Esta passagem é citada também no importante artigo de Bernardo Ferreira (2008) referido acima.

É importante insistir, portanto que desta linha de análise segue-se uma necessária e incontornável historicidade, não somente, por óbvio, das ordens políticas constituídas pelos homens ao longo do tempo e das relações internacionais estabelecidas entre si pelos entes políticos que se encontram e confrontam no espaço terrestre, mas uma historicidade da própria normatividade, uma historicidade dos princípios normativos que efetivamente regulam as relações entre os povos ao longo do tempo.

No presente contexto, é impossível apresentar a partição epocal proposta por Schmitt a partir dessas referências e a visão da história que lhe é correlata, de sorte que bastará dizer que em o Nomos da Terra são distinguidos o Direito das Gentes dos impérios da Antiguidade, considerado como de caráter geograficamente confinado e pré-global, o da Respublica Cristiana, o do ius publicum europaeum desenvolvido a partir dos Grandes Descobrimentos e o do da decadência deste último e de surgimento de um novo nomos da terra a partir da entrada dos Estados Unidos na cena política internacional e da criação do Ocidente como conceito e como unidade geopolítica.7 7 Uma primeira versão amadurecida do implicado nesta entrada dos USA como player mundial é bem expressa na chamada doutrina Stimsom, na declaração de que “[…] o Governo dos Estados Unidos se reserva o direito, com relação a todas as partes do mundo, a negar o ‘reconhecimento’ a mudanças de posse territoriais que tenham sido provocados pela força”.

Convém insistir, no entanto, em que, no contexto da visão schmittiana, cada uma dessas grandes épocas do direito das gentes implica uma fundamentação normativa própria e a sucessão delas uma evidente historicidade – como já se disse e horribile dictum – da própria normatividade.

Em segundo lugar é preciso ressaltar também que estes universos normativos primários, se considerados à luz das exigências morais, podem ser francamente escandalosos, como se pode ver, por exemplo, à luz de um dos dispositivos centrais do jus publicum europaeum, o das assim chamadas linhas de amizade, mediante as quais as grandes potências europeias, em acordos secretos e frequentemente verbais, separavam os princípios normativos a serem respeitados em território europeu daqueles a serem seguidos nos territórios ultramarinos, separação cuja razão de ser estava em tomar a estes últimos, às terras não europeias, como territórios livres, desimpedidamente entregues às manobras e às guerras de saque ou conquista, sem que, contudo, isso implicasse o desencadeamento de conflitos interestatais nos territórios metropolitanos. Repare-se que este princípio de segregação espacial, embora escandaloso do ponto de vista moral e absolutamente cínico, se olhado do ponto de vista das populações não europeias, ademais de cumprir uma função de confinamento dos conflitos bélicos e de preservação da paz na Europa, introduzia na história uma primeira forma de administração concertada das relações internacionais em escala global.

Em terceiro lugar, e com não menor importância, cabe ressaltar ainda que nesses turvos acordos do jus publicum europaeum jazia um fundamento normativo, ou pelo menos a pretensão de que estivessem eles caucionados por um princípio colocado para além da força bruta com relação aos terceiros e aos arranjos de conveniência entre os Estados europeus. Creio que o sentido preciso e forte em que este ponto deve ser entendido fica claro se atentarmos para o comentário que Schmitt faz ao analisar o sucedido depois da chamada Conferência do Congo de 1885 – a seu juízo, o último dos atos de apoderamento da terra feito conjuntamente pela Europa –, nomeadamente o seguinte:

A evolução política mundial desde a Conferência do Congo até a guerra mundial de 1914-18 demonstrou que a fé da Europa na civilização e no progresso já não lograva criar instituições do Direito das Gentes. O triunfo que fora simbolizado na palavra Congo foi breve. Muito embora a civilização europeia se mostrasse ainda bastante consciente de seu valor para achar em si mesma o título jurídico para as grandes apropriações de solo não-europeu, Europa já não era mais o centro sagrado da terra, nem sequer para esta forma secularizada de uma concepção do mundo. Assim, pois, somente a ocupação como fato concreto – e agora isso era a ocupação efetiva – tornava finalmente a ser o único título reconhecido para uma conquista territorial (Schmitt, 2005SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra. Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005., p. 235).

Dessa constatação entristecida, em que se misturam o mais sério e o mais escandaloso eurocentrismo, importa-nos tão somente o núcleo conceitual: a concepção de que os atos de apoderamento das terras e de instituição de ordens políticas amplas pelas quais as relações internacionais eram disciplinadas em escala mundial encontram no valor intrínseco das grandes potências que os estabeleciam a raiz última, o fundamente de um verdadeiro título jurídico.

A um ouvido filosoficamente treinado, ainda que estritamente afinado segundo o mais preciso diapasão normativista, essa declaração deveria soar menos escandalosa do que pode primeiramente parecer, pois Kant ele mesmo não hesita em assumir com o tom peremptório que lhe é tão frequente que na origem de todo direito encontra-se o fato bruto da tomada do poder, como se lê na primeira parte do Apêndice à Paz Perpétua:

[…] não se deve contar […] com nenhum outro começo do estado jurídico a não ser o começo pela força, sobre cuja coação fundamental se fundará ulteriormente o direito público (Kant, 1988KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e outros estudos. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 152-153; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 8, 371).

Ponto que se encontra também na conclusão da conclusão da Doutrina do Direito, onde nos é dito que:

A submissão incondicional da vontade do povo (a qual em si mesma não é unida, sendo, portanto, sem lei) a uma vontade soberana (que tudo une por meio de uma lei) é um fato que só pode começar pela tomada do poder [Gewalt] supremo e, assim, pelo estabelecimento do direito público (Kant, 2003KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003., 215; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 6, 372).8 8 O texto continua assim: “Permitir qualquer resistência a esse poder absoluto […] seria contraditório, pois então esse poder supremo (a que se poderia resistir) não seria o poder legislativo supremo que determina em primeira instância o que deve ser publicamente justo ou não”(Kant, 2003, p, 215; 1968, p. 6, 372).

Bem entendido, a justificativa kantiana para a validade desta origem do universo normativo na vontade de poder e na violência não se encontra na autoconsciência do valor intrínseco do fundador de ordens políticas, mas antes no reconhecimento do imperativo racional que nos comanda sair do estado de natureza. Contudo, é inevitável admitir, mesmo no horizonte da filosofia kantiana, que tais ações fundadoras representam um primeiro e decisivo passo na direção das Luzes, de sorte, que, independentemente das motivações de tais agentes e de sua qualidade moral, é impossível deixar de reconhecer que há neles a indesmentível presença do que Maquiavel chamava de virtu.

Nesta altura, contudo, é muito razoável perguntar que propósito pode haver e que improvável resultado pode ser extraído desta justaposição dessas análises contrapostas, desta posição em paralelo da consideração normativista das relações internacionais e dessa análise positiva, ou, como Schmitt certamente preferiria, existencial desses mesmos fenômenos.

Ora, essa ponderação é obviamente justa, de sorte que, para levá-la na conta devida, vejo-me compelido a, uma vez mais, a mudar a perspectiva de análise, confrontado, na verdade, com o desafio que tradicionalmente é expresso pelo dito clássico: Hic Rodhus, hic salta.

III

O salto aqui – quem sabe já me tenham entendido – é o salto à filosofia da história. A razão de ser, a lógica de constituição desta talvez única disciplina filosófica que não encontra precedente no corpus filosófico grego9 9 A observação, segundo lembro, deve-se a Ortega y Gasset. , é precisamente a de dar conta desta distância, desta separação entre os princípios da moralidade e o curso do universo normativo realmente existente, para valer-me uma vez mais do feliz pleonasmo introduzido por Brezjnev.

Kant, novamente, pode ser aqui um bom fio condutor. Com efeito, neste mesmo ensaio sobre a Paz Perpétua que citamos acima e no qual se encontra a mais estrita transferência para o plano das relações políticas entre os povos das exigências da moralidade, da maneira mais inesperada e insólita, houve por bem sumplementá-lo com um texto de garantia da paz perpétua, com este texto surpreendente já em seu título, cujo pressuposto é a convicção de que o abismo que separa as exigências morais dos comportamentos efetivos e dos princípios normativos de primeira ordem pelo qual são pautadas as relações políticas entre os Estados é não somente insuportável, por certo, mas também, num certo sentido, mais aparente do que real, ou antes e, muito mais exatamente, submetido a um regime em que o aut aut que separa peremptoriamente a moralidade dos fatos é como que rasurado, para usar um termo de Derrida, ou aufgehoben, suspenso, para empregar a expressão clássica de Hegel.

Kant abre esse texto extraordinário anunciando quem é o garantidor da paz perpétua e anunciando-o não como um legislador e prudente, nem como uma autoridade onipotente e infinitamente sábia, mas antes como um artista e um artista das artes mecânicas. Diz, com efeito, a primeira parte do interminável parágrafo de abertura do Primeiro Suplemento à Paz Perpétua:

O que subministra esta garantia [destaque de Kant] é nada menos do que a grande artista, a Natureza (natura daedala rerum), de cujo curso mecânico transparece com evidência uma finalidade: a de através da discórdia dos homens, fazer surgir uma harmonia, mesmo contra a vontade deles. Por esta razão, chama-se igualmente destino, enquanto compulsão de uma causa necessária dos efeitos segundo leis que nos são desconhecidas e, providência em referência à finalidade que existe no curso do mundo, enquanto sabedoria de uma causa mais elevada que tem em vista o fim último do gênero humano e predetermina o devir do mundo [….] (Kant, 1988KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e outros estudos. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 140-1; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 8, 360-362).

Para ilustrar toda a novidade do ponto que Kant faz aqui pode-se contrastar (i) a concepção kantiana de que nossa razão tenha que inevitavelmente pensar que tudo se passa na natureza como se ela, tal como as ações humanas, procedesse intencionalmente, com (ii) a lição sobre a causalidade acidental oferecida por Aristóteles no livro segundo da Física, consoante a qual seria correto dizer que uma tal causalidade é contrária à razão, uma vez que a razão releva “do domínio das coisas que são sempre, ou que o são no mais das vezes, enquanto que a fortuna está no domínio daquelas que fazem exceção a estas últimas” (Aristóteles, 1966ARISTÓTELES. Física. Paris: Les belles lettres, 1966; ARISTÓTELES. Física I-II. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2002., p. 71 e 2002, p. 81). O que é dizer, que o pensamento fundamental da filosofia da história como disciplina especificamente moderna – a idéia, como Hegel viria a dizer, de que há uma espécie de astúcia da razão – só se tornou possível quando o progresso histórico real tornou plausível e quase inevitável a transferência e a secularização da ideia cristã da Providência para o domínio histórico.

Seja como for, para voltarmos à exposição da garantia da paz perpétua, o que a exposição de Kant faz em seguida é notar que, antes de determinar com maior precisão o alcance desta última, é necessário “examinar o estado que a natureza organizou para as pessoas que agem no seu grande cenário”, o que o leva a declarar imediatamente então que:

A organização provisória da natureza consiste em que ela: 1°) providenciou que os homens em todas as partes do mundo possam aí mesmo viver; 2°) através da guerra, levou-os mesmo às regiões mais inóspitas, para as povoar; 3°) também por meio da guerra, obrigou-os a entrar em relações mais ou menos legais (Kant, 1988KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e outros estudos. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 143; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 8, 363).

Para os fins de articulação interna deste artigo, vale dizer, com vistas à justificação de minha atenção simultânea ao normativismo kantiano e ao realismo existencial de Schmitt, o ponto mais relevante desta passagem é a afirmação de que por meio da guerra os povos foram obrigados a entrar em relações mais ou menos legais, pois muito embora essa afirmação não legitime a subordinação da moral à política, nem, muito menos, as violações éticas cometidas no curso da história, ela abre espaço para a admissão de que há uma marcha da razão na história e para a necessidade de que se preste atenção a esta última.

O que é dizer que na lição kantiana de que os “[….] Estados existentes, organizados ainda muito imperfeitamente, [….] na sua conduta externa, aproximam-se muito do que prescreve a ideia de direito, embora [….] o cerne de tal comportamento não seja a moralidade interior’(Kant, 1988KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e outros estudos. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 147; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p.8, 366), devemos ver uma chave tanto para a interpretação da decadência e da superação do jus publicum europaeum pelas formas de dominação global que hoje testemunhamos.

Esta lição kantiana nos deve guiar também na interpretação da lenta construção de instituições políticas transnacionais e da correlata conversão das guerras externas, cada vez mais evidentemente, em ações de polícia e, assim de repressão interna, como um novo, decisivo e positivo passo na direção da constituição de uma ordem republicana universal, a despeito de que estejamos dela ainda muito distanciados e malgrado os aspectos terríveis e assustadores que estão a isso associados.

O que também implica, permitam-me ainda observar, para concluir, em um registro mais nosso, corporativo por assim dizer, que nesta zona de interferência entre a filosofia política e a filosofia da história e na repulsão provocada por tal contato, abre-se um espaço a partir do qual se torna não apenas possível, mas absolutamente necessário que os filósofos intervenham, tratando de demonstrar a profundidade ao mesmo tempo histórica e conceitual das transformações porque está a passar o mundo contemporâneo e da qual, no mais das vezes, como a notória e importantíssima exceção de Jurgen Habermas, temos sido testemunhas omissas e silentes.

  • 1
    Uma versão preliminar desse texto foi lida no I CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas e realizado em 2009.
  • 2
    Na abertura do capítulo XIV de Leviatã lê-se o seguinte: “O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.” (Hobbes, 1974HOBBES, Thomas. Leviathan. São Paulo: Abril Cultural, 1974., p. 82) Ponto cujas implicações já haviam sido expressas com clareza meridiana no capítulo XIV dos Elements of Law, onde Hobbes, já dissera: “Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja a fazer qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e a usufruir todas as coisas que quiser e puder. Porque todas as coisas que ele deseja tem que ser boas segundo seu julgamento, eis que ele as deseja; e podem contribuir à sua preservação uma vez ou outra, ou assim ele pode pensar, e nós o fizemos o juiz delas, na seção 8. Segue-se daí que ele pode fazer todas as coisas justamente. E por esta causa é que se diz corretamente que Natura dedit omnia omnibus, que a natureza deu todas as coisas a todos os homens; de tal maneira que o jus e o utile, o direito (right) e o útil (profit), são a mesma coisa.” (Hobbes, 2003HOBBES, Thomas. Os elementos da Lei natural e política. São Paulo: Ícone Editora, 2003., p. 95. Tradução modificada).
  • 3
    É o que Kant diz no § 13 da Doutrina do Direito: “A posse de todos os seres humanos sobre a Terra que precede quaisquer atos de sua arte que estabeleceriam direitos […] é uma posse original em comum (communio possessionis originaria), cujo conceito não é empírico e dependente de condições temporais, que jamais pode ser provada.Kant, 2003KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003., p. 107; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 6, 262.
  • 4
    É o que nos é dito no § 62 da Doutrina do Direito onde se lê: “E uma vez que a posse da terra, sobre a qual pode viver um habitante da Terra, só é pensável como posse de uma parte de um determinado todo, e assim na qualidade de posse daquilo a que cada um deles originariamente tem um direito, segue-se que todas as nações originalmente se acham numa comunidade do solo, embora não numa comunidade jurídica de posse (communio) e, assim, do uso dele, ou de propriedade nele [….]” (Kant, 2003KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003., p. 194; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 6, 352).
  • 5
    Bernardo Ferreira propõe traduzir Weiden por explorar, o que parece também razoável. Cf. Bernardo Ferreira, 2008FERREIRA, Bernardo. O nomos e a lei. KRITERION, Belo Horizonte, v. XLIX, n. 118, jul.-dez. 2008., p. 336, nota 13.
  • 6
    Esta passagem é citada também no importante artigo de Bernardo Ferreira (2008)FERREIRA, Bernardo. O nomos e a lei. KRITERION, Belo Horizonte, v. XLIX, n. 118, jul.-dez. 2008. referido acima.
  • 7
    Uma primeira versão amadurecida do implicado nesta entrada dos USA como player mundial é bem expressa na chamada doutrina Stimsom, na declaração de que “[…] o Governo dos Estados Unidos se reserva o direito, com relação a todas as partes do mundo, a negar o ‘reconhecimento’ a mudanças de posse territoriais que tenham sido provocados pela força”.
  • 8
    O texto continua assim: “Permitir qualquer resistência a esse poder absoluto […] seria contraditório, pois então esse poder supremo (a que se poderia resistir) não seria o poder legislativo supremo que determina em primeira instância o que deve ser publicamente justo ou não”(Kant, 2003KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003., p, 215; 1968KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke. Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968., p. 6, 372).
  • 9
    A observação, segundo lembro, deve-se a Ortega y Gasset.

Referências

  • ARISTÓTELES. Física. Paris: Les belles lettres, 1966; ARISTÓTELES. Física I-II. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2002.
  • BANDIERI, Luiz Maria. El nomos de la tierra. Prólogo à tradução para o espanhol de Der nomos der erde im Volkerrecht des jus publicum europaeum. Buenos Aires: Editorial Struhart Cia, 2005.
  • CAIMI, Mario, Acerca de la interpretación del Tercer Artículo Definitivo del ensayo de Kant Zum Ewigen Fieden. In: ROHDEN, Valério (Org.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Goethe Institut – Instituto Cultural Brasileiro-Alemão, 1997.
  • FERREIRA, Bernardo. O nomos e a lei. KRITERION, Belo Horizonte, v. XLIX, n. 118, jul.-dez. 2008.
  • HOBBES, Thomas. Leviathan. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
  • HOBBES, Thomas. Os elementos da Lei natural e política. São Paulo: Ícone Editora, 2003.
  • HOBBES, Thomas. The Elements of Law Natural and Politic. Disponível em: <http://www.constitution.org/th/elements.htm>. Acesso em: 02 dez. 2011.
    » http://www.constitution.org/th/elements.htm
  • KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften, Königlich Preussischen. Berlin: Akademie der Wissenschaften, v. 29, 1902-83; agora em Kants Werke Akademie Textausgabe, Walter de Gruyter, 1968.
  • KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e outros estudos. Lisboa: Edições 70, 1988.
  • KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003.
  • PUFENDORF, Samuel. Le droit de Ia nature et de gens. Caen, França: Centre de Philosophie Politique et Juridique de I'Université de Caen, 1987.
  • SCHMITT, Carl. El nomos de la tierra Buenos Aires: Editorial Struhart & Cía., 2005.
  • SCHMITT, Carl. Land and sea. Washington D.C.: Plutarch Press, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2012

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2011
  • Aceito
    29 Dez 2011
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