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As engrenagens do novo populismo Os engenheiros do caos, de Giuliano da EmpoliOs engenheiros do caos

The gears of new populism The engineers of chaos, by Giuliano da Empoli

Los engranajes del nuevo populismo Ingenieros del caos, por Giuliano da Empoli

Empoli, Giuliano da. 2020. Os engenheiros do caos. Tradução de Arnaldo Bloch.São Paulo: Vestígio

Palavras-chave:
Populismo; Democracia; Ciberpolítica; Giuliano da Empoli

Keywords:
Populism; Democracy; Cyberpolitics; Giuliano da Empoli

Palabras clave:
Populismo; Democracia; Ciberpolítica; Giuliano da Empoli

Giuliano da Empoli é um jornalista e pensador francês que passou boa parte de sua vida na Itália. Formado em Direito pela Sapienza Università di Roma, com posterior mestrado em Ciência Política pela Sciences Po (Paris), o autor intersecciona os universos intelectual e político através de sua atuação enquanto CEO do think tank Volta, sediado em Milão. Giuliano ainda ocupou os cargos de secretário da Cultura de Florença e de Conselheiro Político de Matteo Renzi, ex-primeiro-ministro italiano.

A biografia de Giuliano constitui o background que permite a concepção de uma obra como Os engenheiros do caos, na qual uma análise interdisciplinar consegue mapear as principais tendências políticas do século 19. Na versão aqui aludida, o livro consiste em uma brochura de 190 páginas, dispostas a partir de seis capítulos – mais introdução e conclusão – que tem como objetivo central mostrar quem são as personagens que estão por trás da atual ascensão do nacional-populismo no mundo. Nomes são dados e eventos são apontados de forma a indicar também quais são as ferramentas que tais engenheiros do caos utilizam para alcançar seus propósitos. Nisso emerge a principal virtude que se revela também no maior defeito da obra: a amplitude do trabalho, temática e geográfica, serve como uma boa incitação ao debate sobre a relação entre ciência de dados e políticas; ao mesmo tempo, superficializa conceitos e fenômenos históricos particulares a cada país analisado, não considerando as diferentes engenharias políticas presentes em cada um destes.

Logo na introdução traz-se a alegoria do carnaval enquanto “o novo paradigma da vida política global” (Empoli 2020Empoli, Giuliano da. 2020. Os engenheiros do caos. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio., 13) por representar essa festividade um momento no qual as hierarquias se invertem; o sábio torna-se louco e vice-versa. O problema emerge quando o carnaval deixa de ser uma data comemorativa e com hora para terminar, tornando-se um festival perene que dita a estética política contemporânea. Nesse contexto surgem os líderes populistas, os tais loucos que se transformam na referência de multidões cansadas da política tradicional – daquilo que não é carnavalesco. De fato, observa-se no mundo a ascensão de presidentes e de primeiros-ministros que há alguns anos seriam improváveis detentores deste cargo. Na esteira do fenômeno que se denomina atualmente de trumpismo, um novo populismo nasce do apoio de cidadãos que, afastados da política democrática, se sentem negativamente afetados pelos resultados desta (Semán 2017Semán, Ernesto. 2017. Trumpismo: una minoría de masas. Nueva Sociedad 268: 4-13.); as democracias liberais se veem ameaçadas por uma antítese que nasce de suas próprias imperfeições.

A política tradicional, expressa através do modelo da democracia representativa, traz dois grandes problemas à sociedade contemporânea: i) a sensação de distância, por ser a deliberação centralizada nos partidos políticos e a intermediação realizada através de instituições burocráticas; e ii) a respectiva percepção de morosidade, que vê neste processo tradicional uma falta de agilidade e não absorção das vontades instantâneas da população. O novo nacional-populismo promete diminuir o tempo da política: subvertendo o papel das instituições em prol de mecanismos paralelos, demonstra que o diálogo político deles não está com os meios tradicionais, mas sim, com cada eleitor. O sentimento de participação toma conta do indivíduo que até então não se via representado por partidos. A fim de representar a disseminação do sentimento antipolítico do qual o nacional-populismo emerge, Giuliano da Empoli traz a figura do Waldo, em alusão à personagem da série Black Mirror, exibida na Netflix. Da vida que imita a arte, o Movimento 5 Estrelas é retratado como um grupo que conseguiu captar esse sentimento e criar uma estratégia política capaz de ocupar uma maioria no parlamento italiano.

A crescente desigualdade social em um contexto de globalização não inclusiva incendeia os discursos que promovem uma divisão entre “povo” e “elite”, na qual os primeiros devem combater os segundos através de uma inversão de todos os valores políticos até então vigentes. Incitar a ira em diversas minorias descontentes com o establishment político, os imigrantes, os cosmopolitas e todos aqueles que representam algum risco à nação – em sua versão mais idílica e tradicional – é o modus operandi dos nomes por trás desse novo populismo. Para Giuliano da Empoli, a cólera é um dos dois principais ingredientes do carnaval político; uma máquina de comunicação superpotente é o outro.

Destaca-se ao longo da obra alguns países-chave e atores políticos que promovem este movimento antipolítica. Entre eles encontra-se a Itália (denominada de “Vale do Silício do populismo”) e seu tecnopopulismo capitaneado pelo Movimento 5 Estrelas, de Gianroberto Casaleggio; os Estados Unidos, então bastião da democracia liberal que inverte sua própria lógica através da parceria entre Donald Trump e o estrategista Steve Bannon; o Brasil, que possibilitou a eleição de Jair Bolsonaro a partir de uma massiva campanha de fake news através da proliferação de grupos virtuais de extrema-direita como é o caso do Movimento Brasil Livre (MBL); a Hungria dos ataques à União Europeia e da defesa aberta de um Estado iliberal que tenha como lema “Deus, Pátria e Família”, em uma nova realidade conduzida por um ex-presidente que defendia a integração com a Europa, Viktor Orban, e o estrategista político responsável por sua vertiginosa reorientação, Arthur Finkelstein; e o Reino Unido do Brexit que se concretizou graças a um grupo de físicos liderados por Dominic Cummings e do uso de Big Data a partir da Cambridge Analytica.

Aqui entra um componente-chave da obra em voga, o desbravamento desse mundo virtual que fomenta e dirige os discursos populistas; se o populismo e a revolta não são, ainda que diferentes hoje, produtos políticos novos, a forma com a qual esses são promovidos é. A incipiente cibercultura surgida na Califórnia da década de 1970 expande-se ao mundo e alcança o campo político. Eis o nascimento da ciberpolítica, termo que não encontra lugar no livro de Giuliano da Empoli – e aqui se revela uma primeira crítica à obra – mas que já possui valor conceitual e compreende um novo campo de estudos para a análise dos fenômenos políticos ciberneticamente mediados.

O autor cita constantemente o uso de Big Data, algoritmos, trolling, fake news, entre outros, mas jamais sem as unir dentro do campo da ciberpolítica. De todo modo, compreende-se a forma com a qual as novas tecnologias formatam o novo terreno político. Se por um tempo não era considerado de grande importância – restrito a alguns geeks e suas comunidades – para posteriormente ser explorado com fins meramente comerciais, o mundo da internet é hoje o campo no qual a política é definida. Para Giuliano da Empoli, a ascensão do nacional-populismo se deu através da articulação entre físicos, líderes carismáticos e estrategistas políticos que perceberam isso antes dos demais.

Ainda que disposto a partir de um descontentamento material verídico, o apoio ao nacional-populismo ganha fortes conotações simbólicas em um panorama no qual a realidade e a verdade já não são mais essenciais ao discurso político. Há toda uma gama de fatores sociais que levam a esta conclusão, sendo central a crescente importância de redes sociais como Facebook, Instragram e Twitter na vida das pessoas, com os respectivos efeitos afetivos advindos do fenômeno das redes. Narcisismo, depressão, ansiedade; todos esses são afetos potencializados pela presença das redes sociais na vida do cidadão comum que passa a ter como referência não mais o seu vizinho ou amigo, mas sim, celebridades e ídolos. Essa “proximidade” com pessoas até então inalcançáveis estimula a cólera no indivíduo, que passa a perceber sua vida como insuficiente, ruim. Do simbólico ao econômico, o aumento do endividamento e a cultura do consumo crescem exponencialmente enquanto forma de os indivíduos tentarem suprir os déficits de seu mundo da vida.

Os engenheiros do caos aprenderam a manipular esta insatisfação generalizada, esta ambígua admiração/indignação em relação àqueles que figuram como os vencedores de uma corrida regida pelo mito da meritocracia. Uma questão que Giuliano da Empoli cita diversas vezes ao longo da obra e que possui realmente uma grande importância é o fato de que as emoções negativas geram um maior engajamento. Uma série de estudos mostra como postagens e notícias de cunho negativo recebem maior atenção e disseminação do que aquelas de teor positivo, fenômeno perceptível a partir da proliferação de canais e programas sensacionalistas como os brasileiros Brasil Urgente e Balanço Geral.

As redes sociais, que mapeiam os interesses de seus usuários, criam algoritmos para ampliar engajamentos, coletam dados para a criação de um banco de informações e servem ao mesmo tempo de modelo e de fornecedores àqueles que pretendem dar uma finalidade política a esse processo. Há dois pontos que podem ser derivados aqui: um primeiro que se relaciona à possibilidade de formar estratégias políticas rápidas, que conseguem entender as vontades dos cidadãos e os coopta ao entregar aquilo que eles desejam; um segundo que configura a própria ascensão de determinados líderes, que em um discurso contra a política tradicional, aparecem como figuras que não necessitam da intermediação das instituições, que demonstram a capacidade de dialogar diretamente com seus eleitores. Nisso, Giuliano da Empoli argumenta a formação de algo como uma democracia direta, em contraste ao modelo de democracia representativa até então vigente.

Há nisso um fenômeno ainda mais profundo, que representa o fim da coerência política nos programas de governo. Antigamente, os candidatos debatiam em redes de televisão, faziam campanha em locais públicos; segmentavam sua estratégia de modo coletivo, pensando no conjunto de eleitores que iriam absorver sua propaganda. Atualmente a forma de fazer campanha mudou, assim como os canais utilizados para tal; há um direcionamento individual da propaganda política. Manipula-se individualmente qual o conteúdo recebido pelos eleitores, pois a inserção digital possibilita propaganda via redes sociais e canais de comunicação informais, como é o caso do WhatsApp. É majoritariamente através de sua timeline e demais contatos, com conteúdos patrocinados, que o eleitor se informará e decidirá politicamente. É emblemático o caso brasileiro, no qual o então presidente Jair Bolsonaro se elegeu sem participar de debates políticos.

O autor conclui o livro ao defender que se vive atualmente em uma “era da política quântica”. O carnaval enquanto paradigma político contemporâneo tem como base a capacidade hoje existente de captar e manipular dados de forma efetiva para o jogo político. Alude-se a algo como uma revolução científica de cunho paradigmático, à lá Thomas Kuhn (2017)Kuhn, Thomas. 2017. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva., que o autor evoca para descrever o que ocorre hoje com a política em analogia ao que aconteceu com a física no início do século 20; fortemente consolidada sob a mecânica clássica, viu seus pressupostos ruírem frente à emergência da mecânica quântica. Ainda, assim como as certezas da física newtoniana foram derrubadas pela imprevisibilidade que define a física quântica, Giuliano da Empoli (2020Empoli, Giuliano da. 2020. Os engenheiros do caos. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio., 176) coloca que “a política quântica é plena de paradoxos: bilionários se tornam os porta-estandarte da cólera dos desvalidos; os responsáveis por decisões públicas fazem da ignorância uma bandeira; ministros contestam os dados de sua própria administração”.

Ainda que contestável esta noção de política quântica, a qual parece mais uma alegoria do que uma conceituação válida do atual momento, deve-se levar em conta o fato de hoje viver-se em uma realidade afastada do que se tinha até então enquanto ciência política, no sentido lato desse termo. O conhecimento político amplia-se ao conhecimento algorítmico; a ciência de dados já mostrou empiricamente sua capacidade de mapear e definir o comportamento eleitoral e garantir, assim, eleições. Enquanto a detenção de tais saberes estiverem mantidas e utilizadas pela mão de poucos estrategistas, os engenheiros do caos manterão em funcionamento as engrenagens do novo populismo. Não há mais tempo de reivindicar o passado enquanto modus operandi da política presente. O livro, em si, revela-se como um ponto de partida, uma leitura introdutória àqueles que buscam entender melhor as novas dinâmicas da política em tempos de ciberpolítica.

  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do autor antes da publicação.

Referências

  • Empoli, Giuliano da. 2020. Os engenheiros do caos Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio.
  • Kuhn, Thomas. 2017. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva.
  • Semán, Ernesto. 2017. Trumpismo: una minoría de masas. Nueva Sociedad 268: 4-13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2021
  • Aceito
    02 Abr 2021
  • Publicado
    24 Ago 2021
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