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Nem naturais, nem artificiais: as infoecologias e as qualidades simpoiéticas dos ecossistemas conectados

Neither natural nor artificial: info-ecologies and the sympoietic qualities of connected ecosystems

Ni naturales ni artificiales: las info-ecologías y las cualidades simpoiéticas de los ecosistemas conectados

Resumo:

O artigo objetiva apresentar a qualidade transubstanciativa do processo de datificação a partir da descrição das interações relacionadas em um ecossistema conectado. A partir da análise da qualidade das interações do ecossistema conectado Array of things (AoT), aqui chamado de “infoecologia”, investigou-se as dimensões conectivas e interdependentes destas complexas redes de relações que se desenvolvem através do processo de datificação, constituindo um novo tipo de comum não apenas delimitado aos humanos. A partir da análise dessas interações informatizadas, o artigo apresenta algumas interpretações sobre essas novas formas de conexões.

Palavras-chave:
Ecossistemas conectados; Simpoiese; Datificação

Abstract:

The article aims to present the transubstantiative quality of the datification process from the description of the related interactions in a connected ecosystem. Based on the analysis of the quality of the interactions of the connected ecosystem Array of things (AoT), here called “info-ecology”, we investigated the connective and interdependent dimensions of these complex networks of relationships that develop through the datification process, constituting a new type of common not only limited to humans. From the analysis of these computerized interactions, the article presents some interpretations about these new forms of connections.

Keywords:
Connected ecosystems; Sympoiesis; Datafication

Resumen:

El artículo tiene como objetivo presentar la calidad transubstanciativa del proceso de datificación a partir de la descripción de las interacciones relacionadas en un ecosistema conectado. A partir del análisis de la calidad de las interacciones del ecosistema conectado Array of things (AoT), aquí llamado “info-ecología”, investigamos las dimensiones conectivas e interdependientes de estas complejas redes de relaciones que se desarrollan a través del proceso de datificación, constituyendo un nuevo tipo de común no solo limitado a los humanos. A partir del análisis de estas interacciones computarizadas, el artículo presenta algunas interpretaciones sobre estas nuevas formas de conexiones.

Palabras clave:
Ecosistemas conectados; Simpoiese; Datificación

Array of Things: o estudo de um ecossistema conectado

Não existe uma floresta como um ambiente objetivamente determinado: há uma floresta para o guarda florestal, uma floresta para o caçador, uma floresta para o botânico, uma floresta para o andarilho, uma floresta para o amigo da natureza, uma floresta para o carpinteiro e, finalmente, uma floresta de conto de fadas onde se perde a Chapeuzinho Vermelho.

—Agamben

As últimas gerações de redes, depois de ter conectado as pessoas e os dispositivos móveis (web 2.0), passaram também a permitir formas de interação com os objetos (Internet of things -IoT) por meio dos dados (Big data), estendendo progressivamente, através dos sensores e da IoT, o acesso à internet às biodiversidades e ao meio-ambiente. A Internet de todas as coisas (Internet of everything -IoE), assim denominada por constituir uma rede de diversas redes capaz de constituir um habitat complexo e interagente (Dey et al. 2019Dey, Nilanjan, Gitanjali Shinde, Parikshit Mahalle, e Henning Olesen. 2019. The internet of everything: advances, challenges and application. Boston: De Gruyter.) constitui-se como um inédito tipo de ecologia conectada (Di Felice 2019). O processo de digitalização do meio ambiente, das biodiversidades, das florestas, como a construção de plataformas de interação ecológicas que cruzam dados biométricos, dados sociométricos e dados ecométricos, apresentam-se como a constituição de um novo tipo de ecologia resultado de processamento conectivo de dados, cuja qualidade parecem escapar das categorias antinômicas modernas, utilizadas para descrever as relações entre homem e técnica, entre natureza e cultura (Latour 2004Latour, Bruno. 2004. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc.; Descola 2001Descola, Philippe. 2001. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard.).

O processo de digitalização das florestas, seja através da difusão de sensores capazes de escutar o som de uma motosserra e de enviar mensagens aos dispositivos móveis provocando a intervenção das autoridades para impedir o desmatamento (Pereira 2018Pereira, Elite. 2018. A ecologia digital da participação indígena brasileira. Lumina 12 (3): 93-112. https://doi.org/10.34019/1981-4070.2018.v12.21572.
https://doi.org/10.34019/1981-4070.2018....
), seja através da construção de datas-bases habitáveis, como o caso do projeto criado pelo povo Suruí Paiter junto ao Google Earth, que permite o acesso digital às biodiversidades vegetais e naturais e a cultura das populações locais, são exemplos do advento de uma “condição habitativa conectada” (Di Felice 2020Di Felice, Massimo. 2020. A cidadania digital. São Paulo: Paulus., 15) e de um tipo de interação com o meio ambiente mediada por dados, interface, softwares algoritmos e dispositivos digitais.

A pesquisa apresentada neste artigo desenvolveu-se através da análise da qualidade das interações do ecossistema conectado Array of things (AoT), ou aqui chamado de “infoecologia”, com o objetivo de analisar as dimensões conectivas e interdependentes dessas complexas redes de relações que se desenvolvem através do processo de datificação, constituindo um novo tipo de comum não apenas delimitado aos humanos. A partir da análise dessas interações informatizadas o artigo apresenta algumas interpretações sobre essas novas formas de conexões.

Nesse habitat conectado, a dimensão informativa parece perpassar todos os diversos tipos de superfícies e todos os membros, juntando-o em um inédito tipo de comum e oferecendo, ao mesmo tempo, a cada um desses, um novo formato e um novo tipo de interação. O estudo de tais “infoecologias” (Di Felice 2020Di Felice, Massimo. 2020. A cidadania digital. São Paulo: Paulus., 77) apresenta um desafio para a pesquisa, ocasionando uma importante reflexão sobre os fundamentos da metodologia e da produção de conhecimento no âmbito das ciências sociais, dos estudos da comunicação e da filosofia.

Nas pesquisas realizadas em ambientes digitais, ocorre uma situação social tecnológica (Meyrowitz 1995Meyrowitz, Joshua. 1995. Oltre il senso del luogo: como i media elettronici influenzano il comportamento sociale. Bologna: Baskerville.) de copresença na qual a distinção entre observador, arquitetura informativa e informante se reduz pondo a “necessidade de uma reflexão sobre as mediações da comunicação por meio dos computadores e softwares e os códigos compartilhados, sejam eles verbais ou corporais ou outros” (Rifiotis 2010Rifiotis, Theophilos. 2010. Antropologia do ciberespaço: questões teórico-metodológicas sobre a pesquisa de campo e modelos de sociabilidade. In Antropologia no ciberespaço, organizado por Theophilos Rifiotis, Maria Elisa Maximo, Juciano de S. Lacerda e Jean Segata, 15-27. Florianópolis: Editora da Ufsc., 21).

Dessa maneira, a metodologia de pesquisa utilizada para o estudo da infoecologia apresentada em seguida, baseou-se seja na coleta de dados dos registros digitais dos depoimentos dos seus desenvolvedores,3 3 O projeto Array of Things é coordenado por Charlie Catlett, do Discovery Partners Institute da Universidade de Illinois, com parceiros do Argonne National Laboratory de Ciência e Engenharia (Naise) e do Centro Urbano para Computação e Dados do Instituto Mansueto para Inovação Urbana da Universidade de Chicago. A plataforma de software e hardware subjacente, conhecida como Waggle, foi desenvolvida no Laboratório Nacional de Argonne por Pete Beckman, Charlie Catlett, Rajesh Sankaran, Nicola Ferrier e dezenas de alunos estagiários. Os depoimentos dos seus desenvolvedores estão disponíveis no website oficial. na arquitetura informativa do projeto Array of things. Array of things. 2020. Acessado 24 maio 2021. https://arrayofthings.github.io. seja na observação interna da arquitetura, realizando um estudo direcionado à obtenção de dados reveladores das qualidades e das específicas caraterísticas da condição habitativa e dos dinamismos reticulares (coletivos, tecnologia e territórios) que se articulam (Di Felice, Torres e Yanaze 2012Di Felice, Massimo, Juliana C. Torres, Leandro K. H. Yanaze. 2012. Redes digitais e sustentabilidade: as interações com o meio ambiente na era da informação. São Paulo: Annablume., 183). A descrição sucessiva constitui um particular desafio interpretativo e linguístico que partindo da tradição da etnografia digital (Hine 2000Hine, Christine. 2000. Virtual Ethnography. London: Sage.), da netnografia (Kozinets 2010Kozinets, Robert V. 2010. Netnography: doing ethnographic research online. London: Sage.) e da antropologia do ciberespaço (Rifiotis 2010Rifiotis, Theophilos. 2010. Antropologia do ciberespaço: questões teórico-metodológicas sobre a pesquisa de campo e modelos de sociabilidade. In Antropologia no ciberespaço, organizado por Theophilos Rifiotis, Maria Elisa Maximo, Juciano de S. Lacerda e Jean Segata, 15-27. Florianópolis: Editora da Ufsc.) ou ciberantropologia (Haraway 1991Haraway, Donna. 1991. A cyborg manifesto science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century. In Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature, 149-181. New York: Routledge. Donna Haraway.) torna o pesquisador mais que participante: conectado, hóspede, observador e interagente ao mesmo tempo. A qualidade conectiva das interações nestes ambientes digitais transforma o investiga dor de mero observador à entidade interagente que, ao reconstruir os emaranhados de relações, inevitavelmente, a influencia e a modifica.

A infoecologia estudada é aquela que atravessa o ecossistema de interação realizado pelo projeto Array of things (AoT)4 4 Array of things. 2020. Array of things. Acessado 24 maio 2021, https://arrayofthings.github.io. implementado em Chicago desde 2019, financiado pela US National Science Foundation. O projeto foi desenvolvido a partir da colaboração entre cientistas, arquitetos, governo local, moradores e a própria prefeitura de Chicago.5 5 O projeto Array of Things está sendo estudado por Rita Nardy, pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisa Atopos USP, em seu projeto de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), sob o título “Como conversar com Gaia: as ecologias digitais e a comunicação no ecossistema”. Sensores6 6 No final de 2019, aproximadamente 130 nós da rede de sensores estavam operando em toda a cidade, normalmente em cruzamentos de rua. O plano do projeto original era crescer para 150 nós em meados de 2020, envolvendo a substituição de nós mais antigos (alguns dos quais foram instalados no início de 2016) e a adição de locais. No entanto, a pandemia COVID-19 suspendeu todas as atividades de instalação até o momento. situados em diversos pontos, como em árvores, postes e telhados, captam informações sobre o meio ambiente, os fluxos das infraestruturas e as atividades da cidade com o objetivo de apoiar a pesquisa, a educação cívica dos moradores e a gestão pública urbana. Trata-se de dados sobre temperatura, umidade, qualidade do ar ou, ainda, quantidade de ozônio, nitrogênio, monóxido e dióxido de carbono, luminosidade, níveis de ruído etc. Os dados são coletados em tempo real, bem como as imagens e as informações sobre o tráfego de pessoas e de meios de transporte: “O primeiro dispositivo, protótipo do que está sendo utilizado nas ruas de Chicago, foi desenvolvido pela Argonne National Laboratory e reunia 12 aparelhos, denominados nós da rede”.7 7 Dados do: Array of things. 2020. Array of things. Acessado 24 maio 2021. https://arrayofthings.github.io.

A aplicação das tecnologias IoT no projeto Array of Things (AoT) tem como objetivo aumentar, por meio da comunicação dos dados, a participação do cidadão nos processos de tomada de decisão. Esse novo cidadão, conectado e ativo, preparado para acessar, compreender e utilizar as informações em sistemas híbridos, como aquele proposto pela AoT, tem a possibilidade de comunicar-se, em tempo real e de maneira cada vez mais integrada, com o ambiente que habita.

Considera-se, assim, a AoT uma plataforma de acordo com van Dijck, Poell e Waal (2018Van Dijck, José, Thomas Poell e Martijn de Waal. 2018. The Platform Society. Oxford: Oxford University Press., 21):8 8 Salvo indicação em contrário, todas as traduções são nossas.

As plataformas não são o reflexo do social: estas produzem as estruturas sociais nas quais vivemos […] são arquiteturas digitais programáveis, projetadas para organizar as interações entre os usuários – não somente entre os usuários finais, mas também entre entidades jurídicas. Operando através da coleta sistemática, a elaboração algorítmica, a circulação e a monetarização dos dados dos usuários.9 9 “Platforms do not reflect the social: they produce the social structures we live in […]. It is a programmable digital architecture designed to organize interactions between users – not just end users but also corporate entities and public bodies. It is geared toward the systematic collection, algorithmic processing, circulation, and monetization of user data.”

A plataforma AoT expressa uma rede de inteligências conectadas e interativas que, através do acesso e da visualização de dados, permite o desenvolvimento de formas de relações sustentáveis e integradas que contemplam toda a ecologia datificada da região. As plataformas de interação de dados de diversos tipos poderão criar práticas distribuídas de contratualidades complexas e emergentes, entre entidades de diversas naturezas, criando novos tipos de governance parecidas com aquela que Latour (2004)Latour, Bruno. 2004. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc. denomina de parlamento das coisas.

A plataforma Array of Things, assim como os diversos casos de uso de inteligências artificias para monitoramento e defesa de espécies ameaçadas de extinção ou a utilização de deep learning para a construção de database sobre as biodiversidades ou as mudanças climáticas (Dauvergne 2020Dauvergne, Peter. 2020. AI in the wild. Massachusetts: MIT Press.), exprime um particular tipo de habitat que não se presta a ser narrado por meio da linguagem produzida pelo paradigma epistêmico que separa o natural do artificial, o humano da técnica e da natureza.

A infoecologia assume, assim, uma nova dimensão, expressão de um novo tipo de ecologia, conjuntamente informativa e material, biológica e algorítmica, habitável e percorrível apenas através da conexão aos dispositivos móveis. Nasce, assim, um genius loci tecnológico (Di Felice 2009Di Felice, Massimo. 2009. Paisagens pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume.), produto da interação fértil entre dados, dispositivos, ondas de rádio, computação móvel, paisagens materiais e substâncias orgânicas.

O habitar simpoiético

There is one major finding for which we should be grateful both to anthropological structuralism and to the pioneering work of Gregory Bateson. It is a finding that is perceptible even to those who pretend to be unaware of its source: namely the agenda to envisage social life from the point of view of the relations that hold it toghether. This is a choice that presupposes ascribing to the links that relationships establish a structural stability and regularity greater than that of the contingent actions of the elements that they link.

—Phillippe Descola

Como mencionado anteriormente, tal ecossistema conectado nos apresenta um desafio metodológico e linguístico. Como narrar um tipo de complexidade emergente e híbrida?

Um primeiro importante passo em direção a uma compreensão dessa ecologia conectada é a superação das categorias modernas que oponham a natureza à cultura (Descola 2001Descola, Philippe. 2001. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard.; Latour 2004Latour, Bruno. 2004. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc.) e o humano à técnica (Heidegger 2006Heidegger, Martin. 2006. Ensaios e conferências. Petrópoles: Vozes.; Haraway 2016Haraway, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press.; Accoto 2020Accoto, Cosimo. 2020. O mundo dado: cinco breves lições de filosofia digital. São Paulo: Paulus.; Hui 2020Hui, Yuk. 2020. Tecnodiversidade. Ubu: São Paulo.). Um segundo aspecto é a redefinição da situação social (Goffman 1985Goffman, Erving. 1985. A representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vozes.) a partir de sua qualidade tecnológica (Meyrowitz 1995Meyrowitz, Joshua. 1995. Oltre il senso del luogo: como i media elettronici influenzano il comportamento sociale. Bologna: Baskerville.) e informativa (Di Felice 2009Di Felice, Massimo. 2009. Paisagens pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume.) que determinam da alteração dessa socialidade através da ativação de um play ou de um off em um display, capaz de alterar o contexto, o ambiente de interação e a qualidade deste habitar “atópico”10 10 Do grego a-topos: lugar estranho, lugar indizível, fora do lugar. (Di Felice 2009Di Felice, Massimo. 2009. Paisagens pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume.).

Enfim, um terceiro aspecto que caracteriza a originalidade desse tipo de ecossistema da AoT, formado pela hibridação de superfícies datificadas, orgânicas, químicas, materiais e informativas-digitais, é aquele relativo às suas peculiaridades morfológicas que as tornam próximas, mais que os agregados sociais formados por humanos a ecossistemas complexos. Nas ciências biológicas a definição de ecossistemas remete às suas dimensões reticulares e às propriedades não autopoiética de seus membros e constituidores:

Embora os organismos reivindiquem nossa atenção principal, quando analisamos em profundidade, não podemos separá-los de seu ambiente espacial com o qual eles formam um ambiente físico. […] Nosso preconceito humano nos leva a considerar os organismos como a parte mais importante desses sistemas, mas certamente os fatores inorgânicos fazem parte deles – não haveria sistema sem esses últimos, e existe uma troca intensa e constante entre os diferentes elementos e entre cada sistema, não apenas entre os organismos, mas entre o orgânico e o inorgânico. Esses ecossistemas, como podemos chamá-los, são de diferentes tipos e tamanhos (Tansley 1935Tansley Arthur G. 1935. The use and abuse of vegetational terms and concepts. Ecology 16 (3): 284-307. https://doi.org/10.2307/1930070.
https://doi.org/10.2307/1930070...
, 284-307).

Além de uma dimensão social agregativa e reticular (Latour 2009Latour, Bruno. 2009. Non siamo mai stati moderni. Milano: Elèuthera.) este tipo de complexidade nos remete a uma dimensão transorgânica (Perniola 1996Perniola, Mario. 1996. Il sex appeal dell'inorganico. Turim: Einaudi.) que mais que expressar qualidades relacionais indica uma “condição habitativa reticular e híbrida” (Di Felice 2020Di Felice, Massimo. 2020. A cidadania digital. São Paulo: Paulus.).

A etimologia latina do termo “condição” refere-se a dois possíveis e diversos significados, opostos e complementares. Um primeiro condicio-condicionis condiz à “norma”, à “lei”, a “vínculo”, a “limite”; o segundo “conditio-conditionis”, remete ao significado oposto de “possibilidade”, “abertura”, “criação”.

Portanto, a expressão “condição habitativa” remete, em primeiro lugar, a um estado não permanente, mas dinâmico e mutante. A condição é o que se expressa, no decorrer do tempo, agora como limite e contemporaneamente como possibilidade, produzindo um estado mutante e instável (Di Felice 2017Di Felice, Massimo. 2017. Net-ativismo: da ação social para o ato conectivo. São Paulo: Paulus.). Neste sentido a condição deve ser entendida como algo diverso da essência.

O termo habitar é utilizado por Heidegger (2006)Heidegger, Martin. 2006. Ensaios e conferências. Petrópoles: Vozes. para explicar a dimensão não ontológica do ser. Esse último, segundo o filosofo alemão, em oposição à tradição filosófica ocidental, não pode ser representado como uma essência, isto é, como uma realidade atemporal e imutável. O ser, para ele, não é algo puro ou conceitual, mas uma possibilidade temporária, um ser em situação, inserido no mundo e parte de uma quadratura “Geviert”, que exprime o ser como uma ecologia e, ao mesmo tempo como um “estar aí”, um “Dasein”:

O aspecto fundamental do habitar é este cuidar (Schonen). Este aspecto permeia o habitar em cada seu aspecto. O habitar nos mostra toda a sua amplitude quando pensamos que no habitar reside o ser do homem, entendido como um permanecer dos mortais em cima da terra. Mas em cima da terra significa já embaixo do céu. Ambos significam permanecer perante aos divinos e implicam um pertencimento à comunidade dos homens. Existe uma unidade originária dentro da qual os quatros, terra, céu, divinos e mortais são uma única coisa. […] Esta sua simplicidade nós a chamamos quadratura (Geviert). (Heidegger 2006Heidegger, Martin. 2006. Ensaios e conferências. Petrópoles: Vozes., 96).

Desta maneira o pensamento do filósofo alemão abre-nos à perspectiva de pensar o habitar como uma realidade não apenas humana, nem apenas existencial. Mas como o advento de uma ecologia emergente que ao associar entidades, humanas e não, atribui ao habitar uma condição ao mesmo tempo específica e coletiva, temporária e mutante.

Mas, sobretudo, esta dimensão não ontológica, mas relacional dos quatros elementos que compõem a quadratura exprimem as dimensões emergentes de um tipo de ecologia não mais dizível através das categorias sujeito e objeto.

Um ulterior passo adiante na tentativa de descrever os ecossistemas conectados pode ser feito experimentando descrever um tipo de ecologia não constituída de um conjunto de partes, diversas e interagentes, mas como uma rede de redes de conexões que produzem alterações não somente às interações dos seus diversos membros que as compõem, mas também às substâncias desses, isto é, às suas composições, sejam essas orgânicas ou não.

Em seu último livro, Dona Haraway (2016)Haraway, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press. descreveu as dimensões conectivas e não autocentradas das entidades interagentes. Segundo a filósofa americana nenhuma entidade pode ser definida autopoiética – humanos, animais, plantas, pedras, computadores, vírus, bactérias –, ou seja: tudo o que existe está conectado e se transforma por meio da informação. Tal propriedade é denominada pela autora simpoiese e descreve a dimensão conectiva e não autopoiética de todos os seres. Os vírus, incapazes de vida autônoma, são o exemplo microscópico mais eloquente dessa qualidade. Para sobreviver, os vírus precisam ser hospedados nas células de um homem, de um animal, de uma planta ou até mesmo de uma bactéria. Vírus e hospedeiros visam o mesmo objetivo: coabitar, coexistir e proliferar seu patrimônio genéticos no maior número possível de cópias. Hoje sabemos que uma parte significativa da herança genética humana consiste em milhares de cópias de elementos virais que ao longo do tempo se tornaram inquilinos estáveis de nossas células. Mas o que é ainda mais importante, segundo a escritora é que, não só a nossa vida, mas toda a biosfera depende das condições simpoiéticas e de coabitação.

As colaborações simpoiéticas entre lulas e bactérias desenham figuras de fios por meio de várias disciplinas e metodologias, incluindo sequenciamento do genoma, tecnologias de diagnóstico genômico, genômica funcional e biologia de campo, o que torna a simbiogênese uma estrutura conceitual muito poderosa para a biologia do século 21 (Haraway 2016Haraway, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press., 99).

Haraway (2016)Haraway, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press., citando o pensamento de Nancy Moran, quer enfatizar o fato de que a pesquisa sobre a simbiose se tornou ativa no campo biológico ao mesmo tempo em que a tecnologia do DNA e a genômica expandiram a nossa capacidade de descobrir a diversidade de simbiontes e o funcionamento metabólico do hospedeiro e das comunidades microbianas.

Mais que por mediações e relações, a lógica da simpoiese se apresenta como conectiva e transorgâ nica, expressando a passagem de uma ideia de um devir monospecífico para um habitar multiespecífico,

Enraizadas na unidade e nas relações, especialmente nas relações competitivas, as ciências da Síntese Moderna – por exemplo, aquelas focadas na genética de populações – lutam para se manterem em dia com quatro áreas fundamentais da biologia: embriologia e desenvolvimento, simbiose e o entrelaçamento colaborativo entre holobiontes e holobiomas, o imenso aglomerado de micróbios e as exuberantes intra e inter-ações bio-comportamentais entre criaturas. As abordagens em sintonia com o “co-devir das multiespécies” nos ajudam a estar em contato com o problema desta terra (Haraway 2016Haraway, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press., 94).

Para a filósofa americana o que caracteriza o processo da vida é uma coevolução entre as espécies na realização de formas de parentesco e de agrupamento tentacular que Haraway, inspirada na mitologia grega, chama de Chthulucene.

No momento, a terra está cheia de refugiados, humanos e não humanos, sem mais refúgio. É por isso que acredito que um nome marcante (na verdade mais do que um nome) para definir esta situação se justifica […]. Insisto também no fato de que precisamos de um nome para reagrupar as forças e os poderes dinâmicos e sincrônicos que as pessoas constituem uma parte, dentro da qual estão em jogo o existir e o progredir. Talvez seja apenas por meio do empenho intenso e das formas de colaboração e de jogo com todos os terrestres que novas ricas aglomerações multiespécies sejam possíveis, capazes de hospedar até mesmo os humanos. Eu chamo tudo isso de Chthulucene – passado, presente e futuro. […] Chthulucene, embora tenha suas raízes gregas que o ancoram em um tempo e lugar, na verdade aproveita uma miríade de diferentes temporalidades e espacialidades e uma miríade de entidades-em-agrupamentos intra-ativos, incluindo agrupamentos mais do que humanos, outros-de-humanos, húmus desumano e semelhante ao humano (Haraway 2016Haraway, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press., 145).

É possível descrever a condição habitativa simpoiética como um modo conectivo e não apenas relacional, dependente em âmbito genético que delineia as redes de redes de ecossistemas.

Este novo habitat ao se constituir como ambientes de interações múltiplas entre diversos “actantes” (Latour 2004Latour, Bruno. 2004. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc.) e ao adquirir formato de dados altera sua condição, tornando-se entidades interagentes de maneira diversa daquela originária. Portanto, a análise dos ecossistemas conectados não pode limitar-se aos seus dinamismos agregativos, mas devem compreender também a alteração do estatuto e da natureza de suas partes.

A datificação dos ecossistemas como um processo transubstanciativo

Bactéria, fungo, baleia, sequoia: não conhecemos nenhum ser vivo de que possamos dizer que não emite informação, não a recebe, não a armazena e não a trata. Cristal, rocha, mar, planeta, estrela, galáxia, já não conhecemos nenhuma coisa inerte da qual possamos dizer que não emite informação, não a recebe, não a armazena e não a trata.

Indivíduo, família, fazenda, aldeia, metrópole, nação: não conhecemos nenhum ser humano, sozinho ou em grupo, do qual podemos dizer que não emite informação, não a recebe, não a armazena e não a trata.

—Serres

Se em um primeiro momento o processo de digitalização significou a mudança em código binário (01010101) dos fluxos informativos, sucessivamente, das coisas, via etiquetamento e transmissão pelas ondas rádio Rfid, e das biodiversidades, através da disseminação de sensores, a sua evolução produziu uma incontável quantidade de dados (Big data) transformando coisas, comportamentos, relações, culturas e cada aspecto da nossa realidade em dados. Tal fenômeno denominado datificação (Cukier e Mayer-Schoenberger 2013Cukier, Kenneth e Viktor Mayer-Schönberger. 2013. Big data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt.; Biltgen e Ryan 2016Biltgen, Patrick e Stephen Ryan. 2016. Activity-based intelligence: principles and applications. Boston: The Artech House Electronic Warfare Library.) constitui uma nova fase do processo de digitalização, capaz, como o primeiro, de implementar qualitativas transformações na vida social, mas, ao mesmo tempo, de alterar a qualidade das interações com o meio ambiente e entre todos seus componentes.

A datificação da biosfera, das coisas, das biodiversidades, bem como a da saúde e dos nossos corpos, teve o mérito não apenas de dar voz à “natureza” (até então considerada como realidade externa), mas de nos revelar a dimensão simpoiética, ou seja, reticular e conectiva da existência. Com o Big data e a transformação da realidade em dados, tornou-se possível conhecer com mais exatidão e ter acesso de maneira mais analítica ao estado de saúde do nosso corpo, aquele das florestas, das árvores das nossas cidades, assim como ter acesso aos dados sobre a qualidade do ar, da água e do clima, aprendendo, ao mesmo tempo, a desenvolver novas atitudes sensoriais e expandindo, assim, nossas interações e nossa concepção ecológica. Longe de ser apenas um fenômeno quantitativo de incremento de informações, o processo de datificação vem assumindo um conjunto de novos significados.

Em primeiro lugar a datificação se apresenta como uma alteração qualitativa do nosso acesso à realidade. A difusão do Big data nas atividades científicas e em todos os âmbitos do nosso convívio significa uma transformação da mesma abordagem epistêmica à complexidade da natureza:

As ciências do antropoceno estão muito de limitadas às teorias dos sistemas restritivas e às teorias evolutivas que compõem a Síntese Moderna, que, apesar de sua extraordinária importância e de seu extraordinário valor, provaram ser incapazes de refletir bem sobre simpoiese, simbiose, simbiogênese, desenvolvimento, ecologias de rede e micróbios (Haraway 2016Haraway, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press., 77).

Em segundo lugar, mais que apenas um processo produtor de inovações computacionais, o nascimento de novas formas de conhecer e medir fenômenos através do Big data, assim como demonstra o rápido isolamento do agente patógeno e a criação da vacina durante a atual pandemia, por meio da superação das tradicionais separações entre orgânico e inorgânico e entre natural e artificial, assume, também, o significado de um repensamento da ideia de agência (quem faz o quê?) através da perspectiva de modelos simbióticos, complexos e não apenas comportamentais e visíveis (Kitchin 2014Kitchin, Rob. 2014. Big data, new epistemologies and paradigm shifts. Big Data & Society 1 (1), 1-12. https://doi.org/10.1177/2053951714528481.
https://doi.org/10.1177/2053951714528481...
). Agindo em âmbito genético e a nível microscópico o processo de datificação torna-se transorgânico e, em suas qualidades, predominantemente invisível.

A qualidade das interações, depois de ter assumido uma dimensão extrassociológica capaz de incluir entidades e actantes não humanos (Latour 2004Latour, Bruno. 2004. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc.) e alcançar uma complexidade “cosmopolítica” (Stengers 2011Stengers, Isabelle. 2011. Cosmopolitics II. Posthumanities. Minneapolis: University of Minessota Press.), por meio do processo de datificação, parece ter adquirido uma dimensão transorgânica (Perniola 1996Perniola, Mario. 1996. Il sex appeal dell'inorganico. Turim: Einaudi.; Di Felice 2009Di Felice, Massimo. 2009. Paisagens pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume.). Não somente pela crescente importância dos vírus, das bactérias, do CO2, dos algoritmos e do Big data em nosso convívio, mas, sobretudo, pela mudança, de escala da própria agência, também datificada.

Das florestas tropicais às calotas polares, passando pelas águas dos oceanos, pelos vírus e redes dos genomas, o processo de datificação não se aparenta como um processo estatístico que atribui números e valores a cada elemento da realidade, mas mais como um processo que, por meio do Big data, conecta todos os tipos de superfície, em todos os níveis de grandeza, do macro até as partículas microscópicas, tornando aquilo que era isolado e distante algo próximo, processável e interativo.

Essa transformação do mundo em “dados”, em uma realidade programável, para o filosófo Cosimo Accoto (2020)Accoto, Cosimo. 2020. O mundo dado: cinco breves lições de filosofia digital. São Paulo: Paulus., configura-se em uma nova dinâmica criada pela difusão de sensores e sua capacidade pervasiva de criação de mundos, vetores geradores de ecologias e experiências ampliadas:

O meio ambiente passa a ser um ecossistema que acontece e evolui por meio de tecnologias de sensoriamento. O ambiente não é algo externo que medimos por meio de sensores. Sensores e ambiente tornam-se um. A pro gramabilidade que inserimos nos ambientes através da presença de sensores, código e inteligência maquínica passa a fazer parte dessa nova ecologia. As tecnologias de sensoriamento são constitutivas do sentido e do mundo. Eles também “experimentam” por meio de novas capacidades perceptivas inumanas e de dados (Accoto 2020Accoto, Cosimo. 2020. O mundo dado: cinco breves lições de filosofia digital. São Paulo: Paulus., 49).

A datificação assume, assim, as formas de uma transespecificidade informativa capaz de alterar a substância originária em dados, isto é, em algo diverso, acessível e informativamente manipulável, mas, ao mesmo tempo, sem alterar sua forma originária. As florestas, os ursos polares, os mosquitos, os vírus, o DNA etc., continuam a ser como tais, embora, uma vez transformados em dados e conectados às redes digitais, tornam-se também algo diverso, interagindo e transformando, assim, suas identidades, até então consideradas apenas físicas.

Trata-se, portanto, de uma particular forma de transformação sem uma alteração visível que não parece produzir-se materialmente, mas que aparece como resultado de um processo de datificação, comunicativo-conectivo. Como narrar tal particular forma de transformação que se apresenta como um adinamismo (Di Felice 2017Di Felice, Massimo. 2017. Net-ativismo: da ação social para o ato conectivo. São Paulo: Paulus.) e que produz alterações das substâncias não provocadas por acidente, por uma ação ou um fenômeno físico, mas, por um processo informativo-conectivo? A narrativa no âmbito da espiritualidade pode oferecer uma metáfora inspiradora.11 11 A possibilidade de estudar os fenômenos sociais a partir da interpretação dos fenômenos de natureza religiosa é prática comum na antropologia e marca toda a história do pensamento ocidental desde Platão ao Iluminismo. Como observado por Iurato, “A partir dessa última perspectiva, o fenômeno religioso foi estudado fenomenologicamente como manifestação do sagrado, o objeto religioso em geral visto em uma relação opositiva e dialética ao profano da vida secular, fenômeno que, como fato religioso, explica-se modalmente como hierofania (de “hierós”, sagrado, e “phaíno”, eu mostro), segundo formas historicamente e localmente determinadas, as quais, todavia, não impedem elementos de ecumenicidade que lhe dão um valor universal e atemporal, permitindo também, portanto, uma visão e uma possível interpretação racional. De fato, da múltipla variedade das hierofanias que, desde os tempos mais remotos, caracterizaram o corpo doutrinário-moral-ritualístico da religião de cada povo, cada lugar e cada época, pode-se entre estes rastrear, como elemento típico, a transubstanciação [consubstanciação] de um objeto profano em um objeto sagrado: por exemplo, os hindus veneram uma árvore chamada Avattha, a qual, aos olhos de tal comunidade religiosa indiana em um determinado período, é uma hierofania,, um objeto sagrado, e não [somente] um mero acidente vegetal” Iurato, Giuseppe. 2015. Alcune riflessioni storico-critiche di epistemologia teologica. Acessado 20 abr. 2020, https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01235248v2/document.

Seguramente a mais próxima às dimensões da alteração produzida pela datificação é aquela relativa à concepção teológica do rito católico da eucaristia, conhecida como transubstanciação. Tal fenômeno indica a transformação da hóstia e do vinho em corpo e sangue de Cristo, o que ocorre durante o ritual da missa, seguido pela oração eucarística:

Na doutrina católica, na Eucaristia, devem ser considerados como elementos caracterizantes a presença real, o sacramento e o sacrifício. A via, como se costuma dizer na teologia, para a presença real é a transubstanciação, isto é, Jesus Cristo se faz presente realmente, verdadeiramente e substancialmente na Eucaristia pela transubstanciação assim como definida pelo Concílio de Trento. O conceito de total conversão de uma substância em outra, sem um lento processo transformativo físico-químico, mas somente por força de poucas e precisas palavras contidas na particular fórmula pronunciada pelo sacerdote durante a consagração litúrgica da Eucaristia, com, ademais, o fato de que tal conversão deixa intactas as propriedades acidentais da primeira substância sem dar lugar às propriedades acidentais da nova substância, as quais, embora estando aí, permanecem como substância, e, enfim, o fato de que a substância primeira seja pão e vinho, enquanto a outra, o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Jesus Cristo, constituem, no complexo, um dos mais altos mistérios da doutrina eclesiástica, sendo tal propósito denominado como o mistério da fé por antonomásia (Iurato 2015, 96).12 12 Iurato, Giuseppe. 2015. Alcune riflessioni storico-critiche di epistemologia teologica. Acessado 20 abr. 2020, https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01235248v2/document.

O fenômeno da transubstanciação pode ser livremente utilizado para pensar o significado da datificação e para descrever sua “anatureza” aorística (do greco “ilimitado”).

Longe de ser apenas um processo de alteração simbólico ou um simples ritual para a teologia católica, o pão e o vinho consagrado tornam-se realmente o corpo e o sangue de Cristo.

Na Eucaristia não há mais substância de pão e de vinho, nem se pode dizer que se anula, mas só que se converte, segundo um processo não explicável pela razão, no corpo e no sangue de Jesus Cristo. Por isso, onde há o corpo e o sangue de Jesus Cristo há também a sua alma e sua divindade; há a presença real de Cristo propriamente em virtude dessa conversio totalis, cujo significado, indo além daquele insuficiente assumido pelos termos transformação ou trans mutação, requereu-lhe uma coniato ad hoc, isto é, o significado de transubstanciação, que, de qualquer maneira, pode resumi-los. Uma característica peculiar da transubstanciação é, portanto, envolver a transformação de uma substância não acompanhada de qualquer mudança de acidentes das espécies eucarísticas, o que não implica uma irrealidade do processo de conversão para transubstanciação (milagre eucarístico) somente enquanto há uma transformação de substância, mas não de acidentes (Iurato 2015, 98).12 12 Iurato, Giuseppe. 2015. Alcune riflessioni storico-critiche di epistemologia teologica. Acessado 20 abr. 2020, https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01235248v2/document.

Matéria em espécie, pão e vinho, mas, ao mesmo tempo, na lógica da fé católica, também, corpo e sague de Cristo. Não uma, mas mais naturezas. Assim, de forma análoga ao processo transubstanciativo, os ecossistemas conectados nos apresentam o ambiente como uma materialidade informatizada, tridimensional e interconectada, expressão de um processo epigenético (Pievani 2019Pievani, Telmo. 2019. Imperfezione. Una storia naturale. Raffaello Cortina Editore.), consequência do processo de datificação, que torna os ecossistemas conectados em um conjunto de realidades plurais, uma rede de substâncias informatizadas interagentes, processáveis e alteráveis.

Conclusões: de natura naturans para as infoecologias

A natureza vai morrer. Sim, o grande Pan está morto! Depois da morte de Deus e da morte do homem, será preciso que a natureza, ela também, acabe por ceder.

—Latour

O processo de datificação entre as suas outras diversas implicações no âmbito econômico, social e político (Sadowski 2019Sadowski, Jathan. 2019. When data is capital: datafication, accumulation, and extraction. Big Data & Society 6 (1): 1-12. https://doi.org/10.1177/2053951718820549.
https://doi.org/10.1177/2053951718820549...
) produz, também, a transformação do meio ambiente, das biodiversidades e dos ecossistemas em dados e, consequentemente, a possibilidade de processar, de associar e de rastrear em forma automatizada tais realidades que, em seguida a esse processo de alteração, passam a ter uma nova composição caracterizada pela tradução de suas dimensões materiais em âmbito informativo.

Uma primeira consequência dessa transformação, que para uma finalidade explicativa aproximamos metaforicamente ao conceito teológico de transubstanciação, é a sua dimensão plural, contraditória e não essencialista. Exatamente como no ritual eucarístico a alteração das espécies em corpo e sangue de Cristo não mu-dam visualmente a forma originária do pão e do vinho, o processo de datificação não muda a dimensão material originária dos ecossistemas, mas, mesmo assim, aos traduzi-los em dados os torna transmissíveis, agregáveis, fragmentáveis e manipuláveis. A dimensão informativa torna-se, portanto, não apenas um aspecto importante, mas junto àquele substancial próprio da composição material, uma das matrizes constituidoras dos ecossistemas, das biodiversidades e dos meios ambientes conectados. Estes últimos tornam-se, dessa forma, realidades plurais, informativas e materiais ao mesmo tempo. Em outras palavras, a datificação introduz o Big data na “economia da natureza” (Heckel 2016, 33) e no conjunto da complexidade das relações que se desenvolvem em uma ecologia e em um ambiente “natural”.

Um segundo importante aspecto, ligado ao processo de datificação em âmbito ambiental, como demonstra a ampla introdução de técnicas de processamento de dados nas ciências biológicas e, sobretudo, nos estudos e no monitoramento dos ecossistemas proporcionados pelo deep learning e pela automação de dados (Dauvergne 2020Dauvergne, Peter. 2020. AI in the wild. Massachusetts: MIT Press.) é a impossibilidade de limitar a natureza às suas dimensões autopoiéticas, isto é, às suas evoluções e procedimentos internos. Torna-se evidente a necessidade de estender a morfologia dessa também ao âmbito dos processadores, dos fluxos de dados e das redes telemáticas, disseminando, assim, o meio ambiente, os ecossistemas e a materialidade orgânica nas redes de bits e no universo do Big data.

Desta maneira o conjunto de fenômenos que a tradição filosófica ocidental nomeou como “naturais”, isto é, como produzido pela própria natureza, a partir de uma ideia autopoiética, pura e externa, ou seja, extra-humana, sintetizada pelo conceito de natura naturans desenvolvido, entre outros, por G. Bruno e B. Spinoza, assumem, a partir dos ecossistemas conectados, uma certa inconsistência.

O primeiro motivo da falácia de tal tradição, cujo nascimento encontra-se na origem do pen samento ocidental, precisamente, no termo grego “physis” (natureza) cuja etimologia vem do verbo “phyo” (fazer nascer, fazer crescer), é aquele relativo à impossibilidade de pensar em uma única natureza, integrada, coerente e uniforme. Como sublinhado por Latour:

Toda a potência dessa expressão vem de utilizarmos sempre no singular: a natureza. Quando se faz apelo a noção de natureza, o ajuntamento que ela autoriza conta infinitamente mais que a qualidade ontológica de “natural”, da qual ela garantiria a origem. Com a natureza, de uma pedrada damos dois golpes: qualifica-se um ser por sua pertença a um certo domínio da realidade; classifica-se ele próprio em uma hierarquia unificada, que vai do maior ao menor dos seres. (Latour 2004Latour, Bruno. 2004. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc., 60).

O segundo possível significado inapropriado da abordagem do pensamento ocidental sobre a natureza é relativo à sua interpretação ontológica. Ou seja, a concepção que a interpreta como uma essência em si, independente e autônoma. Como analisado no caso da AoT, os ecossistemas conectados são resultados de interações e de hibridações complexas e emergentes cujas qualidades não dependem apenas da intervenção do humano (antropoceno), mas exprimem, também as dimensões evolutivas da própria Gaia, como assim destacado por Lovelock (2020)Lovelock, James. 2020. Novacene. The coming age of hyperintelligence. Nova Iorque: Penguin Random House., em seu último livro Novacene. Segundo o principal autor da teoria de Gaia, não somente não existiria uma essência ontológica da natureza, mas a própria Gaia seria sujeita a um processo evolutivo de transformação decorrente das inovações tecnológicas e informativas.

O mesmo cosmo possui 13,8 bilhões de anos […] 4 bilhões antes da nossa chegada apareceu o sol. […] Se for correto o princípio antrópico cósmico, os ciborgues representam o começo de um processo que irá produzir um universo inteligente […] A inteligência que produzirá a era sucessiva ao antropoceno -(a época do Novoceno) – não será humana, mas algo de completamente diferente de tudo o que foi concebido até agora. A sua lógica diversamente da nossa será multidimensional. Como os representantes dos reinos dos animais e das plantas poderão existir e ter muitas formas diversas por dimensões, velocidade e capacidade de ação. (Lovelock 2020Lovelock, James. 2020. Novacene. The coming age of hyperintelligence. Nova Iorque: Penguin Random House., 67).

A hibridação entre o informativo e o orgânico representada pelo Novoceno de Lovelock (2020)Lovelock, James. 2020. Novacene. The coming age of hyperintelligence. Nova Iorque: Penguin Random House., nos mostra que os ecossistemas conectados e as ecologias informatizadas e datificadas não se enquadram nas definições da tradição filosófica ocidental. Nem naturais, nem artificiais, suas qualidades impermanentes e conectivas, por não possuir essência e nem ontologia escapam, também, das definições surgidas pelas tentativas de superações da dicotomia homem-natureza, cultura-natureza e que se apresentam como virada ontológica (Descola 2001Descola, Philippe. 2001. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard.) e como ontologia plana (Harman 2018Harman, Graham. 2018. Object-oriented ontology: a new theory of everything. St. Ives: Pelican Books.).

  • 3
    O projeto Array of Things é coordenado por Charlie Catlett, do Discovery Partners Institute da Universidade de Illinois, com parceiros do Argonne National Laboratory de Ciência e Engenharia (Naise) e do Centro Urbano para Computação e Dados do Instituto Mansueto para Inovação Urbana da Universidade de Chicago. A plataforma de software e hardware subjacente, conhecida como Waggle, foi desenvolvida no Laboratório Nacional de Argonne por Pete Beckman, Charlie Catlett, Rajesh Sankaran, Nicola Ferrier e dezenas de alunos estagiários. Os depoimentos dos seus desenvolvedores estão disponíveis no website oficial. na arquitetura informativa do projeto Array of things. Array of things. 2020. Acessado 24 maio 2021. https://arrayofthings.github.io.
  • 4
    Array of things. 2020. Array of things. Acessado 24 maio 2021, https://arrayofthings.github.io.
  • 5
    O projeto Array of Things está sendo estudado por Rita Nardy, pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisa Atopos USP, em seu projeto de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), sob o título “Como conversar com Gaia: as ecologias digitais e a comunicação no ecossistema”.
  • 6
    No final de 2019, aproximadamente 130 nós da rede de sensores estavam operando em toda a cidade, normalmente em cruzamentos de rua. O plano do projeto original era crescer para 150 nós em meados de 2020, envolvendo a substituição de nós mais antigos (alguns dos quais foram instalados no início de 2016) e a adição de locais. No entanto, a pandemia COVID-19 suspendeu todas as atividades de instalação até o momento.
  • 7
    Dados do: Array of things. 2020. Array of things. Acessado 24 maio 2021. https://arrayofthings.github.io.
  • 8
    Salvo indicação em contrário, todas as traduções são nossas.
  • 9
    “Platforms do not reflect the social: they produce the social structures we live in […]. It is a programmable digital architecture designed to organize interactions between users – not just end users but also corporate entities and public bodies. It is geared toward the systematic collection, algorithmic processing, circulation, and monetization of user data.”
  • 10
    Do grego a-topos: lugar estranho, lugar indizível, fora do lugar.
  • 11
    A possibilidade de estudar os fenômenos sociais a partir da interpretação dos fenômenos de natureza religiosa é prática comum na antropologia e marca toda a história do pensamento ocidental desde Platão ao Iluminismo. Como observado por Iurato, “A partir dessa última perspectiva, o fenômeno religioso foi estudado fenomenologicamente como manifestação do sagrado, o objeto religioso em geral visto em uma relação opositiva e dialética ao profano da vida secular, fenômeno que, como fato religioso, explica-se modalmente como hierofania (de “hierós”, sagrado, e “phaíno”, eu mostro), segundo formas historicamente e localmente determinadas, as quais, todavia, não impedem elementos de ecumenicidade que lhe dão um valor universal e atemporal, permitindo também, portanto, uma visão e uma possível interpretação racional. De fato, da múltipla variedade das hierofanias que, desde os tempos mais remotos, caracterizaram o corpo doutrinário-moral-ritualístico da religião de cada povo, cada lugar e cada época, pode-se entre estes rastrear, como elemento típico, a transubstanciação [consubstanciação] de um objeto profano em um objeto sagrado: por exemplo, os hindus veneram uma árvore chamada Avattha, a qual, aos olhos de tal comunidade religiosa indiana em um determinado período, é uma hierofania,, um objeto sagrado, e não [somente] um mero acidente vegetal” Iurato, Giuseppe. 2015. Alcune riflessioni storico-critiche di epistemologia teologica. Acessado 20 abr. 2020, https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01235248v2/document.
  • 12
    Iurato, Giuseppe. 2015. Alcune riflessioni storico-critiche di epistemologia teologica. Acessado 20 abr. 2020, https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01235248v2/document.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2021
  • Aceito
    27 Abr 2021
  • Publicado
    24 Ago 2021
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