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“É preto, é bicha e que depende de ajuda de custo do clube”: intersecções da diferença no contexto do esporte

“It’s black, it’s fag and it depends on the club’s allowance”: intersections of the difference in the context of the sport

“Es negro, es maricón y depende de la asignación del club”: intersecciones de la diferencia en el contexto del deporte

Resumo:

Busca-se neste artigo discutir narrativas produzidas com jovens atletas de voleibol de categorias de base e problematizar em suas enunciações a intersecção das identificações da masculinidade, orientação sexual, juventude e raça. Propomos o diálogo entre a abordagem interseccional e os estudos pós-fundacionais como aportes teórico-metodológicos, conforme Sirma Bilge, Leonor Arfuch e Judith Butler. Entre os resultados, os jovens atletas relataram como suas identificações são performatizadas socialmente ao reverberar a discriminação e a inferiorização de seus corpos por marcadores de raça, classe e orientação sexual. A intersecção dessas identificações materializou suas masculinidades como dissidentes às normas da branquitude e da cisheteronormatividade no contexto do esporte.

Palavras-chave:
Diferença; Interseccionalidade; Pós-fundacional; Narrativas; Esporte

Abstract:

This article seeks to discuss narratives produced with young volleyball athletes from basic categories and to problematize in their statements the intersection of identifications of masculinity, sexual orientation, youth and race. We propões a dialogue between the intersectional approach and post-foundational studies as theoretical and methodological contributions, according to Sirma Bilge, Leonor Arfuch and Judith Butler. Among the results, young athletes reported how their identifications are socially performatized when reverberating discrimination and the inferiorization of their bodies by race, class and sexual orientation markers. The intersection of these identifications materialized their masculinities as dissenting from the norms of whiteness and cisheteronormativity in the context of sport.

Keywords:
Difference; Intersectionality; Post-foundational; Narratives; Sport

Resumen:

El objetivo de este artículo es discutir las narrativas producidas con jóvenes deportistas de voleibol de categorías básicas y problematizar en sus declaraciones la intersección de identificaciones de masculinidad, orientación sexual, juventud y raza. Proponemos un diálogo entre el enfoque interseccional y los estudios posfundacionales como aportes teóricos y metodológicos, según Sirma Bilge, Leonor Arfuch y Judith Butler. Entre los resultados, los atletas jóvenes informaron cómo sus identificaciones se performatizan socialmente al reverberar la discriminación y la inferiorización de sus cuerpos por marcadores de raza, clase y orientación sexual. La intersección de estas identificaciones materializó sus masculinidades como disidentes de las normas de blancura y cisheteronormatividad en el contexto del deporte.

Palabras clave:
Diferencia; Interseccionalidad; Post-fundacional; Narrativas; Deporte

Introdução

No ano de 2020, manifestações antirracistas3 3 Silva, Diogo. 2020. Engajamento de atletas na luta antirracista marca esporte em 2020. Coluna Diogo Silva, acessado em 22 jan. 2020, https://bit.ly/399wkeL marcaram o contexto esportivo de modalidades como basquetebol, fórmula 1 e futebol nos Estados Unidos, Europa e Brasil, por meio do posicionamento público de seus atletas sobre episódios de racismo na sociedade e nas competições propriamente ditas dos referidos esportes. O engajamento desses atletas frente às questões raciais nos coloca a reflexão de que o campo do esporte, que durante anos foi tido como um espaço “neutro” e “livre de ideologias”, começa a ser desestabilizado por demandas contemporâneas que giram em torno do reconhecimento da diferença em seus espaços.

Entretanto, chama-nos atenção o fato de que outras demandas, como a homofobia, não mobilizam um engajamento mais organizado no esporte, além de ser tida como uma questão secundária e até mesmo naturalizada, mesmo que recorrentemente denunciada no meio. Recentemente, um dos jogadores da seleção brasileira de voleibol, o líbero Maique Reis, anunciou publicamente sua identificação como homossexual e em entrevista para o blog Web Vôlei4 4 Jogador da seleção brasileira de voleibol diz que precisou se dedicar mais por ser gay e negro. 2022. Observatório Ig, 13 out.2021. Acessado em 3 maio 2022, https://bit.ly/382Ri14. rememorou ter sofrido racismo e homofobia no início de sua trajetória no esporte, quando era atleta de categorias de base. Maique é um jovem e promissor jogador de voleibol, que parece não temer prejuízos à sua carreira ao abordar publicamente seus processos de identificação associados à raça e à orientação sexual.

Propomos neste artigo discutir narrativas produzidas com jovens atletas de voleibol de categorias de base e problematizar em suas enunciações a intersecção das identificações da masculinidade, orientação sexual, juventude e raça. Para discutir as identificações anunciadas, entendemos que a teorização da interseccionalidade se mostra como uma ferramenta analítico-política potente, ao considerar que categorias da diferença (e da desigualdade), marcadas por relações de poder assimétricas, vão além do seu somatório na configuração da discriminação e das opressões (Crenshaw 2002Crenshaw, Kimberlé. 2002. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas 10 (1): 171-88. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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; Bilge 2009Bilge, Sirma. 2009. Smuggling intersectionality into the study of masculinity: some methodological challenges. Paper presented at Feminist Research Methods: An International Conference, University of Stockholm.; Bilge 2020Bilge, Sirma. 2020. Panoramas recentes do feminismo na interseccionalidade. Escritas do Tempo 2 (6): 238-56. https://doi.org/10.47694/issn.2674-7758.v2.i6.2020.238256.
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; Grillo 2013Grillo, Trina. 2013. Anti-essentialism and intersectionality: tools to dismantle the master’s house. Berkeley Journal of Gender, Law & Justice 10 (1): 16-30.).

A teórica feminista Kimberlé Crenshaw, no importante artigo “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”, levanta que a discriminação racial é frequentemente marcada pelo gênero e por outras intolerâncias correlatas; essa compreensão permite um entendimento mais profundo das formas de opressão vivenciadas por sujeitos dissidentes, pois o “gênero intersecta-se com uma gama de outras identidades e ao modo pelo qual essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade particular de diferentes grupos” (Crenshaw 2002Crenshaw, Kimberlé. 2002. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas 10 (1): 171-88. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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, 174).

Desse modo, buscaremos, ao operacionalizar a interseccionalidade para discutir questões da diferença no esporte, dialogar com uma perspectiva antiessencialista para abordar a complexidade da integração de diferentes marcadores sociais nos relatos que serão discutidos. Para Grillo (2013)Grillo, Trina. 2013. Anti-essentialism and intersectionality: tools to dismantle the master’s house. Berkeley Journal of Gender, Law & Justice 10 (1): 16-30., a articulação da interseccionalidade com o pensamento antiessencialista se mostra uma ferramenta indispensável para não cairmos nas armadilhas de acharmos que estamos trabalhando para desmontar as estruturas das variadas opressões, quando, na verdade, estamos reforçando seus paradigmas vigentes. Também, nessa direção, cabe destacar que marcadores sociais em intersecção que não foram previstos podem emergir nos contextos de pesquisas, posto que interseccionalidade não se define como uma perspectiva que considere, apenas, mobilizações prévias, mas também contingentes. Bilge (2020Bilge, Sirma. 2020. Panoramas recentes do feminismo na interseccionalidade. Escritas do Tempo 2 (6): 238-56. https://doi.org/10.47694/issn.2674-7758.v2.i6.2020.238256.
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, 239) reforça que a abordagem interseccional não é um mero somatório de opressões, que sobrepõe e/ou hierarquiza uma identificação à outra, mas que “reflete a teoria transdisciplinar que busca compreender a complexidade das identidades sociais e desigualdades através de uma abordagem integrada”. Nesse sentido, apostamos na interlocução da interseccionalidade com a perspectiva pós-fundacional, conforme discutiremos na sequência.

Identificações e significações performativas da diferença

Para discutirmos os processos de significação e identificação relacionados à masculinidade, orientação sexual, juventude e raça no esporte, interpretamos tais processos como performativos. Afirmando a capacidade da linguagem falada/textual de participar das construções dos sentidos que circulam socialmente, Jacques Derrida e Judith Butler reconhecem o poder da linguagem, ao ser repetida, de produzir efeitos de realidades. Conforme o autor e a autora, a linguagem performativa “não descreve algo que existe fora da linguagem e antes dela. Produz ou transforma uma situação, opera” (Derrida 1991Derrida, Jacques. 1991. Limited inc. Campinas: Papirus., 27), além de que “não deve ser entendida como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas como uma prática reiterativa e citacional por meio da qual o discurso produz os efeitos daquilo que nomeia” (Butler 2019aButler, Judith. 2019a. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1., 16). Entretanto, esse é um processo contingente e que abarca possibilidades de fracassos, ou seja, de deslocamentos.

Nesse sentido, o gênero, para Butler (2019b)Butler, Judith. 2019b. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. In Pensamento feminista: conceitos fundamentais, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, 213-230. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., é performativo. Ao propor um olhar não naturalizado para as identificações do masculino e do feminino, a teórica feminista postula que o gênero não é uma identidade estável na qual diferentes ações acontecem, mas um processo tenuamente constituído no tempo, por meio de uma repetição estilizada de atos, gestos corporais, movimentos e ações. Assim, as normas de gênero são repetidas e deslocadas, denotando seu caráter contingente, instável e precário, pois “as possibilidades de transformação dos gêneros estão na relação arbitrária desses atos, na possibilidade de um padrão diferente de repetição, na quebra ou subversão da repetição do estilo mobilizado” (Butler 2019bButler, Judith. 2019b. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. In Pensamento feminista: conceitos fundamentais, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, 213-230. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., 214). Para Judith Butler, o sexo e a sexualidade também são performativos; ela destaca que a inteligibilidade de gênero mantém uma relação estreita de coerência entre sexo, gênero e desejo (sexualidade). Desse modo, tanto o gênero, como o sexo e a sexualidade são tomados como discursivamente construídos, regulados e ao mesmo tempo ressignificados. Pensar a categoria masculinidade por essa perspectiva nos permite reconhecer os complexos processos de significação e identificação atribuídos ao masculino, em um jogo relacional de disputas que, por meio de repetições/deslocamentos, distancia-nos de qualquer compreensão estabilizada e naturalizada sobre as masculinidades.

Por esse mesmo caminho, também tomamos a juventude como performativa. Nessa compreensão, não atrelamos à identificação juvenil quaisquer características intrínsecas, seja da biologia ou da cultura, pois entendemos que a identificação da juventude se constrói por meio de processos performativos. Assim como Judith Butler desnaturalizou o binarismo masculino/feminino, a noção de performatividade butleriana nos auxilia a desestabilizar enunciações reguladoras da idade que dicotomizam e hierarquizam jovem/adulto (Leite 2014Leite, Miriam S. 2014. Performatividade: inscrições, contextos, disseminações. Práxis Educativa 9 (1): 141-165. https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.9i1.0007.
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), tal como conformam o sujeito jovem a atribuições essencialistas como presentista e alienado, entre outras.

Outro performativo relevante para esta reflexão é a raça. Butler (2019a)Butler, Judith. 2019a. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1. postula a performatividade da raça a partir de duas perspectivas: a primeira nos permite refletir que o corpo não possui um status ontológico, ele é efeito do discurso, e sua validade acontece com base em efeitos semânticos que o sujeito produz no mundo. Nesse sentido, corpos negros são materializados e regulados a partir das normas instituídas pela sociedade, pois ser homem negro consiste em obedecer às normas que são constantemente reiteradas pela sociedade, baseadas no discurso de inferiorização intelectual, de maior força física, de violência e no emocional em detrimento ao racional. A segunda possibilidade é questionar, problematizar, erradicar todo e qualquer discurso ou ação social que promova o sofrimento humano. Isso nos permite interrogar os privilégios brancos expostos e veiculados pela mídia e pelas instituições em geral, que acabam por colocar as vidas de pessoas negras e indígenas como desumanizadas, deslegitimadas, passíveis de violência física e simbólica. Como coloca Butler (2019aButler, Judith. 2019a. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1., 43-44):

Mais do que aceitar um modelo que entende o racismo como discriminação baseada em uma raça predeterminada, sigo as teorias recentes que têm sustentado que a “raça” é parcialmente produzida como um efeito da história do racismo, que suas fronteiras e significados são construídos ao longo do tempo não apenas a serviço do racismo, mas também da contestação do racismo.

A performatividade da raça dialoga com Muñoz (1999)Muñoz, Jose Esteban. 1999. Disidentifications: queers of color and the performance of politics. Minneapolis: University of Minnesota Press., que propõe interrogar os processos pelos quais os negros foram identificados ao longo da história, sempre marcados pela deslegitimação e pela desumanização que os reforçam como feios, ruins, inferiores, menos inteligentes, entre outros atributos negativos. Em outras palavras, o que o teórico defende é a desidentificação, ou seja, que se realize um diálogo direto com a matriz do racismo com o objetivo de interrogar e problematizar conceitos e verdades naturalizadas que se materializaram no corpo negro e, ao mesmo tempo, desidentificar a branquitude e seus privilégios, destacando-a também como uma invenção e uma produção discursiva.

Desse modo, colocamo-nos o desafio de, neste artigo, discutir o atravessamento das categorias masculinidade, orientação sexual, raça e juventude nas experiências de atletas de voleibol de categorias de base, indo além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão para problematizar as afetações dessas identificações em redes de poder e suas complexidades na produção da diferença e na reprodução das desigualdades sociais (Bilge 2020Bilge, Sirma. 2020. Panoramas recentes do feminismo na interseccionalidade. Escritas do Tempo 2 (6): 238-56. https://doi.org/10.47694/issn.2674-7758.v2.i6.2020.238256.
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).

Produzindo narrativas em abordagem interseccional

Operacionalizamos a produção de narrativas pelos princípios da cientista social argentina Leonor Arfuch. A autora propõe uma interlocução com a perspectiva pós-fundacional para discutir a entrevista e a produção de narrativas nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, enfatizando o caráter criador e transformador da ação linguística nesse processo. Para Arfuch (2010Arfuch, Leonor. 2010. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Uerj., 31-32), a entrevista é uma forma de narração que produz significados pela linguagem e pela cultura, por meio de “uma teoria do sujeito que considere seu caráter não essencial, seu posicionamento contingente e móvel nas diversas tramas em que sua voz se torna significante”. O enfoque narrativo proposto dá sentido a uma perspectiva de não hierarquização entre pesquisador e sujeitos, em uma relação dialógica e alteritária (Arfuch 2010Arfuch, Leonor. 2010. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Uerj.) no contexto de geração dos relatos.

Seguindo esses princípios, foram produzidas narrativas com vinte jovens atletas de voleibol das categorias juvenis de clubes localizados na cidade do Rio de Janeiro entre os meses de outubro e dezembro de 2016.5 5 A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) com o número 1.774.702. Essas narrativas dizem respeito à pesquisa empírica da tese de doutorado do primeiro autor deste texto (Brito 2018Brito, Leandro Teofilo de. 2018. Enunciações de masculinidade em narrativas de jovens atletas de voleibol: leituras em horizonte queer. Tese em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.). Entre os jovens atletas entrevistados, nove reconheciam-se como negros, oito como brancos, três como pardos; e as idades variaram entre 18 e 19 anos. Todos os jovens identificavam-se como homens cisgêneros e a orientação sexual variava entre a homossexualidade e a bissexualidade, ocorrendo certa fluidez nesse processo de identificação. Ao nos basearmos nessa proposta de Arfuch (2010)Arfuch, Leonor. 2010. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Uerj., buscando fugir de uma perspectiva que remetia a certa rigidez na operacionalização das entrevistas, elencamos temas geradores como pontos para reflexão que foram desenvolvidos por meio do processo dialógico entre pesquisador e sujeitos. Os temas remetiam às questões da diferença e como elas se materializavam nas experiências dos jovens atletas no contexto do voleibol.

As narrativas produzidas foram analisadas por uma proposta metodológica fundamentada na teorização da interseccionalidade e desenvolvida pela teórica feminista canadense Sirma Bilge. A autora propõe a interpretação das categorias gênero, orientação sexual, raça, classe, etnia, religião, idade e deficiência, entre outras, em narrativas produzidas por entrevistas e, por meio de algumas questões que são aplicadas às narrativas, interpretar se a categoria é enunciada de maneira individual ou de maneira interseccionada. Na primeira fase, nomeada abordagem indutiva baseada em dados, busca-se capturar as categorias que emergem nas enunciações das entrevistas pela leitura das narrativas transcritas e pela escuta dos áudios. Na segunda fase, Bilge (2009Bilge, Sirma. 2009. Smuggling intersectionality into the study of masculinity: some methodological challenges. Paper presented at Feminist Research Methods: An International Conference, University of Stockholm., 7) apresenta um modelo genérico de interseccionalidade em que se aplicam questões às narrativas e que exemplificaremos com a categoria gênero: “Como o gênero informa o relato/descrição individual?; Como o gênero interage/intercepta outras categorias sociais neste relato/descrição individual?; Que dimensões da experiência estão interagindo com o gênero?”. Para cada categoria – gênero, orientação sexual, raça, classe, etnia, religião, idade, deficiência, entre outras – se aplicam as questões, tais como as exemplificadas, que visam interpretar se as categorias estão presentes de maneira individual ou se estão integradas (interseccionadas).

Cabe afirmar que Bilge (2020)Bilge, Sirma. 2020. Panoramas recentes do feminismo na interseccionalidade. Escritas do Tempo 2 (6): 238-56. https://doi.org/10.47694/issn.2674-7758.v2.i6.2020.238256.
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, em artigo posterior, aponta que a interseccionalidade não pode ser reduzida a um processo estabilizado e a uma direção programática, posto que há uma grande diversidade de seus usos na teoria feminista, abarcando uma multiplicidade de influências teóricas em suas construções. No caso da associação da interseccionalidade com o pensamento pós-fundacional, Bilge (2020Bilge, Sirma. 2020. Panoramas recentes do feminismo na interseccionalidade. Escritas do Tempo 2 (6): 238-56. https://doi.org/10.47694/issn.2674-7758.v2.i6.2020.238256.
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, 243-244) destaca sua potencialidade pela “formação de estruturas conceituais originais e fortemente relevantes e sua aplicação na pesquisa por métodos qualitativos”.

Intersecções da diferença no contexto do esporte

Após aplicarmos os procedimentos metodológicos propostos por Bilge (2009)Bilge, Sirma. 2009. Smuggling intersectionality into the study of masculinity: some methodological challenges. Paper presented at Feminist Research Methods: An International Conference, University of Stockholm. na interpretação das narrativas, trazemos para problematização excertos de narrativas em que a interseccionalidade foi enunciada nas experiências de dois atletas. Cabe colocar que, dados os limites de publicação de uma pesquisa em formato de artigo, trouxemos um recorte de narrativas de apenas dois sujeitos, pois arbitramos essa escolha ao selecionarmos narrativas que julgamos potentes para a temática central proposta. Destacamos também que as experiências narradas sobre as categorias masculinidade, juventude e orientação sexual interseccionadas às questões raciais foram relatadas apenas por atletas negros, não cabendo problematizar nesse texto narrativas de sujeitos que se autoidentificavam como brancos na pesquisa. Nesse sentido, a categoria raça terá centralidade nas discussões.

A primeira delas é do jovem de nome fictício Lucareli (com. pess., 20 out. 2016), que se identifica como homossexual e negro; no período das entrevistas tinha 19 anos. Lucarelli jogava voleibol por um clube em um bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Segue a primeira parte do diálogo:

Pesquisador: Me faz um resumo dessa sua trajetória no vôlei?

Lucarelli: Sim, vamos lá. Eu comecei na Vila Olímpica do Mato Alto, num projeto que tinha lá da Suderj e eu jogava vôlei e futsal lá, mas depois eu fiz uma opção pelo vôlei, mesmo a minha mãe na época sendo contra. Rolou briga entre eu e ela na época, mas eu combinei que eu ficaria onde gostasse mais e eu gostei do vôlei e fiquei no vôlei. Eu tinha também uns amigos gays no vôlei de lá, o que me incentivou mais a ficar no vôlei. Joguei lá por alguns anos e em 2014 eu vim pra federação depois de uma peneira que rolou aqui no XXXXXX (nome do clube), mas a questão do custo da passagem foi muito difícil no início e eu cheguei a largar [...]. Minha mãe conseguia bancar a minha ida para o projeto social, que era do lado de casa, mas indo aqui pra baixo, pegando duas conduções, mais lanche... era muito difícil aquela fase…

Pesquisador: Foi mesmo?

Lucarelli: Mas eu pedi uma nova chance ao técnico e voltei, naquele mesmo ano. Tinha uma possibilidade aqui de pedir ajuda de custo pra poder vir treinar e eu nem sabia.

Lucarelli narrou sua inserção como atleta de voleibol rememorando a passagem do projeto social para o clube da federação, que foi marcada por dificuldades financeiras ao relatar sua desistência da equipe e, logo após, sua reinserção, que ocorreu graças à possibilidade de ajuda de custo para locomoção oferecida pelo clube. A identificação socioeconômica (classe social) emergiu na entrevista e é articulada com a categoria juventude na problematização que propomos. Para essa discussão, trazemos Margulis e Urresti (1996)Margulis, Mario e Marcelo Urresti. 1996. La juventud es más que una palabra. In La juventud es más que una palabra: ensayos sobre cultura y juventud, organizado por Laura Ariovich, 13-30. Buenos Aires: Biblos., que destacam a existência de um prolongamento da fase da juventude, nomeada como “moratória social”, em que determinados grupos sociais possibilitam um tempo maior para que seus jovens se dediquem ao estudo ou a alguma formação profissional, postergando a saída da casa dos pais ou uma busca imediata de autonomia financeira. Os autores reconhecem que a moratória social na juventude é diferenciada conforme as classes sociais e, embora as classes populares também usufruam de certo período de moratória, nem sempre essa condição pode ser levada por muito tempo ou mesmo vivenciada por todos, conforme a narrativa de Lucarelli mostrou. Entretanto, reconhecemos que o crescimento de políticas sociais no país em programas como bolsa família, salário família e bolsa atleta, entre outros, também afetou as classes populares na vivência da moratória social. Desse modo, o acesso dos grupos sociais a bens e serviços, como o esporte e o lazer, é exemplificado na narrativa com sua inserção em um projeto desenvolvido em uma vila olímpica, o que permitiu ao jovem seu desenvolvimento inicial no esporte até conseguir se tornar um atleta de voleibol federado, tendo o auxílio do clube nesse processo. Apontamos nessa interpretação que as categorias classe social e juventude interseccionam-se nesse relato de Lucarelli. Segue a continuidade do diálogo:

Pesquisador: Eu vou te perguntar se pesou pra você nessa sua entrada aqui no clube, no início, o fato de você ser pobre, vindo pra cá treinar e jogar, com uma origem mais humilde, ser negro e mais a sua orientação sexual. Essas três identificações pesaram ou pesam aqui pra você no clube?

Lucarelli: Sem dúvidas, esses três pontos pesaram, sim, naquele início e te digo que pesam até hoje. O dinheiro de passagem sempre será um problema, mas o clube arcando com isso a coisa fica realmente mais tranquila, porque você passa a se focar sempre no vôlei... Mas é aí que vem a questão, tipo: vale a pena mesmo investir num negro, pobre e gay pra jogar pelo clube? Ele vai trazer resultado ou vai trazer problema? A questão do negro, eu vou te dizer que se relaciona com a origem humilde, porque muitas pessoas pobres são negras mesmo. Isso a gente até vê por aqui quando vê os atletas, seja de qualquer modalidade, que são negros. Se é negro é pobre e vem pra cá com ajuda de custo como eu. Agora a sexualidade é sempre um problema...

Pesquisador: E ser negro e gay?

Lucarelli: Sim, era isso que eu ia falar… se você já é gay e é também negro, é mais um motivo pras pessoas terem tipo um duplo preconceito... mesmo que velado. Digo do negro. Do gay o preconceito será aberto, mas do negro é mais velado. Só que quando junta os dois passa a não ser mais tão velado e fica mais clara ainda a má vontade, os olhares... tipo, é preto, é bicha e que depende de ajuda de custo no clube... Esse vai ter que jogar mesmo e mostrar resultado pra justificar tanto investimento...

Pesquisador: Você já viveu alguma situação direta sobre isso?

Lucarelli: Pra pinta sim, com certeza acontece. Quando está dando certo, está tranquilo, mas quando você está dando pinta no jogo e está tudo errado... Eu mesmo já ouvi indiretas do técnico e eu tentei me acalmar, porque a gente perdia o jogo e eu estava gritando e tal... senti que a chamada era pra mim...

Pesquisador: Você gritou no jogo e isso incomodou o técnico?

Lucarelli: Isso, eles não gostam... quer dizer, se você está bem no jogo, virando bola, eles não falam nada, mas se você estiver mal eles vêm em cima da gente, não aceitam a gente gritando, dando mais pinta, sendo mais afeminado, entendeu?

Neste segundo trecho da narrativa, Lucarelli relatou o peso das categorias masculinidade, orientação sexual, raça e classe, deixando clara a condição precária em que as identificações interseccionadas o enquadravam no contexto do voleibol. A condição politicamente induzida em que alguns sujeitos sofrem as consequências de redes de apoio sociais e econômicas insuficientes, encontrando-se em risco acentuado de injúria, assédio e violência, é nomeada por Butler (2018) como precariedade. Para a teórica feminista, certos sujeitos encontram-se diferencialmente expostos a um risco alto de vulnerabilidade social, consequentemente uma condição precária maximizada, que pode ser caracterizada por questões normativas relacionadas ao gênero, à orientação sexual, à raça, à classe e à nacionalidade, entre outras. A enunciação do jovem atleta integrou raça à classe social quando afirmou que a origem humilde é recorrentemente associada às pessoas negras e exemplificou pelo quantitativo de atletas negros que se valem da ajuda de custo oferecida no clube onde joga vôlei. As identificações gay e negro são interseccionadas na narrativa como “um duplo preconceito”, já que Lucarelli afirma que a raça se apresenta como um preconceito mais velado e a orientação sexual de maneira mais aberta; porém, quando as duas identificações se integram, intensificam-se.

Barnad (2004)Barnad, Ian. 2004. Queer Race. Nova York: Lang. nos mostra que a raça é sexualizada e o sexo é racializado; essa assertiva pode ser confirmada nas palavras de Lucarelli quando narrou as dificuldades de ser ao mesmo tempo um homem gay e negro. O corpo do homem negro foi sexualizado e estereotipado como viril desde o período da colonização, e todo esse processo serviu para afirmar sua cisheterossexualidade e sua prontidão para o sexo; por outro lado, serviu também para negar a homossexualidade. É nessa perspectiva que nosso narrador acentua a dificuldade de ser um homem negro e gay e o duplo processo de inferiorização marcado tanto pelo racismo como pela homofobia.

Nesse sentido, Lucarelli questiona em sua narrativa se “vale a pena mesmo investir num negro, pobre e gay pra jogar pelo clube? Ele vai trazer resultado ou vai trazer problema?”. O agravamento da condição de precariedade vivenciada se processa quando a integração das três identificações – raça, classe e orientação sexual – é potencializada na constituição de suas experiências como atleta de voleibol no clube, tal como também enuncia: “é preto, é bicha e que depende de ajuda de custo no clube”. Tais enunciações seguem narradas com a preocupação por uma suposta cobrança que o clube poderia exigir como retorno do investimento no jovem atleta como jogador de voleibol e, consequentemente, pelos resultados de sua equipe nas competições. Quando foi pedido que relatasse alguma situação direta de opressão sobre suas identificações falou da “pinta”. O marcador orientação sexual é destacado por ser afetado pela performatização da masculinidade, reforçando que o enquadramento da homossexualidade como opressão vivenciada no contexto do vôlei é significado pelo fato de o jovem atleta ser afeminado, ou seja, da masculinidade que é performatizada fora da norma. Concordamos com Butler (2018, 34) na seguinte afirmação: “sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos inteligíveis estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização e violência”.

Nessa mesma direção, trazemos o trecho da narrativa produzida pelo jovem que se nomeia como Egonu (com. pess. 13 dez. 2016): tinha 18 anos no período da entrevista, identificava-se como negro e bissexual e também jogava por um clube de voleibol em um bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Segue o trecho:

Pesquisador: Você me relataria alguma situação de racismo no espaço do vôlei?

Egonu: Assim, tem dois lados... não bem no espaço do vôlei, mas por eu morar em comunidade, tenho um grande problema pra voltar pra casa tarde dos treinos e dos jogos. Na madrugada e até mesmo à noite, eu já fui parado diversas vezes pela polícia. “Ah, não sei o que... para! Você está com alguma coisa aí na mochila”. Chega a cansar! Agora, você ser negro... assim, você chama muita atenção, tem muitas pessoas que te olham mais do que olham para um branco. Mas vejo esse olhar como uma admiração e não como racismo. Já ouvi muitas pessoas falarem isso, que o preto tem algo a mais do que os brancos. Eu já ouvi muito isso. E os negros são bem mais privilegiados que os brancos nesse sentido também do sexo, se é que você me entende (risos).

Pesquisador: No tamanho do pênis?

Egonu: Isso, além da pegada a gente é mais avantajado (risos)!

Pesquisador: E a questão de ser gay nisso aí?

Egonu: Na verdade eu sou bi... bissexual, curto homem e mulher!

Pesquisador: Ah, sim...

Egonu: Pro esporte, a sexualidade de um cara negro sempre vai pesar mais, porque não imaginam que um negão possa ter um lance com um cara... na verdade, não é que não imaginam, não aceitam mesmo. O atleta branquinho gostar de homem é uma coisa, dar uma pinta aqui, ali... mas o negão a pegada do preconceito é maior por tudo isso, a gente é mais cobrado... por não poder dar pinta, ser macho e esperarem sempre de você virilidade, explosão em quadra, agressividade no jogo... na hora do jogo a gente tem que segurar a onda, né... fora de quadra, foda-se!

Por sua vez, a narrativa de Egonu apresenta alguns aspectos marcantes da intersecção masculinidade e raça. A relação de como a polícia trata os jovens negros mostra a força da necropolitica (Mbembe 2014Mbembe, Achille. 2014. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona.), na qual os discursos que construíram o corpo do homem negro o colocaram como inferior, propenso a crimes e passível de sofrer atos violentos, mesmo que vindos daqueles que deveriam protegê-lo. Tal posicionamento é reforçado por jovens negros que, ao longo de uma roda de conversa na pesquisa de Silva Júnior e Borges (2018)Silva Júnior, Paulo Melgaço e Leandro da Conceição Borges. 2018. Adolescentes negros moradores das periferias urbanas do Rio de Janeiro: entre escola, gênero, masculinidades, raça, violência e vivências. Revista Latino Americana de Geografia e Gênero 9 (1): 3-21. https://doi.org/10.5212/Rlagg.v.9.i1.0001.
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, destacaram que todo policial, segurança e porteiro sabe quem é negro e quem não é. Essas duas situações reforçam como jovens negros estão em situação de maior vulnerabilidade em relação aos jovens brancos e como o incômodo sentido por Egonu se justifica. Um dos reflexos dessa fala encontra eco na pesquisa apresentada pelo Atlas da Violência de 2019 (Cerqueira 2019Cerqueira, Daniel, Renato Sergio de Lima, Samira Bueno, Cristina Neme, Helder Ferreira, Paloma Palmieri Alves, David Marques, Milena Reis, Otavio Cypriano, Isabela Sobral, Dennis Pacheco, e Gabriel Lins. 2019. Atlas da Violência. Brasília: Ipea/FBSP.): a taxa de homicídios está fortemente ligada ao grupo de jovens de 15 a 29 anos, o que acarreta o aprofundamento da desigualdade racial no país.

No entanto, Egonu muda o sentido da narrativa quando busca valorizar alguns aspectos do homem negro. O jovem enfatiza a intersecção entre as categorias masculinidade, raça e orientação sexual quando acentua o privilégio do homem negro em relação ao homem branco no quesito do tamanho do pênis e na performance sexual. Essa assertiva mostra como o homem negro conseguiu reconstruir o discurso, performatizando aquilo que o inferiorizava como algo positivo. Nessa perspectiva, a masculinidade negra se encontra em um misto de exaltação e de negação. Se por um lado os homens negros performatizaram o valor da virilidade e da força se (re)construindo como superiores ao homem branco, por outro lado eles se tornaram uma das maiores vítimas da violência física e simbólica. Para analisar essa luta entre homens negros e brancos, Souza (2010) cunhou o termo falomaquia, ou seja, a metáfora do poder do falo (o pênis simbólico, sempre pronto para lutar contra a dominação que marca todo o processo de separação do sistema-mundo que deu força ao colonizador). Essa disputa (maquia) pelo poder (falo) e pelo prestígio conferidos pela masculinidade entre homens negros e brancos tem o caráter de uma verdadeira titanomaquia e, na maioria das vezes, se constitui em um verdadeiro massacre.

Nesse sentido, também chama atenção a utilização do termo “negão”, uma vez que ser chamado de negão é considerado um elogio à virilidade (Silva Júnior e Borges 2018Silva Júnior, Paulo Melgaço e Leandro da Conceição Borges. 2018. Adolescentes negros moradores das periferias urbanas do Rio de Janeiro: entre escola, gênero, masculinidades, raça, violência e vivências. Revista Latino Americana de Geografia e Gênero 9 (1): 3-21. https://doi.org/10.5212/Rlagg.v.9.i1.0001.
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). O termo “negão” está relacionado diretamente à força e à hiperssexualização; com isso, ao trazer para sua fala a intersecção entre masculinidade, raça e orientação sexual, Egonu reforça o peso da masculinidade negra cisheteronormativa (ainda que se identifique como bissexual). hooks (2004)hooks, bell. 2004. We real cool: black man and masculinity. New York: Routledge. chama atenção para como os homens negros orientaram suas masculinidades a partir do modelo patriarcal cisheteronormativo branco, naturalizando a hipersexualidade, a imagem de truculência e o anti-intelectualismo como comportamentos socialmente autorizados. Contudo, é preciso estar atento a essas armadilhas, pois as masculinidades negras performatizadas a partir de espectros da branquitude criam as expectativas que o jovem narrador nos apresentou: “não imaginam que um negão possa ter um lance com cara”, fazendo com que homens negros heterossexuais, em espaços públicos, produzam violências contra homens negros não heterossexuais em busca de atestar sua virilidade. Assim, sob essa condição de “negão, viril e superdotado” incide a cisheteronorma, uma vez que esses termos são utilizados para reforçar a heterossexualidade. Sobre a identificação bissexual de Egonu, reconhecemos, em acordo com Seffner (2016)Seffner, Fernando. 2016. Derivas da masculinidade: representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bissexual. Jundiaí: Paco., que a bissexualidade entre os homens alterna posições hierárquicas, dependendo do contexto: ora é vista em relativa superioridade (como um avanço, já que o sujeito também se relaciona com mulheres), ora em inferioridade (sendo depreciada em função de o sujeito também se relacionar com homens). Comparando com a narrativa de Lucarelli, a condição como homem bissexual de Egonu parece não o enquadrar em uma condição precária tão acentuada, até porque o jovem atleta enuncia sentidos normalizadores sobre a masculinidade no relato, conforme já discutimos.

Por fim, Egonu destaca as pressões sobre ser um atleta negro não heterossexual no espaço masculinista do esporte em duas enunciações que nos chamaram atenção. Destacamos a primeira: “O atleta branquinho gostar de homem é uma coisa, dar uma ‘pinta’ aqui, ali... mas o negão a pegada do preconceito é maior por tudo isso, a gente é mais cobrado”. Historicamente, a virilidade sempre foi um atributo valorizado no campo do esporte, que é uma instituição marcada pelo binarismo de gênero e por uma lógica cisheteronormativa atravessada por aspectos da branquitude. Para o jovem atleta, a circulação de um jogador gay e afeminado branco no contexto do voleibol é passível de alguma permissão, diferentemente de jogadores negros que performatizem masculinidades desviantes da norma. Na segunda enunciação, o jovem atleta afirmou: “por não poder dar ‘pinta’, ser macho e esperarem sempre de você virilidade, explosão em quadra, agressividade no jogo”. Outra referência normativa sobre a masculinidade no esporte é aquela baseada em atributos como força, coragem e dominação, referência que é potencializada quando se fala de homens negros atletas. Nessa interpretação, apontamos que o corpo negro masculino no esporte é marcado por sentidos historicamente sedimentados, que reiteram as distinções raciais como norma para afirmação da masculinidade, marcando a intersecção dessas duas categorias. Concordamos com Butler (2019aButler, Judith. 2019a. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1., 45) na afirmação de que “a heterossexualidade compulsória trabalha a serviço das formas hegemônicas de manutenção de pureza racial”.

Considerações finais

Nossa proposta neste texto foi discutir narrativas produzidas com jovens atletas de voleibol de categorias de base e problematizar em suas enunciações a intersecção das identificações da masculinidade, orientação sexual, juventude e raça. Para isso, trouxemos a interlocução da teorização da interseccionalidade com a perspectiva pós-fundacional para interpretação das narrativas. A produtividade da abordagem interseccional se mostrou potente para mobilizar reflexões que permitam visualizar de maneira mais clara as diferenças materializadas em desigualdades e opressões no contexto do esporte, que se somaram a uma perspectiva antiessencialista para interpretação das experiências narradas pelos sujeitos, permitindo assim um olhar mais amplo e analítico em suas complexidades.

Com base em suas narrativas, os dois jovens mostraram como suas identificações são performatizadas socialmente ao reverberar a discriminação e a inferiorização de seus corpos por marcadores de raça, classe e orientação sexual. A intersecção dessas identificações mostra suas masculinidades performatizadas como dissidentes das normas da branquitude e da cisheteronormatividade. Entretanto, cabe reconhecer que as possibilidades de agência em uma perspectiva butleriana estão postas em ação quando os jovens atletas, em seus relatos, enunciam resistência ao espaço regulador do esporte, reiterando e refazendo as relações de poder ali presentes.

Retomando o momento atual, no qual atletas de diferentes esportes estão se posicionando politicamente sobre questões da diferença, torna-se de fundamental importância que as instituições esportivas no Brasil reconheçam a emergência dessas demandas. É urgente que os processos de identificação de jovens atletas relacionados a gênero, orientação sexual, classe e raça sejam reconhecidos e respeitados, que rapazes negros não heterossexuais e das classes populares possam se desenvolver como atletas em espaços menos segregadores e mais alteritários. Por fim, retomamos o argumento de Muñoz (1999)Muñoz, Jose Esteban. 1999. Disidentifications: queers of color and the performance of politics. Minneapolis: University of Minnesota Press. de desidentificar os discursos normalizadores, em outras palavras, questionar as maneiras de identificação que desumanizam e animalizam os corpos, sobretudo corpos dissidentes à norma. Nesse campo de disputas, acreditamos que, ao colocarmos em xeque os processos segregatórios e questionarmos as visões congeladas e essencializadas de identidade, estaremos mais próximos de um caminho de reconhecimento da diferença no contexto do esporte.

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    Silva, Diogo. 2020. Engajamento de atletas na luta antirracista marca esporte em 2020. Coluna Diogo Silva, acessado em 22 jan. 2020, https://bit.ly/399wkeL
  • 4
    Jogador da seleção brasileira de voleibol diz que precisou se dedicar mais por ser gay e negro. 2022. Observatório Ig, 13 out.2021. Acessado em 3 maio 2022, https://bit.ly/382Ri14.
  • 5
    A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) com o número 1.774.702.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2021
  • Aceito
    06 Maio 2022
  • Publicado
    30 Nov 2022
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