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Estudos pós-coloniais: Desconstruindo genealogias eurocêntricas

Post-colonial studies: Deconstructing Eurocentric genealogies

Resumo:

O pós-colonial, termo que remonta aos anos 1970, só adquire, enquanto noção, substância conceptual a partir dos anos 1980, no mundo anglo-saxônico, particularmente com o hoje datado livro The empires writes back: theory and practice in post-colonial literatures (Ashcroft, 1989ASHCROFT, Bill et al. The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures. Londres: Routledge, 1989.). Embora este seja um dos primeiros livros desta área de estudos (aliás, livro seminal que, pode dizer-se, está na origem da abertura a um campo de investigação, em retração hoje), e apesar de não existir uma teoria pós-colonial, o que parece aproximar as várias percepções deste campo de estudos é a construção de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodológicos na análise cultural, sendo porventura a mais importante mudança a assinalar no campo dos estudos culturais (e literários) a análise das relações de poder, nas diversas áreas da atividade social caracterizada pela diferença: étnica, de raça, de classe, de gênero, de orientação sexual… Apesar disso, muitos estudiosos, particularmente de ex-impérios, convergem para a consideração de que os atuais estudos culturais, nomeadamente no âmbito da crítica pós-colonial, se reorganizam em outros alicerces, diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e duais, que intentam perpetuar a supremacia de uma estrutura ideológica e histórica espácio-temporal. O objetivo deste ensaio é intentar o desvelamento dos meandros hegemônicos dos estudos pós-coloniais.

Palavras-chave:
Pós-colonial; Construção epistemológica; Ideologia; Eurocentrismo; Hegemonia

Abstract:

The expression post-colonial, current in the 70’s of the last century, was only recognized in the Anglo-Saxon world as a substantial concept during the 80’s. This dates from the publication of the book, The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures (Ashcroft, 1989ASHCROFT, Bill et al. The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures. Londres: Routledge, 1989.). Although this was one of the first books in this area of study (however, a seminal work which, we could say, gave rise to the opening of a field of research which is being retraced today), and although there can’t be said to be one post-colonial theory, what seems to approximate the various perceptions of this field of studies is the construction of epistemologies that point to other methodological paradigms for cultural analysis. The most important change to point out in the field of cultural (and literary) is the analysis of power relations in the different areas of social activity, differentiated by such things as ethnicity, race, class, gender and sexual orientation. Despite this, many researchers, particularly from the former empires, merge in their considerations of recent cultural studies, notably in the area of post-colonial criticism, reorganized on other foundations, different from the traditional, from linear and dualistic antagonisms which attempt to perpetuate the supremacy of an ideological and historical space-time structure. The object of the present study is to endeavour to unveil these hegemonic meanderings of post-colonial studies.

Keywords:
Post-colonial; Epistemological construction; Ideology; Hegemony

Uma explícita razão ética

Começo este texto com uma história, em jeito de exemplum, que pretendo que funcione como epígrafe desta reflexão sobre o pós-colonial.

Um grupo de turistas ocidentais vai visitar uma reserva em África, e a dada altura, um dos turistas ocidentais pergunta ao guia, um africano, depois de ver um animal que nunca tinha visto antes, que animal era aquele. Mas a pergunta vinha formulada assim: “Como é que se chama aquele animal branco com riscos pretos?”. O guia africano respondeu: “Chama-se zebra. Mas atenção, não é um animal branco com riscos pretos. Pelo contrário, é um animal preto com riscos brancos”. Entretanto a discussão prolonga-se, não houve entendimento, com as duas partes a revelarem verdadeira frustração. O africano dizia: “Mas isto foi sempre assim, o animal é um animal preto com riscos brancos, não sei como é que esse senhor vem agora, ainda por cima nem sabia que animal era, vem aqui e quer obrigar-me a pensar que o animal é branco com riscos pretos!”1 1 Texto parafraseado de uma intervenção de João Milando (2007, p. 119).

Os meandros ideológicos da pós-colonialidade

Se comecei este texto com uma narrativa com um cunho tendencialmente moral, foi para justificar o enquadramento epistemológico que se impõe quando se pretende traçar uma genealogia dos estudos pós-colonias, sobretudo se esses estudos se referem à África (na verdade, apetece-me dizer, ao resto do mundo). Esse rastreio torna evidente a dimensão eurocêntrica, melhor ocidentalocêntrica, da natureza desses estudos através de categorias que nas ciências sociais e nas humanidades se confundem com constructos teóricos. Funcionando como uma ideologia, como uma determinada lógica epistemológica, a categoria pós-colonial tornou-se, nos estudos culturais, a mais subliminar porque a mais trópica.

Assim, reconhecendo na breve narrativa acima apresentada, mais parabólica do que apologal,2 2 Género narrativo próximo do apólogo, a parábola é uma narração utilizada para ilustrar lições de sabedoria e/ou ética por vias simbólicas ou indiretas, a partir de um caso particular, tendo como personagens apenas seres humanos (diferentemente do apólogo, que personifica seres inanimados, transformando-os em personagens da história), procurando tornar perceptível uma significação geral e podendo evocar outras realidades, tanto fantásticas, quando reais. Possuindo uma razão moral, implícita ou explícita, porém, não tem necessariamente um fundo religioso. uma razão ética explícita, a da concepção precetística de África, assinale-se ainda a genealogia do pensamento subjacente à (atual) hegemonia etnocultural, que mergulha as suas raízes num passado recente pouco discutido, porém disseminado nas práticas culturais de sujeitos provenientes quer de potências colonizadoras e imperialistas, quer de espaços ex-imperiais. O propósito desta reflexão é contribuir para o questionamento da lógica da construção de saberes ainda prevalecente na investigação acadêmica, tomando como exemplo a ausência de repertórios culturais e de corpora “exemplares”, em que se fundam teorias, constituídos por textos culturais africanos (da literatura e outros) nessa acumulação de conhecimento que formam as “bibliotecas coloniais”, de que fala Mudimbe, em que as experiências culturais dos subalternos – dos povos colonizados –, as suas construções culturais são relegadas a um secundário lugar rotulado como “saber local”, que a tradição filosófica ocidental não considera relevante.

É por isso produtivo, nessa luta pela desestabilização dos lugares cativos de epistemologias prevalecentes, chamar a atenção para a perversidade de determinados tropos tão caros a uma certa ciência, como cânone e universal, cosmopolitismo ou globalização, o que faz com que esta incursão analítica se faça através dos estudos literários, embora a este campo não se confine. É que o funcionamento desses tropos revela o que Samir Amin considera marcas do eurocentrismo que pode ser entendido como “um universalismo, pois propõe a todos a imitação do modelo ocidental como a única saída aos desafios do nosso tempo” (Amin, 1988AMIN, Samir. L’eurocentrisme: critique d’une idéologie. Paris: Anthropos-Economica, 1988., p. 8).

Assim, antes de continuar esta reflexão, vale situar os dois pilares conceptuais que a suportam, a saber: ideologia e pós-colonial.

Porque a noção de ideologia é “funcional” consoante a perspectiva teleológica em questão, pretendo, neste contexto, utilizar a proposta de Fredric Jameson que, na trilha de Louis Althusser, define ideologia como “estrutura de representações que permite ao sujeito individual conceber ou imaginar sua relação vivida com realidades transpessoais, tais como a estrutura social, ou a lógica coletiva da História” (Jameson, 1992JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como acto socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992., p. 27). Esta categoria, que funciona como uma disposição obsidiante na tessitura da questão identitária, é um sistema de valores morais, éticos, sociais, culturais e até espirituais, sistema que condiciona a relação de uma comunidade com o mundo e de que se serve o homem para justificar e interpretar a sua situação e a sua ação na História. Porém, para Claude Prévost, tal como para Jameson (que fala de um “inconsciente político”), uma ideologia é mais do que isso: na verdade, para Prévost (1976, p. 171-172), “uma ideologia não é […] somente um sistema de ideias mas também um conjunto estruturado de imagens, de representações, de mitos, determinando certos tipos de comportamentos, de práticas, de hábitos e funcionando […] como um verdadeiro inconsciente”.

Inconsciente é, na verdade, como se pode caracterizar o gesto de naturalização da subalternidade, da exclusão e do estatuto periférico, ou o gesto de prescrição do estético-literário, com uma forte carga darwinista, que decorre de muitos juízos sobre o estético sobretudo pela crítica de autores com trânsito na comunicação social, cujo discurso é mais judicativo do que interpretativo do objeto estético em questão. Do mesmo modo, esse darwinismo manifesta-se, por exemplo, quando, em se tratando de culturas e sociedades africanas, há “africanistas” que ainda insistem em falar em evolução cultural e de considerar matérias inerentes aos estudos africanos a “cooperação” com a Europa ou a “ajuda ao desenvolvimento”…

O segundo pilar conceptual desta reflexão é pós-colonial. Noção relativamente antiga, que remonta aos anos 1970, ela só adquire substância conceptual a partir dos anos 1980, no mundo anglo-saxónico, particularmente com o hoje datado livro The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures (1989) – título decorrente de uma frase de Salman Rushdie: “I am a British writer. The empire writes back to the center”. Sendo este um dos primeiros livros desta área de estudos (aliás, livro seminal que, pode dizer-se, está na origem da abertura a um campo de investigação, hoje em retração pelo questionamento que se vem fazendo aos atalhos epistemológicos a que pode conduzir), não se pode dizer que exista uma teoria pós-colonial. Em todo o caso, vale dizer que o que parece aproximar as várias percepções, perspectivas e insights deste campo de estudos é a construção de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodológicos – que potenciam outras formas de racionalidade, racionalidades alternativas, outras epistemologias, do Sul, por exemplo – diferentes dos “clássicos” na análise cultural e literária. Decorre desta reflexão a consideração de que porventura a mais importante mudança a assinalar é a atenção à análise das relações de poder, nas diversas áreas da atividade social caracterizada pela diferença: étnica, de raça, de classe, de gênero, de orientação sexual…

Neste contexto, julgo que os destinadores das teorias pós-coloniais pretendem que elas funcionem, também, como instrumento de análise de relações de hegemonia e desvelamento da colonialidade do saber segundo uma estratégia de resistência a sistemas de conformação da tendência hierarquizante da diferença, como seja, por exemplo, o eurocentrismo. Daí a generosidade com que estas epistemologias se disseminaram, o que torna relevante a consideração de Ella Shohat de que essa designação – pós-colonial – é pastoral pois, apontando para o final de um período, bem visível no sufixo pós, ratifica a ideia de um mundo de iguais e sem fronteiras, naturalizando as desiguais relações de poder geradas pelos efeitos homogeneizantes da globalização contemporânea, cujos circuitos (econômicos, sociais, culturais, até científicos) são orientados para o Ocidente (a Europa e a América do Norte). É este trabalho de desvelamento, que é também de desmistificação, que permite direcionar o nosso olhar para os (outros e novos) interstícios do poder…

Hoje cada vez mais as críticas à crítica pós-colonial, sobretudo aquelas que vêm dos ex-impérios, convergem para a consideração de que, não obstante a consciência da necessidade de dialogar com as “epistemologias do sul” na construção do saber, os atuais estudos culturais têm-se reorganizado em outros alicerces, diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e duais, que continuam a perpetuar a supremacia de uma estrutura ideológica e histórica espaço-temporal. Esta estrutura, ratificada pelas atuais relações de poder, “pastoralmente” designadas como sendo pós-coloniais (e não já neocoloniais e imperiais), tem reflexos na área das ciências sociais e humanas, e até dos estudos literários, não obstante os seus destinadores (o “Ocidente”) serem entidades imaginárias, apenas construções discursivas, enquanto objeto e sujeito de discurso: afinal, “o Ocidente, assim como sua contrapartida oriental, é uma construção fictícia baseada em mitos e fantasias” (Shohat; Stam, 2006SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006., p. 37). No entanto, essa natureza “não histórica” não impede que essas entidades se apresentem como “modelares” por via de artificiosas interpretações da história, de mistificações da história, sempre ideológicas, que a historiografia legitima como “evidência” de “fatos históricos”. Um exemplo dessa mistificação manifesta-se nas celebrações tendenciosamente eugênicas da mestiçagem como um sintoma de upgrade civilizacional de comunidades mestiças, sem qualquer consideração das relações coloniais de dominação das populações colonizadas em que ocorrem esses fenômenos; outro exemplo pode ver-se quando a história europeia registra como “reconquista” todo o período dos séculos 8° a 15, em que os soberanos cristãos da Península Ibérica conquistaram terras aos morros…

Assim, discutir esta questão assim formulada – o pós-colonial como ideologia – é desvelar, afinal, trópicos do discurso epistemológico cujos paradigmas são marcadamente eurocêntricos, portanto, formular uma crítica que não omite “as suas tensões e contradições” e ajuda “a esclarecer a espacialidade das relações de poder e de dominação” (Vesentini, s. d.), ou seja, é percorrer os trilhos que levam a uma geocrítica do eurocentrismo.

Uma geocrítica do eurocentrismo pressupõe a instituição de um desvio em direção a uma gramática alternativa com categorias e perspectivas que neutralizem – ou, pelo menos, façam desvanecer – o peso das mediações metropolitanas da crítica das produções culturais dos “países periféricos”, de espaços periferizados, relegados a um lugar subalterno na produção contemporânea de conhecimento, pois o eurocentrismo é uma reconstrução mitológica recente (da época moderna) da história da Europa e do mundo – na sua dimensão cultural, entre outras (Amin, 1988AMIN, Samir. L’eurocentrisme: critique d’une idéologie. Paris: Anthropos-Economica, 1988., p. 9).

É esse desvio em direção a um outro sentido, que propõe a inclusão de outras racionalidades, que vêm percorrido muitos estudiosos desses espaços, com especial ênfase para os das literaturas e culturas latino-americanas,3 3 Note-se, no entanto, que muitos destes críticos são, como bem lembra Stuart Hall, professores em universidades do “centro”, particularmente nos Estados Unidos e no Canadá. quando consideram, nas entrelinhas do seu diverso e variado corpo de reflexões sobre produções dessas geografias culturais, que o estudo do lugar de cada produção estética passa, também, por uma reflexão sobre o percurso cultural de uma geração ou uma nação. No caso do estudo da literatura, é preciso não esquecer, antes de qualquer rótulo (local, regional), que o escritor é um sujeito do seu tempo e que “a literatura é produção social, parte integrante de uma realidade e de uma história nunca neutras” (Polar, 2000POLAR, Antonio Cornejo. O condor coa: literatura e cultura na América Latina. Organização de Mario Valdés. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000., p. 20).

A esta reivindicação da dimensão social e histórica da obra literária junta-se outra a que Polar não se esquiva: a “reivindicação de autonomia teórica”, corolário da ideia de “dependência cultural” com reflexos na ciência (sobretudo aquela que trata das identidades, sob vários prismas disciplinares), pensamento tão transversal à crítica da dominação epistemológica como se pode ver na posição de Jacqui Alexander, segundo a qual, nos seus estudos de “Women’s studies and gender studies”, afirma que “lugar e espaço são locais importantes nos processos de produção de conhecimento” (2005, p. 91). Por isso, ao falar do projeto de “reivindicação de autonomia teórica”, o peruano Cornejo Polar afirma que “se não o desenvolvermos nós mesmos, será a crítica mais conservadora que manipulará algumas categorias, como a da pluralidade, para reforçar as interpretações históricas, sociais e culturais que precisamente nos interessa recusar” (Polar, 2000POLAR, Antonio Cornejo. O condor coa: literatura e cultura na América Latina. Organização de Mario Valdés. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000., p. 51). É que não nos podemos esquecer que as práticas de dominação são tecidas e manifestam-se tanto nos interstícios das instituições do saber e outras e dos articulados teóricos quanto na vida quotidiana e social. Ou, como formula Samir Amin,

Ses manifestations [celles de l’eurocentrisme], comme celles d’autres phénomènes sociaux dominants, s’expriment dans les domaines les plus divers les rapports quotidienes entre individus, l’information et l’opinion politiques, les opinions generals concernant la société et la culture, la science sociale (Amin, 1988AMIN, Samir. L’eurocentrisme: critique d’une idéologie. Paris: Anthropos-Economica, 1988., p. 72).4 4 Tradução livre: “As manifestações de eurocentrismo, como as de outros fenômenos sociais dominantes, exprimem-se nos domínios mais diversos das relações cotidianas entre indivíduos, informação e opiniões políticas, opiniões gerais sobre a sociedade e a cultura, a ciência social”.

A inconsciência dessa “colonização” invisível (e consentida porque inconsciência) bloqueia qualquer resistência, por exemplo nos estudos de literaturas periféricas, como são, por exemplo, as literaturas dos países africanos, ou outras de regiões periféricas nacionais dominadas pelo cânone metropolitano interno (literatura de autoria afro descendente, literatura amazonense, literatura mato-grossense, literatura nordestina): refiro-me à manipulação de categorias caras às atuais perspectivas críticas, reforçando os lugares de hegemonia já cativos, radicados no imaginário e no aparato teórico, seja eminentemente literário, seja amplamente cultural, que se constrói a partir de matrizes culturais e teorizações do Ocidente. A adoção de determinadas formulações e categorias – como crioulidade, hibridismo, hibridez, mestiçagem, “identidades sem fronteira” (quando não desindentidades), universal/universalidade, global/local, cosmopolitismo, pós-colonial/pós-moderno, modernidade (em regra a opor-se a tradição) – para enquadramento teórico e compreensão das culturas e produções de países ex-colonizados ou de espaços periferizados, por estudiosos do Terceiro Mundo em instituições do “centro” ou em diálogo com ele, revela uma dependência teórica consentida dos acadêmicos desses países, e de africanistas, “prodigamente armados de diplomas” que procedem a “desorientações” desse tipo. Por exemplo, como já afirmei em outro lugar, considerar que temas como “cooperação” e “desenvolvimento” são “específicos” da área de Estudos Africanos, é revelar uma “desorientação ideológica” que a mentalidade imperial explicaria; do mesmo modo, proceder a “uma celebração de sincretismo e hibridez de per si, se não articulada em conjunção com questões de hegemonia e relações de poder neocoloniais, corre o risco de parecer santificar o fait accompli da violência colonial”, como lembra Ella Shohat cujas reservas quanto à mais-valia de tropos das teorias pós-colonial partilho (Shohat, 1996SHOHAT, Ella. Notes on the “post-colonial”. In: Padmini Mongia (Org.). Contemporary postcolonial theory: a reader. London: Arnold, 1996. p. 321-334., p. 320). Por isso também Aijaz Ahmad fala da já referida expressão “mediações metropolitanas” (2000, p. 54), isto é, o juízo do exterior a erigir-se a instância absoluta de legitimação e de construção do conhecimento, porque o discurso eurocêntrico tem um substrato ideológico comum ao discurso colonialista, imperialista e racista.

Assim, hoje a questão do eurocentrismo põe-se nos estudos pós-coloniais porque ela pressupõe a necessidade de descolonização teórica; põe-se também quando se estudam objetos estéticos de espaços periferizados –as literaturas ou as artes plásticas, por exemplo–: a ideia que parece prevalecer é a de que a boa obra literária é aquela que não se detém no local, a “literatura sem chão”, como uma vez afirmei (Mata, 2007MATA, Inocência. A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões. Luanda: Editorial Nzila, 2007.). Põe-se ainda, e de forma mais premente, porque não apenas a montante (escrever para ser lido e ser legível no Ocidente) como ainda a jusante (ler com “os olhos do império”, na expressão de Mary Louise Pratt): como considera Dipesh Chakrabarty (2008CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2008., p. 29), “o domínio da ‘Europa’, entidade erigida a sujeito de todas as histórias, é uma parte de uma muito profunda condição teórica sob a qual o conhecimento histórico é produzido em países do Terceiro Mundo”. Por isso, como professora de literatura, estou convencida de que o ensino de outras literaturas e a sua inscrição no mapa das “literaturas consumidas” é uma das estratégias para reverter a dimensão eurocêntrica da instituição canônica, enfim, “pode constituir um antídoto à eurocentricidade e à miopia cultural das Humanidades” (Ahmad, 2002AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002., p. 84), tal como hoje se vive nos estudos literários, quer no Ocidente, quer, mais grave ainda, nos próprios espaços assumidamente periféricos que naturalizaram a hegemonia ao considerarem que a autoria estrangeira da palavra concede ao enunciado uma legitimidade crítica e teórica exemplar. Mais grave porque se trata de uma inexorável situação de hierarquização consentida que advém da interiorização da subalternidade. Com efeito,

[…] l’eurocentrisme est, comme tous les phénomènes sociaux dominants, facile à saisir dans la multiplicité des manifestations quotidiennes mais plus malaisées à définir précisément. […] Elles sont tantôt violents – allant jusqu’au racisme assumé – tantôt ténues. Elles experiment dans les languages de l’opinion commune, populaire, comme dans les langues savants des spécialistes de la politique, du tiers monde, de l’économie, de l’histoire, de la théologie et de toutes les formulations de la science et de la pensée sociales (Amin, 1988AMIN, Samir. L’eurocentrisme: critique d’une idéologie. Paris: Anthropos-Economica, 1988., p. 72).5 5 Tradução livre: “[…] O eurocentrismo é, como todos os fenómenos sociais dominantes, fácil de entender em vários manifestações diárias, mas mais difícil de definir com precisão. […] Essas manifestações são, por vezes, violentas – até ao racismo assumido – às vezes tênues. Elas colonizam tanto a linguagem do senso comum, a linguagem popular, como a linguagem científica de especialistas da política, do terceiro mundo, da economia, da história, da teologia e todas as formulações da ciência e do pensamento sociais.”

As razões históricas da ordem eurocêntrica

A acumulação dos conhecimentos faz-se na Europa.

(Joseph Ki-Zerbo)

Em Para quando África?, o historiador burkinabé Joseph Ki-Zerbo (2006)KI-ZERBO, Joseph. Para quando África? Porto: Campo das Letras, 2006., considerado, juntamente com o senegalês Cheikh Anta Diop, o pai da historiografia africana, faz o rastreio das razões que considera terem levado a África à atual marginalização. Para além de fatores de ordem endógena e dos efeitos decorrentes “do tráfico dos negros [que] foi o ponto de partida de uma desaceleração, de uma paragem da história africana” (2006, p. 24-25), Ki-Zerbo fala da atual estrutura mundial, consequência da situação colonial e imperial, geradora de uma situação de desigual desenvolvimento científico, técnico e tecnológico ditando a histórica e crônica dependência de África em relação ao Ocidente. Dir-se-ia que o poeta angolano José Luís Mendonça sintetiza as ideias de Ki-Zerbo no seu poema “Subpoesia”, de 2007:

Subpoesia

Subsarianos somos

sujeitos subentendidos

subespécies do submundo

subalimentados somos

surtos de subepidemias

sumariamente submortos

do subdólar somos

subdesenvolvidos assuntos

de um sul subserviente.

(José Luís Mendonça, Quero acordar a alva, 1997MENDONÇA, José Luís. Quero acordar a alva. Luanda: Inald, 1997.)

Qual é a relação entre o pensamento do intelectual burkinabé, este poema e os seus desdobramentos reflexivos no que o caso me interessa, a crítica das literaturas periferizadas, africanas e regionais, por exemplo?

É que este poema do poeta angolano José Luís Mendonça evidencia as verdadeiras relações de poder que se estabelecem hoje e afirma que se a condição subalterna se internalizou com a globalização, ela se exponenciou com as desigualdades entre um norte hegemônico e um “sul subserviente”. Neste contexto, este poema diz mais do que muito ensaio sobre as tensões entre (ex-)dominados e (ex-)dominadores.

Um incômodo que qualquer estudioso de literaturas africanas de língua portuguesa sente (ou já sentiu – e que eu já senti tanto como estudante quanto como profissional) no seu ofício é a desvalorização do seu objeto de estudo, considerado, implícita ou explicitamente, como literaturas menores. Tal atestado de menoridade decorre de uma resistência eurocêntrica (a que não está ausente o desconhecimento) em relação às outras literaturas ditas universais, mesmo na academia (no Brasil e em Portugal), onde se esperaria um espírito mais condizente com a “qualidade do que é universal” para que o termo universidade remete. Referindo-se Carlos Reis (1995REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1995., p. 77) a esse preconceito, num livro de 1995, O conhecimento da literatura, poder-se-ia pensar tratar-se de uma atitude do passado. Pura ilusão. Vários episódios ilustram essa minha convicção. Deles ressalto um ocorrido num evento com professores de literatura, em que um colega, refutando uma crítica decorrente das suas perspectivas de insólito, afirmou: “se as literaturas africanas quiserem ser respeitadas, têm de se submeter às teorias existentes”.6 6 Afirmação de Flávio Garcia (Uerj), no 23. Congresso Internacional de Abraplip (São Luís, MA, 11-16 set. 2011), na sessão da mesa 34 sobre “Literaturas da África de língua Portuguesa: questões de identidade cultural”, dia 15/09, 16-18 horas. Ngugi wa Thing’o responderia a esse “elogio” da dependência com a seguinte consideração:

Western civilization itself becomes a prisoner, its jailors being its Eurocentric interpreters. But Eurocentrism is most dangerous to the self-confidence of Third World peoples when it becomes internalized in their intellectual conception of the universe (Thiong’O, 1993THIONG’O, Ngugi Wa. Moving the centre: the struggle for cultural freedom. Oxford: James Currey; Nairobi: EAEP; Portsmouth NH: Heinemann, 1993., p. xvii).7 7 Tradução livre: “A própria civilização ocidental se torna prisioneira, sendo os intérpretes eurocêntricos os seus carcereiros. Mas o eurocentrismo é mais perigoso para a autoconfiança dos povos do Terceiro Mundo quando este é internalizado na suas concepções intelectuais do universo.”

Por isso, pareceu-me, na altura, completamente despropositada a invectivação, em algumas longitudes, de que as “ideias” de Harold Bloom foram alvo por causa daquilo que considera como sendo a matriz do “cânone ocidental” (esquecendo-se, por outro lado, ser o próprio Bloom a referir também, na última parte do seu estudo, a “balcanização dos estudos literários”). Com efeito, esse grito de autossubmissão é nitidamente o exemplo daquilo que se poderia designar como “imperial eyes” (Mary-Louise Pratt) na história das representações dos objetos literários africanos no Brasil ou em qualquer espaço que reproduza as convenções do Ocidente, ou seja, que funcione como sua réplica ideológica. Isto é, olhar a periferia a partir do centro, e julgá-la, com base em percepções políticas e ideológicas condicionadas pelo imaginário estético-literário e manipuladas pelos meios de comunicação social.

É por isso que Ngugi wa Thiong’o propõe uma mudança do centro: “Moving the centre in two senses – between nations and within nations” (Thiong’O, 1993THIONG’O, Ngugi Wa. Moving the centre: the struggle for cultural freedom. Oxford: James Currey; Nairobi: EAEP; Portsmouth NH: Heinemann, 1993., p. xvii). Mas não pode ser um acrítico movimento, como a que decorre a dinâmica da periferia para o centro em que se gera algumas particularidades que caracterizam o fenômeno literário nos países africanos (falo particularmente dos cinco países africanos de língua oficial portuguesa). Um deles é “um movimento em que os escritores olham para fora – normalmente para a antiga metrópole e daí para o ‘mundo’ – para serem reconhecidos” (Mata, 2011MATA, Inocência. On the periphery of the universal and the splendour of eurocentrism. In: Manuela Ribeiro Sanches (Org.). Black and white. Bristol: Intellect Books, 2011. p. 87-100.). Muitas são as modalidades dessa “validação” estética sendo a que se segue a mais superficial, embora muito eficaz nos danos que provoca: se foi publicado em Portugal ou no Brasil é porque a obra tem qualidade, se não o foi é porque não tem, afinal o “critério editorial” é a qualidade e quaisquer outras considerações revelam fantasmogorias e complexos. Nesse processo, o Ocidente e seus avatares (lugares, locais e sujeitos) continuam a ser o modelo, não se tendo em conta que se o cânone literário é o reflexo e o instrumento de um determinado paradigma, também pode ser lugar onde se enceta a desconstrução desse mesmo paradigma, através da “descolonização da mente” (Ngugi wa Thiong’o).

Nessa linha de “validação” estética encontram-se outros corolários que são seus duplos no processo de menorização: a generalização e a estereotipia. Com efeito, a convencional designação globalizante de literaturas africanas em português encerra o germe da sua condição periférica, não obstante a generosa intenção subjacente, que é a sua visibilização (já não falando na completa omissão que uma tal designação encerra em relação aos corpora literários que se inscrevem em outras línguas desses países, como é o caso do significativo corpus em crioulo da literatura cabo-verdiana – e os corpora dos textos de tradição oral). Embora em muitas academias se pugne por “mover o centro” (wa Thiong’o), as periferias continuam bem demarcadas e naturalizadas. Disso são exemplos os blocos transnacionais conhecidos como “anglofonia”, “francofonia”, “hispanofonia” e “lusofonia”, o que revela que os espaços ex-colonizados continuam a ser nomeados segundo signos e sinais do ex-colonizador, ainda que se possa reconhecer a economia linguística dessas designações e a pertinência e a eficácia dessas alianças, conforme, curiosamente, já em 1953, alertava Gilberto Freyre:

Nações sozinhas, isoladas e estreitamente nacionalistas em suas pretensões à auto-suficiência são hoje arcaísmos […] Felizes daquelas com possibilidades de formar, umas com as outras, conjuntos transnacionais de cultura como é o caso das nações e quase nações de língua portuguesa (Freyre, s. d. [1953], p. 103-104).

Porém, é preciso que se tenha a consciência que esta designação generalizante não é exclusiva destas literaturas, que são sempre pensadas a partir dos “olhos do império” (Mary-Louise Pratt), não apenas rasurando a individualidade dessas literaturas como subalternizando-se as relações com as outras literaturas africanas, sobretudo de aqueles países cujas sociedades se aproximam, por razões de vária ordem, nos seus elementos de dinâmica histórica, com reflexos nas contínuas atualizações que se vão operando nas representações identitárias: vale interrogar se as relações entre a literatura moçambicana com a zimbabueana não serão mais “intensas” do que com a cabo-verdiana; ou se o diálogo da literatura brasileira com a portuguesa não será mais contínuo do que a literatura chilena, por exemplo. Com efeito, como lembra Mia Couto, “o que pode ser perigoso é criar identidadesrefúgio, identidades que nascem da negação de identidades dos outros” (2005, p. 89).

Eis porque se torna fundamental discutir algumas ideias tidas como adquiridas entre os estudiosos das literaturas periferizadas, como as africanas em português, ou menorizadas, como a de brasileira afro descendente, e seus agentes e atores (autores, críticos, leitores e a própria “comunidade interpretativa”, expressão que tem o cunho de Stanley Fish) tendo em conta a tendência para a classificação judicativa que decorre do processo de hierarquização com base em critérios tidos como “universalistas” que propõem a rarefação identitária decorrente, segundo os seus arautos, da dinâmica da globalização. Como lembra Edward W. Said, em pensamento sentencioso, “os cruzamentos entre cultura e imperialismo são irresistíveis” (2011, p. 37). E pior: naturalizam a condição subalterna e periférica das entidades e seus autores, remetem as desigualdades decorrentes das relações hegemônicas para a questão do mérito, sem ter em conta, como lembra Aijaz Ahmad, “o papel contraditório do imperialismo que simultaneamente unifica o mundo, sob a forma de canais globais de circulação, e o distribui em estruturas de coerção e dominação global” (2002, p. 55).

Portanto, a questão é também a das fronteiras da subalternidade. Porém, se existe uma atitude epistemológica de consenso e de implementação harmoniosa quando se estudam literaturas dos países emergentes, recém descolonizados (apesar de algumas sutis perversidades que Tzvetan Todorov desvela no seu artigo Penser la pluralité des cultures (1995), em outros espaços não é possível ignorar a hierarquia de certos códigos culturais em virtude não apenas da sua relevância histórica e porventura quantitativa, porém ainda em razão da hegemonia dos códigos, normas e regras “universalistas”. A desconsideração desse tipo de nuances processuais tanto pode conduzir ao exacerbamento nacionalista, típicos de ideologias apologéticas da homogeneidade cultural e defensoras de reificadas raízes culturais históricas, como a um discurso de constante sobranceria meritocrática que procura constantemente desqualificar o que é publicado em espaços periferizados, como se o crítico-juiz (normalmente com uma “caução” mediática) fosse o detentor da “verdade” literária! Para estudar a literatura dos outros (Todorov), enquanto trabalho de busca e compreensão da diversidade –que muitas vezes é apenas outridade–, é importante estudá-la dentro de um contexto histórico das relações entre o mundo do leitor e o mundo para o qual remete a literatura em estudo. Por isso Martine Burgos, crítica cujo trabalho se situa no âmbito da sociologia da leitura, fala da necessidade de “um trabalho de contextualização reforçada que imponha a análise de textos inscritos numa história, uma cultura outra, reenviando aos meandros políticos, ideológicos” (1995, p. 173).

Esta abordagem, pensada segundo um duplo critério de interação intercultural e orientação funcional, que dá conta de particularidades estéticas através de obras representativas de opções estéticas individuais, ou contextuais e circunstanciais, permite que se captem os espaços e os códigos comuns, a fim de que o leitor-crítico possa interagir em termos de prazer estético.8 8 Vale lembrar que prazer estético não pode ser confundido com gozo (legítimo) que proporciona um qualquer passatempo, mas –recorrendo a Salvato Telles de Menezes, no seu didático livro O que é Literatura (1993. p. 21)– como “cultivo do espírito, algo que implica um esforço que o simples divertimento não contempla. O apreciador inteligente, aquele que desenvolve a sua sensibilidade artística, não se limita a matar o tempo, vive momentos de ‘ócio’ à moda antiga, esses momentos afirmativos da existência, enquanto o ‘negócio’, isto é, a privação do ócio (que em grego queria dizer escola), preenchia os negativos”. É preciso não esquecer que a construção da identidade, mesmo a literária, é o resultado da dialética da tensão entre o mesmo e o outro. Eis porque cada vez mais a literatura comparada se apresenta como o estudo mais adequado para responder às solicitações da ideologia multicultural, que muito tem a ver com a “estética do diverso”, de que falava Victor Segalen (1978SEGALEN, Victor. Essai sur l’exotisme: une esthétique du divers. Montpellier: Ed. Fata Morgana, 1978., p. 25) – e que coincide, nas dinâmicas negociais propostas, com a “poética do diverso” de Édouard Glissant que, no entanto, faz uma abordagem mais localizada e mais teleologicamente reivindicativa dessa “diversidade”.

E mesmo concordando com Harold Bloom de que um leitor “não lê por prazer ou para expirar culpas sociais, mas para dilatar uma existência solitária” (1997, p. 465), não posso deixar de convocar o conceito proposto por Pierre Bordieu de “capital cultural”, que avalia a obra de arte num quadro mais lato do que o estético (aliás, uma proposta que vinha dos estruturalistas de Praga, herdeiros do formalismo russo). Isso porque estou convencida de que “a história da literatura deve ser [estudada] nessa plurivocidade discursiva, com relatos entrecortados, conflituosos, como matéria voltada para o antes que pode vir a ser o depois” (Abdala Júnior, 2003ABDALA JÚNIOR, Benjamin. De vôos e ilhas: literatura e comunitarismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003., p. 36).

Talvez a crítica literária deva também preocupar-se com essa relação entre o antes e o depois… Ou talvez eu seja um desses ressentidos do valor estético de que fala Harold Bloom que “estão para ficar e que vão gerar outros ressentidos institucionais à sua imagem e semelhança” (Bloom, 1997BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Lisboa: Círculo de Leitores, 1997., p. 465)…

  • 1
    Texto parafraseado de uma intervenção de João Milando (2007MILANDO. João. África/Europa: a cooperação para o desenvolvimento. In: Grupo dos Embaixadores Africanos, África-Europa: um novo diálogo perante os desafios o futuro. Prefácio de Inocência Mata e Isabel Castro Henriques. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2007. p. 108-112., p. 119).
  • 2
    Género narrativo próximo do apólogo, a parábola é uma narração utilizada para ilustrar lições de sabedoria e/ou ética por vias simbólicas ou indiretas, a partir de um caso particular, tendo como personagens apenas seres humanos (diferentemente do apólogo, que personifica seres inanimados, transformando-os em personagens da história), procurando tornar perceptível uma significação geral e podendo evocar outras realidades, tanto fantásticas, quando reais. Possuindo uma razão moral, implícita ou explícita, porém, não tem necessariamente um fundo religioso.
  • 3
    Note-se, no entanto, que muitos destes críticos são, como bem lembra Stuart Hall, professores em universidades do “centro”, particularmente nos Estados Unidos e no Canadá.
  • 4
    Tradução livre: “As manifestações de eurocentrismo, como as de outros fenômenos sociais dominantes, exprimem-se nos domínios mais diversos das relações cotidianas entre indivíduos, informação e opiniões políticas, opiniões gerais sobre a sociedade e a cultura, a ciência social”.
  • 5
    Tradução livre: “[…] O eurocentrismo é, como todos os fenómenos sociais dominantes, fácil de entender em vários manifestações diárias, mas mais difícil de definir com precisão. […] Essas manifestações são, por vezes, violentas – até ao racismo assumido – às vezes tênues. Elas colonizam tanto a linguagem do senso comum, a linguagem popular, como a linguagem científica de especialistas da política, do terceiro mundo, da economia, da história, da teologia e todas as formulações da ciência e do pensamento sociais.”
  • 6
    Afirmação de Flávio Garcia (Uerj), no 23. Congresso Internacional de Abraplip (São Luís, MA, 11-16 set. 2011), na sessão da mesa 34 sobre “Literaturas da África de língua Portuguesa: questões de identidade cultural”, dia 15/09, 16-18 horas.
  • 7
    Tradução livre: “A própria civilização ocidental se torna prisioneira, sendo os intérpretes eurocêntricos os seus carcereiros. Mas o eurocentrismo é mais perigoso para a autoconfiança dos povos do Terceiro Mundo quando este é internalizado na suas concepções intelectuais do universo.”
  • 8
    Vale lembrar que prazer estético não pode ser confundido com gozo (legítimo) que proporciona um qualquer passatempo, mas –recorrendo a Salvato Telles de Menezes, no seu didático livro O que é Literatura (1993. p. 21)– como “cultivo do espírito, algo que implica um esforço que o simples divertimento não contempla. O apreciador inteligente, aquele que desenvolve a sua sensibilidade artística, não se limita a matar o tempo, vive momentos de ‘ócio’ à moda antiga, esses momentos afirmativos da existência, enquanto o ‘negócio’, isto é, a privação do ócio (que em grego queria dizer escola), preenchia os negativos”.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2014

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2013
  • Aceito
    25 Nov 2013
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