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Na cidade em disputa, produção de cotidiano, território e conflito por ocupações de moradia

In the disputed city, production of daily life, territory and conflict in squatted buildings

Resumo

Este artigo examina, a partir de pesquisa etnográfica, dinâmicas urbanas e políticas articuladas e produzidas por uma ocupação de moradia, mantida por movimentos organizados, no centro de São Paulo. A análise dá-se em torno de três eixos: cotidiano, território e conflito. A observação do cotidiano permite a compreensão de uma ocupação como um potente campo de gravitação, que se articula a redes e circuitos outros integrando e produzindo uma cartografia política. Tanto o campo de gravitação que se arma a partir da ocupação quanto a cartografia política a que esse campo de gravitação se constela compõem e produzem um território, atravessado, ele também, por linhas de força e conflitivas que marcam as disputas que fazem a cidade.

ocupações de moradia; produção do espaço urbano; cotidiano; território; conflito urbano

Abstract

This article investigates, through ethnographic research, different urban and political dynamics articulated and produced by a squatted building maintained by organized movements in downtown São Paulo. Three dimensions are analyzed: daily life, territory and conflict. The observation of daily life enables to understand the squatted building as a powerful gravitational field around which networks and circuits orbit, integrating and creating a political cartography. Both the gravitational field that is created with the squatted building and the political cartography produced by the gravitational field compose and configure a territory, which, in turn, is also crossed by conflicting forces marking the disputes that make the city.

squatting; production of urban space; daily life; territory; urban conflict

Este artigo pretende examinar dinâmicas urbanas e políticas articuladas e produzidas por ocupações de moradia realizadas e mantidas por movimentos de moradia organizados, tomando como referência e base empírica pesquisa etnográfica realizada na ocupação Mauá (Santos, 2018SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.),1 (1) Este artigo é fruto de pesquisa de mestrado financiada pela Fapesp e no âmbito do Projeto Temático Fapesp: “A gestão do conflito na cidade contemporânea – a experiência paulista”, coordenado pela professora Vera Telles. Agradeço a troca e partilha com xs colegas desse grupo assim como com xs colegas do projeto Observatório de Remoções, coordenado pela professora Raquel Rolnik. situada no centro de São Paulo, na região da Luz, localizada em frente à Estação da Luz. É necessário apontar que os aspectos e dinâmicas urbanos e políticos explorados neste artigo não são algo exclusivo e único dessa ocupação; o que será apresentado e discutido aparece e se encontra presente, por outras vias, em outros arranjos e escalas, com o que se dá no cotidiano e nas relações de outras ocupações da cidade, de acordo com as diferenças de localização, dimensões, estrutura, características internas de organização e tempo de existência.

As questões que nortearam a pesquisa, da qual este artigo é fruto, sustentam-se em algumas linhas que buscam compreender as ocupações de moradia no centro de São Paulo a partir de dimensões urbanas e políticas, destacando e analisando os processos situados, as dinâmicas urbanas territorializadas, as práticas, as teias de relações que produzem esses espaços e que eles próprios também produzem (Agier, 2013AGIER, M. (2013). Campement urbain: du refuge naît le ghetto. Paris, Payot & Rivages.; 2015). Na lógica urbana processual enfatizada por Michel Agier, esses lugares supostamente transitórios e precários produzem relações sociais, tecem redes ampliadas de interações com o entorno, afetam as dinâmicas urbanas locais, criam fatos políticos e estabelecem procedimentos e agenciamentos em interação com poderes públicos, grupos sociais, movimentos políticos.

Esse autor afirma que a cidade não é mais considerada um objeto que pode ser percebido em sua totalidade, mas sim um “todo decomposto” que deve ser apreendido e vivido em situação (Agier, 2015AGIER, M. (2015). Anthropologie de la ville. Paris, PUF., p. 23; tradução livre). Essa constatação provoca um deslocamento na problemática de uma questão externa de “o que é a cidade?” para um questionamento interno, não normativo, que deve ser explorado de “o que faz a cidade?”. O procedimento não é a constatação de um fato dado, mas de um processo, vivo e dinâmico (ibid., p. 24; tradução livre). Nesses termos, ele se coloca a questão: “que vida social, econômica, cultural, política, emerge nos lugares mais precários e extraterritoriais, e nos mostra exemplos de cidades em formação?” (ibid.).

O caminho perseguido para empreender uma tentativa de resposta foi seguir, por meio do trabalho etnográfico de pesquisa, as linhas que chegam e partem da ocupação, ligando-as a outros espaços, atores e eventos. A partir das ocupações e de seus moradores, relações e circuitos estabelecem-se, novos arranjos e articulações são produzidos e, nesse dinamismo e atravessamentos, vão colocando a ocupação, seus moradores e cotidianos em relação com outras territorialidades, atores e redes que pertencem a um plano urbano e político, mais amplo e comum, que é o da cidade. E ao integrar esse “grande tecido urbano” (Brenner, 2013BRENNER, N. (2013). Theses on urbanization. Public Culture, v. 25, n. 1, pp. 85-114.), não só fazem parte da dinâmica de produção do espaço, como também da disputa em torno dessa própria produção e de seus modos de apropriação (ibid.).

Conforme aponta Brenner (ibid.), a noção do urbano permanece como uma ferramenta crítica fundamental para compreender e analisar aquilo que, para ele, é a problemática central do processo de urbanização planetária atual: “o contínuo processo de destruição criativa do espaço político-econômico sob o capitalismo” e o diagrama das desigualdades sociais e urbanas que também se aprofundaram no mesmo passo em que se globalizaram, assumindo, no entanto, configurações espaciais diferenciadas conforme as regiões (ibid., p. 94; tradução livre).

Em relação à “destruição criativa”, Harvey (2014)HARVEY, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes. afirma que, historicamente, “a urbanização desempenhou um papel crucial na absorção dos excedentes de capital, e que o tem feito em escala geográfica cada vez maior, mas ao preço de processos florescentes de destruição criativa que implicam a desapropriação das massas urbanas”, o que, periodicamente, provoca rebeliões (ibid., pp. 59-60). Geralmente, coloca o autor, na recorrência dessa reestruturação urbana decorrente da “destruição criativa”, “são os pobres, os desprivilegiados e marginalizados do poder político os que sofrem mais que quaisquer outros com esse processo. A violência é necessária para construir o novo mundo urbano sobre os escombros do antigo” (ibid., p. 50), episódios que a história nos legou inúmeros: das paradigmáticas reformas do barão Haussmann na Paris da segunda metade do século XIX ao “urbanismo renovado” da cidade olímpica do Rio de Janeiro do século XXI.

Nas últimas décadas, vivemos a “fase neoliberal, pós-modernista e consumista de absorção capitalista do excedente por meio da urbanização” (ibid., p. 60) em que a expansão recente e radical do processo urbano gerou grandes transformações no estilo de vida, mas as “falhas” desse processo também são visíveis: “vivemos cada vez mais em cidades divididas, fragmentadas e propensas a conflitos”, no qual os resultados da “crescente polarização na distribuição da riqueza e poder estão indelevelmente inscritos nas formas espaciais de nossas cidades” (ibid., pp. 47-48). Ao mesmo tempo, nessas cidades vemos também a formação e atuação de uma diversidade de movimentos sociais urbanos que, tentando contornar o isolacionismo, buscam reconfigurar a cidade em outros termos dos que lhes conferiram os “poderes dos empreiteiros apoiados pelas finanças, pelo capital empresarial e por um aparato estatal que só parece conceber o mundo em termos de negócios e empreendimentos” (ibid., p. 49).

Harvey aponta que esses movimentos sociais urbanos costumam se organizar e mobilizar contra práticas diversas de expropriação, formas “predatórias” e “secundárias de exploração”, que afetam as condições de vida cotidiana da população mais pobre da cidade (ibid., pp. 230-231). Dentre essas práticas de expropriação, de apropriação e de acumulação, o autor coloca como um dos exemplos os “aluguéis altos cobrados pelos proprietários” (ibid., p. 232)2 (2) Não por acaso, o pagamento de aluguel é um dos alicerces principais das estratégias de organização e mobilização dos movimentos de moradia organizados do centro. Nesse sentido, “organizar-se não apenas em torno do trabalho, mas também das condições do espaço habitável, construindo pontes entre ambos, é algo que vem se tornando cada vez mais crucial” (Harvey, 2014, p. 238) e tarefa que os movimentos de moradia e ocupações do centro buscam, com limitações e desafios, realizar. – aspectos ligados à esfera da circulação do capital e não restritos apenas à da produção, portanto.

Para Harvey, “é evidente que o urbano funciona como um espaço importante de ação e revolta política. As características atuais de cada lugar são importantes, a reengenharia física e social e a organização territorial desses lugares são armas nas lutas políticas” (ibid., p. 213). Por essas razões, podemos compreender melhor as formas pelas quais a “luta pela cidade” se articula com lutas por moradia, mas também com outras reivindicações referentes a outras dimensões da vida urbana, possibilitando, assim, que uma ocupação atravesse circuitos e estabeleça contatos com outros atores e movimentos presentes e atuantes na cidade, entendida na sua proposta das cidades rebeldes como espaço de disputa (ibid.).

As dimensões e os efeitos desse processo de urbanização e sua relação com a irrupção de conflitos urbanos foram também trabalhados e explorados por Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia nas eras das finanças. São Paulo, Boitempo., que, a partir da constatação de que vivemos um processo de financeirização da moradia e do solo urbano, em escala global, com particularidades locais, e, ao mesmo tempo, de eclosão de revoltas e confrontos urbanos, desenvolve sua análise da “guerra dos lugares”.

O processo (e seus desdobramentos) de colonização da terra urbana e da moradia pelas finanças globais nas últimas décadas, por meio do qual as políticas habitacionais e urbanas se transformaram em mecanismo de extração de renda, acumulação de riquezas e ganhos financeiros (ibid., p. 14), vem provocando a despossessão massiva de territórios e populações por meio da qual sobretudo os mais pobres e vulneráveis ficam mais expostos à “crise global da insegurança da posse com o avanço do complexo imobiliário-financeiro” (ibid., p. 15). Nessa conjuntura de disputa, a pressão e o risco sobre as comunidades mais pobres aumentam, colocando-as sob “constante ameaça de espoliação de seus ativos territoriais” (ibid., p. 152) e agravando a condição de insegurança habitacional e de transitoriedade permanente3 (3) Os territórios populares urbanos ameaçados ou atingidos por remoções são marcados pelo que Rolnik (2015) definiu de transitoriedade permanente. São territórios constituídos por: “zonas de indeterminação entre legal/ilegal, planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do mercado, presença/ausência do Estado. Tais indeterminações são os mecanismos por meio dos quais se constrói a situação de permanente transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva, capaz de ser capturado ‘no momento certo’” (ibid., p. 174). É, nesse sentido, que o termo de indeterminação é importante de ser retido, pois a indeterminação, se atinge os territórios ameaçados e atingidos por remoções, torna-se também um elemento cujos efeitos transbordam os limites territoriais, na medida em que afeta (e transforma) as vidas e as trajetórias sociais e urbanas dos sujeitos que transitam, moram e constroem esses territórios. A condição de indeterminação passa a reger as vidas desses sujeitos e de suas famílias, os modos de acesso a locais de moradias, seus circuitos de trabalho, suas mobilidades e percursos urbanos. (ibid.) que marca a constituição dos territórios populares ameaçados ou atingidos por processos múltiplos de despossessão.

As formas pelas quais operam a “colonização” vão desde a

ocupação do território e substituição das formas de vida que ali existiam, com remoções e demolições, como do processo cotidiano de construção dos indivíduos consumidores e sujeitos de crédito, alargando os mercados e finanças globais cultural e concretamente. (Ibid., p. 253)

Uma das consequências da colonização da cidade pelas finanças é a explosão de insurgências, conflitos e violência (ibid., p. 16). Em meio a essas disputas por territórios, as ocupações de espaços tornam-se estratégia e recursos políticos e vêm se multiplicando, constituindo-se como “contraespaços” que estabelecem a confrontação como possibilidade de resistência a tentativas de exclusão (territorial, política, social) (ibid., p. 377). É também contra esses “processos coletivos de construção de ‘contraespaços’” que a “guerra dos lugares” e “pelos lugares” avança, marcada “pelo confronto e pela violência” (ibid., p. 378).

Foi retendo a dimensão do conflito como elemento central que a leitura e a análise sobre a ocorrência e manutenção de ocupações de prédios no centro de São Paulo foram feitas. Nessa conjuntura de disputa e avanço da produção (e apropriação) da cidade sob a lógica urbana hegemônica, as ocupações – assim como outras formas de morar e viver nos e dos territórios populares – constituem-se como resistência para esse avanço e apropriação e, desse modo, são percebidas e vistas como travas e obstáculos, que, portanto, precisam ser destruídos. Assim, esses espaços constituem-se como pontos e fronteiras de choque, de tensão e de resistência; porém também exercem papel produtivo e não só reativo: a partir desses espaços (e de seus ocupantes), práticas, agenciamentos, repertórios, eventos, circuitos são construídos, mobilizados e articulados. É, a partir dessa realidade conflitiva, que surgem e são criados; é, a partir desse território em disputa, que são produzidos. Nesse sentido, resistência e produção de práticas, dinâmicas e articulações a partir das ocupações e de seus ocupantes devem ser entendidas situacional e territorialmente ancoradas e em relação a um campo de forças (econômicas, políticas, urbanas) em que estão constantemente interagindo, tensionando-se e reagindo, conformando e disputando a produção do espaço e das formas de vida na cidade.

Esses elementos produtivos das ocupações observados foram formulados ao redor de três eixos que armam e organizam este texto. Esses três elementos, que se compõem, atravessam e se influem ao longo do tempo de existência de uma ocupação, são constituintes da experiência de uma ocupação e, quando colocados em um plano mais amplo de perspectiva, tendo a cidade como plano de referência (Telles e Alves, 2006TELLES, V. e ALVES, E. (2006). “Territórios em disputa: a produção do espaço em ato”. In: TELLES, V. e CABANNES, R. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo, Humanitas., 2010),4 (4) A hipótese que moveu a investigação foi a de pensar as ocupações a partir de dinâmicas urbanas e políticas presentes e produzidas por uma série de relações, arranjos e diferentes circuitos que só poderiam ser acompanhados e registrados em sua dimensão e escala se colocássemos a ocupação (e todos os elementos que a compõem) em perspectiva e em relação em um plano mais amplo de referência no qual estão inseridos: a cidade. possibilitam compreender não só como as ocupações se integram efetivamente ao tecido urbano, mas como também participam ativamente tanto da disputa por sua apropriação quanto de sua própria produção. Estes três eixos produzidos e constituintes desses empreendimentos e experiência e que serão apresentados e analisados a seguir são: cotidiano, território e conflito.

Cotidiano: a ocupação, seus espaços, seus moradores e suas rotinas

O prédio da ocupação Mauá já foi o hotel Santos Dumont, inaugurado em 1953, em razão das comemorações do Quarto Centenário de São Paulo, e se localizava próximo à movimentada rodoviária da Luz, primeira da cidade. Com a desativação desta, ao longo dos anos 1980, o hotel entrou em decadência e passou a alugar seus andares para escritórios até que, nos anos 1990, ele foi completamente abandonado (Pereira, 2012PEREIRA, O. (2012). Lutas urbanas por moradia. O centro de São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo., p. 161). E assim ficou por quase 20 anos quando em 25 de março de 2007 ele foi ocupado (Aquino, 2008AQUINO, C. (2008). A coletivização como processo de construção de um movimento de moradia: uma etnografia do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.), evento que marcou o início da ocupação Mauá.

Diferentemente de muitas ocupações, esta foi realizada e mantida, não por um, mas por três movimentos de moradia diferentes. Naquela ocasião, os movimentos eram: o MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), o MMRC (Movimento de Moradia Região Centro) e o ASTC-SP (Associação Sem-Teto da Cidade de São Paulo). Os seis andares do prédio foram divididos entre os três movimentos, sendo determinado um coordenador por andar e uma coordenação geral para todo o conjunto. Atualmente, aproximadamente 237 famílias vivem naquele local. Fora a coordenação geral e os coordenadores por andar, há regras internas rigorosas que regulam a convivência, o uso dos espaços, a interdição do uso de drogas e de violência doméstica, furtos e envolvimento com o tráfico.

Um dos movimentos que compunham a Mauá, o MSTC, coordenava também, a ocupação Prestes Maia, próxima, localizada na avenida de mesmo nome, no número 911: o imóvel de 22 andares, um dos mais altos da região, era uma antiga fábrica têxtil, que ficou abandonada por mais de 20 anos e que já havia sido ocupado, de 2002 a 2007 (ibid.). Em 2010, foi ocupado novamente, porém diferentemente da Mauá, a Prestes Maia é coordenada apenas por um movimento de moradia. Em 2014, esses coordenadores se desligaram do MSTC e criaram um novo movimento, o Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ). Com essa mudança, a ocupação Mauá passou a ser composta, a partir de então, pelos movimentos MMLJ, MMRC e ASTC-SP.

Em 2012, no mês de março, poucos dias antes de a Mauá completar cinco anos, os proprietários do antigo hotel Santos Dumont entraram na Justiça com pedido de reintegração de posse do imóvel (Paterniani, 2016PATERNIANI, S. (2016). Morar e viver na luta – movimentos de moradia, fabulação e política em São Paulo. São Paulo, Annablume.). Ainda sob o impacto recente da brutal reintegração de posse da ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos - SP, ocorrida em janeiro daquele mesmo ano, foi armada uma intensa mobilização de coletivos e ativistas variados na época,5 (5) Inclusive, os Racionais MC’s gravaram o videoclipe de sua música Mil faces de um homem leal, referente a Carlos Marighella, dentro da ocupação, justamente nesse período de forte mobilização ao redor da Mauá. sucedendo-se denúncias, pressões, atos, além de vigília constante para organizar uma possível resistência à expulsão do local. Os moradores com seus advogados entraram com uma apelação, para permanecerem no local, contra a reintegração, que foi suspensa, mas o processo continuou tramitando na Justiça.

Para poder discutir o cotidiano de uma ocupação e o que se constrói a partir dali, questões precedem essa investigação: quem são as pessoas que moram em uma ocupação? Como chegaram e o que as levou a morar ali? As respostas variam, obviamente. E não são simples nem evidentes. Em linhas gerais, poderíamos responder que vive, nas ocupações, uma população marcadamente negra, feminina e migrante (vinda do interior, de outros estados, sobretudo do Nordeste, e nos últimos tempos de outros países também); muitas mães solteiras, mas há famílias maiores também fazendo das ocupações lugares sempre cheios de crianças. Em relação às trajetórias, brevemente, é possível esboçar que as trajetórias sociais e os percursos urbanos dos ocupantes, no geral, são marcados por uma sucessão e recorrência de habitações precárias e improvisadas, uma grande itinerância e mobilidade intraurbanas e habitacionais, demonstrando a instabilidade e a insegurança habitacionais que constituem traços comuns da condição de transitoriedade permanente (Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia nas eras das finanças. São Paulo, Boitempo.) e de indeterminação que marcam muitas dessas vidas e que os levaram, por meio de mediações e conexões do mundo social, até uma ocupação – e de uma ocupação para outra, em muitos casos. E, a partir de sua chegada em uma ocupação, são muitos os outros circuitos e agenciamentos que se armam e se abrem em torno das mobilidades urbanas e das relações que constroem com outros espaços e atores a partir de seu estabelecimento (às vezes, transitório, às vezes, mais estável)6 (6) O estável poderia ser também formulado como uma “expectativa de estabilidade”, que é diferente de estabilidade em si (Rizek et al., 2015, p. 302). em uma ocupação. Perseguir esses movimentos foi uma das formas de reconstituir e conceber melhor tanto as experiências de transitoriedade permanente e de indeterminação que marcam essas vidas e trajetórias, quanto os fluxos entre o dentro e o fora da ocupação, posições que se diluem no contínuo ir e vir desses atravessamentos.

Em relação ao cotidiano da ocupação, existe uma rotina viva e bem-assentada que anima seus espaços, produzida pelo dinamismo cotidiano de seus ocupantes como também pelas diferentes atividades, eventos e circulação de outros atores e coletivos em seus interiores. Como os prédios residenciais, a Mauá também tem um cotidiano e rotina comuns: regras de funcionamento para a portaria, para a convivência nos espaços comuns, horários para retirada do lixo, o recebimento de contas e correspondências, a presença de visitantes, as crianças indo e voltado da escola, pessoas saindo e voltando a pé, de bicicleta... Porém, há outras práticas rotineiras que se desenvolvem ali que já não são, digamos, as “tradicionais” atividades de um prédio residencial: reuniões de coordenação e dos movimentos que compõem a ocupação, assembleias gerais, reuniões de base, reuniões de formação política, reuniões com coletivos vindos de fora, concentrações para atos, visita de diversos grupos e atores externos. Como se integram essas atividades tão diferentes ao cotidiano das pessoas?

A partir da vivência em uma ocupação, existe um ajustamento das condutas dos moradores para conciliar os episódios, eventos e personagens os mais diversos com que se deparam como a “parte ‘extraordinária’ das rotinas ‘ordinárias’” (Machado da Silva e Leite, 2008MACHADO DA SILVA, L. e LEITE, M. (2008). “Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desse tema?”. In: MACHADO DA SILVA, L. (org.). Vida sob cerco – violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira., p. 47). É, a partir de ajustes e cálculos, que os moradores conciliam suas necessidades “comuns” em meio a uma dinâmica que costuma lhes exigir, muitas vezes, atitudes “excepcionais”, que destoam daquilo que organizaram, pretendiam, gostariam ou do mais imediato. E ter uma rotina “comum” é importante para permitir que, nas situações extraordinárias, consigam “prosseguir”, para que esses momentos não sirvam de bloqueio para “continuar” (ibid., p. 75).

Optou-se, aqui, por utilizar “rotina ordinária” dos ocupantes para contrapor suas obrigações, atividades e necessidades pessoais e cotidianas em relação aos eventos e aos acontecimentos que se dão (com frequência) a partir da ocupação em que vivem e que pouco dependem de suas vontades e escolhas individuais; elas acontecem segundo o ritmo dos tempos da coordenação e das exigências dos movimentos de moradia, da presença de atores externos, do tempo político da cidade, que, no seu conjunto, comporiam o que foi aqui designado como o “extraordinário” que emerge e atravessa seus cotidianos.

Distinguir, dessa forma, o que acontece lá dentro possibilita organizar e compreender melhor a dinâmica de uma ocupação onde “ordinário” e “extraordinário” se sobrepõem, envolvendo as mesmas pessoas. Separar o que é rotineiro e cotidiano do que é evento extraordinário na vida dos moradores permite entender melhor os engajamentos e ajustes que eles devem estar dispostos a fazer para se integrar e viver na dinâmica de uma ocupação.

Por exemplo, uma moradora da ocupação Prestes Maia trabalhava como cozinheira em um delivery de pratos executivos na avenida Prestes Maia e gostava muito de trabalhar lá (mesmo que estivesse “completamente sem dinheiro”, trabalhando 12 horas por dia durante a semana e buscando complementar a renda vendendo bebidas, durante a madrugada, na frente de baladas na rua Augusta, nos finais de semana). Uma vez, por ter que participar de uma ocupação de um prédio, como atividade do movimento, perdeu um dia de trabalho e foi demitida. Insistiu e, conversando com o chefe, foi readmitida. Em novembro de 2016, no entanto, teve que participar de outra. Durante a noite que estava “segurando” a ocupação junto dos companheiros, estava muito aflita e preocupada temendo “ficar presa” sem poder sair e perder o horário do trabalho, correndo o risco de ser demitida novamente. Quando amanheceu, explicou sua situação para uma coordenadora que liberou sua saída de manhã, possibilitando chegar a tempo para um dia “normal” de trabalho.

Um dia na Mauá, uma mulher, que vinha da rua, cumprimentou-me apressada; chegava em casa depois de mais um dia de trabalho. Em um primeiro momento, não a reconheci, mas depois lembrei: ela havia participado, meses antes, da ocupação de um prédio pelo movimento a que pertence. Junto de outros companheiros, ela permaneceu por quase três dias no imóvel sem poder sair. Víamos ela, na janela do imóvel, bem-humorada, fazendo brincadeiras e piadas com as pessoas que passavam na rua; estava bastante motivada e engajada em segurar aquela ocupação, mesmo com o cansaço, a tensão e a falta de água corrente. Quando ela passou por mim chegando do trabalho, arrumada, em um dia “normal”, foi difícil reconhecê-la, à primeira vista; pareciam duas pessoas diferentes, em dois momentos completamente contrastantes. Mas, ao mesmo tempo, essas “duas pessoas” e essas duas situações tão distintas, ordinária e extraordinária, convivem e se sobrepõem do mesmo modo na vida daquela mulher, que as ajusta no seu viver cotidiano.

Esses ajustes na rotina da vida dos moradores são, portanto, habilidades, astúcias, formas de adaptação para viver em uma ocupação onde acontecem muitas situações diferentes. É uma “arte do contornamento”, que faz com que indivíduos e suas famílias consigam tão bem contornar riscos, transitar entre essas diferentes fronteiras, saibam lidar com diferentes códigos e jogar com variadas identidades e mediações sociais, que se superpõem na vida social (Telles, 2010TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte, Argumentum., p. 25).

E é preciso de fato saber se ajustar a todos esses acontecimentos, pois eles estão frequentemente ocorrendo. Em julho de 2016, aconteceu uma reintegração de posse de um prédio em uma rua próxima, ocupação que era ligada a um dos movimentos que compõem a Mauá. Com a remoção, todos os ocupantes foram morar no grande salão térreo da Mauá enquanto alguma solução mais definitiva era encontrada. Ficaram lá por muitos dias, vivendo em uma “ocupação dentro da ocupação”, em condições mais precárias do que o resto, mas, ao menos, com um teto sobre suas cabeças. Foram expulsos arbitrariamente de onde viviam por uma reintegração de posse, mas foram acolhidos e passaram a morar amotinados um do lado do outro naquela espécie de “acampamento urbano” (Agier, 2013AGIER, M. (2013). Campement urbain: du refuge naît le ghetto. Paris, Payot & Rivages.). Ou poderíamos também chamar acampamento de “refugiados urbanos”7 (7) Cf. “Refugiados urbanos" é termo de um repertório que circula enfatizando e aproximando, justamente, as situações de deslocamento e circulação que marcam a vida de multidões de pessoas no cenário contemporâneo. Sujeitos que têm “as vidas marcadas pela insegurança” e “pela transitoriedade dos arranjos de circunstâncias” (Telles, 2018, p. 3). Suas trajetórias e modos de circulação pela cidade têm como traço a precariedade e os vários processos de despossessão que caracterizam as dinâmicas urbanas contemporâneas. (Catso, 2016CATSO (2016). 1o Seminário Povo de Rua, os Refugiados Urbanos, organizado pelo coletivo Catso. Disponível em: https://www.facebook.com/events/1811001992465574/. Acesso em: 14 mar 2019.
https://www.facebook.com/events/18110019...
). Não eram os primeiros a serem recebidos ali vivendo naquelas condições e, provavelmente, não seriam os últimos.

Enquanto viviam nessa ocupação provisória, começou a se construir uma série de pequenas casas de um cômodo em um terreno não utilizado ao fundo da ocupação. Uma espécie de vila era construída com auxílio de um pedreiro contratado por quinze dias e com o trabalho voluntário dos próprios moradores, muitos dos quais trabalhadores em canteiros e obras, mas, sobretudo, com o trabalho duro dos que chegavam e a quem as casas se destinavam, os “refugiados” recentes. Durante essa reforma, aconteceu uma visita de alunos de engenharia da Universidade Federal do ABC, assim como estudantes da Escola da Cidade foram fazer um trabalho lá na ocupação e, a partir desse contato, convidaram um dos coordenadores da Mauá para, posteriormente, fazer uma palestra em sua faculdade, demonstrando a riqueza e a potencialidade dos circuitos e trocas que se estabelecem a partir do cotidiano de uma ocupação.

Fora a construção das “casinhas” nessa área aberta dos fundos, os andares estão em constante reforma, reparos e melhorias, e há também a construção de novos ambientes internos, como, por exemplo, uma biblioteca e espaço para as crianças. Todas essas reformas e obras revelam uma ocupação que, longe de ser um lugar isolado, estático, fechado e abandonado, está em constante construção e mudanças. A transformação dos espaços, a construção material e a criação de novos arranjos e relações comprovam que há, de fato, um dinamismo urbano que está incessantemente sendo produzido.

Ainda existe uma questão cotidiana envolvendo as dinâmicas internas de uma ocupação pouco explorada pela bibliografia do tema que, no entanto, está muito presente tanto nas falas de coordenadores, moradores e outros interlocutores quanto no próprio dia a dia das ocupações: tensões, atritos e conflitos internos. Uma hipótese para a ausência dessa discussão na bibliografia é que talvez haja uma percepção de que abordar esse ponto possa, de alguma forma, depor contra a imagem e discursos construídos, sobretudo, ao redor da importância e da ênfase dadas na construção de unidade e coesão internas, tanto na retórica quanto na prática.

Contudo, minha percepção vai em outra direção: não só que é algo muito relevante que precisa ser levado em conta como também tratar desse assunto não enfraquece os empenhos, os esforços e a imagem de união de uma ocupação; muito pelo contrário: surpreendente não é saber que existam conflitos internos em uma ocupação, surpreendente é que haja ocupação apesar dos conflitos. A existência e a recorrência de atritos que precisam ser administrados, discutidos, negociados, trabalhados constantemente não negativam a imagem que temos das ocupações; ao contrário, fortalecem ainda mais os esforços de consolidação e efetivação desse empreendimento grandioso, que se faz a partir do convívio e dos dissensos de uma coletividade grande e heterogênea. Nesse caso, não custa frisar que, de modo algum, essa dinâmica é uma exclusividade da Mauá.

Os desafios consequentes existentes dessa convivência complexa em um mesmo espaço de uma grande coletividade acabam por possibilitar também mais uma dimensão produtiva relacionada à vida cotidiana em ocupação: a existência de conflitos internos e a necessidade de enfrentar essa realidade faz com que novas relações, aprendizados e arranjos tenham que ser pensados, criados e estabelecidos, fazendo desse ambiente um espaço de criação e experimentação de “novas formas de relacionar” (Santos, 2018SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo., p. 146). É o contornamento de um dado que, se não é ideal nem corresponde a seus desejos e àquilo que almejam, pelo menos, com criatividade e paciência tenta ser encarado.

Desse modo, a importância na ênfase da dimensão dos conflitos internos e das consequentes novas formas de relacionar que surgem dali está na compreensão do cotidiano das ocupações a partir da percepção de que os ruídos (os conflitos) revelam que não está tudo bem, que há incômodos e que as coisas não são necessariamente aquelas que sonham para suas vidas. É uma forma também de evitar uma idealização do “fazer cidade” produzido pelas ocupações, indicando que aquilo que é criado a partir dali é também permeado por contradições e problemas. É um alerta para que não romanceemos esse lado produtivo desses modos de “fazer cidade” e esvaziemos de sentido um cotidiano e uma realidade, que é manifestada por aqueles que a vivem como dura e repleta de dificuldades. Ignorar esses ruídos é supor um processo harmônico e ideal que não condiz com aquilo que é vivido.

A efervescência de arranjos, agenciamentos, relações que as ocupações produzem é fruto daquilo que está posto, das limitações, dificuldades e possibilidades que atravessam o dia a dia de uma ocupação. Os imperativos que parecem marcar e reger esses artifícios são o tempo presente (são mais práticas as apropriações e invenções, respondem mais a necessidades e urgências cotidianas e mais imediatas do que a expectativas – que existem, evidentemente – futuras) e uma sensibilidade não só prática, como tática: arranjam-se, viram-se, mobilizam esquemas, relações, dinâmicas que, no fundo, são estratégias para contornar desafios, bloqueios, dificuldades, carências, tensões na realidade imposta, seja no nível dos indivíduos, dos moradores, seja no nível do movimento, das lideranças ou da ocupação como um todo – dimensões que são distintas, com diferentes dinâmicas, mas que coexistem e constituem todas a “comunidade Mauá”. São “virações”, arranjos, articulações que vão, situacionalmente, sendo construídos e produzidos como estratégias para permanecer e continuar existindo em uma realidade que não é estabilizada nem harmônica, interna e externamente, em um contexto mais amplo de disputa política permanente em uma conjuntura urbana de conflito.

Para dar conta de apreender melhor esses arranjos, agenciamentos e estratégias que são mobilizados e produzidos no dia a dia por moradores, lideranças, movimentos e mesmo pelo espaço da ocupação, é preciso enxergar esses elementos em um plano de referência mais amplo, atravessado, ele também, por outras disputas e tensões, que é o da cidade. Para isso, precisamos avançar a análise para o segundo eixo que se refere ao território que a ocupação integra e produz.

Território: um campo de gravitação que se arma e se constela com redes e outros circuitos da cidade compondo uma cartografia política

Como forma de reconstituir o território que a ocupação integra e incide, a partir da articulação dos agenciamentos ali produzidos e das mobilidades urbanas de seus moradores com redes e circuitos outros da cidade de São Paulo, foi preciso um trabalho de análise da ocupação em duas escalas.

Em uma delas, perceber a presença de atores e coletivos diversos circulando pelos espaços internos da Mauá em interação com os moradores e seu cotidiano – portanto, um olhar que converge para dentro da ocupação –, permitindo a compreensão da ocupação como um potente campo de gravitação social, como será descrito a seguir.

A ocupação Mauá recebe, ao longo dos dias da semana em todos os meses do ano, excursões escolares, visita de universitários e pesquisadores, advogados, ativistas de coletivos políticos e culturais, a realização de festas e saraus, intervenções e trabalhos de artistas e equipes de mídias diversas, inclusive, gravações de videoclipes, documentários e filmes.8 (8) Em 2013, o rapper Emicida gravou o videoclipe de sua música Crisântemo na Mauá e realizou o evento de lançamento no pátio com os moradores. A produtora Preta Portê já produziu três filmes gravados na ocupação: o curta-metragem Vaca profana (2016), de René Guerra, o curta-metragem Mauá – Luz ao redor (2013), de Juliana Vicente, e o documentário Leva, dirigido por Juliana Vicente e Luiza Marques (2011). Em 2018, foi lançado, na 42ª Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário de curta-metragem Ocupação Mauá, de Tadeu Jungle, realizado em realidade virtual. Aconteceu também na Mauá, em mais de uma ocasião, a “posse popular” de novos defensores públicos do Estado, no encerramento do curso de formação dos novos membros quando são empossados, entre muitos outros eventos e ações. Em abril de 2016, por exemplo, foi organizada, no grande salão térreo da Mauá, uma reunião com os moradores da Mauá e da Prestes Maia que trabalhavam como ambulantes. A reunião estava sendo realizada pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, e a ideia do encontro era tentar organizar o “pessoal do corre”, os ambulantes não regularizados, que têm “um trabalho precarizado e que não costuma se organizar nem ter sindicato”. A reunião foi proposta para acontecer na Mauá, pois, foi dito, era sabido que, nas ocupações, a maioria dos trabalhadores é informal, sem carteira assinada. “Morar sem renda é complicado. Trabalho e moradia caminham juntos”. Foi feita ali a proposta de se criar uma “associação dos ambulantes do corre” da Mauá como tentativa de organização desses trabalhadores.

Seguindo nos exemplos que mostram a multiplicidade de atores e coletivos que atravessam o espaço interno da Mauá, em um outro dia, também em 2016, houve a visita de um sul-africano, que fazia parte do movimento de moradia em seu país, que veio conhecer a Mauá, conversar com coordenadores dos movimentos que a compõem e ouvir suas experiências, aproveitando para compartilhar um pouco da situação e realidade dos movimentos na África do Sul. No ano anterior, a Mauá havia recebido também a visita, na mesma linha de proposta, de haitianos.

Em uma outra tarde, também em 2016, um grupo de mulheres que trabalha com garotas de programa na região foi realizar uma de suas reuniões no salão da Mauá. Quando perguntei de o porquê estarem fazendo aquela conversa ali, responderam que o grupo delas estava, temporariamente, sem lugar para se reunir e, por conhecerem há muito tempo um dos coordenadores da ocupação, receberam o convite para usar aquele espaço. Com esse episódio, ficou claro, para mim, que quando essas mulheres entram na Mauá para discutir a questão da prostituição, que é presente e fisicamente próxima, estão trazendo esse entorno lá para dentro. As garotas de programa e a rede que se desenvolve a partir delas entraram na ocupação em uma articulação de sua própria rede.

A descrição de casos de atores externos circulando e desenvolvendo atividades nos espaços da ocupação poderia se estender por páginas, o que não é o objetivo neste momento. Os breves exemplos dados bastam para que seja possível afirmar que os entornos urbanos da ocupação reverberam internamente. Ao mesmo tempo que as questões urbanas e sociais ressoam lá dentro, como no caso das prostitutas, elas são, ao mesmo tempo, transformadas e rearticuladas também. Tomemos a reunião dos ambulantes, por exemplo. O trabalho ambulante é um elemento importante tanto na cidade e na região central quanto na realidade das ocupações do centro onde vivem muitas das pessoas que exercem essa atividade. Desse modo, não é estranho acontecer uma reunião sobre esse tema dentro da Mauá. Contudo, não se tratou apenas de simples bate-papo: a partir desse encontro, uma nova articulação foi criada e um outro arranjo urbano foi produzido. Mesmo que a “associação dos ambulantes do corre da Mauá” não se efetivasse, a situação desses trabalhadores seria outra a partir do estabelecimento de um novo canal de contato, interlocução e mediação que, a partir de então, sabem que podem acessar e recorrer, caso necessário; informação e possibilidade que inexistiam ou desconheciam antes desse encontro.

É, a partir desses elementos expostos, que surge a ideia de compreender a ocupação como um campo de gravitação da experiência urbana e social da cidade, territorialmente ancorado (no caso, no prédio da ocupação), onde convergem sujeitos, histórias, práticas diversas, que também colocam em evidência “as forças e relações de forças operantes no mundo urbano e seus territórios” (Telles, 2010TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte, Argumentum., p. 94). Um campo de gravitação social que envolve moradores, coordenadores, outros movimentos sociais, atores e coletivos artísticos e políticos, universitários e pesquisadores, psicólogos e assistentes sociais, operadores do direito e agentes do Estado. E, nessa movimentação, encontros acontecem, surgem novas práticas, formulam-se novos discursos, outros arranjos são formados, novas relações estabelecidas – que inexistiam (ou existiam de outras formas) antes dos encontros e rearranjos que se dão e passam pelas ocupações.

Essa perspectiva foi importante para compreender que moradores, coordenadores e atores externos estão implicados nas dinâmicas produzidas na ocupação, mas de formas e intensidades diferentes, agindo e articulando conexões de formas distintas. Ao redor e a partir de coordenadores e lideranças, muitas atividades acontecem, encontros e alianças são negociados em uma escala diferente, e nem por isso mais importante, do que os vínculos e relações que os próprios moradores estabelecem com a ocupação e com outros atores. Do mesmo modo, é possível dimensionar melhor a força de atração que move grupos externos (a pesquisa da qual este artigo é fruto, inclusive) ao redor desse centro gravitacional, cada uma dessas componentes do campo agindo e atuando em escalas e intensidades distintas.

Dessa forma, é preciso entender não só o porquê, mas de que forma as articulações e conexões são feitas, isto é, o que permite que elas aconteçam. É possível enxergar todos esses encontros, eventos e a rede que se constrói como uma estratégia de fortalecimento e consolidação da ocupação no dia a dia, mas que também se torna fundamental em casos extremos de ameaça concreta de, por exemplo, reintegração de posse. As atividades e eventos internos que acontecem envolvendo atores de fora, o estabelecimento de redes e produção de outras relações não devem ser vistos apenas em uma dimensão prefigurativa, eles são estratégicos nessa luta política por manutenção e sobrevivência, que venho apontando como central na existência de uma ocupação.

Da elaboração da ocupação como campo de gravitação, há uma segunda escala de análise, sincrônica à primeira e também integrante do eixo que abarca a produção de território, que passa pela compreensão de como esse campo de gravitação territorializado na Mauá se conecta e se constela com outros espaços e circuitos existentes pela cidade – tomada como plano de referência e possibilitando que as diferentes experiências e dinâmicas que serão apresentadas a seguir possam ser colocadas em um mesmo plano de análise, apesar de suas diferenças.

Essa segunda escala de análise para reconstituição do território produzido não se restringe, portanto, às dinâmicas que se dão nos espaços internos da Mauá; a ocorrência de cruzamentos e de articulações que colocam a ocupação, seus moradores e cotidianos em sintonia e interação com outros espaços, atores e dinâmicas existentes pela cidade, assim como sua constituição, foi chamada de cartografia política da ocupação.

O contato da ocupação e de seus moradores com a cidade dá-se de muitas formas em arranjos e estatutos (políticos, de historicidade, de campos de intervenção e conflito) variados: desde os comércios – que fazem parte da estrutura física da ocupação, estabelecidos na rua Mauá, onde trabalham alguns de seus moradores, que desse modo se integram e interagem com o entorno e com os passantes dali no dia a dia –, às redes que se estabelecem com outras instituições que esses mesmos ocupantes frequentam: quando, por exemplo, a Escola Estadual João Kopke, próxima à Mauá, foi ocupada pelos secundaristas (dentre esses estudantes, alguns moradores de ocupações da região), pedidos de apoio e suporte à Mauá foram feitos.

Do mesmo modo, o contato com outras organizações e entidades amplia essa rede de conexões. Como exemplo, a ONG Apoio que, além de ser a “face institucional da FLM”,9 (9) A Frente de Luta por Moradia (FLM) articula diversos movimentos de moradia da cidade de São Paulo, oficializada em 2004 (Aquino, 2008; Pereira, 2012; Santos, 2018). recruta moradores de ocupações para trabalharem como assistentes sociais nos seus projetos sociais espalhados pela cidade – assim, aproveitam a “tecnologia organizativa” (Santos, 2018SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo., p. 203) das ocupações e a experiência e acúmulo que os moradores possuem ao participar de movimentos de moradia organizados e ao morar em ocupações por eles mantidas para trabalhar com outras populações, tornando essa oportunidade também uma fonte de renda e de trabalho para muitos ocupantes.

A produção de território a partir das redes e circuitos que cruzam com uma ocupação pode ser vista também a partir da trajetória de um pastor que possui uma igreja nas adjacências da Mauá e que costuma celebrar cultos nos eventos dessa ocupação e da Prestes Maia. Ele era mais um dos muitos pregadores da praça da Sé quando, graças uma amiga, começou a realizar cultos para cinco ou seis pessoas em um quartinho alugado na rua das Noivas, próxima à ocupação Prestes Maia. Um dia, uma coordenadora dessa ocupação participou e o convidou para celebrar um culto na Prestes Maia. A liderança da ocupação participou e gostou muito do pastor, abrindo as portas dessa ocupação e da Mauá para ele. Do contato com essa rede, ele foi se fortalecendo até conseguir estabelecer e alugar a sua própria igreja, ou seja, desse contato, uma nova igreja na cidade surgiu. Fora o papel importante da religião na vida pessoal e nas formas de sociabilidade dos moradores de ocupação (por exemplo, algumas pessoas entram em contato, pela primeira vez, com um movimento de moradia organizado e com uma ocupação ao frequentarem, a convite de conhecidos, cultos celebrados nas ocupações), a entrada no circuito das ocupações possibilitou uma nova articulação que efetivou um novo arranjo, sendo, no caso desse pastor e de sua igreja, as ocupações a “ponte” para essa realização.

Como já foi mencionado, pessoas ligadas ao Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos costumam ir à Mauá para realizar eventos e prestar assessoria jurídica para a ocupação, mas a via é dupla: coordenadores e moradores da ocupação frequentam também os espaços, atividades e seminários organizados por essa entidade. Em um dia de maio de 2017, aconteceu, no Gaspar Garcia, um debate intitulado “Urbanismo insurgente – pelo direito de morar no centro da cidade”, do qual um coordenador da Mauá (que costuma realizar atividades internas e de formação do movimento que coordena no espaço do Gaspar Garcia) e alguns moradores foram participar. O debate contava com, entre outros, uma liderança do MSTC e da FLM, coordenadora da ocupação Hotel Cambridge. No final de sua fala, a liderança da ocupação afirmou que “a desordem deles é a nossa ordem”: o ponto não seria só entrar e morar; é preciso transformar e construir espaços de convivência, construir uma nova “ordem” a partir das ocupações. Assim, o movimento de moradia não poderia ser um movimento sectário: “Temos que estar atentos para todas as lutas populares, todos os pedidos de socorro”, para todos aqueles que estão foram “da ordem”. Afinal, concluiu, “somos todos refugiados, estrangeiros e brasileiros; refugiados e segregados das políticas públicas”.

Esse modo de enxergar e elaborar a realidade ressoou um lambe-lambe colado na fachada de uma ocupação artística e autônoma, a Ouvidor 63, próxima ao Terminal Bandeira: “Sem papeis, sem tetos ou sem terra, todos somos migrantes na desordem global”. Nele, temos a ênfase nas ressonâncias e transversalidades que aproximam as situações e condições de vida dos deslocados e despossuídos que circulam pelos espaços, cidades e fronteiras. E as ocupações acabam sendo espaços constituídos e mantidos por estes que estão fora “da ordem”: refugiados do mundo, dos direitos e das políticas públicas; “refugiados urbanos”. Os sentidos de ordem e desordem estão em disputa (Telles, 2010TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte, Argumentum., p. 258), e essa disputa é marca constitutiva desses espaços produzidos por onde circulam, habitam e constroem os “refugiados urbanos” e nos quais suas vidas e as formas de vida estão em jogo. Com esse exemplo, vemos que as ações, articulações e elaborações envolvendo as ocupações e seus ocupantes, os movimentos de moradias, suas práticas e os sentidos e significados políticos e urbanos, não ficam restritas apenas a dinâmicas internas nas ocupações: elas constroem-se, difundem-se, incorporam-se e atravessam com outras ações, repertórios e espaços da cidade.

Um último exemplo sobre as articulações de percursos, circuitos e espaços, com base nos atravessamentos construídos a partir de uma ocupação com a cidade: em julho de 2016, para comemorar a compra do prédio da ocupação Prestes Maia pela prefeitura, um grande evento para todos os moradores dessa ocupação e da Mauá foi realizado próximo à estação Armênia do metrô. O evento contou com a presença de diferentes personagens que participaram da história da Prestes Maia para compor a mesa: coordenadores de diferentes movimentos de moradia; coordenadores da FLM; o arquiteto e assessor técnico do movimento; apoiadores de diversos setores, como partidos políticos (esse evento serviu, inclusive, como pré-lançamento de candidatura de um vereador do PT). Depois das falas do futuro candidato e dos apoiadores retomando a história daquela ocupação e a importância daquele dia, foi a vez da liderança e referência da Prestes Maia e da Mauá, uma mulher negra, bradar o já tradicional grito “Quem não luta, tá morto!”, repetido em coro, três vezes, por todos os presentes. Por fim, o pastor encerrou a cerimônia com uma oração. Em seguida, “cerveja e churrasco a preços populares”, e a festa pôde mesmo começar. Foi interessante notar como um evento de confraternização entrelaçou partidos políticos, movimentos de moradia e religião, revelando as múltiplas articulações que se constroem ao redor das ocupações.

Para chegar até esse evento, anteriormente, moradores da Prestes Maia e da Mauá concentraram-se em frente a esta última. Depois, seguiram todos a pé, em uma espécie de grande procissão pelo centro de São Paulo, com um dos coordenadores da Mauá, como um Antônio Conselheiro negro, guiando na frente. A pé, percorreram a região da Luz, passando por grandes equipamentos públicos e culturais que circundam a ocupação, como a Estação e o Parque da Luz, a Pinacoteca, museus, escolas e Fatec, base e batalhão da PM e da Rota, estações de metrô, entre outros. Foi um evento pitoresco essa caravana andando lentamente, com mais de uma centena de homens, mulheres, idosos e crianças brincando, em contraste com o trânsito parado da avenida Tiradentes no horário de pico em um fim de tarde de São Paulo. Poder ir a pé para esse lugar, atravessando essa parte da cidade em meio ao trânsito, dá outra dimensão do que significa estar morando naquela rua cercada por tantos equipamentos e estrutura urbanos. Permanecer localizado nesse centro faz parte da “luta” tanto quanto a busca por uma moradia digna. Eles querem uma moradia digna, mas eles querem também estar ali. Eles se apropriam, à sua maneira, dessa infraestrutura urbana – constituída por equipamentos, movimentos, circuitos de trabalho e redes de transporte – que se torna recurso e ferramenta, por isso não estão dispostos a sair dali e abrir mão dessa localização, de seus deslocamentos e das possibilidades que viver ali oferece.

Desse modo, as mobilidades e os percursos urbanos, as trajetórias sociais, os circuitos de trabalho, as redes de sociabilidade dos ocupantes, quando colocados em perspectiva nesse território mais amplo construído, tomando a cidade como plano de referência que enquadra e do qual fazem parte, mostram que a categoria “sem-teto” utilizada para se referir aos moradores de uma ocupação e integrantes de movimentos de moradia organizados, mesmo que muito importante para suas vidas e para suas formas de reconhecimento, é insuficiente. Não que deva ser descartada, mas por ela escapa todo um mundo social e urbano complexo, amplo e intrincado no qual esses sujeitos se inserem, percorrem, ocupam e se integram de formas muito mais diversas e multiescalares do que supõe o enquadramento mais unidimensional e homogêneo de “sem-teto”. São moradores de ocupações comerciantes e ambulantes, terceirizados e desempregados, diaristas e porteiros, operadores de telemarketing e assistentes sociais, jovens e crianças, mães solteiras e idosos, a rapper arte-educadora da Fundação Casa, o cantor (à noite) frentista (de dia), a estudante trans empreendedora, o pastor ex-presidiário que pregava na praça da Sé e que criou uma nova igreja, a senhora migrante nordestina que passou a vida sendo explorada em serviços terceirizados e/ou informais que lhe causaram dores corporais sem fim na velhice, a ex-boia fria que morou na rua com a família e, ao participar de uma ocupação organizada, foi se formando e se tornou uma das maiores lideranças dos movimentos de moradia de São Paulo (Santos, 2018SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.). As trajetórias e percursos atestam uma riqueza e potência profundas que revelam as conexões, mediações e tramas por onde circulam, mas que eles também constroem e estabelecem com o espaço mais amplo da cidade; dimensões e camadas que se perdem quando, para nos referirmos a essas pessoas, as definimos como “sem-teto”, que são, mas são muito mais também.

Assim, de modo muito breve e resumido, foram descritos alguns exemplos dos contatos que vão colocando a Mauá e seus moradores em relação com outras territorialidades e circuitos da cidade, constituindo uma cartografia urbana e política da ocupação (ibid.). Cartografia porque se busca identificar e reconstituir uma multiplicidade de atores, espaços, práticas, percursos, agenciamentos, que se estabelecem, que atravessam e se articulam com os moradores e a Mauá, mas não se restringem e se enclausuram nela. As conexões dessas redes de contatos, relações e eventos vão produzindo e adensando, em sua dinâmica de criação e multiplicação, a tessitura política e urbana da cidade.

Desse modo, a partir dos cruzamentos da rede que envolve a Mauá e seus moradores com outros espaços e circuitos existentes fora dali vai se produzindo e constituindo um território, compreendido aqui como feito

de práticas e conexões que articulam espaços diversos e dimensões variadas da cidade, os territórios não têm fronteiras fixas e desenham diagramas muito diferenciados de relações conforme as regiões da cidade e os tempos sociais cifrados em seus espaços. (Telles, 2010TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte, Argumentum., p. 83)

Conflito: as diferentes dimensões e linhas de força que atravessam a existência de uma ocupação

Existem vários momentos e interfaces de contato, de interação e de choque com diferentes agentes do Estado e do poder judiciário. Com o Estado, existem as negociações com o Executivo (municipal, sobretudo, mas não exclusivamente) na busca por efetivação de atendimento e soluções definitivos (ou não) habitacionais, assim como encontros e diálogo em conselhos e eventos organizados por e com a participação do poder público (Santos, 2018SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.). Não necessariamente que essas relações sejam sempre abertamente de oposição, pois, do mesmo modo que as lideranças e os movimentos de moradia não são blocos homogênos, o poder público não é um corpo monolítico; a relação é sempre situacional, havendo alternância de momentos de confronto e embate, mas também de negociação e conciliação, nem que pontuais (Aquino, 2008AQUINO, C. (2008). A coletivização como processo de construção de um movimento de moradia: uma etnografia do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.). Já a relação com a polícia costuma sempre ser, majoritariamente, tensa, principalmente, nos momentos de ocupação de um imóvel ou de cumprimento de ordem de reintegração de posse, quando o conflito e violência transbordam para além dos limites e latências cotidianos. Com o Judiciário, as negociações, audiências e decisões acabam tendo grande importância, pois afetam e ritmam tanto o cotidiano e a vida dos ocupantes quanto os rumos de uma ocupação – seja quando estão buscando acatar, contornar ou resisitir. Por mais que esse contato exista e seja intenso, o Judiciário é um poder de difícil acesso e de diálogo com os movimentos, lideranças e ocupantes.

A ocupação de um imóvel é um evento que consolida uma experiência no espaço-tempo da cidade, a qual faz desdobrar, a partir dali, uma série de conflitos, em suas dimensões urbana, política, jurídica, de mercado. O momento de ocupar um imóvel como forma de constituir uma nova ocupação é sempre um evento de extrema tensão e indeterminação. E toda ocupação existente em algum momento passou por essa experiência: o surgimento de uma nova ocupação é fruto desse evento no qual a irrupção do conflito se dá de forma muito evidente.

Poder acompanhar ocupações de imóveis nos faz compreender melhor como o ocupar se torna um evento político, e “instâncias variadas de poder são obrigadas a se pronunciar, legitimando-o em alguma medida” (Birman, 2015BIRMAN, P. (2015). “Ocupações: territórios em disputa, gêneros e a construção de espaços comuns”. In: BIRMAN, P.; LEITE, M.; MACHADO, C. e CARNEIRO, S. (orgs.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro, FGV., p. 172). É possível formular que, quando a intervenção política desses sujeitos incide e atravessa com o imóvel vazio, o conflito entre forças antagônicas aciona toda uma trama (rede de atores e movimentos, jornalistas e mídia-ativistas, políticos e assessores, operadores do direito e do Estado, dispositivos jurídicos, negociações políticas...), conferindo um outro estatuto para a ação e para os ocupantes. Mas também para o imóvel que, até essa intervenção, estava abandonado e passava despercebido: a ação de ocupar provoca uma mudança no regime político e jurídico do imóvel que transforma sua situação no espaço urbano que integra. Por todas essas razões, podemos definir uma ocupação como um evento político e urbano da cidade; e, criando e protagonizando esse evento, estão as pessoas que realizam essas ações, nas quais, sempre, “o direito à vida e o sentido da vida estão em jogo” (Telles e Alves, 2006TELLES, V. e ALVES, E. (2006). “Territórios em disputa: a produção do espaço em ato”. In: TELLES, V. e CABANNES, R. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo, Humanitas., p. 340).

Existem ainda muitos outros momentos em que a dimensão do conflito irrompe no cotidiano de uma ocupação, mesmo quando ela não está, a princípio, diretamente envolvida. Para ficarmos em um exemplo apenas: após a eclosão da megaoperação da prefeitura e do governo do Estado na região conhecida como cracolândia, situada no bairro dos Campos Elíseos, no dia 21 de maio de 2017, uma série de ações, reuniões e articulações começou a acontecer envolvendo diferentes atores e coletivos, diretamente afetados ou não – como, por exemplo, os movimentos de moradia do centro que passaram a se reunir e se articular, entre outros espaços, na Mauá (Santos, 2018SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.). A eclosão do conflito, a disputa pela terra naquela região junto das redes que atravessam o campo gravitacional da Mauá a envolveram nesse evento – justamente porque as ocupações não estão isoladas e integram territórios mais amplos, atravessados eles também por outras linhas de força e disputa, elas são enredadas em outros acontecimentos e conflitos.

E, como aconteceu no ano de 2012, após resistências, enfrentamentos e articulações despertados contra o projeto Nova Luz,10 (10) O projeto Nova Luz (Gatti, 2015) pretendia a execução de um grande plano de reestruturação urbana no bairro da Santa Ifigênia, que, pela sua magnitude, dependia de desapropriações e demolições de imóveis – o prédio da Mauá era um dos que o projeto previa demolição. Pela dimensão da transformação e pela falta de transparência e diálogo, a população local passou a se organizar e mobilizar para barrá-lo. O projeto foi engavetado em 2013, por conta das resistências de moradores e comerciantes, da mudança de gestão municipal e da ação civil pública movida pela Defensoria Pública. De toda maneira, muitas demolições (de terrenos inteiros, inclusive) ocorreram e continuaram a acontecer, demonstrando que os planos, interesses e disputas que confluíam por trás do projeto não foram definitivamente abandonados ou derrotados; continuavam de outros modos, por outros projetos, por outros meios. a ocupação Mauá recebeu a notificação de reintegração de posse; em 2017, alguns dias após a intervenção na “cracolândia”, a ordem de reintegração de posse da Mauá foi expedida novamente. É evidente que os contextos e os acontecimentos – políticos e sociais, na escala local e nacional – são diferentes em 2012 e 2017; mas, ao mesmo tempo, é difícil não reconhecer um padrão de ação que nos impediria de constatar o que acontece como mero acaso ou coincidência: há uma relação entre projetos de intervenção e reestruturação urbanas e o interesse/tentativas/realização de remoções e demolições, como se fossem dinâmicas complementares, paralelas e concomitantes de um processo mais amplo, que escancara a “guerra dos lugares” e “pelos lugares” (Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia nas eras das finanças. São Paulo, Boitempo.) travadas naquele (mas também em outros) território (Observatório de Remoções, 2017;11 (11) Observatório de Remoções, FAU-USP, 2017. Disponível em: https://www.observatorioderemocoes.fau.usp.br/mapa-interativo-mostra-que-2017-e-o-pior-ano-em-uma-decada-para-viver-na-luz/. Acesso em: 14 mar 2019. Santos, 2018SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.; Rolnik et al., 2018ROLNIK et al. (2018). “Como atingidos por PPPs no centro de São Paulo perderam suas casas”. In: ROLNIK, R. e LINS, R. (orgs.). Observatório de remoções – Relatório 2017-2018. São Paulo, FAUUSP.).

Assim, no dia 6 de junho de 2017, o juiz da 26ª Vara Cível, acatou o pedido do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (relator do processo), mesmo não esgotados os recursos que ainda corriam na Justiça, e determinou a reintegração de posse da Mauá com “reiterada autorização para arrombamento e emprego de força policial”. Com a notícia da decisão da Justiça para a realização da reintegração de posse, a rede da Mauá foi acionada, ampliada e intensificada – algo que, vale lembrar, não é inédito ou exclusivo de lá: o acionamento, fortalecimento e ampliação das redes que gravitam ao redor de uma ocupação costumam atingir sua maior potência e escala nesses momentos.

Muitas reuniões, estratégias e ações foram traçadas e realizadas, contando com intenso envolvimento e participação de atores externos – até porque, geralmente, os trabalhos são muitos e o tempo pouco. As principais frentes que precisam ser tocadas (e grupos de trabalho, GTs, são criados para dar conta de cobri-las) são a jurídica (a cargo, praticamente, de advogados), uma de ação política, encarregada de organizar atos, ações e manifestações contrários à decisão e que exerçam pressão política (principalmente, sobre os poderes executivo e judiciário), e uma frente de comunicação voltada para repercutir e incidir nas diversas mídias (hegemônicas e alternativas). E, paralelamente a todas essas frentes, o trabalho de construção e de estímulo de um estado de mobilização interna permanente dos moradores. No mesmo sentido, mas de outras formas, a aliança com os outros movimentos de moradia também deve ser trabalhada. As lideranças procuram deixar de lado, se houver e se for o caso, quaisquer indisposições e discordâncias para se aproximar e construir uma frente de solidariedade e resistência diante da ameaça maior.

Os apoios de outras entidades, associações, coletivos e indivíduos de fora do universo da moradia vêm também. De modo dinâmico e capilarizado, ações foram orquestradas, eventos preparados, intervenções públicas feitas, organização de manifesto, abaixo-assinados e saraus; brotaram e proliferaram vídeos, fotos, hashtags a partir da miríade de apoiadores externos (vindos das mais variadas áreas de atuação, formação e experiência) que iam se constelando na velocidade e ritmo da multiplicação de grupos de whatsapp e de suas mensagens. Ao longo desse processo de fortalecimento e ampliação dos apoios, foram ocorrendo cruzamentos e sobreposições da rede construída – e em permanente construção – da Mauá a outras, já existentes e espalhadas pela cidade, realizando composições e produzindo novos arranjos e relações, estendendo e densificando a cartografia social, política e urbana da cidade.

Após alguns meses, muitas angústias, demonstrações de força e de apoio, a decisão de reintegração de posse da Justiça foi revertida e, com muita negociação, a prefeitura avançou nas conversações com os proprietários e comprou deles o prédio da Mauá. O que, obviamente, foi celebrado como uma grande vitória e conquista da ocupação e de seus apoiadores. O momento de reintegração de posse, no caso das ocupações, é o ápice de toda essa conflituosidade a que elas estão permanentemente imersas e em relação, desde seu início e desde então; no sentido de ser a ameaça real e concreta de sua destruição e de tudo aquilo que foi sendo criado e estabelecido. Nesse sentido e por essa razão, ao acompanhar o processo de ameaça de reintegração de posse da Mauá, todos os elementos analisados, todos os vários fios que foram sendo seguidos e explorados, apareceram presentes, mobilizados e enredados, todos juntos nesse episódio, como que em uma espécie de cristalização e síntese de todos os aspectos e potências que constituem a vida de uma ocupação.

A ameaça que a Mauá passava parece estar, por ora, resolvida. Independentemente disso, essa atmosfera de tensão e de indeterminação permanece para muitas outras ocupações e comunidades que estão passando, já passaram ou passarão por essa situação. São momentos de apreensão, angústia, revolta, impotência, indignação e violência que marcam a trajetória dessas populações circulantes que constroem suas vidas em territórios em disputa e/ou ameaçados de remoção. Esses episódios são momentos vividos como, para usar os termos dos movimentos, de vida ou morte. E a cidade foi e vai se construindo na sucessão dessas várias e silenciosas batalhas de vida e morte, travadas pelos cantos, barracos, vilas, vielas, assentamentos e prédios ocupados de São Paulo.

Considerações finais

Cotidiano, território e conflito foram os três eixos que, a partir dos trabalhos empírico de pesquisa etnográfica e de análise realizados, foram elaborados como constituintes da existência e experiência de uma ocupação e ao redor dos quais se armou este artigo. Como se buscou demonstrar ao longo do texto, esses eixos não são estanques e isolados, suas fronteiras são, muitas vezes, pouco nítidas, e eles se compõem e atravessam nos muitos eventos, circuitos e mobilidades que se criam a partir de uma ocupação. Contudo, eles nos ajudam a perceber e organizar melhor a multiplicidade e intensidade de elementos e dinâmicas produzidos, envolvendo uma ocupação de moradia. A dimensão cotidiana das rotinas dos moradores, dos espaços da ocupação e da presença de atores externos revela uma ocupação como um potente campo de gravitação de atores, arranjos e eventos internos, ao mesmo tempo que esse campo se articula e se conecta com outras redes e espaços, a partir das mobilidades urbanas dos seus moradores e das relações e agenciamentos estabelecidos em diferentes níveis de escala e de estatuto, compondo uma cartografia política ampliada que não se restringe ao espaço físico da ocupação – mesmo que, para a reconstituição desse território produzido, a ocupação tenha sido tomada como ponto de ancoragem e de observação para poder perseguir as linhas que chegam e partem dali.

A dimensão do conflito também é central e permanente: do conflito interno, que marca as relações que se estabelecem, do cotidiano marcado pelas incertezas, inseguranças e precariedades que compõem as experiências vividas “no fio da navalha” (Telles, 2006, 2010) em meio a diversos expedientes de contornamento das urgências e de realização de possibilidades – e potências – de vida; ao conflito externo envolvendo agentes do Estado e do Judiciário, operadores do direito, proprietários, interesses de mercado... e que se faz presente na existência das ocupações – do seu surgimento, consolidação e ao longo de sua permanência no tempo e no espaço urbano – atingindo, conformando e afetando a vida dos ocupantes e da ocupação.

O campo de gravitação que se arma a partir do cotidiano de uma ocupação e a cartografia política a que ele se constela produzem um território, integrante e imerso em um contexto mais amplo de disputa pela produção e apropriação do espaço urbano no qual as ocupações se constituem como entrave – a ser superado – à lógica de expansão e da acumulação da ordem urbana hegemônica. Por essas dimensões produtivas e conflitivas, as ocupações estabelecem-se como fronteiras de tensão, atrito, choque e resistência no cruzamento de diferentes frentes de disputa (política, jurídica, urbana, de mercado) em que essas ocupações se constituem como nós, “pontos de fricção” (Telles, 2010TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte, Argumentum., p. 37) desses ordenamentos sociais, pelos quais convergem e passam múltiplas linhas de força, que estão presentes percorrendo e afetando também o espaço mais amplo da cidade, em permanente disputa.

Referências

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Notas

  • (1)
    Este artigo é fruto de pesquisa de mestrado financiada pela Fapesp e no âmbito do Projeto Temático Fapesp: “A gestão do conflito na cidade contemporânea – a experiência paulista”, coordenado pela professora Vera Telles. Agradeço a troca e partilha com xs colegas desse grupo assim como com xs colegas do projeto Observatório de Remoções, coordenado pela professora Raquel Rolnik.
  • (2)
    Não por acaso, o pagamento de aluguel é um dos alicerces principais das estratégias de organização e mobilização dos movimentos de moradia organizados do centro. Nesse sentido, “organizar-se não apenas em torno do trabalho, mas também das condições do espaço habitável, construindo pontes entre ambos, é algo que vem se tornando cada vez mais crucial” (Harvey, 2014HARVEY, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes., p. 238) e tarefa que os movimentos de moradia e ocupações do centro buscam, com limitações e desafios, realizar.
  • (3)
    Os territórios populares urbanos ameaçados ou atingidos por remoções são marcados pelo que Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia nas eras das finanças. São Paulo, Boitempo. definiu de transitoriedade permanente. São territórios constituídos por: “zonas de indeterminação entre legal/ilegal, planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do mercado, presença/ausência do Estado. Tais indeterminações são os mecanismos por meio dos quais se constrói a situação de permanente transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva, capaz de ser capturado ‘no momento certo’” (ibid., p. 174). É, nesse sentido, que o termo de indeterminação é importante de ser retido, pois a indeterminação, se atinge os territórios ameaçados e atingidos por remoções, torna-se também um elemento cujos efeitos transbordam os limites territoriais, na medida em que afeta (e transforma) as vidas e as trajetórias sociais e urbanas dos sujeitos que transitam, moram e constroem esses territórios. A condição de indeterminação passa a reger as vidas desses sujeitos e de suas famílias, os modos de acesso a locais de moradias, seus circuitos de trabalho, suas mobilidades e percursos urbanos.
  • (4)
    A hipótese que moveu a investigação foi a de pensar as ocupações a partir de dinâmicas urbanas e políticas presentes e produzidas por uma série de relações, arranjos e diferentes circuitos que só poderiam ser acompanhados e registrados em sua dimensão e escala se colocássemos a ocupação (e todos os elementos que a compõem) em perspectiva e em relação em um plano mais amplo de referência no qual estão inseridos: a cidade.
  • (5)
    Inclusive, os Racionais MC’s gravaram o videoclipe de sua música Mil faces de um homem leal, referente a Carlos Marighella, dentro da ocupação, justamente nesse período de forte mobilização ao redor da Mauá.
  • (6)
    O estável poderia ser também formulado como uma “expectativa de estabilidade”, que é diferente de estabilidade em si (Rizek et al., 2015RIZEK, C. S. et al. (2015). “Viver na cidade, fazer cidade, esperar cidade. Inserções urbanas e o PMCMV-Entidades: incursões etnográficas”. In: AMORE, C. S.; SHIMBO, L. Z. e RUFINO, M. B. C. (orgs.). Minha casa... e a cidade? – Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro, Letra Capital., p. 302).
  • (7)
    Cf. “Refugiados urbanos" é termo de um repertório que circula enfatizando e aproximando, justamente, as situações de deslocamento e circulação que marcam a vida de multidões de pessoas no cenário contemporâneo. Sujeitos que têm “as vidas marcadas pela insegurança” e “pela transitoriedade dos arranjos de circunstâncias” (Telles, 2018TELLES, V. (2018). “Refugiados urbanos – Espaço urbano em tempos de urgência: ressonâncias”. In: REDONDO, T. (org.). Do guia para os habitantes da cidade. Poema e Comentários. São Paulo, Fundação Rosa Luxemburgo., p. 3). Suas trajetórias e modos de circulação pela cidade têm como traço a precariedade e os vários processos de despossessão que caracterizam as dinâmicas urbanas contemporâneas.
  • (8)
    Em 2013, o rapper Emicida gravou o videoclipe de sua música Crisântemo na Mauá e realizou o evento de lançamento no pátio com os moradores. A produtora Preta Portê já produziu três filmes gravados na ocupação: o curta-metragem Vaca profana (2016), de René Guerra, o curta-metragem Mauá – Luz ao redor (2013), de Juliana Vicente, e o documentário Leva, dirigido por Juliana Vicente e Luiza Marques (2011). Em 2018, foi lançado, na 42ª Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário de curta-metragem Ocupação Mauá, de Tadeu Jungle, realizado em realidade virtual. Aconteceu também na Mauá, em mais de uma ocasião, a “posse popular” de novos defensores públicos do Estado, no encerramento do curso de formação dos novos membros quando são empossados, entre muitos outros eventos e ações.
  • (9)
    A Frente de Luta por Moradia (FLM) articula diversos movimentos de moradia da cidade de São Paulo, oficializada em 2004 (Aquino, 2008AQUINO, C. (2008). A coletivização como processo de construção de um movimento de moradia: uma etnografia do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.; Pereira, 2012PEREIRA, O. (2012). Lutas urbanas por moradia. O centro de São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.; Santos, 2018)SANTOS, R. A. (2018). Cartografias políticas de uma ocupação – cotidiano, território e conflito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo..
  • (10)

    O projeto Nova Luz (Gatti, 2015)GATTI, S. (2015). Entre a permanência e o deslocamento: Zeis 3 como instrumento para a manutenção da população de baixa renda em áreas centrais. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. pretendia a execução de um grande plano de reestruturação urbana no bairro da Santa Ifigênia, que, pela sua magnitude, dependia de desapropriações e demolições de imóveis – o prédio da Mauá era um dos que o projeto previa demolição. Pela dimensão da transformação e pela falta de transparência e diálogo, a população local passou a se organizar e mobilizar para barrá-lo. O projeto foi engavetado em 2013, por conta das resistências de moradores e comerciantes, da mudança de gestão municipal e da ação civil pública movida pela Defensoria Pública. De toda maneira, muitas demolições (de terrenos inteiros, inclusive) ocorreram e continuaram a acontecer, demonstrando que os planos, interesses e disputas que confluíam por trás do projeto não foram definitivamente abandonados ou derrotados; continuavam de outros modos, por outros projetos, por outros meios.
  • (11)

    Observatório de Remoções, FAU-USP, 2017. Disponível em: https://www.observatorioderemocoes.fau.usp.br/mapa-interativo-mostra-que-2017-e-o-pior-ano-em-uma-decada-para-viver-na-luz/. Acesso em: 14 mar 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2019
  • Aceito
    9 Maio 2019
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