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O lugar da potência e a potência do lugar. Nietzsche e a arquitetura como eloquência da Wille zur Macht

The place of power and the power of place. Nietzsche and the architecture as an eloquence of the will to power

Resumo:

Com o presente artigo, pretende-se investigar a compreensão de Nietzsche acerca da arquitetura, a partir de uma análise da formulação: “a arquitetura é uma espécie de eloquência do poder em formas”, contida no aforismo 11, capítulo IX de Crepúsculo dos ídolos. Dada a relação aí contida, entre aquela arte e a doutrina da vontade de potência, procura-se compreender os termos dessa aproximação - inclusive, aqueles que o distanciam da estética schopenhaueriana - e em que medida reverberariam, para além das diversas manifestações estilísticas a ela pertinentes, em uma possível teoria da arquitetura como potência de ocupação.

Palavras-chave:
arquitetura; vontade de potência; ocupação; lugar; grande estilo

Abstract:

With the present text, we intend to investigate Nietzsche’s understanding about architecture, from an analysis of the formulation: “architecture is a kind of eloquence of power in forms”, from Twilight of the idols, aphorism 11, chapter IX. Given the relationship contained therein, between that art and the doctrine of the will to power, we seek to understand its terms - thus, those who distance it from schopenhauerian aesthetics - and to what extent they would reverberate, in addition to the various stylistic manifestations relevant to it, in a possible theory of architecture as an occupying power.

Keywords:
architecture; will to power; occupation; place; great style

Arquitetura como metáfora

Se esboçarmos um mapeamento das menções de Nietzsche à arquitetura ou a termos a ela associados, aí se incluindo os fragmentos e textos póstumos, é possível perceber que são bem mais presentes em seu período de juventude e, em alguma monta, no chamado período intermediário1 1 No que se refere à obra publicada em vida ou preparada para publicação, as menções (metafóricas ou não) à arquitetura [Architektur] e termos correlatos aparecem em: O nascimento da tragédia (parágrafo 2º), Humano, demasiado humano (aforismos: 215, 218 e 219), Opiniões e sentenças diversas (aforismos: 26,119,134,144,171,219), O andarilho e sua sombra (aforismo 158), Aurora (aforismo: 169), A gaia ciência (aforismos: 280 e 291), Além do bem e do mal (prefácio), Crepúsculo dos ídolos (capítulo IX, aforismo 11), O caso Wagner (“Uma música sem futuro”) e em O anticristo (aforismo 58). Em uma pesquisa superficial, parecem ser poucas as publicações em filosofia sobre esse tema no Brasil, e mesmo em língua alemã, onde parece ser mais frequente a pesquisa no âmbito da Teoria da Arquitetura. Cf. por exemplo: Breitschmid, M. Der bauende Geist. Friedrich Nietzsche und die Architektur. Luzern: Quart Verlag, 2001; e também desse autor, a tese: Der Baugedanke bei Friedrich Nietzsche, defendida pela Technischen Universität Berlin em 2000, orientada por Fritz Neumayer. Cf. também: Gleiter, Jörg H. Der philosophische Flaneur: Nietzsche und die Architektur. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2009; Böhme, H. “Auch die Gottlosen brauchen Räume, in denen sie ihre Gedanken denken können”. Nietzsches Phantasien über Architektur im postreligiösen Zeitalter. In: Der Architekt 3, 2001, p. 16-23. . Em geral, são alusões metafóricas que procuram aproximar, por analogia, o simbolismo das linhas e figuras - e em alguma medida, das organizações espaciais - à literatura e à música. Reflexo dessa aproximação é a comparação feita, em O nascimento da tragédia e em textos preparatórios, da música apolínea como arquitetura dórica em sons, dada a sua força figuradora [bildnerische Kraft] (GT/NT, 2NIETZSCHE, Friedrich W. O nascimento da tragédia (GT/NT). Trad. Jacó Guinsburg. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., KSA 1.33NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.)2 2 Essa expressão, bem como a analogia entre a arquitetura e a música apolínea, aparece também em textos preparatórios a sua primeira obra: A visão dionisíaca do mundo (DW/VD, 1, KSA 1.557) e em O nascimento do pensamento trágico (GG/NP, KSA 1.585). .

Nos textos do período intermediário, como em Humano, demasiado humano, as análises acerca da arquitetura recaem sobre dois aspectos complementares: primeiramente, enfatizando o papel do intelecto na criação do simbolismo artístico que, de modo “estranho às leis mecânicas”, introduz significação no som, assim como “nas relações de linhas e massas da arquitetura” (MA I/HH I, 215NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano (MA I/HH I). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., KSA 2.175NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.)3 3 Exceto quando indicado, essas e as demais citações diretas das obras de Nietzsche remetem à tradução de Paulo César de Souza, conforme especificado nas referências bibliográficas ao final do texto. A tradução das citações de fragmentos póstumos é de minha responsabilidade. ; e depois, salientando o distanciamento moderno em relação à simbologia presente nas construções religiosas gregas e cristãs - “atmosfera de inesgotável significação” que “envolvia o edifício como um véu encantado”, e onde “originalmente tudo significava algo, em relação a uma ordem superior das coisas” (MA I/HH I, 218NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano (MA I/HH I). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., KSA 2.178NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.)4 4 Cf. também o aforismo 219 de Humano, demasiado humano, em que a arquitetura é novamente utilizada como metáfora para uma avaliação (negativa) do estilo moderno (na música, principalmente) em relação ao antigo, grego ou cristão (MA I/HH I, 219, KSA 2.179-80). Vale também mencionar, em O andarilho e sua sombra, a referência à música sacra cristã como mãe do último estilo arquitetônico religioso (WS/AS, 158, KSA 2.618). . Ainda que sobre falsas suposições do intelecto - como a da separação entre corpo e alma -, por sobre elas os homens erigiram formas mais elevadas e cultura; e da mesma forma, também a arquitetura dos templos, a arquitetura dedicada aos deuses, pôde sair de seu “berço” [Wiege], como afirma em um fragmento de 1877 (Nachlass/FP 1877, 23[167], KSA 8.465NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.)5 5 Essa compreensão aparece também nas suas anotações para o ensino das artes (Nachlass/FP 1877, 24[1], KSA 8.476). Antes disso, em 1870-1, Nietzsche afirma em um fragmento que o edifício manifesta a vontade de “eternidade e grandeza do homem” [die Ewigkeit und Größe des Menschen] (Nachlass/FP 1870-1, 5[73], KSA 7.109). .

Surpreende a Nietzsche, nesse período, a tenacidade com que a arquitetura, principalmente a religiosa, expressa o temperamento e o caráter de uma cultura. Em Opiniões e sentenças diversas, por exemplo, a limpidez, singeleza, ductilidade e sobriedade da dramaturgia e da arquitetura clássica grega são atribuídas à apolínea “disposição natural” de seu povo - não como dádivas, mas dele “arrancadas” como uma segunda natureza, forjadas como seu “caráter adquirido” (VM/OS, 219NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano II - Miscelânea de opiniões e sentenças (VM/OS) / O Andarilho e sua sombra (WS/AS) . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., KSA 2.472NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Isto, em contraposição à pompa e opacidade asiáticas e ao estilo sobrecarregado em geral, que denotariam, antes, “um empobrecimento da força organizadora [organisierenden Kraft] ante uma prodigalidade de meios e intenções” (VM/OS, 117NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano II - Miscelânea de opiniões e sentenças (VM/OS) / O Andarilho e sua sombra (WS/AS) . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., KSA 2.427NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Igualmente em Aurora, espanta-lhe ver “com que pequenas massas os gregos”, diferentemente da pujança presente nos orientais, “sabem expressar e amam expressar algo sublime [Erhabenes]” - o que por outro lado refletiria a simplicidade da alma grega, em comparação à qual a alma moderna, caso se ousasse uma arquitetura que lhe fosse conforme, teria de se valer “o labirinto” como modelo (M/A, 169NIETZSCHE, Friedrich W. Aurora (M/A). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., KSA 3.151-2NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).

Apesar da relevância que a arquitetura que adquire nesse período, marcada pela proeminência metafórica, é em um aforismo Crepúsculo dos ídolos que Nietzsche lhe dedica o protagonismo, associada à noção-mestra de seu pensamento, a vontade de potência [Wille zur Macht]6 6 Por questões editoriais, adotamos aqui a tradução de Wille zur Macht por vontade de potência. A expressão “vontade de poder”, presente em algumas citações diretas, refere-se à mesma expressão em alemão e deve ser compreendida no mesmo sentido que a anterior. . Citarei a primeira metade do aforismo para, daí, analisá-la.

O ator, [o] mímico, o dançarino, o músico, o poeta lírico são basicamente aparentados em seus instintos e essencialmente um, mas aos poucos se especializaram e separam um do outro - até chegar à oposição mútua. O poeta lírico ficou unido ao músico por mais tempo; o ator, com o dançarino. - O arquiteto não representa [darstellt] nem um estado [Zustand] dionisíaco, nem um apolíneo: aí é o grande ato de vontade [der grosse Willensakt], a vontade que move montanhas, a embriaguez da grande vontade que exige tornar-se arte [zur Kunst verlangt]. Os indivíduos mais poderosos sempre inspiraram os arquitetos; o arquiteto sempre esteve sob a sugestão do poder [Suggestion der Macht]. Na construção devem tornar-se visíveis o orgulho, o triunfo [Sieg] sobre a gravidade, a vontade de poder [Wille zur Macht] [...] (GD/CI, IX,11NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., KSA 6.118NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.; grifos meus).

O aforismo inicia retomando a aproximação com as demais artes e ressaltando, como hipótese genealógica, uma origem instintiva ou fisiológica comum envolvendo: o ator, o mímico, o dançarino, o músico e o poeta lírico - bem como sua posterior especialização. O motivo da menção a estas artes, bem como os termos de sua especialização só aparecem a seguir, quando o preâmbulo cede lugar ao tema principal do aforismo. Com efeito, ali se percebe que o que as torna distintas, e até mesmo opostas, é precisamente a preponderância de um dos dois “estados estéticos” - para retomar uma expressão do período de juventude: apolíneo ou dionisíaco. A arquitetura, no entanto, não representa nem um nem outro desses dois estados. Ela é o “grande ato de vontade”.

O segundo aspecto que se deixa entrever nesse trecho inicial deriva daí: a arquitetura não “representa” - ou “apresenta” [darstellt] - algo; ela “é”. Isso, de fato, já seria pertinente em comparação com as demais artes ditas figurativas: ainda que expressiva, como os objetos de arte em geral, a arquitetura não figura algo, a não ser a si mesma. Porém, o que o aforismo sugere é que, para além da representação ou mesmo expressão de estados estéticos, ela é: não apenas uma metáfora, portanto, mas o próprio ato de vontade - ainda em seu estado originário ou “primordial”, ainda não especializado, como nas artes que Nietzsche menciona - a exigir tornar-se arte.

Ainda nesse trecho inicial, um terceiro aspecto chama a atenção: a compreensão, já presente na estética schopenhaueriana, da relação entre a arquitetura e a gravidade nos termos de uma luta. A esse respeito é preciso abrir um parêntese que, embora longo, dará em boa medida a tônica para a leitura do trecho final do aforismo e a argumentação a partir daí desenvolvida.

A arquitetura na estética schopenhaueriana

Para Schopenhauer, a arquitetura expressaria apenas as forças fundamentais da natureza, mais próximas da matéria inerte, isto é, precisamente “os graus mais baixos” de objetidade da Vontade. Isto teria, ao que parece, duas implicações7 7 Costa, G. 2015, p. 81-2. . Primeiramente, que enquanto expressão das forças fundamentais da natureza, apenas um tema estético emergiria da arquitetura: a ainda grave discórdia da Vontade consigo mesma. O belo, o essencial da arquitetura, manifestar-se-ia na luta entre gravidade e rigidez. De modo mais direto, um edifício seria belo quando desviasse da maneira mais adequada, clara e distinta possível da gravidade, deixando entrever nesse desvio a luz como seu contraponto. O que se depreende daí é que restaria pouca ou nenhuma margem à arquitetura para exprimir-se como bela, a não ser manifestando a “finalidade visível de suas partes [...] para a estabilidade do todo”, de modo tal que “caso fosse possível remover uma única parte, o todo desmoronaria”8 8 Schopenhauer, A. 2005, p. 289. . Em segundo lugar, o fato de que “a significação objetiva daquilo que a arquitetura nos manifesta” seria “relativamente pequena”9 9 Schopenhauer, A. 2005, p. 291. , já que a fruição estética que proporcionaria - para Schopenhauer, apenas a visão de um belo edifício - não repousaria “tanto na apreensão da Ideia, mas antes, no correlato subjetivo dela posto com essa apreensão”. Ou seja, dependeria bem mais do espectador - “que se desprende do modo de conhecimento próprio do indivíduo” e se volta ao “conhecimento intuitivo e imediato”, relativo “ao peso, à rigidez e à coesão”10 10 Schopenhauer, A. 2005, p. 291. da matéria - do que propriamente do objeto.

Certamente essas implicações se encaixam muito bem na classificação hierárquica que constitui a Metafísica do Belo, e a contemplação estética da arquitetura estaria, assim, em perfeito acordo com o pensamento único de Schopenhauer, já que o belo não deve despertar o interesse, ou seja, excitar - e sim, acalmar. Porém, algumas inquietações, por assim dizer, decorreriam dessa análise. E aqui deixo de lado a estreita limitação schopenhaueriana da fruição arquitetônica meramente ao sentido visível, elidindo toda a riqueza de uma apropriação sinestésica do espaço criado.

A primeira dessas inquietações diz respeito à pouca ou nenhuma margem de beleza concedida ao objeto arquitetônico: belo é aquilo que escapa ao útil - porém, apenas raramente isto lhe ocorre. Certamente essa parcimônia se deve a que, na medida em que a arquitetura não nos fornece uma cópia, mas a coisa mesma, não haveria como furtar-se aos imperativos da utilidade. Assim, a submissão primeira seria aos fins utilitários11 11 Cf. Schopenhauer, A. 2005, p. 288. e só uma pequena margem lhe seria concedida, de escape à causalidade. Ora, tal concepção iria de encontro precisamente à noção schopenhaueriana de belo como aquilo que escapa ou que suplanta a causalidade. Então, como grau mais baixo de objetidade da Vontade, não restaria à arquitetura, senão, a possibilidade de ser bela sem sê-la. Ou quando muito, de ser bela pela simples adequação visível das partes em relação à impressão de estabilidade do todo12 12 Cf. Schopenhauer, A. 2005, p. 289. . Com isso, no entanto, tem-se como contrapartida precisamente a recusa13 13 Cf. Schopenhauer, A. 2005, p. 291. de toda a carga de dramaticidade expressa pela luta com a gravidade, o que implicaria a exclusão de um vasto campo estético que tem precisamente nessa tensão o seu leitmotiv: nas demais artes e também na arquitetura, o expressionismo enfatiza precisamente “o irregular, o assimétrico, o incomum e o complexo, e se esforça para aumentar a tensão” visual, ao invés de aplacá-la14 14 Arnheim, R. 1984, p.59. .

Essa inquietação, no entanto, remete no entanto a algo mais problemático. Com efeito, a arquitetura, por manifestar os graus mais baixos de objetidade da Vontade, dependeria, para sua fruição, de um esforço muito maior do espectador, do puro sujeito do conhecimento, do que o que poderia emanar do objeto por ele contemplado - diametralmente oposta, portanto, à música. É curioso e bastante indicativo a esse respeito que, embora a fruição em arquitetura dependa bem mais do puro sujeito de conhecimento, Schopenhauer centre suas análises somente nas disposições do objeto arquitetônico contemplado - cujas características apenas não devem obstruir a fruição. A segunda inquietação, nesse sentido, concerne precisamente à ausência, na metafísica do belo, de uma psicologia desse puro sujeito de conhecimento, correlato ao objeto passível de fruição. Ficamos apenas com o objeto e, ao invés de transversal - ou inversamente proporcional - a leitura do Livro III de O mundo como vontade e como representação se mostra meramente ascendente, hierárquica15 15 Ao que parece, haveria aqui um problema de fundo relativo à bem conhecida hierarquia das artes proposta por Schopenhauer em sua Metafísica do Belo. Com efeito, tomando-se a exigência de simetria que perpassa a relação entre sujeito e objeto em toda a obra, o Livro III de O mundo bem deveria nos apresentar uma leitura transversal: quanto maior o grau de objetidade, maior a importância do objeto artístico e menor a dependência do puro sujeito de conhecimento. .

Ora, se a objetidade mais adequada da Vontade e a fruição do belo dependem, como se sabe, do objeto belo tanto quanto do puro sujeito de conhecimento, e se apenas a proporcionalidade entre ambos se altera na transferência gradativa de responsabilidade pela fruição da beleza, poder-se-ia certamente falar de uma hierarquia do objeto artístico, mas não da própria fruição que, a rigor, exigiria alguma complementaridade entre ambos: objeto e puro sujeito de conhecimento. Atendo-se um pouco mais ao polo subjetivo da fruição estética, seria possível perceber que, com a recusa da expressividade, deixa-se também de lado aquela que seria a própria manifestação do sublime (dinâmico, mas também matemático) na arquitetura, enquanto aumento da tensão e angústia provocadas pela “visão de uma potência superior e ameaçadora”, com o correlato aumento da capacidade de o indivíduo suportá-las16 16 Schopenhauer, A. 2005, p. 273. Cabe ressaltar que Schopenhauer remete a diferença entre o edifício arquitetônico e o mero artefato ao plano das Ideias, ou seja, ao fato de que aquele último não possuiria um arquétipo próprio (mas apenas relativo ao material utilizado). Essa frágil distinção, porém, apenas ressalta a pouca atenção com: 1) o polo subjetivo da fruição estética, de onde talvez pudesse recorrer a uma diferenciação atenta à noção de sublime matemático; e 2) a sinestesia que envolve, para bem além do sentido visual, a fruição do objeto arquitetônico, que nos remete ao espaço envolto e moldado pela construção, e não apenas para o edifício. .

É precisamente essa capacidade de domínio das tensões manifesta na estética sublime17 17 Hartmut Böhme, que vê em Nietzsche um sucessor de Kant em sua teoria do sublime, aponta para o distanciamento moderno em relação à simbologia presente nas construções religiosas gregas e cristãs, remetendo à substituição da grandiosidade [Erhabenheit] religiosa pelo sublime [Erhabenen] moderno, “ao qual o eu [das Ich] se sente exposto em face do matematicamente infinito ou de uma natureza violenta” - e onde o medo da aniquilação é convertido em um gesto triunfante do potencialização de si (Böhme, H. 2001, p. 19; tradução minha). Reverberações da compreensão do sublime como expressão da capacidade de domínio em relação à natureza - para a qual apontam os aforismos e fragmentos nietzscheanos - podem ser também encontradas nas reflexões teóricas de alguns arquitetos contemporâneos, como é caso de Peter Eisenmann. A esse respeito, cf. Eisenman, P. 2008, p. 612-7 e ainda: Vidler, A. 2008, p. 619-22, ambos contidos na coletânea organizada por K. Nesbit: Uma nova agenda para a arquitetura. que ressalta nas observações de Nietzsche acerca da arquitetura, mormente em Crepúsculo dos ídolos. Ali, bem como em algumas passagens de obras anteriores, a potência de submissão a um plano configurador único aparece associada a algumas expressões, com destaque para a força figuradora [bildnerische Kraft] mencionada acima e, principalmente a partir do período intermediário, a força organizadora [organisierenden Kraft] - ambas remetendo ao problema do grande estilo [große Stil], que discutiremos a seguir.

A força organizadora e o grande estilo

Algo que ressalta nos textos intermediários, com a ruptura metodológica advinda do filosofar histórico e para além do viés metafórico dos textos de juventude, são os aspectos psicofisiológicos presentes nas observações sobre a arquitetura e a arte em geral. Em Opiniões e sentenças diversas, aforismo 115, Nietzsche discerne duas espécies de arte autêntica, a do grande repouso [grossen Rühe] e a do grande movimento [grossen Bewegung], e duas respectivas subespécies inautênticas - a arte blasé, ávida de repouso [blasirte; ruhesüchtige] e a arte excitada [aufgeregt] -, em que a fraqueza se faz passar por força (VM/OS, 115NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano II - Miscelânea de opiniões e sentenças (VM/OS) / O Andarilho e sua sombra (WS/AS) . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., KSA 2.427NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Por outro lado, no aforismo 119, elabora uma hipótese para as origens do senso artístico e aponta para a refinada alegria decorrente da visão “do que é regular e simétrico”, evocada pelo sentimento do que é ordenado e regular na vida. Sua saturação na forma do “culto ao simétrico” conduziria, porém, a um estímulo ainda mais refinado, de “infração do que é simétrico e regrado” e da consequente busca de razão na aparente desrazão (VM/OS, 119NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano II - Miscelânea de opiniões e sentenças (VM/OS) / O Andarilho e sua sombra (WS/AS) . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., KSA 2.428-9NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).

Ainda que sem uma menção direta à arquitetura, é digno de nota como essas hipóteses, antecipando a fisiologia da arte exposta no aforismo 370 de A gaia ciência à luz da vontade de potência, permitiriam distinguir, entre semelhantes manifestações de fixidez e simetria nas formas clássicas e neoclássicas, os indicativos, respectivamente, de uma vontade de eternizar advinda “da gratidão e do amor”, ou da “tirânica vontade de um grave sofredor”, “autêntica idiossincrasia de seu sofrer”; evocando, com o discernimento entre “a fome ou a abundância que aí se fez criadora” (FW/GC, 370NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência (FW/GC). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , KSA 3.621-2NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.), precisamente o sentimento de alegria e potência ante o domínio e preponderância sobre as tensões.

Ora, longe de findar em um apaziguamento, é precisamente para essa intensificação e preponderância, ou ainda, para a potencialização recíproca18 18 Sobre a ligação e influência recíproca entre valorações e interpretações, bem como entre corpo e cultura, cf. Wotling, P. 2013, p. 28. movida pelo aumento das tensões, que Nietzsche se refere no aforismo de Crepúsculo dos ídolos. No exato oposto da concepção schopenhaueriana, a luta entre a arquitetura e a gravidade não aparece ali como uma fuga ou desvio, mas, retomando as análises do período intermediário, como o triunfo de um enfrentamento. Motivo pelo qual um edifício deve tornar visível, não o linimento ou aplainamento da tensão, mas justamente o contrário, isto é, o orgulho advindo dessa preponderância - o que explicaria, ademais, a mudança de percepção em seus escritos de maturidade, em relação ao estado dominante na arquitetura: não mais o apolíneo - como em O nascimento da tragédia - e nem mesmo dionisíaco, mas o próprio ato de vontade, “a embriaguez da grande arte que exige tornar-se arte” (GD/CI, IX,11NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., KSA 6.118NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).

A arquitetura, sob essa ótica, remeteria precisamente ao ato de afirmação pelo qual o arquiteto expressa esse triunfo domínio - mesmo que por meio da sobriedade, simetria e fixidez, como é o caso do estilo clássico. Nietzsche explora essa perspectiva com a noção de grande estilo [große Stil]. É bem certo que, conforme um aforismo de O andarilho e sua sombra, essa noção significaria para Nietzsche o triunfo do belo [das Schöne] sobre o aterrador [das Ungeheure] (WS/AS, 96, KSA 2.596NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Porém, é preciso considerar que ‘triunfo’ e ‘belo’ aqui não respondem, como em Schopenhauer, a um ideal ascético. Antes, aproximando-se da noção de sublime, remetem precisamente ao que suscita a “excitação da vontade” [Erregung des Willens] (GM/GM, III, 6NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral (GM/GM). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., KSA 5.349NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.), ou ainda, o “sentimento de poder” [Gefühl der Macht] (GD/CI, IX, 20NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., KSA 6.124NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).

A noção de grande estilo em arquitetura, é bem certo, já se encontra nos textos de juventude, aliada a seu caráter metafórico e remetendo à clareza e limpeza psicológica do gosto. Sarah Kofman, no texto apresentado no Colóquio de Cerisy: “O/Os conceitos de ‘cultura’ nas Extemporâneas ou a dupla dissimulação”, é uma das que atentam para o problema do estilo que está em jogo nessa recorrência à metáfora arquitetural, principalmente nos textos de juventude de Nietzsche. Não por ser a arquitetura “a metáfora própria do estilo”, mas porque nela, mais do que em qualquer outra parte, manifesta-se a necessidade da submissão a um plano único, isto é, a força figuradora a conferir resistência e duração ao “tecido” do edifício. Por mostrar “no exterior a potência ou a impotência da arquitetura interna da alma do construtor”, ela serviria então de metáfora, tanto ao grande estilo musical quanto ao literário19 19 Kofman, S. 1985, p. 97-8. .

Nessa mesma linha, Markus Breitschmid, teórico contemporâneo da arquitetura, defende que essa ênfase metafórica aludiria a uma correlação mais efetiva entre a ideia de construir, isto é, o pensamento de um edifício [Gedanken des Bauens] e o edifício do pensamento [Gedankengebäude], para me referir ao jogo de palavras por ele utilizado20 20 Cf. Breitschmid, M. 2000, p. 139: “Der Baugedanke im engeren Sinne ist bei Nietzsche nicht ohne seinen Gedanken des Bauens im weiteren Sinne, sein Gedankengebäude, zu verstehen. Dieses Verhältnis von Baugedanken und Gedankengebäude ist in dieser Studie auf einer grundlegenderen Ebene erörtert. Bei Nietzsche ist das Bauen eine menschliche Notwendigkeit”. . O ato de construir, então, definiria analogamente o mundo para Nietzsche. Essa correlação lhe parece clara já em um fragmento de 1874, onde atribui o “fenômeno artístico fundamental chamado vida” a um “espírito edificante [den bauenden Geist], que constrói mesmo sob as mais desfavoráveis circunstâncias” (Nachlass/FP 1874, 25[438], KSA 11.129NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.)21 21 “Man muß das künstlerische Grundphänomen verstehen, welches Leben heißt - den bauenden Geist, der unter den ungünstigsten Umständen baut: auf die langsamste Weise - der Beweis für alle seine Combinationen muß erst neu gegeben werden: es erhält sich” (Nachlass/FP 1874, 25[438], KSA 11.129). . Para Breitschmid, se a alusão metafórica à arquitetura se faz tão proeminente, é porque ela seria para Nietzsche uma espécie de “protótipo” do grande estilo. Essa noção, por sua vez, não deve ser tomada como mero psicologismo ou emotivismo, mas como reflexo do “grau de força organizadora [organisierenden Kraft] em relação às peças a-teleologicamente existentes de um todo”. O ideal de um grande estilo estaria, então, ligado ao poder de organizar desejos conflitantes e alcançar assim “uma expansão corpórea visível”22 22 Breitschmid, M. 2000, p. 141-2. .

Concordando com a argumentação de Kofman e Breitschmid, seria preciso ressaltar, no entanto, que para além (ou aquém) do sentido metafórico manifesto na obra acabada, o grande estilo remeteria bem mais ao ato de vontade que se impõe como força organizadora ou configuradora. Como afirma Nietzsche em um fragmento de 1888: “O grande estilo ocorre como resultado de uma grande paixão. Ele despreza agradar, ele esquece de persuadir. Ele comanda. Ele quer” (Nachlass/FP 1888, 15[118], KSA 13.479NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). A sequência final do aforismo de Crepúsculo dos ídolos indica precisamente isso:

[...] arquitetura é uma espécie de eloquência do poder [Macht-Beredsamkeit] em formas, ora persuadindo, até mesmo lisonjeando, ora simplesmente ordenando. O mais alto sentimento de poder e segurança adquire expressão naquilo que tem grande estilo [grossen Stil]. O poder que já não tem necessidade de demonstração; que desdenha agradar; que dificilmente responde; que não sente testemunha ao seu redor; que vive sem consciência de que há oposição a ele; que repousa em si mesmo, fatalista, como uma lei entre as leis: isso fala de si na forma do grande estilo (GD/CI, IX ,11NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., KSA 6.118-9NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.; alguns grifos meus).

Essa compreensão, a meu ver, coaduna-se com aquela aventada anteriormente, de que a arquitetura propriamente não representa algo. Em relação à vontade de potência, não se poria como metáfora, ou mesmo como protótipo. Ela é o “grande ato de vontade”. Daí o recurso, não tanto à metáfora, mas à metonímia: a “eloquência do poder em formas” (GD/CI, IX ,11NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., KSA 6.118-9NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).

É com esse enfoque que passo a uma análise mais detida acerca da relação entre arquitetura e vontade de potência em Nietzsche.

A eloquência do poder

Não é o caso de adentrarmos aqui a seara de interpretações acerca da doutrina da vontade de potência em Nietzsche. Interessa-me - e para isso acompanho em boa medida a leitura de W. Müller-Lauter - atentar para alguns de seus aspectos, naquilo que incidem sobre problema aqui em questão. Sob essa interpretação, a própria expressão seria, ela mesma, tão somente uma simplificação metafórica que alude aos “deslocamentos de poder no interior de organizações instáveis”23 23 Müller-Lauter, W. 1997, p.68. A crítica que tece à interpretação de Heidegger reside precisamente no fato do filósofo fazer da vontade de potência, segundo ele, “um princípio metafísico que se desdobra a partir de si mesmo e do mesmo modo permanecendo em si, retrocedendo à sua própria origem”. ; ou ainda, ao pathos (Nachlass/FP 1888, 14[79], KSA 13. 259NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.) de uma arregimentação ou quanta de força em vias de expansão visando, em última instância, a mais poder - a “assenhorar-se de/sobre algo [Herrüberetwaszuwerden]” (Nachlass/FP 1885-6, 2[148], KSA 12. 140NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Algo semelhante é dito também em seus últimos escritos: “O velho termo ‘vontade’ serve apenas para designar uma resultante, uma espécie de reação individual que necessariamente sucede a uma quantidade de estímulos, em parte contraditórios, em parte harmoniosos: - a vontade não ‘atua’ mais, não ‘move’ mais” (AC/AC, 14NIETZSCHE, Friedrich W. O anticristo (AC/AC) / Ditirambos de Dionísio (DD/DD). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., KSA 6.180NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).

Com tal compreensão já se percebe que esse não é um conceito que remeta a um múltiplo organizado a partir de unidades fixas. Vontade de potência não é uma unidade, não é um - e efetivamente não é. Não há efetivamente unidades fixas, exceto em uma visão atomista do mundo - ou, o que dá no mesmo, por uma limitação gramatical. Como afirma Nietzsche em Humano, demasiado humano: “Também aqui, como tão frequentemente, a unidade da palavra nada garante para a unidade da coisa” (MA I / HH I, 14, KSA 2.35NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).

Unidade significa para Nietzsche simplificação, organização e combinação (Nachlass/FP 1882, 2[87], KSA 12.104NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Mas isso já pressupõe, em sentido oposto à fragmentação, um pathos ascendente de potência: “organização, sob a ascendência, a curto prazo, de vontades de poder dominantes” - multiplicidade organizada em quanta de poder; inclusive, também no que se refere ao fenômeno vida24 24 Müller-Lauter, W. 1997, p. 74. A esse respeito, cf. também o fragmento 7[54], de 1886-7 (Nachlass/FP 1886-7, 7[54], KSA 12.312). . Enquanto “formação de domínio”, a unidade apenas significa que: “Um impulso ainda tão complexo, se ele tem um nome, vale [gilt] como unidade e tiraniza todo pensamento que procura sua definição” (Nachlass/FP 1881, 11[115], KSA 9. 482NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.)25 25 ApudMüller-Lauter, W. 1997, p. 75, n. 41. .

Assim entendida, a “vontade de potência” seria apenas uma ficção, uma metáfora para designar... a vontade de potência. E talvez o fato de se manifestar no próprio ímpeto à significação a torne tão difícil de ser significada. Afinal, a própria criação de ficções - as que, por exemplo, culminam na noção de eu, na ideia de verdade, e na própria metáfora “vontade de potência”26 26 Cf. também: Abel, G. 2005, p. 179-197. Abel considera que a partir de Nietzsche, pode-se “compreender a verdade não mais como aquilo que preexiste independentemente da sua interpretação. Ao contrário, a verdade poderia ser vista como o nome para a produção nos processos interpretativos” (p.184). - indica que a vontade de potência aí recrudesceu e tomou as rédeas de tais pulsões. Mas isso também vale para as interpretações e significações simplificadoras que ordenam e configuram o caos em cosmos, o devir em ser. São estas, por exemplo, as interpretações que se manifestam como: religião, arte, moral, vontade de verdade, vida, natureza, cultura, sociedade - todas, para Müller-Lauter, alvos de uma possível morfologia da vontade de potência.

É essa compreensão que nos leva de volta ao aforismo de Crepúsculo dos ídolos. Afinal, também a arquitetura - como ordenação e configuração do espaço caótico em lugar - é também, tal qual a “verdade”, uma palavra para a vontade de potência - “um tornar firme, um tornar verdadeiro, durável” pela “supressão daquele caráter falso” e instável (Nachlass/FP 1887, 9[91], KSA 12.384-5NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Mais que uma metáfora do grande estilo, portanto, ela o é enquanto ato de vontade e eloquência do poder em formas...

A potência do lugar

Chegando a esse ponto, não há como evitar algum afastamento em relação ao pensamento nietzscheano27 27 O Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009) (Cf. também o Dicionário Houaiss da língua portuguesa) recomenda, para a criação de adjetivos de filiação a partir de substantivos terminados em -e, a substituição deste por -i antes do sufixo -ano (por exemplo em “acriano”). A grafia com o sufixo -eano é indicada apenas quando a sílaba tônica do derivante for -e tônico ou ditongo tônico com base em -e; ou ainda quando, mesmo átono, o -e for seguido de vogal átona. Nenhum desses seria o caso de “Nietzsche” e, portanto, “nietzschiano” seria a grafia recomendada. Apesar disso, compreendemos que a utilização de “nietzscheano” vem a evitar a tendência a omitir-se a sonoridade do -e, como quando se pronuncia “Nietzsch”, ou “nietzschiano”. Ademais, a grafia com -e vem a acompanhar os adjetivos correspondentes em outras línguas: “nietzscheano” (esp.), “nietzscheéne” (fr.) e “nietzschean” (ing.), por exemplo. Optamos assim, por uma questão de manutenção da sonoridade do nome, pela grafia do adjetivo relacionado a Nietzsche como “nietzscheano”, e não “nietzschiano”. Um contraexemplo seria dado pelo nome Montaigne, que embora possuindo o -e quase que impronunciado, tem como adjetivo: “montaigneano”, e não “montaigniano”; o mesmo acontecendo com “Deleuze” e o adjetivo “deleuzeano”, ao invés de “deleuziano”. , ao tempo em que me aproximo de uma teoria da arquitetura. Caberia aqui, em certo sentido, a máxima de que uma coisa é o cerne da filosofia de um pensador, outra são os reflexos de seu pensamento que ele próprio percebe no mundo - estes últimos, condicionados ao seu próprio tempo, ainda distantes das mudanças e conquistas paradigmáticas da arquitetura moderna, particularmente no que se referem a uma compreensão acerca do objeto próprio da arquitetura.

É que de fato, a eloquência do poder e mesmo o grande estilo que definem para Nietzsche a arquitetura não se manifestam apenas em formas. A contemplação visual, embora determinante, não é suficiente para abarcar a relação multidimensional, e mesmo sinestésica, para com o objeto arquitetônico. Diria mesmo - e nisso sigo uma vasta corrente de teóricos que perseguem esse tema28 28 Faço referência a um dos primeiros, Bruno Zevi, para quem o essencial da arquitetura não deve ser buscado na contemplação meramente visual, mas em seu protagonista: o espaço, seja ele interno ou externo (urbanístico), independentemente da escala ou do fechamento. Cf. Zevi, B. 1996, p. 25. Por sua vez, a relação entre espaço e lugar, ou ainda, a significação do lugar como o espaço habitado, remete à compreensão, na esteira do pensamento heideggeriano, de Norberg-Schulz em seu artigo: “O fenômeno do lugar” (in: Nesbit, K. (org.). 2008, p. 444-61). - que esse é um aspecto menor quando comparado à reverberação dessa eloquência no domínio das tensões que configuram o métier próprio da arquitetura: o espaço a ser ocupado, criado, como lugar.

Decerto a vontade de potência, irredutível a uma unidade, é também intangível à sua compreensão como uma coisa e também como um lugar, ou ainda, algo que ocupe um lugar. Aqui, como em outras tantas metáforas, a linguagem apenas denota, simplificando e falseando, processos que não se deixam por ela absorver29 29 Müller-Lauter, W. 1997, p. 76. . Porém, retomando a inversão anteriormente feita e remetendo ao título desse artigo, se não cabe dizer de um lugar da potência, talvez seja possível refletir - morfologicamente, por assim dizer - sobre a potência que ocupa, arregimenta e organiza o espaço, impondo ao caos uma significação e criando um lugar.

Não o lugar da potência, portanto, mas a potência do lugar - ou ainda, a potência de ocupação que torna o espaço um lugar. É nesse ponto que, a meu ver, uma teoria da arquitetura poderia emergir à luz do pensamento de Nietzsche, como expressão morfológica - ou talvez mesmo topológica - da potência de ocupação. Chega-se aqui a uma compreensão que extrapola certamente os limites da arquitetura enquanto ofício ou campo artístico, compreendidos em sentido estrito. Porém, ao mesmo tempo, alcança o estatuto de um processo interpretativo - e toda interpretação é de saída uma simplificação, assimilação e apropriação do vir-a-ser - de seleção, por isso mesmo artística, do que apraz à ocupação do espaço e expansão do poder na forma do lugar.

Referências

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  • WOTLING, Patrick. Nietzsche e o problema da civilização Trad. Vinícius de Andrade. São Paulo: Barcarolla, 2013.
  • ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura 5ªed. Trad. Maria Isabel Gaspar; Gaëtan M.de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
  • 1
    No que se refere à obra publicada em vida ou preparada para publicação, as menções (metafóricas ou não) à arquitetura [Architektur] e termos correlatos aparecem em: O nascimento da tragédia (parágrafo 2º), Humano, demasiado humano (aforismos: 215, 218 e 219), Opiniões e sentenças diversas (aforismos: 26,119,134,144,171,219), O andarilho e sua sombra (aforismo 158), Aurora (aforismo: 169), A gaia ciência (aforismos: 280 e 291), Além do bem e do mal (prefácio), Crepúsculo dos ídolos (capítulo IX, aforismo 11), O caso Wagner (“Uma música sem futuro”) e em O anticristo (aforismo 58). Em uma pesquisa superficial, parecem ser poucas as publicações em filosofia sobre esse tema no Brasil, e mesmo em língua alemã, onde parece ser mais frequente a pesquisa no âmbito da Teoria da Arquitetura. Cf. por exemplo: Breitschmid, M. Der bauende Geist. Friedrich Nietzsche und die Architektur. Luzern: Quart Verlag, 2001BREITSCHMID, Markus. Der bauende Geist. Friedrich Nietzsche und die Architektur. Luzern: Quart Verlag, 2001.; e também desse autor, a tese: Der Baugedanke bei Friedrich Nietzsche, defendida pela Technischen Universität Berlin em 2000, orientada por Fritz Neumayer. Cf. também: Gleiter, Jörg H. Der philosophische Flaneur: Nietzsche und die Architektur. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2009GLEITER, Jörg H. Der philosophische Flaneur: Nietzsche und die Architektur. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2009.; Böhme, H. “Auch die Gottlosen brauchen Räume, in denen sie ihre Gedanken denken können”. Nietzsches Phantasien über Architektur im postreligiösen Zeitalter. In: Der Architekt 3, 2001BÖHME, Hartmut. “Auch die Gottlosen brauchen Räume, in denen sie ihre Gedanken denken können”. Nietzsches Phantasien über Architektur im postreligiösen Zeitalter. In: Der Architekt, n. 3. 2001, p. 16-23. Disponível em: https://www.hartmutboehme.de/static/archiv/volltexte/texte/nietzsche.html.
    https://www.hartmutboehme.de/static/arch...
    , p. 16-23.
  • 2
    Essa expressão, bem como a analogia entre a arquitetura e a música apolínea, aparece também em textos preparatórios a sua primeira obra: A visão dionisíaca do mundo (DW/VD, 1, KSA 1.557NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.) e em O nascimento do pensamento trágico (GG/NP, KSA 1.585NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).
  • 3
    Exceto quando indicado, essas e as demais citações diretas das obras de Nietzsche remetem à tradução de Paulo César de Souza, conforme especificado nas referências bibliográficas ao final do texto. A tradução das citações de fragmentos póstumos é de minha responsabilidade.
  • 4
    Cf. também o aforismo 219 de Humano, demasiado humano, em que a arquitetura é novamente utilizada como metáfora para uma avaliação (negativa) do estilo moderno (na música, principalmente) em relação ao antigo, grego ou cristão (MA I/HH I, 219NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano (MA I/HH I). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., KSA 2.179-80NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Vale também mencionar, em O andarilho e sua sombra, a referência à música sacra cristã como mãe do último estilo arquitetônico religioso (WS/AS, 158, KSA 2.618NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).
  • 5
    Essa compreensão aparece também nas suas anotações para o ensino das artes (Nachlass/FP 1877, 24[1], KSA 8.476NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.). Antes disso, em 1870-1, Nietzsche afirma em um fragmento que o edifício manifesta a vontade de “eternidade e grandeza do homem” [die Ewigkeit und Größe des Menschen] (Nachlass/FP 1870-1, 5[73], KSA 7.109NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).
  • 6
    Por questões editoriais, adotamos aqui a tradução de Wille zur Macht por vontade de potência. A expressão “vontade de poder”, presente em algumas citações diretas, refere-se à mesma expressão em alemão e deve ser compreendida no mesmo sentido que a anterior.
  • 7
    Costa, G. 2015COSTA, Gustavo B. do N. A arquitetura e Schopenhauer. O problema da fruição e o lugar da arquitetura na teoria estética schopenhaueriana. Revista Voluntas, v. 6, n. 2, 2015, p. 80-96., p. 81-2.
  • 8
    Schopenhauer, A. 2005SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade como representação (MVR). Trad. Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005., p. 289.
  • 9
    Schopenhauer, A. 2005SCHOPENHAUER, Arthur. El Mundo como voluntad y representación II. Complementos (MVR-II). Trad. esp. Pilar L. de Santa María. 2ª. Ed. Madrid: Trotta, 2005., p. 291.
  • 10
    Schopenhauer, A. 2005, p. 291.
  • 11
    Cf. Schopenhauer, A. 2005, p. 288.
  • 12
    Cf. Schopenhauer, A. 2005, p. 289.
  • 13
    Cf. Schopenhauer, A. 2005, p. 291.
  • 14
    Arnheim, R. 1984ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. Trad. Ivonne T. de Faria. 2ª Ed. São Paulo: Pioneira, 1984., p.59.
  • 15
    Ao que parece, haveria aqui um problema de fundo relativo à bem conhecida hierarquia das artes proposta por Schopenhauer em sua Metafísica do Belo. Com efeito, tomando-se a exigência de simetria que perpassa a relação entre sujeito e objeto em toda a obra, o Livro III de O mundo bem deveria nos apresentar uma leitura transversal: quanto maior o grau de objetidade, maior a importância do objeto artístico e menor a dependência do puro sujeito de conhecimento.
  • 16
    Schopenhauer, A. 2005, p. 273. Cabe ressaltar que Schopenhauer remete a diferença entre o edifício arquitetônico e o mero artefato ao plano das Ideias, ou seja, ao fato de que aquele último não possuiria um arquétipo próprio (mas apenas relativo ao material utilizado). Essa frágil distinção, porém, apenas ressalta a pouca atenção com: 1) o polo subjetivo da fruição estética, de onde talvez pudesse recorrer a uma diferenciação atenta à noção de sublime matemático; e 2) a sinestesia que envolve, para bem além do sentido visual, a fruição do objeto arquitetônico, que nos remete ao espaço envolto e moldado pela construção, e não apenas para o edifício.
  • 17
    Hartmut Böhme, que vê em Nietzsche um sucessor de Kant em sua teoria do sublime, aponta para o distanciamento moderno em relação à simbologia presente nas construções religiosas gregas e cristãs, remetendo à substituição da grandiosidade [Erhabenheit] religiosa pelo sublime [Erhabenen] moderno, “ao qual o eu [das Ich] se sente exposto em face do matematicamente infinito ou de uma natureza violenta” - e onde o medo da aniquilação é convertido em um gesto triunfante do potencialização de si (Böhme, H. 2001BÖHME, Hartmut. “Auch die Gottlosen brauchen Räume, in denen sie ihre Gedanken denken können”. Nietzsches Phantasien über Architektur im postreligiösen Zeitalter. In: Der Architekt, n. 3. 2001, p. 16-23. Disponível em: https://www.hartmutboehme.de/static/archiv/volltexte/texte/nietzsche.html.
    https://www.hartmutboehme.de/static/arch...
    , p. 19; tradução minha). Reverberações da compreensão do sublime como expressão da capacidade de domínio em relação à natureza - para a qual apontam os aforismos e fragmentos nietzscheanos - podem ser também encontradas nas reflexões teóricas de alguns arquitetos contemporâneos, como é caso de Peter Eisenmann. A esse respeito, cf. Eisenman, P. 2008EISENMAN, Peter. “En Terror Firma: na trilha dos grotextos”. In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica 1965-1995. Trad. Vera Pereira. 2ª. Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 612-17., p. 612-7 e ainda: Vidler, A. 2008VIDLER, A. “Uma teoria sobre o estranhamente familiar”. In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica 1965-1995. Trad. Vera Pereira. 2ª. Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 619-22., p. 619-22, ambos contidos na coletânea organizada por K. Nesbit: Uma nova agenda para a arquitetura.
  • 18
    Sobre a ligação e influência recíproca entre valorações e interpretações, bem como entre corpo e cultura, cf. Wotling, P. 2013WOTLING, Patrick. Nietzsche e o problema da civilização. Trad. Vinícius de Andrade. São Paulo: Barcarolla, 2013., p. 28.
  • 19
    Kofman, S. 1985KOFMAN, Sarah. “O/Os conceitos de ‘cultura’ nas Extemporâneas ou a dupla dissimulação”. In: Nietzsche hoje? Colóquio de Cerisy. Trad. Scarlett Marton. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 77-109., p. 97-8.
  • 20
    Cf. Breitschmid, M. 2000BREITSCHMID, Markus. Der Baugedanke bei Friedrich Nietzsche. 2000. 218 f. Tese (Doktor der Ingenieurwissenschaften) - Technischen Universität Berlin. Disponível em: http://webdoc.sub.gwdg.de/ebook/diss/2003/tu-erlin/diss/2000/breitschmid_markus.pdf.
    http://webdoc.sub.gwdg.de/ebook/diss/200...
    , p. 139: “Der Baugedanke im engeren Sinne ist bei Nietzsche nicht ohne seinen Gedanken des Bauens im weiteren Sinne, sein Gedankengebäude, zu verstehen. Dieses Verhältnis von Baugedanken und Gedankengebäude ist in dieser Studie auf einer grundlegenderen Ebene erörtert. Bei Nietzsche ist das Bauen eine menschliche Notwendigkeit”.
  • 21
    “Man muß das künstlerische Grundphänomen verstehen, welches Leben heißt - den bauenden Geist, der unter den ungünstigsten Umständen baut: auf die langsamste Weise - der Beweis für alle seine Combinationen muß erst neu gegeben werden: es erhält sich” (Nachlass/FP 1874, 25[438], KSA 11.129NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).
  • 22
    Breitschmid, M. 2000BREITSCHMID, Markus. Der Baugedanke bei Friedrich Nietzsche. 2000. 218 f. Tese (Doktor der Ingenieurwissenschaften) - Technischen Universität Berlin. Disponível em: http://webdoc.sub.gwdg.de/ebook/diss/2003/tu-erlin/diss/2000/breitschmid_markus.pdf.
    http://webdoc.sub.gwdg.de/ebook/diss/200...
    , p. 141-2.
  • 23
    Müller-Lauter, W. 1997MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacóia Jr. 2ª. ed. São Paulo: Anna Blume, 1997., p.68. A crítica que tece à interpretação de Heidegger reside precisamente no fato do filósofo fazer da vontade de potência, segundo ele, “um princípio metafísico que se desdobra a partir de si mesmo e do mesmo modo permanecendo em si, retrocedendo à sua própria origem”.
  • 24
    Müller-Lauter, W. 1997MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacóia Jr. 2ª. ed. São Paulo: Anna Blume, 1997., p. 74. A esse respeito, cf. também o fragmento 7[54], de 1886-7 (Nachlass/FP 1886-7, 7[54], KSA 12.312NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G. Colli; M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.).
  • 25
    ApudMüller-Lauter, W. 1997MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacóia Jr. 2ª. ed. São Paulo: Anna Blume, 1997., p. 75, n. 41.
  • 26
    Cf. também: Abel, G. 2005ABEL, Günter. Verdade e interpretação. Trad. Clademir Araldi. In: MARTON, Scarlett (org.) Nietzsche na Alemanha. São Paulo: Discurso Editorial, 2005, p. 179-197., p. 179-197. Abel considera que a partir de Nietzsche, pode-se “compreender a verdade não mais como aquilo que preexiste independentemente da sua interpretação. Ao contrário, a verdade poderia ser vista como o nome para a produção nos processos interpretativos” (p.184).
  • 27
    O Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009) (Cf. também o Dicionário Houaiss da língua portuguesa) recomenda, para a criação de adjetivos de filiação a partir de substantivos terminados em -e, a substituição deste por -i antes do sufixo -ano (por exemplo em “acriano”). A grafia com o sufixo -eano é indicada apenas quando a sílaba tônica do derivante for -e tônico ou ditongo tônico com base em -e; ou ainda quando, mesmo átono, o -e for seguido de vogal átona. Nenhum desses seria o caso de “Nietzsche” e, portanto, “nietzschiano” seria a grafia recomendada. Apesar disso, compreendemos que a utilização de “nietzscheano” vem a evitar a tendência a omitir-se a sonoridade do -e, como quando se pronuncia “Nietzsch”, ou “nietzschiano”. Ademais, a grafia com -e vem a acompanhar os adjetivos correspondentes em outras línguas: “nietzscheano” (esp.), “nietzscheéne” (fr.) e “nietzschean” (ing.), por exemplo. Optamos assim, por uma questão de manutenção da sonoridade do nome, pela grafia do adjetivo relacionado a Nietzsche como “nietzscheano”, e não “nietzschiano”. Um contraexemplo seria dado pelo nome Montaigne, que embora possuindo o -e quase que impronunciado, tem como adjetivo: “montaigneano”, e não “montaigniano”; o mesmo acontecendo com “Deleuze” e o adjetivo “deleuzeano”, ao invés de “deleuziano”.
  • 28
    Faço referência a um dos primeiros, Bruno Zevi, para quem o essencial da arquitetura não deve ser buscado na contemplação meramente visual, mas em seu protagonista: o espaço, seja ele interno ou externo (urbanístico), independentemente da escala ou do fechamento. Cf. Zevi, B. 1996ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. 5ªed. Trad. Maria Isabel Gaspar; Gaëtan M.de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 25. Por sua vez, a relação entre espaço e lugar, ou ainda, a significação do lugar como o espaço habitado, remete à compreensão, na esteira do pensamento heideggeriano, de Norberg-Schulz em seu artigo: “O fenômeno do lugar” (in: Nesbit, K. (org.). 2008NORBERG-SCHULZ, Christian. “O fenômeno do lugar”. In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica 1965-1995. Trad. Vera Pereira. 2ª. Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 444-61., p. 444-61).
  • 29
    Müller-Lauter, W. 1997MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacóia Jr. 2ª. ed. São Paulo: Anna Blume, 1997., p. 76.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2020
  • Aceito
    07 Jul 2020
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