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Nietzsche leitor de Schopenhauer

Nietzsche reader of Schopenhauer

Resumo:

Esse texto pretende oferecer um quadro de Nietzsche como leitor de Schopenhauer, fazendo abstração de alguns aspectos fundamentais dessa leitura, como a influência de Wagner e a crítica da filosofia madura feita a partir de pressupostos de sua própria filosofia. Tentando isolar esses aspectos, procuramos ver Nietzsche como um leitor e intérprete dos mais importantes, em que a profunda veneração não exclui a crítica implacável e a crítica implacável não exclui a constante veneração àquele que ele chamava seu mestre.

Palavras-chave:
Schopenhauer; Nietzsche; pessimismo; vontade; valor

Abstract:

This paper aims to offer an image of Nietzsche as a reader of Schopenhauer, putting aside some fundamental issues, such as the influence of Wagner and the critique of his former master in his late philosophy. Trying to isolate these aspects, I will take Nietzsche as one of the most important reader of Schopenhauer. His deep veneration does not exclude relentless criticism and his relentless criticism does not exclude his deep veneration of Schopenhauer.

Keywords:
Schopenhauer; Nietzsche; pessimism; will; value

“Os erros dos grandes homens são mais honrosos, pois são mais frutíferos que as verdades dos pequenos”

F. Nietzsche, Zu Schopenhauer (Primavera de 1868)

A filiação de Nietzsche àquele que ele chamava seu “educador” é tão conhecida quanto indisfarçável. Desde os relatos do próprio Nietzsche sobre o impacto que a leitura de O mundo como vontade e representação causou em seu espírito, a presença constante do filósofo em seus primeiros escritos, cuja linguagem se mostra bastante familiar ao leitor de Schopenhauer, e por fim, a terceira consideração extemporânea dedicada àquele que ele chamava de mestre. Apesar disso, não é menos conhecido o fato já bem estabelecido na Nietzsche-Forschung que desde os seus primeiros escritos Nietzsche usava os conceitos de Schopenhauer com muita desenvoltura e, no fim das contas, para conduzir a uma filosofia não apenas diferente, mas radicalmente oposta. Podemos ler essa transmutação da leitura de Schopenhauer ao longo do desenvolvimento da obra de Nietzsche no livro As máscaras de Dioniso. Filosofia e tragédia em NietzscheLIMA, Márcio J. S. As máscaras de Dioniso. São Paulo/Ijuí: Discurso/Unijuí, 2006., de Márcio José Silveira. Se O Nascimento da tragédia, em cujo subtítulo de sua primeira edição, de 1872, se lia “a partir do espírito da música” (aus dem Geiste der Musik), não apenas utiliza categorias schopenhauerianas como se vale de partes extensas de O mundo como vontade e representação, isso não apenas não significa uma mera reprodução ou continuação da metafísica da vontade, como, pelo contrário, é apenas o início da elaboração de uma filosofia que subverte completamente a visão de mundo schopenhaueriana. O que fica ainda mais evidente a partir da segunda edição do livro, agora com o subtítulo “Helenismo ou pessimismo”, publicada em 1886, e que é precedida por um “Ensaio de autocrítica”. Mas, como se sabe, essa não é a única distância que Nietzsche demarca em relação a seu outrora “educador”: ao longo das suas obras subsequentes, o afastamento de Schopenhauer vai ficando cada vez mais ostensivo a ponto de se duvidar se de fato houve algum verdadeiro entusiasmo com sua filosofia. Todos esses pontos me parecem bem estabelecidos na pesquisa sobre a filosofia de Nietzsche, que já esquadrinhou todos os mais importantes passos desse afastamento. Da parte da pesquisa sobre Schopenhauer, poucos são os estudos que procuraram analisar mais detidamente o diálogo entre os dois filósofos de uma maneira que não fosse a mera tentativa de apontar erros e acertos da leitura de Nietzsche. No presente escrito, tentarei esboçar alguns aspectos do perfil que Nietzsche oferece de Schopenhauer em diversos momentos de sua obra. Além de se revelar um leitor atento e profundo, Nietzsche utilizou-se de Schopenhauer como motivo que o conduziu até sua crítica geral da metafísica e da moralidade ocidentais. Tal confrontação perpassa quase todos os aspectos fundamentais da filosofia de Schopenhauer. Na exposição a seguir, destacarei aqueles que considero os momentos mais importantes desse frutífero confronto.

Do deslumbramento à crítica

Dos autores da assim chamada “Schopenhauer-Schule” em sentido amplo, nenhum é mais célebre que Nietzsche. Os estudos de Domenico Fazio e do Centro interdipartimental di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola da Universidade de Salento (Lecce/Itália) sobre o conceito Schopenhauer-Schule estabeleceram a importante distinção entre a escola schopenhaueriana em sentido estrito e a escola schopenhaueriana em sentido amplo. Ao primeiro grupo pertencem aqueles que formavam aquilo que o próprio Schopenhauer considerava a sua escola, composta por quem teve uma relação direta com ele de colaboração e se apresentavam como seus discípulos. Ao segundo grupo pertencem aqueles que depois da morte do filósofo em 1860 desenvolveram obras inspiradas em sua filosofia em diversas direções: seja construindo novas metafísicas baseadas nos fundamentos da doutrina schopenhaueriana, seja desenvolvendo em direções originais um ou outro aspecto particular de seu pensamento, seja trabalhando no âmbito da pesquisa sobre o pensamento de Schopenhauer fixando, difundindo ou defendendo seus princípios, em suma, todos aqueles que se disseram schopenhauerianos ou foram considerados schopenhauerianos.1 1 Fazio, D. “La scuola di Schopenhauer. I contesti”. In: La scuola di Schopenhauer. Testi e contesti. a cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento, Lecce: Pensa Multimedia, 2009, pp. 15 e 16. Certamente, Friedrich Nietzsche pertenceria a essa segunda linhagem, especialmente no chamado período juvenil, composto por seus primeiros escritos, nos quais as referências a Schopenhauer são muito presentes. Mas apesar do entusiasmo2 2 Esse entusiasmo é relatado especialmente num texto de 1867 chamado “Olhar retrospectivo dos meus dois anos em Lipsia”, que narra a descoberta da filosofia de Schopenhauer em 1865. A versão consultada está presente em La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento. Lecce: Pensa Multimedia, 2009, pp. 443-4, traduzida por G. Campioni e M. Carpitella. com o qual narra seu primeiro encontro com a filosofia do autor de O mundo como vontade e representação, desde o início Nietzsche elaborou uma leitura crítica de sua filosofia. E podemos verificar isso logo no primeiro texto dedicado a Schopenhauer, o fragmento Zu Schopenhauer, redigido em 1868.3 3 Cito o fragmento a partir da versão presente na coletânea organizada por Volker Spierling, Materialen zu Schopenhauers Die Welt als Wille und Vorstellung. Frankfurt am Main: Surkhamp, 1984, pp. 253-62. Foram consultadas também as versões em inglês, presente como apêndice do livro Willing and Nothingness. Schopenhauer als Nietzsche Educator (Oxford, Clarendon Press, 1998), organizado por Christopher Janaway, que também traduziu o texto, e a versão italiana presente em: La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento. Lecce: Pensa Multimedia, 2009, pp. 445-552, traduzida por G. Campioni e M. Carpitella.

Redigido entre março e abril de 1868, quando Nietzsche contava então com 23 anos, no contexto de suas Philosophische Notizen (Notas Filosóficas) tomadas durante o afastamento do serviço militar por conta de uma lesão, o texto revela uma profunda imersão ao sistema filosófico de Schopenhauer até o cerne de seu pensamento. Em sua interpretação, Nietzsche apresenta o núcleo fundamental do pensamento de Schopenhauer resumido em duas fórmulas. A primeira: “O impulso obscuro trazido ao aparato da representação se revela como mundo. Esse impulso não entra no princip. indiv.” A segunda: “A vontade desprovida de conhecimento e de fundamento se revela, trazida ao aparato da representação, como mundo” (p. 255).

O escrito é dividido em 4 partes, precedidas por nove sentenças que parecem oferecer o plano esquemático do texto. São elas: “[1] uma tentativa de esclarecer o mundo a partir da assunção de um fator; [2] A coisa em si recebe uma de suas possíveis formas; [3] A tentativa falha; [4] Schopenhauer não toma isso como uma tentativa; [5] Sua coisa em si foi por ele descoberta; [6] Que ele mesmo não viu a falha se esclarece pelo fato de ele não querer sentir o obscuro e contraditório na região em que cessa a individ.; [7] Ele trai seu juízo; [8] Passagens” (Idem). Antes de iniciar a primeira parte, é colocada a frase já citada, que pretende resumir o cerne da filosofia de Schopenhauer: “O impulso obscuro trazido ao aparato da representação se revela como mundo. Esse impulso não entra no princip. indiv.

A primeira parte consiste na apresentação de uma leitura de O mundo como vontade e representação como o projeto de superação da filosofia kantiana por meio da descoberta da vontade como coisa em si. Descoberta tão fundamental que o próprio Schopenhauer a considerava como a verdadeira “pedra filosofal” e que encontra sua chave na palavra “vontade” (Wille) “uma palavra muito vasta e de cunho difícil” (“ein schwergemünztes, vielumschließendes Wort”) (Idem). Utilizando-se da leitura da História do materialismo de F. A. Lange para comparar Kant e Schopenhauer, Nietzsche afirma que, enquanto Kant via sua dedução transcendental das categorias como a mais difícil tarefa da filosofia e a si mesmo com o assombro de alguém diante da erupção de uma força da natureza que finalmente o levou a tornar-se “reformador da metafísica”, “Schopenhauer via sempre sua pretensa descoberta como fruto de sua clarividência genial (geniale Besonnenheit) e da força intuitiva de seu intelecto (anschauliche Kraft seines Intellekts)” (p. 256). Por fim, após afirmar que os erros dos grandes homens são honrosos, pois são mais frutíferos que as verdades dos pequenos, Nietzsche encerra a primeira parte desse texto com as significativas palavras:

Se, portanto, nos ocupamos daquela frase há pouco apresentada, com o fim de decompor, e testar o conjunto do sistema de Schopenhauer, nenhum propósito nos é mais distante do que o de, com tal crítica, infligir dano ao próprio Schopenhauer, para triunfalmente lhe pôr à frente as partes soltas de sua demonstração e de, por fim, de sobrancelhas bem levantadas, lhe colocarmos a questão sobre como terá chegado a tais pretensões, no mundo inteiro, um homem com um sistema tão esburacado (durchlöcherte) (Idem).

Na segunda parte, o jovem Nietzsche apresenta suas quatro objeções ao “sistema schopenhaueriano”. Primeiro, afirma que Schopenhauer falha em ir além de Kant, pois ao ter a coisa em si em vista vê nela apenas uma “categoria escondida”. A segunda, muito relevante, afirma que mesmo que se conceda a Schopenhauer ter ido além de Kant, ele só teria conseguido isso com a ajuda de uma intuição poética (poetische Intuition), sem conseguir satisfazer a si mesmo ou a seus leitores com um prova lógica. Em terceiro lugar, Nietzsche protesta contra os predicados que Schopenhauer assinalados para sua “vontade”, que parecem determinar muito algo que era concebido como “absolutamente impensável” (Schlechthin-Undenkbares). Predicados esses estabelecidos em mera oposição ao mundo da representação (Vorstellungswelt), quando entre a coisa em si e o fenômeno (Erscheinung) nem mesmo o conceito de oposição (Gegensatz) teria significado. A quarta e última objeção dessa segunda parte é a mais complexa. Ela parte do seguinte raciocínio: em favor de Schopenhauer, se poderia responder às três objeções anteriores valendo-se de uma possibilidade elevada à terceira potência, pela qual uma coisa em si na região da transcendência tudo seria possível a partir de uma mente filosófica e que de algum modo a palavra “vontade” seria aquela que explicaria todo o mundo. Mas é aqui mesmo que se insere a quarta objeção de Nietzsche: “A trama fundamental de Schopenhauer está emaranhada em suas mãos: em pequena medida como consequência de uma certa imperícia tática de seu autor, mas principalmente porque o mundo não se deixa encaixar tão confortavelmente no sistema como Schopenhauer esperava no primeiro entusiasmo com a descoberta. Em sua velhice, ele se queixaria de que o mais difícil problema da filosofia não foi resolvido nem mesmo por sua filosofia. Ele pensava com isso na questão dos limites da individ[uação]” (p. 256-7).

A terceira parte do texto é direcionada ao desenvolvimento do aspecto contraditório já levantado pela terceira objeção, a questão da predicação da coisa em si para além dos limites da individuação. Após citar passagens em que Schopenhauer descreve a coisa em si como destituída das formas da representação, e mesmo da forma geral de “objeto” e do principium individuationis, Nietzsche ressalta o “tom ditatorial” com o qual Schopenhauer “atribui a essa coisa em si, alijada de toda a esfera da cognição, uma lista de propriedades negativas, conflitando assim com a asserção de que ela não seria afetada pela forma mais geral do conhecimento, a de ser um objeto para um sujeito” (p. 258). O truque de Schopenhauer consistiria em pensar objetivamente aquilo que não seria objeto, a coisa em si, e tomar um nome e conceito de um objeto qualquer constituindo uma “aparente objetividade” (scheinbare Objektivität), pela qual o conceito de coisa em si é deslocado e temos em mão um outro bem diferente. O fato de que o nome e o conceito emprestados da objetividade seja o da vontade não resolve a questão para o jovem Nietzsche, pois todos os predicados dessa vontade são novamente retirados do mundo fenomênico. Ainda segundo Nietzsche, Schopenhauer joga com o uso desses predicados, sempre atribuindo características transcendentes a essa vontade quando os buracos de seu sistema, especialmente em sua primeira apresentação, assim o exigem. Mesmo os três principais predicados dessa coisa em si, a unidade, a eternidade e a liberdade, isto é, a falta de fundamento (Grundlosigkeit) são predicados tão inseparavelmente ligados à nossa organização que seria duvidoso pensar num significado para eles além da esfera do conhecimento em geral. Em suma, “que eles devam ser atribuídos à coisa em si, pois seus opostos domina o mundo fenomênico, é algo que nem Kant nem Schopenhauer poderiam provar ou tornar verossímil, sobretudo porque, no caso de Schopenhauer, sua coisa em si não poderia manter aqueles três predicados, mas teria que continua e necessariamente tomar emprestado para si os conceitos da multiplicidade, temporalidade e da causalidade” (p. 259-60).

A quarta e última parte do fragmento toca num ponto bastante caro à literatura secundária sobre Schopenhauer, pois retoma a objeção conhecida como “paradoxo de Zeller”.4 4 Esse aspecto da leitura crítica de Nietzsche foi profundamente analisado por Sandro Barbera no artigo “Um sentido e incontáveis hieróglifos. Alguns motivos da polêmica de Nietzsche com Schopenhauer nos tempos de Leipzig e de Basileia”. In: Cadernos Nietzsche, 27, 2010, pp. 13 – 50. Barbera aponta a influência dos textos de Rudolf Haym nessa leitura crítica do jovem Nietzsche. Nietzsche coloca o problema nos seguintes termos: como pode a vontade aparecer (erscheinen)? De onde vem o aparato da representação no qual ela aparece? Cita duas passagens do capítulo 22 dos Complementos, o segundo tomo de O mundo como vontade e representação, chamado “Visão objetiva do intelecto” que o caracteriza como um “mecanismo” da vontade. Lê-se numa delas: O Eu que conhece seria “no fundo terciário, na medida em que pressupõe o organismo, e este por vez sua a vontade” (Schopenhauer, 2015b, p. 336SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, Segundo tomo: Suplementos aos quatro livros do primeiro tomo. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015b.). Schopenhauer tem em vista o desenvolvimento do intelecto a partir de uma série progressiva de manifestações da vontade que se tornam mais complexas e precisam desse mecanismo para satisfazer suas necessidades. Nietzsche detecta, nesse processo, a antecedência do principium individuationis e da lei da causalidade, sem os quais ele não poderia ser concebido. Num tal quadro, o mundo fenomênico aparece antes do mundo fenomênico. “Nessa área do sistema de Schopenhauer tudo se desintegrou em palavras e imagens: das determinações iniciais da coisa em si tudo se perdeu – praticamente mesmo a memória delas. Onde a memória intervém, serve apenas para trazer à luz uma completa contradição” (Op. Cit, p. 260). Nietzsche reclama a falta de mediação entre o mundo anterior ao surgimento do intelecto, que, no entanto, pressupõe uma atividade intelectual (espaço, tempo e causalidade) e sua súbita aparição. Schopenhauer falharia assim em explicar uma coisa em si para além do aparato cognitivo, resultando como conclusão do seu cálculo um “X” tão desconhecido como antes. E antes de determinar o texto com mais uma longa citação do mencionado capítulo 22, Nietzsche comenta sua perplexidade diante da leitura de O mundo como vontade e representação: “Devemos notar o cuidado com o qual Schopenhauer evade a questão da origem do intelecto: tão logo entramos no âmbito desta questão, esperando calmamente o que virá a seguir, ele se esconde como se estive atrás das nuvens – embora seja manifesto que o intelecto, no sentido schopenhaueriano, já pressupõe um mundo constrangido pelo principium individuationis e as leis de causalidade”.

Enfim, o fragmento Zu Schopenhauer, da primavera de 1868, faz uma leitura crítica do cerne da filosofia de Schopenhauer. Essa leitura, porém, não bastou para que Nietzsche descartasse Schopenhauer, pelo contrário. Nos próximos anos de sua atividade intelectual, Nietzsche continuará lendo Schopenhauer continuamente e fará grande uso de sua filosofia em seus primeiros escritos.

Schopenhauer e os Gregos

Por conta de sua atividade como professor de filologia grega na Universidade da Basileia, Nietzsche dedicará boa parte de seus primeiros escritos à cultura grega. Além de seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, de 1872, o texto inacabado sobre a filosofia pré-socrática, A filosofia na era trágica dos gregos revela muito claramente a intensa ocupação com a filosofia de Schopenhauer. Se é bem conhecido o modo como Nietzsche se valeu de algumas fórmulas da filosofia de Schopenhauer, além de Wagner, os românticos e outras referências, para construir uma visão própria e original sobre a tragédia grega e sua concepção, posteriormente retomada, sobre o dionisíaco, é bem menos mencionado o uso de “espessas lentes schopenhauerianas” com as quais Nietzsche lê os filósofos pré-socráticos. Dessas várias referências, podemos destacar três principais temas: a visão expiatória do mundo como punição do pecado pelo nascimento, aproximada da noção de apeirón em Anaximandro; o uso da concepção de “efetividade empírica” (empirische Wirklichkeit) para explicar o devir heraclitiano; e, por fim, uma citação na última página sobre o conceito de finalidade.

A primeira citação é feita como chave de interpretação do fragmento de Anaximandro. Trata-se de uma passagem do capítulo doze do segundo volume dos Parerga e Paralipomena de 1851. Schopenhauer é aqui retratado como o “único moralista sério de nosso século”. Além de aproximar a visão de Anaximandro a de Schopenhauer, Nietzsche aproxima o “indeterminado” da coisa em si kantiana, e o caracteriza como o “ser primordial” e “ventre materno de todas as coisas” e que “só pode, com efeito, ser descrito negativamente pelo homem, isto é, como algo a que não pode ser concedido qualquer predicado advindo do mundo existente do vir-a-ser” (Nietzsche, 2008, p. 52).

Na quinta seção do livro, a primeira dedicada a Heráclito, é feita uma longa citação do parágrafo 4 de O mundo como vontade e representação como ilustração do vir-a-ser como efetividade. E no final da mesma seção é feita uma outra citação, dessa vez do parágrafo 27 do segundo livro, em que é tematizada a discórdia pela qual as coisas vêm a ser na natureza, aproximada agora da concepção de conflito em Heráclito. Mas ainda que aproxime, em alguma medida, a concepção schopenhaueriana da realidade empírica ao vir-a-ser de Heráclito, Nietzsche pontua a distância que marca o juízo de cada um sobre a efetividade: “As páginas que se seguem fornecem as mais notáveis ilustrações desse conflito: mas com a ressalva de que o tom geral dessas descrições permanece sempre diferente daquele presente em Heráclito, na medida em que, para Schopenhauer, a luta é uma prova da cisão interna da vontade de vida, um devorar-se-a-si-mesmo desse impulso opressivo e sombrio, qual um fenômeno completamente horrível e que de maneira alguma traz felicidade. A arena e o objeto dessa luta é a matéria, que as forças naturais procuram tomar para si em sua mútua relação, assim como o espaço e tempo, cuja união por meio da causalidade consiste justamente na matéria” (p. 61).

O perfil do filósofo e seu caráter educativo

A terceira Consideração extemporânea, publicada em 1874, é dedicada a Schopenhauer como Educador. Um texto complexo em que o filósofo de Danzig é representado como um tipo idealizado de filósofo em meio a um projeto pedagógico que teria seu sentido no engendramento do gênio. Como o próprio autor confessa depois, esse terceiro ensaio fala do seu próprio “vir a ser”, de modo que nele assume a palavra não “Schopenhauer como Educador”, mas seu oposto “Nietzsche como Educador” (EH/EH, p. 71). De qualquer forma, em meio a suas oito seções, a terceira de fato descreve a trajetória do autor de O mundo como vontade e representação e os perigos com os quais ele teve que lidar. Aqui a descrição é a do vir a ser Schopenhauer enquanto filósofo, não apenas como autor, mas como homem. Valendo-se dos dados biográficos da época, Nietzsche apresenta uma penetrante imagem do filósofo de uma tal maneira em que sua obra não se separa da sua vida, descrição análoga àquela oferecida no escrito não publicado do ano anterior sobre os filósofos pré-socráticos.

Antes de narrar a trajetória do filósofo, Nietzsche descreve a “primeira impressão fisiológica” que Schopenhauer nele provocou, “aquela difusão mágica da força mais íntima de um rebento da natureza para outro, que segue do primeiro e mais leve contato” (Co. Ext. II/ SE, p. 19). Confessa ainda ser um leitor ávido e atento: “Faço parte dos leitores de Schopenhauer que, depois de terem lido a primeira página dele, sabem com determinação que lerão todas as páginas e ouvirão cada palavra dita por ele” (Co. Ext. II/ SE, p. 15). Escrevendo para si mesmo, sem preocupação em aparecer ou representar o que não é, e sem tentar enganar a si mesmo ou ao leitor, Schopenhauer é honesto também como escritor e, comparado a Montaigne, o que ilumina a referência acima ao “maior moralista desse século”. Segundo Nietzsche, Schopenhauer compartilha ainda com Montaigne uma “serenidade efetiva que alegra (eine wirkliche erheiternde Heiterkeit)” (SE, p. 17). Em suma, “ele é honesto, porque fala e escreve por si mesmo e para si mesmo; sereno, porque venceu o mais pesado através do pensamento; e constante, porque ele assim deve ser. Sua força aumenta como uma chama na calmaria, reto e leve para cima, firme, sem tremores e inquietações” (Co. Ext. II/ SE, p. 19).

O “exemplo” Schopenhauer é então analisado na terceira seção por meio dos perigos em meio aos quais se impôs em sua época. O primeiro desses perigos foi o isolamento, a melancolia que o poderia ter abatido com o silêncio dos contemporâneos em relação à sua obra. O segundo perigo, o “desespero da verdade”, perigo que acompanha “todo pensador que enceta seu caminho desde a filosofia kantiana, pressuposto que ele seja um homem forte e íntegro no sofrer e desejar, e não apenas uma máquina matraqueadora de pensar e calcular” (Co. Ext. II/ SE, p. 26). Pelo exemplo daquele que sucumbiu diante desse perigo, Heinrich von Kleist e seu trágico destino, Schopenhauer é caracterizado como portando uma “natureza de bronze”, como Beethoven, Goethe e Wagner, resistindo a esses perigos e também ao terceiro pela a duplicidade de sua natureza que o impelia ora para o gênio, ora para o santo. Apesar dessa duplicidade, a natureza inquebrantável do gênio Schopenhauer resistiu e superou o perigo do enrijecimento intelectual e moral. Embora descreva todos esses perigos como sendo ameaçadores para “nós todos”, Nietzsche descreve a luta de Schopenhauer contra eles e contra aquilo que ele teve que combater como homem do seu tempo. E nessa última batalha, Schopenhauer, ao superar a visão estreita de sua época pôde se colocar na posição de um “juiz da vida”, lançando um olhar sobre a existência como um todo e dar uma resposta à questão definitiva: “afirmas tu, do mais profundo do coração, esta existência? Ela te basta? Queres ser seu porta-voz, seu redentor? Pois é suficiente um único sim! Verdadeiro, de tua boca – e a vida tão gravemente acusada será libertada. – O que ele responderá? – A resposta de Empédocles” (Co. Ext. II/ SE, p. 35).

Sabendo que essa última indicação permaneceu sem entendimento, Nietzsche passa para outros temas a partir da seção seguinte. Naquela que talvez seja a seção mais difícil do texto, a quarta, Nietzsche desenvolve sua concepção de cultura a partir de três imagens de homem, o homem de Rousseau, o homem de Goethe e o homem de Schopenhauer. Aqui se percebe o uso do caso Schopenhauer como exemplo do filósofo extemporâneo, que pretende superar as limitações da cultura alemã da época, contra o filistinismo por um lado, e contra a cultura erudita, por outro. Essa imagem idealizada de Schopenhauer, bastante influenciada por Wagner, já vai se distanciando da figura efetiva do filósofo e nela se percebe traços da antropologia futura de Nietzsche, mesmo que ele ainda se utilize de algumas das fórmulas schopenhauerianas contra a “filosofia universitária”. Esse amálgama de Schopenhauer e Wagner, essa concepção de “gênio” para a qual concorrem diversas influências, vai se transmutar ao longo da obra de Nietzsche, mas alguns traços desse perfil de Schopenhauer ainda aparecerão em alguns momentos da obra intermediária e madura de Nietzsche.

Schopenhauer, o pessimismo e os alemães

Deixando de lado aqui a reelaboração crítica feita por Nietzsche em seu chamada “período intermediário”, onde a partir de outras referências e novas perspectivas, a filosofia da vontade é reavaliada e transfigurada, encontramos alguns textos, especialmente em A gaia ciência em que Schopenhauer é ainda colocado como contramodelo às filosofias da época. O “primeiro ateu honesto da Europa” não deveu seu desenvolvimento aos alemães, pelo contrário. Seu ateísmo e seu pessimismo são caracterizados como “europeus”.

O prefácio do segundo volume de Humano, demasiado humano faz menção à terceira extemporânea, publicada anos antes, ao mesmo tempo com ceticismo e com veneração: “Na terceira Consideração Extemporânea, quando expressei minha reverência por meu primeiro e único educador, o grande Arthur Schopenhauer – agora eu a expressaria de maneira ainda mais forte e pessoal –, eu já estava, quanto à minha pessoa, em pleno ceticismo e decomposição moral, ou seja, tanto na crítica como no aprofundamento de todo pessimismo até então havido – e não acreditava ‘em mais nada’, como diz o povo, nem em Schopenhauer” (MA II/HH II, Prólogo, 1). Da mesma forma, no prólogo do primeiro volume, Nietzsche menciona o fato de ter deliberadamente fechado os olhos “de maneira consciente-caprichosa” à “cega vontade de moral de Schopenhauer, num tempo em que já era clarividente o bastante acerca da moral” (MA I/ HH I, Prólogo 1). O que Nietzsche estende também a Wagner, mas que explica de fato o seu silêncio em relação a esse aspecto da filosofia de Schopenhauer nas obras de juventude. A partir de então, porém, não apenas a filosofia de moral de Schopenhauer passa a ser considerada, mas francamente criticada em vista do seu projeto mais amplo de crítica geral dos valores morais.

O problema da moral ou a moral como problema

Em sua fase madura, a filosofia de Nietzsche se volta em grande medida para o problema da moral, ou, como ele próprio afirma, a moral é tomada como problema. Embora essa questão já apareça em textos da fase intermediária, como Humano, demasiado humano, Aurora e A gaia ciência, é sobretudo a partir de Para além de bem e mal que o problema se torna central até culminar na grande crítica presente na Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.. No que diz respeito às leituras sobre Schopenhauer presentes nessa fase de sua obra, algumas passagens de Para além de bem e mal são emblemáticas. Da discussão inicial sobre “os preconceitos dos filósofos”, onde Schopenhauer é citado pelo menos duas vezes à respeito de sua concepção de vontade (aforismos 16 e 19), até o capítulo que já adianta alguns pontos que serão tratados na Genealogia (como o quinto, intitulado “Contribuição à história natural da moral”, ou o nono, chamado “O que é nobre?”), nos parece que Schopenhauer representa um importante “ponto de fuga” do projeto crítico nietzschiano. O aforismo 186 é célebre por colocar em xeque a fé na moral presente em toda a tradição da filosofia moral ocidental, caracterizada como ingênua. Uma passagem de Sobre o fundamento da moral de Schopenhauer é aqui citada como exemplo dessa ingenuidade: “Ouçam, por exemplo, com que inocência quase venerável Schopenhauer apresenta sua tarefa, e tirem suas conclusões sobre a cientificidade de uma”ciência” cujos mestres mais recentes ainda falam como as crianças e as velhinhas (...) A dificuldade em fundamentar a referida tese pode ser realmente – como se sabe, tampouco Schopenhauer teve bom êxito nisso” (JGB/BM 186).

Do problema da moral ao problema da santidade ou do ideal ascético, encontramos ainda em Para além de bem e mal: “Mesmo no fundo da filosofia mais recente, a de Schopenhauer, encontra-se, quase como o problema em si, essa horrível interrogação da crise e do despertar religioso. Como é possível a negação da vontade? Como é possível o santo? – esta parece ter sido mesmo a questão pela qual Schopenhauer se tornou filósofo, e com a qual começou”. (JGB/ BM 47).

Na Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., o problema da moral se estenderá da interrogação das origens das distinções morais (“bom e mau”, “bom e ruim”) até o significado da santidade (a terceira dissertação é intitulada “o que significam ideais ascéticos?”). No prefácio, ao descrever seu percurso até ali, após as referências à filosofia moral inglesa e a Paul Rée, Schopenhauer é nomeado como o mestre que precisa ser confrontado: “Para mim, tratava-se do valor da moral – e nisso eu tinha de me defrontar sobretudo com o meu grande mestre Schopenhauer (...) Tratava-se, em especial, do valor do ‘não-egoísmo’, dos instintos de compaixão, abnegação, sacrifício, que precisamente Schopenhauer havia dourado, divinizado, idealizado, por tão longo tempo que afinal eles lhe ficaram como ‘valores em si’, como base nos quais ele disse não à vida e a si mesmo” (GM/GM, Prefácio, 5). Na terceira dissertação, Schopenhauer será uma das principais referências para a análise do apego dos filósofos ao ideal ascético. Desde sua concepção da arte como momento de silenciamento da vontade até sua teoria da redenção pela negação da vontade, sua filosofia será considerada como exemplo máximo da preferência dos filósofos pelo tipo de vida ascética. Embora essa crítica seja feita a partir de pressupostos da sua própria concepção de vontade de potência, Nietzsche demonstra nesses textos grande familiaridade com a biografia de Schopenhauer, citando diversos fatos da sua vida como comprovação das verdadeiras razões pelas quais o ideal ascético lhe era favorável.

Por fim, podemos mencionar a questão sobre o juízo global da existência, problema esse que aparece claramente colocado numa das últimas obras publicadas por Nietzsche, O crepúsculo dos ídolos, e perceber como essa questão, já presente nos textos de juventude, tem como principal referência justamente a filosofia de Schopenhauer. Segundo Nietzsche, quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida. Então qualquer juízo de valor é um juízo de valor de vida.5 5 O juízo de valor diz o quanto vale a vida daquele que o enuncia. Assim, o juízo de condenação da existência é o juízo dos julgados e condenados pela vida: “Moral, como foi entendida até agora – como ultimamente foi ainda formulada por Schopenhauer, como ‘negação da vontade de vida’ - é o próprio instinto de décadence, que faz de si um imperativo: ela diz:”Vai ao fundo!“* – ela é o juízo dos condenados...” (GD/CI, Moral como contranatureza, 5). Obras Incompletas.* Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Coleção “Os pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 3ª ed., 1983, p. 333. A nota de Rubens Rodrigues Torres Filho aqui é esclarecedora: “Das Urteil Verurteilter – o jogo de palavras não tem equivalente em português; entende-se: o juízo dos que foram julgados e condenados (pela vida)”. No Crepúsculo dos ídolos, na quinta seção do capítulo chamado “Moral como contranatureza”, diz Nietzsche: “Seria preciso ter uma posição fora da vida e, por outro lado, conhecê-la tão bem quanto um, quanto muitos, quanto todos, que a viveram, para poder em geral tocar o problema do valor da vida: razões bastantes para se compreender que este problema é inacessível a nós” (GD/CI, Moral como contranatureza, 5). Para Schopenhauer, ao contrário, o conhecimento chegado ao seu mais alto grau de perfeição nos mostra que a vida, obra da vontade de viver, é um erro, algo do qual devemos nos desviar, ou como ele não se cansa de repetir “um negócio cujos lucros não cobrem os gastos” (WWV, E., Cap. 19, SW, III, p. 271). O objetivo da vida não é outro senão o aprendizado de que melhor valeria simplesmente não ter nascido, pois a existência não passa de uma queda perpétua na morte,6 6 WWV, § 54, SW, II, p. 366. e a vida de nosso corpo é apenas uma agonia travada sem cessar, uma morte repelida de instante em instante. Um tal juízo de condenação da existência é possível quando nos colocamos no lugar de todos os indivíduos que sofrem, quando deixamos de fazer uma distinção egoísta entre nosso próprio eu e o dos outros, quando consideramos não só as dores reais como até mesmo as simplesmente possíveis, e quando fazemos nossas as misérias do mundo inteiro. Aquele que atinge um tal estado de conhecimento do mundo não pode, segundo Schopenhauer, deixar de negar a vontade de viver: “ele percebe o conjunto das coisas, ele conhece sua essência, e ele vê que ela consiste em um perpétuo escoamento, em um esforço estéril, em uma contradição íntima, e em um sofrimento contínuo; e é a isso que são votados a miserável humanidade e o miserável reino animal e, enfim, um universo que não cessa de esvanecer. E mais, tudo isso o toca tão de perto quanto para o egoísta a sua própria pessoa. Como então, conhecendo assim o mundo, poderia ele, por atos incessantes de vontade, afirmar a vida?”(Cf. WWV, § 68, p. 447).

Mas, colocando novamente a questão de Nietzsche, como é que o homem pode chegar a saber o que realmente é a vida para poder julgá-la? A partir do que ele pode dizer o quanto vale a existência? A filosofia moral de Schopenhauer, entendida em sentido amplo, culmina na interrogação sobre o valor da vida.7 7 Cf. R. Malter, Arthur Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-holzboog, 1991, p. 39, nota: “Com a ideia da autoafirmação e da autonegação da vontade, Schopenhauer prestou o grande serviço de ter colocado pela primeira vez o problema do valor da existência humana”. Esse é o sentido do subtítulo do quarto livro de O mundo como vontade e representação: “ao alcançar o conhecimento de si mesma, afirmação e negação da vontade de viver”8 8 “Bei erreichter Selbsterkenntniß Bejahung und Verneinung des Willens zum Leben”. A tradução de Jair Barboza troca a conjução “e” por “ou”. Cf, Schopenhauer, 2015, p. 311. . O juízo de condenação (Verdammungsurteil)9 9 Ou “juízo de danação”. Esse termo, embora o tenhamos usado a partir da referência a Nietzsche, se encontra no próprio Schopenhauer. Cf. WWV, E., Cap. 46, p. 659. e a consequente negação da vontade de viver é o ponto culminante da ética de Schopenhauer que desemboca numa filosofia da redenção.

Considerações finais

Procurei neste texto esboçar um quadro geral da leitura de Nietzsche da filosofia de Schopenhauer. Há muitas camadas dessa leitura. Uma é a postura muitas vezes reverente com a qual Nietzsche se refere à obra daquele que ele chamava, em diversos momentos de sua trajetória, de “mestre”. Outra, o leitor crítico, que faz uma leitura cerrada e impiedosa. Essa leitura aparece sobretudo no texto da primavera de 1868, que procede a uma crítica imanente do próprio sistema de O mundo como vontade e representação. À apropriação do jovem Nietzsche em suas primeiras obras, apropriação que se vale tanto de alguns importantes conceitos de Schopenhauer como de seu exemplo como filósofo contra seu tempo, segue-se a crítica de Nietzsche, que, ao se estender da crítica à metafísica até à visão moral de mundo presente em Schopenhauer, abarca todos os pontos de sua filosofia. Ao que nos parece, a reverência permanente a Schopenhauer é expressão da gratidão em relação ao mestre que possibilitou a sua própria superação.

Referências

  • BARBERA, S. “Um sentido e incontáveis hieróglifos. Alguns motivos da polêmica de Nietzsche com Schopenhauer nos tempos de Leipzig e de Basileia”. In: Cadernos Nietzsche, n. 27, 2010, p. 13-50.
  • FAZIO, D. La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento. Lecce: Pensa Multimedia, 2009.
  • JANAWYA, C. (org) Willing and Nothingness. Schopenhauer as Nietzsche’s Educator. Oxford: Clarendon Press, 1998).
  • LIMA, Márcio J. S. As máscaras de Dioniso. São Paulo/Ijuí: Discurso/Unijuí, 2006.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983.
  • NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • NIETZSCHE, F. Schopenhauer como Educador: Considerações Extemporâneas III. Tradução de Clademir Luís Araldi. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.
  • SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. In. __________ Sämtliche Werke. (abrev. SW) Editadas e comentadas criticamente por Arthur Hübscher, Wiesbaden: F. A. Brockhaus, 1972. 7 vols.
  • SCHOPENHAUER, A. Sobre a ética. (Capítulos 8-15 de Parerga e Paralipomena). Organização e tradução de Flamarion C. Ramos. São Paulo: Hedra, 2012.
  • SPIERLING, Volker. Materialen zu Schopenhauers Die Welt als Wille und Vorstellung. Frankfurt am Main: Surkhamp, 1984,
  • SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Primeiro tomo. Tradução de Jair Barboza. 2ª. Edição, São Paulo: Unesp, 2015a.
  • SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, Segundo tomo: Suplementos aos quatro livros do primeiro tomo. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015b.
  • 1
    Fazio, D. “La scuola di Schopenhauer. I contesti”. In: La scuola di Schopenhauer. Testi e contesti. a cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento, Lecce: Pensa Multimedia, 2009, pp. 15 e 16.
  • 2
    Esse entusiasmo é relatado especialmente num texto de 1867 chamado “Olhar retrospectivo dos meus dois anos em Lipsia”, que narra a descoberta da filosofia de Schopenhauer em 1865. A versão consultada está presente em La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento. Lecce: Pensa Multimedia, 2009, pp. 443-4, traduzida por G. Campioni e M. Carpitella.
  • 3
    Cito o fragmento a partir da versão presente na coletânea organizada por Volker Spierling, Materialen zu Schopenhauers Die Welt als Wille und VorstellungSPIERLING, Volker. Materialen zu Schopenhauers Die Welt als Wille und Vorstellung. Frankfurt am Main: Surkhamp, 1984,. Frankfurt am Main: Surkhamp, 1984, pp. 253-62. Foram consultadas também as versões em inglês, presente como apêndice do livro Willing and Nothingness. Schopenhauer als Nietzsche Educator (Oxford, Clarendon Press, 1998JANAWYA, C. (org) Willing and Nothingness. Schopenhauer as Nietzsche’s Educator. Oxford: Clarendon Press, 1998).), organizado por Christopher Janaway, que também traduziu o texto, e a versão italiana presente em: La scuola di Schopenhauer: testi e contestiFAZIO, D. La scuola di Schopenhauer: testi e contesti. A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento. Lecce: Pensa Multimedia, 2009.. A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell’Università del Salento. Lecce: Pensa Multimedia, 2009, pp. 445-552, traduzida por G. Campioni e M. Carpitella.
  • 4
    Esse aspecto da leitura crítica de Nietzsche foi profundamente analisado por Sandro Barbera no artigo “Um sentido e incontáveis hieróglifos. Alguns motivos da polêmica de Nietzsche com Schopenhauer nos tempos de Leipzig e de Basileia”. In: Cadernos Nietzsche, 27, 2010BARBERA, S. “Um sentido e incontáveis hieróglifos. Alguns motivos da polêmica de Nietzsche com Schopenhauer nos tempos de Leipzig e de Basileia”. In: Cadernos Nietzsche, n. 27, 2010, p. 13-50., pp. 13 – 50. Barbera aponta a influência dos textos de Rudolf Haym nessa leitura crítica do jovem Nietzsche.
  • 5
    O juízo de valor diz o quanto vale a vida daquele que o enuncia. Assim, o juízo de condenação da existência é o juízo dos julgados e condenados pela vida: “Moral, como foi entendida até agora – como ultimamente foi ainda formulada por Schopenhauer, como ‘negação da vontade de vida’ - é o próprio instinto de décadence, que faz de si um imperativo: ela diz:”Vai ao fundo!“* – ela é o juízo dos condenados...” (GD/CI, Moral como contranatureza, 5). Obras Incompletas.* Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Coleção “Os pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 3ª ed., 1983NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983., p. 333. A nota de Rubens Rodrigues Torres Filho aqui é esclarecedora: “Das Urteil Verurteilter – o jogo de palavras não tem equivalente em português; entende-se: o juízo dos que foram julgados e condenados (pela vida)”.
  • 6
    WWV, § 54, SW, II, p. 366.
  • 7
    Cf. R. Malter, Arthur Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-holzboog, 1991, p. 39, nota: “Com a ideia da autoafirmação e da autonegação da vontade, Schopenhauer prestou o grande serviço de ter colocado pela primeira vez o problema do valor da existência humana”.
  • 8
    “Bei erreichter Selbsterkenntniß Bejahung und Verneinung des Willens zum Leben”. A tradução de Jair Barboza troca a conjução “e” por “ou”. Cf, Schopenhauer, 2015, p. 311.
  • 9
    Ou “juízo de danação”. Esse termo, embora o tenhamos usado a partir da referência a Nietzsche, se encontra no próprio Schopenhauer. Cf. WWV, E., Cap. 46, p. 659.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2023
  • Aceito
    13 Dez 2023
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