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Relação entre educação, cultura e vida para o professor Nietzsche

The relationship between Education, Culture and life for Nietzsche as a teacher

Resumo:

As reflexões de Nietzsche sobre a educação e a cultura alemã de sua época surgem no contexto em que ele, como professor, está envolvido diretamente com essas questões. Elas podem ser encontradas especialmente em dois trabalhos desse período: nas Conferências sobre o futuro de nossos estabelecimentos de formação, de 1872, e na Terceira Consideração Extemporânea: Schopenhauer como educador, de 1874. Interessa-nos, nesses textos, identificar as críticas que Nietzsche faz à educação de seu tempo e analisar sua “proposta educativa” em que educação, vida e cultura se encontram estreitamente vinculadas a ponto de promoveram uma cultura autêntica.

Palavras-chave:
Cultura; educação; vida; filisteu da cultura; filósofo-educador

Abstract:

Nietzsche's reflections on German education and culture of his time arise in the context in which he, as a teacher, is directly involved with these issues. They can be found especially in two works from this period: nas Anti-Education: On the Future of Our Educational Institutions, de 1872, e na Schopenhauer as Educator, de 1874. In these texts, we are interested in identifying the criticisms that Nietzsche makes to the education of his time and to analyze his “educational proposal” in which education, life and culture are closely linked to the point of promoting an authentic culture.

Palavras-chave:
Culture; Education; Life; Cultural Philistine; Philosophy of education

Nietzsche inicia sua carreira docente em 19 de abril de 1869, com apenas 24 anos de idade, nomeado como professor de filologia clássica na Universidade da Basileia, atividade que se estenderá por dez anos. Em atenção às exigências da docência, tanto da Universidade como do Pädagogium1 1 O Pädagogium era o nível intermediário entre os seis anos do ginásio e a universidade, equivalente a uma espécie de nível secundário ou médio no Brasil, e consistia, no seu todo, em três anos de curso, divididos semestralmente. Na Universidade da Basileia, os docentes da faculdade de Filosofia tinham de lecionar também às classes superiores do Pädagogium. Nietzsche dava aulas nos últimos semestres, numa média de seis horas semanais. , o jovem professor se impõe uma rotina de trabalho intensa2 2 Nietzsche relata um pouco de sua intensa rotina em diversas cartas que envia nos primeiros meses como docente. Na carta à Friedrich Ritschl, em 10 de maio de 1869, escreve: “A cada manhã da semana faço minha primeira preleção às sete horas da manhã - nos três primeiros dias, sobre a história da poesia lírica grega, e nos três últimos, sobre as Coéforas, de Ésquilo. A segunda-feira traz também o seminário, que organizei conforme o seu esquema. [...] Às terças e sextas dou duas aulas no ‘Pädagogium’; às quartas e quintas, apenas uma: faço isso agora com prazer” (http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869,3; tradução conforme Markus A. Hediger in Janz, 2016, p. 267). Conferir também as cartas a Elisabeth (29/05/1869) e a Paul Deussen (início de julho de 1869). Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869. que resultou em uma série de cursos, palestras, preleções e conferências. Isso explica, de certo modo, sua hesitação e preocupação diante da “pesada e opressiva atmosfera de deveres e obrigações” que a nova profissão lhe reservava3 3 Cf. carta a Gersdorff (11/04/1869), escrita dias antes de ocupar seu cargo). Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869,632. . Nessa carta a Gersdorff, é possível ver, por um lado, sua preocupação com os perigos decorrentes da ocupação diária como professor, como a concentração do pensamento em certos conhecimentos e problemas, da erudição especializada, do filisteísmo, que ameaçam a liberdade de pensamento e o senso filosófico. Ele diz: “Zeus e todas as musas me preservem de ser filisteu, homem abandonado pelas musas, homem de rebanho!”. Por outro lado, é visível também sua preocupação e crítica ao sistema educacional alemão de sua época, que, no intuito de formar o “homem erudito”, oferece uma formação histórica que separa vida e pensamento, cultura e vida, reduzindo o conhecimento a uma busca insaciável por mais saber e não a serviço de uma melhor forma de vida4 4 Cf. carta a Gersdorff de 11/04/1869. Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869,632. .

Recém iniciado na profissão, NietzscheNIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Edição organizada por G. Colli e M. Montinari. Berlin: Walter de Gruyter & DTV, 1988. 15 vol. se declara contra a erudição acadêmica, a cultura enciclopédica e livresca que orientava o sistema educacional da época, inclusive aquela na qual ele fora formado. Entende que cultura e educação estão entrelaçadas e desempenham um papel fundamental no desenvolvimento do homem. Defende uma educação ancorada nas experiências da vida de cada indivíduo e que promova o desenvolvimento pleno de suas potencialidades, sejam elas intelectuais, artísticas emotivas ou físicas. Nesse contexto, ele alerta para os perigos do excesso de um sentido histórico na educação, que acaba por retirar do futuro as suas possibilidades por não estar vinculado às necessidades da existência. Ressalta que a cultura histórica é importante na medida em que for dominada por outra força mais elevada, a vida.

Desde o início, ele sonha em ser mais que um simples professor, mais que “um instrutor de bons filólogos”, um porta voz da sabedoria da humanidade, um transmissor de conhecimentos. Preocupado com a geração vindoura, ele deseja ser um verdadeiro mestre que, a exemplo de Schopenhauer, seja “capaz de elevar alguém acima da insuficiência da atualidade e de ensinar novamente a ser simples e honesto no pensamento e na vida” (SE/Co. Ext. III 2, KSA 1.346)5 5 Conforme tradução de Noéli C. de Melo Sobrinho, in Nietzsche, 2004. Todas as citações de BA/EE e SE/Co. Ext. III são conforme esse tradutor, a partir de agora NCMS. . Um tanto pessimista em relação à filosofia universitária de sua época, não acredita que seja um ambiente de formação de indivíduos autênticos e de florescimento de coisas novas, no qual ele não pretende permanecer por muito tempo, como manifesta numa carta a Rohde, em 15 de dezembro de 1870: “Só seremos verdadeiros mestres se usarmos de todas as alavancas possíveis para nos arrancar desta atmosfera e se formos realmente homens e não apenas intelectuais, mas sobretudo homens superiores” 6 6 Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1870,113. . Ele está consciente, portanto, que não se trata de tarefa educativa fácil, mas um trabalho árduo, lento e penoso e, acima de tudo, necessário, para o qual ele se dedicará para o seu aprendizado da profissão de educador.

As reflexões de Nietzsche sobre a educação e a cultura alemã de sua época surgem no contexto em que ele, como professor, está envolvido diretamente com essas questões, de modo especial em relação ao ensino secundário e superior. Escolhemos dois trabalhos desse período que acreditamos ilustrar bem o modo como ele constrói essas suas primeiras reflexões: as conferências “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de formação”7 7 Doravante Conferências. , proferidas na Universidade da Basileia no ano de 18728 8 Trata-se aqui das cinco conferências escritas por Nietzsche a respeito do futuro dos estabelecimentos de ensino alemães e ministradas na Universidade de Basileia, a convite da Sociedade Acadêmica de Basileia, no início do ano de 1872, entre os meses de janeiro e março. Nietzsche anunciou seis palestras e tem esboços para uma sétima, mas só foram realizadas cinco. , e a Terceira Consideração Extemporânea: Schopenhauer como educador, de 1874. Interessa-nos nesses textos, identificar as críticas que NietzscheNIETZSCHE, F. W. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB). D’IorioPaolo (Org.). Paris: Nietzsche Source, 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/ekgwb . Acesso em: 10 mai. 2022.
http://www.nietzschesource.org/ekgwb...
faz à educação e ensino de filosofia de seu tempo e analisar sua “proposta educativa” em que educação, vida e cultura se encontram estreitamente vinculadas a ponto de promoveram uma cultura autêntica. Como o próprio filósofo adverte no prefácio das conferências, não é seu objetivo elaborar quadros e novos horários para o sistema educativo, ou profetizar o futuro da educação e dos métodos educacionais, mas refletir sobre as questões essenciais da cultura, se colocando a serviço de uma cultura renovada e purificada, para a qual se produzirão novos quadros e novas propostas educativas (cf. BA/EE, Prefácio e Segundo Prefácio, KSA 1.647-648).

Nas Conferências, Nietzsche demonstra sua profunda preocupação com a formação cultural presente nas instituições de educação alemãs (da escola primária, da escola técnica, do ginásio e da universidade), esclarecendo que é do futuro destas que pretende tratar. Ao examinar o sistema educacional, ele identifica duas correntes, aparentemente opostas, mas unidas em seus resultados, que dominam o ensino de sua época em nome de uma “modernização” e “atualização”, distanciando-o do ideal de formação que presidiu sua fundação: a tendência à extensão e ampliação máxima da cultura e a tendência à redução e enfraquecimento da cultura. Para ele, não temos o direito de silenciar sobre esses métodos antinaturais que direcionam a educação, que promovem o empobrecimento do ensino e o enfraquecimento da cultura. E ele se propõe a falar sobre o futuro desses estabelecimentos justamente por acreditar em sua purificação, em seu renascimento, mas é preciso trabalhar para isso (cf. BA/EE, Prefácio e Segundo Prefácio, KSA 1.645). Vejamos o que promovem essas correntes.

A primeira corrente, ampliação da cultura, no intuito de tornar a cultura acessível a todos, cria uma quantidade excessiva de estabelecimentos de ensino superior, seguido do aumento no número de professores. A educação moderna substituiu o autêntico ideal de educadores, a Bildung, por uma abstração científica cujo modelo de educação, a forma predominante de se aprender, é o de memorização. Tendo como fim a utilidade, o lucro, oferece-se uma “formação” rápida, almejando ter a seu serviço funcionários eficientes e discentes dóceis; estimula-se, aliás, a escolha apressada de uma profissão, sem que a maturidade e a autonomia propiciada por uma concepção de ideal entrem em consideração, para “se tornar um ser que ganha muito dinheiro”. A serviço dessa produtividade, a tarefa da cultura seria então criar “homens tão correntes” quanto possível, no sentido que se fala de moeda corrente (cf. BA/EE, Conferência I, KSA 1.667-668). “O máximo de conhecimento e cultura possível - portanto o máximo de produção e necessidades possível -, portanto o máximo de felicidade possível” (BA/EE, Conferência I, KSA 1.667). Entretanto, ao considerar sua abrangência, Nietzsche analisa que essa cultura universal traz consequências desastrosas para culturas diferenciadas, ao seduzir a população com a linguagem de fábrica e submeter tudo às leis da oferta e da procura. Tudo é reduzido ao menor denominador, produzindo-se um nivelamento a ponto de excluir tudo o que é grande, enfraquecendo a cultura (cf. BA/EE, Conferência III, KSA 1.701).

A segunda corrente, aparentemente contrária à primeira, promove a redução e o enfraquecimento da cultura ao exigir que ela abandone suas mais elevadas pretensões de soberania e se especialize, submetendo-se a uma outra forma de vida, especialmente a do Estado. A divisão das ciências promove a especialização em uma determinada área, sem levar em conta as demais, distanciando-se cada vez mais de uma “verdadeira cultura”. Para cada campo da ciência há um douto especializado, que “como um operário de fábrica, não faz senão fabricar certo parafuso ou certo cabo para uma ferramenta ou uma máquina determinadas” (BA/EE, Conferência I, KSA 1.670). Os críticos de arte e literatura passaram a acreditar-se senhores da cultura, achando-se possuidores da doutrina que deveria nortear a produção cultural. “Fiel às pequenas coisas” e ao Estado, o erudito é sinônimo do homem culto, inclusive, a sua ignorância em relação às demais áreas, por estar além dos limites da sua disciplina, é tomada como sinal de uma nobre sobriedade. Mais interessados na ciência do que na humanidade, os eruditos, os "filisteus da cultura”9 9 Em suas duas primeiras extemporâneas: David Strauss, o devoto e o escritor e Da utilidade e desvantagem da história para a vida, Nietzsche utiliza a expressão “filisteus da cultura”, assim definida por ele: O ‘filisteu’ era uma personagem de bom-senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais. [...] Há muito, os acadêmicos e os críticos de arte e literatura estariam trilhando o mesmo caminho; usavam como critério de avaliação essa balança de mercadores. [...] Fizeram da cultura algo venal, puseram-na à venda, submeteram-na às leis que regem as relações comerciais” (MARTON, 1999, p. 31). , esquecem que sua autêntica tarefa era de educar o homem; incapazes de criar, limitam-se à imitação e ao consumo. Por obra deles, a cultura torna-se venal, um produto a ser consumido, que deve ter uma etiqueta e um preço (cf. BA/EE, Conferência I, KSA 1.670).

Para Nietzsche, ambas as tendências pedagógicas (ampliação e redução) conduzem ao perecimento da cultura, pois tomam a cultura como acessório ou como algo inalcançável pelos alunos. Forma-se um determinado público medíocre que encontra no jornal seu ponto de confluência. É no jornal que culmina o desígnio particular que a época moderna tem sobre a cultura: “O jornalista, o senhor do momento, tomou o lugar do grande gênio, do guia estabelecido para sempre, daquele que livra do momento atual”, tornando-se paradigma da cultura (cf. BA/EE, Conferência I, KSA 1.671). Assim, a cultura ampliada, a cultura especializada e a cultura jornalística se completam para formar uma só e mesma pseudocultura. A tarefa jornalística gera por excelência o ocaso da profundidade e gesta irrefreadamente a superficialidade. Elevados à condição de “modelo”, são uma “tropa” quase sacrossanta, que acredita “que sua cultura pessoal é o fruto mais maduro e belo desse tempo, até mesmo de todos os tempos”, e quer se apoderar das horas de lazer e de digestão do homem moderno, isto é, dos momentos que ele consagra à “cultura”, para sepultá-lo sob montes de papel impresso (cf. DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.159-164). É no jornal que os chamados eruditos (especialistas) irão divulgar seus pretensos saberes para o público e é pelo jornal que muitas pessoas se consideram informadas. Eis todos os ingredientes para a formação de uma “pseudocultura”, que Nietzsche irá chamar de “barbárie cultivada”, pois a “cultura universal é a barbárie” (BA/EE, Conferência I, KSA 1.668).

Embora possa parecer absurda a crítica de Nietzsche à cultura alemã diante de uma Alemanha vitoriosa após a guerra de 187010 10 A Guerra Franco-Prussiana ou Guerra Franco-Germânica (19 de julho de 1870 - 10 de maio de 1871) foi um conflito ocorrido entre França e o Reino da Prússia no final do século XIX. Durante o conflito, a Prússia recebeu apoio da Confederação da Alemanha do Norte, da qual fazia parte, e dos estados do Baden, Württemberg e Bavária. A vitória incontestável dos alemães marcou o último capítulo da unificação alemã sob o comando de Guilherme I da Prússia. Também marcou a queda de Napoleão III e do sistema monárquico na França, com o fim do Segundo Império e sua substituição pela Terceira República Francesa. Também como resultado da guerra ocorreu a anexação da maior parte do território da Alsácia-Lorena pela Prússia, território que ficou em união com a Alemanha até o fim da Primeira Guerra Mundial. e com um considerado desenvolvimento cultural, ela decorre de sua constatação do abandono da formação humanista em prol de uma formação cientificista, que visava à formação de homens úteis e rentáveis, economicamente úteis e politicamente subordinados, reduzindo, assim, tanto a educação quanto a cultura a mercadorias e entretenimento. As críticas de Nietzsche têm como ponto de partida a constatação do antagonismo entre o desenvolvimento econômico e político e o desenvolvimento cultural da Alemanha. Positivamente, indica-se que um vive a expensas do outro. Assim, a decadência da universidade nada mais é que o reflexo da decadência da cultura alemã, por força de uma decisão pelo desenvolvimento político-econômico. Por essa razão, Nietzsche voltar-se-á, com máxima virulência, contra a subordinação da educação aos ditames do Estado.

Se nos voltarmos ao contexto histórico, a Alemanha do final do século XVIII, comparada às outras potências europeias, como Inglaterra e França, encontrava-se numa situação de extremo atraso. Enquanto elas experimentavam o auge da Revolução Industrial, com uma classe burguesa forte e representativa, a Alemanha se caracterizava por uma economia agrária, fragmentada politicamente, com inúmeros principados independentes e isolados do restante da Europa. No entanto, embora o processo de unificação política e industrialização econômica da Alemanha tenha sido tardio, ele se desenvolveu num ritmo acelerado. Essa situação gerou um sentimento de inferioridade entre os intelectuais alemães da época, que se viam distantes do ideal de uma cultura forte e buscaram superar essa situação por meio de uma série de projetos culturais que promoveriam uma renovação cultural da Alemanha, tomando como modelo a Antiguidade grega. Era a esperança de uma renovação do espírito alemão a partir da harmonia estética presente nas artes gregas11 11 Cf. Ringer, 2000, p. 33. . O próprio Nietzsche se insere, a seu modo, nesse projeto de política cultural, com sua primeira obra O Nascimento da Tragédia.

Nesse cenário de rápido desenvolvimento econômico e renovação cultural, a educação será valorizada e encarregada de formar o novo homem para esta nova sociedade, a partir do contato com as fontes reverenciáveis da Antiguidade. Entre os reformadores educacionais alemães era bastante corrente a ideia de que a educação deveria promover o crescimento autônomo e integral de uma personalidade única. Como observa Ringer (2000RINGER, F. K. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000., p. 33), a reconstrução da nação alemã e a formação da moderna cultura alemã seriam possibilitadas pela reforma na concepção de educação, por meio de programas educativos. No entanto, a educação implicava claramente em algo a mais que a formação intelectual. Nesse contexto, a educação assume o sentido de Bildung, formação, cultivo de si. Esse preciso sentido ultrapassa o da mera educação (Erziehung) vigente, como mera instrução ou capacitação específica. Bildung pressupõe autodesenvolvimento, autoformação, que se conquistaria pelo desenvolvimento da emancipação individual, que não é adquirido somente por meio da educação escolar. Ringer (2000, p. 95) observa que o próprio ideal de educação dos mandarins12 12 O termo “mandarim” refere-se às classes “cultas” alemãs de modo geral, mais especificamente aos professores universitários. De acordo com Ringer (2000, p. 95), a elite cultural teve um papel de extrema importância para a sociedade alemã moderna, o que permitiu formular uma nova história intelectual alemã. Havia, portanto, uma íntima relação entre a política e a vida intelectual alemã da época. , desenvolvido como a antítese direta do conhecimento prático, vinha expresso nas palavras Bildung (formação, educação) e Kultur (cultura), termos estes que aparecem pela primeira vez na Alemanha durante a revivescência cultural no final do século XVIII.

No entanto, com o desenvolvimento do capitalismo monopolista, a educação perderá o sentido de Bildung, formação, e não terá mais um caráter formativo, mas instrutivo, reprodutivo e estendido a todos, o que Nietzsche chamará de uma pseudoformação. Por meio da ampliação da cultura por um lado, e a redução e enfraquecimento, por outro, a formação cultural entrou em um processo de decadência, em que a cultura passou a ser compreendida enquanto mercadoria e a própria apropriação subjetiva da cultura foi submetida às necessidades do mercado. Nietzsche via na cultura e nos valores da modernidade o coroamento da mediocridade e da barbárie, cujo efeito na educação era conservar os estudantes na ignorância das questões filosóficas ligadas ao sentido da existência e alimentar os valores da adequação, integração e conformismo.

Nietzsche denuncia o contraste entre a existência de uma verdadeira cultura e um estado de miséria cultural na Alemanha, percebido por uma minoria, em sua Primeira Extemporânea: David Strauss, o devoto e o escritor (1873). Estabelece-se um mal-entendido com o nome de cultura, que não passa de uma pseudocultura, ou seja, uma cultura que não lhe é própria. Partindo de uma análise do pós-guerra, isto é, do estado de coisas resultante da vitória da Alemanha contra a França, em 1870, Nietzsche identifica que a opinião pública e todos os formadores de opinião erraram ao acreditar que a cultura alemã teria também sua parte nessa vitória, que “o vitorioso tem uma cultura mais forte”. Ora, para o filósofo, o que garantiu a vitória para a Alemanha não foram elementos culturais, mas um saber acumulado sobre a própria guerra: a disciplina militar, a coragem e a determinação natural, a superioridade do comando, a unidade e a obediência das tropas. Quem sabe essa mesma coragem e determinação deveriam concentrar-se novamente, noutro terreno, para que se edificasse uma cultura alemã autêntica. Ademais, se houve uma luta entre as culturas francesa e alemã, observou-se o valor autêntico da cultura vencida, uma vez que o povo alemão continuou imitando os franceses. Nietzsche afirma: “Tenhamos presente que nós dependemos ainda e sempre de Paris por tudo quanto se relaciona à forma, pois não existe, até o momento, cultura alemã original” (DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.164). Ele ainda observa: “Essa ilusão é extremamente prejudicial: não porque é uma ilusão [...], mas porque é suscetível de transformar nossa vitória numa derrota total: a derrota, até mesmo a extirpação do espírito alemão em proveito do ‘Império alemão’” (DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.164).

A conclusão a que Nietzsche chega em Schopenhauer como educador, que retoma algumas ideias já trabalhadas nas Conferências, é que todas as instituições que poderiam promover uma cultura autêntica em sua época, como o Estado, os negociantes, os artistas e os eruditos, não o fizeram por estarem comprometidas com propósitos estranhos e contrários a ela e, ainda pior, fizeram dela sua escrava, utilizando-a em benefício e interesses ou egoísmos próprios. Os negociantes investem e promovem a cultura orientados pela máxima de “extrair do saber felicidade e lucro”. “Quanto mais cultura, mais produção e quanto mais produção, mais lucro e mais felicidade” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.387). A cultura se torna o meio pelo qual o homem conseguiria ganhar dinheiro com maior facilidade, ou seja, a cultura se torna uma moeda de troca. Na mesma lógica, os estabelecimentos modernos de educação objetivam reproduzir esse modelo de homem “corrente”, de tal forma que cada indivíduo possa extrair de seu saber/conhecimento a maior quantidade de felicidade e lucro. Nesse sentido, “toda formação [Bildung] que torna solitário, que coloca fins superiores ao dinheiro e ao ganho e que demanda muito tempo, é aqui desprezada” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.388)13 13 Conforme tradução de NCMS, modificada. .

O Estado, por sua vez, investe na formação e difusão da cultura para adequar os estudantes às instituições existentes, integrá-los através de um aprendizado adequado e de uma profissão oficial, neles gerando, assim, uma atitude geral de conformidade - o que tem, evidentemente, apoio no interesse da classe dos negociantes. Estado e negociantes não são os únicos responsáveis pelo empobrecimento da educação e enfraquecimento da cultura. A cultura é também aparentemente promovida por todos aqueles que, conscientes de seu conteúdo de fealdade e tédio, tem motivos para se camuflar, recorrendo às belas formas. No fim, eles colocam toda arte à serviço de suas necessidades, das necessidades do homem moderno, de se tornarem interessantes, mais cultos. “Ser culto daqui por diante significa: não se permitir observar até que ponto se é miserável e mau, feroz na ambição, insaciável na acumulação, egoísta e desavergonhado na fruição” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.392). Por fim, a ciência também compactua com os egoísmos anteriores ao supor que o homem pode ser em primeiro lugar um “erudito”, o que significa explorar, restritivamente, o homem em proveito de fins epistêmicos e suspender a discussão de seu valor para a vida, de seu sofrimento. Seriam esses homens da ciência guiados pelo “impulso pela verdade”?, interroga Nietzsche. Mas poderia um impulso visar ao conhecimento frio, puro e sem consequência? Em realidade, diz Nietzsche, “o erudito consiste numa rede misturada de impulsos e excitações muito variadas, é um metal impuro por excelência” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.394). O “servidor da verdade”, que se ocupa dessa tarefa sobre-humana de um conhecimento puro e sem consequência, é, na verdade, o resultado de uma maravilhosa mistura de vários impulsos e uma série de inclinações, também muito humanas (cf. SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.394). E embora o erudito se esqueça ou desconheça completamente dessa mistura necessária para sua produção, Nietzsche alerta que é preciso lembrar exatamente disso quando interrogarmos pela sua importância na formação de uma cultura autêntica. O erudito, infecundo em sua essência, tem um ódio natural pelo homem fértil, pelo gênio, que, ao contrário de sua dissecação e compreensão da natureza, querem acrescentar à natureza uma nova natureza viva. Não é, portanto, no saber do erudito que se encontra o saber quanto à finalidade da cultura (cf. SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.394-399).

O diagnóstico a que Nietzsche chega a partir de suas análises é que a Alemanha não tem exatamente uma cultura (Kultur) e nem pode tê-la por meio das instituições que assumiram esse papel na modernidade. O que ela tem é um amontoado de saberes, uma mistura caótica de estilos, um excesso de cultura histórica, em suma, uma cultura artificial que não é expressão direta da vida, da qual poderíamos nos desfazer sem o menor prejuízo, pois é apenas um conjunto de adornos para tirar o homem de seu tédio. Por conseguinte, as condições de nascimento do gênio não são as melhores na época moderna. No entanto, embora seja categórico em afirmar que ainda falta completamente um certo tipo de estabelecimento de ensino (Erziehungsanstalten) na Alemanha, o estabelecimento de formação [Bildungsanstalten], Nietzsche reforça que devemos tê-lo e é esperançoso em afirmar que é possível conseguir, ou seja, é possível reverter essa “barbárie cultivada” que se instaurou na modernidade (cf. BA/EE, Conferência IV, KSA 1.716-717). Mas como tornar isso possível, interroga Nietzsche, se graças ao esforço dos atuais educadores vemos surgir o erudito, o funcionário, o especulador, o filisteu da cultura, ou ainda um ser híbrido de todos estes tipos?

O caminho é ainda pela educação como formação: trabalhar na educação da primeira geração dos que irão construir uma cultura autêntica. Mas é preciso renovar as instituições, ou até inventar novas, substituindo, principalmente, os pensamentos pedagógicos ainda mergulhados na Idade Média. Ao examinar a literatura escolar e pedagógica das últimas décadas, Nietzsche constata que o projeto educativo continua a ser o mesmo: a formação do “homem erudito”, apesar das flutuações dos programas e da violência dos debates. O jovem aprende o que é cultura e não o que é vida, jamais sendo estimulados a fazer suas próprias experiências. A cultura é incorporada sob a forma de conhecimento histórico, experiências memoráveis do tempo passado. Ele cita como exemplo na segunda de suas Conferências, o modo como a língua alemã é ensinada no Ginásio de sua época14 14 O Gymnasium alemão é equivalente aos antigos ginásio e colegial no Brasil, hoje 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental e Ensino Médio. . Em vez de uma educação severa no domínio da língua, o que se encontra é a tendência de lidar com a língua materna através da erudição histórica, ou seja, de utilizá-la como se fosse língua morta, sem nenhuma obrigação em relação ao seu presente ou futuro, o que conduz a uma desfiguração e profanação da língua alemã. Mas a cultura [Bildung] começa, diz ele, “quando se começa a tratar o vivo como vivo, e a tarefa do mestre da cultura [Bildungslehrers] começa justamente pela repressão de um ‘interesse histórico’ que em todo lugar procura penetrar, lá onde é preciso antes de tudo agir adequadamente, e não conhecer” (BA/EE, Conferência II, KSA 1.677).

Nietzsche critica o modo como está estruturado o Gymnasium de sua época, considerando-o um falso estabelecimento de formação, pois não forma nem para cultura e nem para a erudição, mas para o jornalismo. Mas é no Gymnasium que ele deposita sua esperança, pois é o solo de possíveis mudanças, o parâmetro para as demais instituições. Do ponto de vista da cultura, Nietzsche vê na universidade uma culminação da tendência do Gymnasium, e por isso padece do desvio de sua tendência; se o ginásio for purificado e renovado também as universidades serão. “Ou o espírito do ginásio, tal como foi cultivado até agora, tão variegado e tão difícil de compreender, será inteiramente reduzido a pó, ou ele poderá ser fundamentalmente purificado e renovado” (BA/EE, Conferência II, KSA 1.675). Ele observa que pouco resta nesses estabelecimentos daquele propósito humanista ideal de formar homens cultos e a autônomos. A universidade, como está, não é uma instituição cultural e não tem condições de elevar a cultura. Os universitários, numa expressão livre e autônoma, são meros ouvintes deixados à própria sorte, sem um guia, mas adotam uma postura autossuficiente, fundada no voluntarismo, que é muito mais a ilusão da individualidade do que uma autêntica autonomia. A “liberdade acadêmica”, para Nietzsche, transformou-se numa dupla autonomia - de um lado, uma boca autônoma; de outro, orelhas autônomas - pois o aluno pode escolher o que vai ouvir, sem ter necessidade de acreditar, mas também pode tapar o ouvido, quando não quiser ouvir (cf. BA/EE, Conferência V, KSA 1.740).

Isso não quer dizer que Nietzsche não considere importante as escolas técnicas e se oponha à sua implantação e proliferação. Ele as considera necessárias, pois são instituições que se propõem superar as necessidades da vida, elas cumprem seu papel de formar negociantes, funcionários, agrônomos, médicos e técnicos. O que ele critica é o fato de tanto o Gymnasium como a universidade terem se transformado em cursos técnicos e por conta disso transformarem a tarefa educativa em mera instrução. A censura de Nietzsche volta-se para uma educação serva do “ganha-pão e da necessidade”: “toda educação [Erziehung] que deixa vislumbrar no fim de sua trajetória um posto de funcionário ou um ganho material não é uma educação para a cultura [Erziehung zur Bildung] tal como a compreendemos, mas simplesmente uma indicação do caminho que pode percorrer o indivíduo para se salvar e se proteger na luta pela ‘existência’” (BA/EE, Conferência IV, KSA 1.715).

Além de renovar as instituições educacionais, para corrigir a diretriz pedagógica que elevaria a cultura serão imprescindíveis novos educadores, novos filósofos, que possam elevar os jovens acima da insuficiência da atualidade e os conduzir na descoberta de suas potencialidades. O papel da educação é libertar as forças interiores que a natureza colocou nos homens para a sua elevação e realização: as forças instintivas e plásticas que permitem a eles realizar suas obras. Nesse sentido, não haveria a necessidade de se fabular forças para além das que o homem já possui, mas sim promover o cultivo de seu potencial criador, em síntese, o que cada um possui de mais original em si, conforme afirma o filósofo em Ecce homoNIETZSCHE, F. W. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., ao parafrasear Píndaro, com a máxima “chega a ser o que tu és” (cf. EH/EH, Por que sou tão inteligente 9, KSA 6.293-295). É essa a ordem natural das coisas, que, segundo Nietzsche, a cultura moderna trabalha para destruir e negar. Este é o segredo de toda educação:

libertação, remoção de toda erva daninha, entulho, vermes, que querem atingir a delicada semente da planta, jorro de luz e calor, amoroso murmúrio de chuva noturna; ela é imitação e adoração da natureza, onde esta é maternal e misericordiosamente disposta; é aperfeiçoamento da natureza, quando previne e volta para o bem os cruéis e impiedosos acessos, quando estende um véu sobre as exteriorizações de sua disposição madrasta e de sua triste incompreensão (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.341).

Mas como nos encontrar a nós mesmos, pergunta Nietzsche em Schopenhauer como educador? Primeiramente, é preciso assumir as rédeas da existência e se responsabilizar pela sua condução: “Ninguém pode construir para ti a ponte sobre a qual tu precisamente tens que passar sobre o rio da vida, ninguém além de ti mesmo [...]. Há no mundo um único caminho que ninguém pode trilhar, além de ti: para onde conduz ele? Não perguntes, prossegue” (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.340). Como timoneiros de nossa existência, precisamos ouvir nossa consciência que grita: “Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas”. Isso implica em um distanciar-se da cultura artificial, dos hábitos do rebanho, da propensão à preguiça, do temor ao próximo, que faz com que os homens se comportem de acordo com as convenções sociais. A questão é, como nos conhecer para nos livrar do que não somos e encontrar a nós mesmos?

Seria pelo caminho da interiorização que poderíamos nos libertar de tudo aquilo que nos encobre, de nossas inúmeras peles e encontramos nosso “eu” verdadeiro? Para Nietzsche não, nosso verdadeiro “eu” não está escondido nas profundezas de nosso ser, mas, ao contrário, tudo aquilo que nos cerca e acompanha, ao longo de nossa existência, presta testemunho daquilo que somos: “as nossas amizades e os nossos ódios, o nosso olhar e o estreitar da nossa mão, a nossa memória e o nosso esquecimento, os nossos livros e os traços de nossa pena” (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.340). É preciso, sugere Nietzsche, olhar retrospectivamente para sua vida e perguntar:

O que, até agora, verdadeiramente amaste, o que atraiu tua alma, o que a dominou e ao mesmo tempo a felicitou? Coloca diante de ti a série desses venerados objetos, e talvez eles te proporcionem, por sua essência e sucessão, uma lei, uma lei fundamental de teu próprio ti mesmo. Compara esses objetos, vê como um complementa, alarga, sobrepuja, transfigura o outro, como eles formam uma escada, sobre a qual tu até agora te elevaste para ti mesmo; pois tua verdadeira essência não jaz profundamente oculta em ti, mas imensamente acima de ti, ou ao menos sobre aquilo que costumeiramente tomas como o teu eu (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.340-341).

Nesse caminhar ascendente em que nos elevamos a nós mesmos, Nietzsche ressalta o papel importante dos mestres educadores. Aqueles que, como verdadeiros educadores e formadores, podem revelar o que é o verdadeiro sentido originário e a matéria fundamental de nossa essência, algo que não pode ser ensinável e muito menos modelável, de difícil acesso. “Teus educadores conseguem não ser mais que teus libertadores”, ou seja, devem criar as condições para que o educando seja seu próprio educador (cf. SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.340). Nietzsche imagina que essa tarefa poderia ser feita por um filósofo-educador, um verdadeiro filósofo que fosse capaz de conciliar as duas máximas que orientavam a educação da época: “Uma delas exige que o educador deva reconhecer logo o ponto forte de seus alunos e então direcionar precisamente para lá todas as forças e seivas e todo brilho de sol, para auxiliar aquela virtude para uma correta maturação e fecundidade. A outra máxima quer, ao contrário disso, que o educador atraia a si todas as forças existentes, trate delas e as traga para um relacionamento harmonioso” (SE/Co.Ext. III 2, KSA 1.342). São exigências contraditórias, pois, enquanto a primeira focaliza no centro, deixando as outras forças na obscuridade, a segunda coloca todas as forças no mesmo plano buscando uma relação harmoniosa. No entanto, para Nietzsche, não se trata de uma contradição insolúvel, pois é justamente no seio de naturezas fortes, em que o conhecimento, o desejo, o amor, o ódio, procede de um mesmo centro, num harmonioso sistema de movimentos, que se produzem as mais perfeitas configurações. Caberia ao educador filósofo a seguinte tarefa: “Descobrir não somente a força central, mas também evitar que ela atuasse destrutivamente sobre as outras forças: antes pelo contrário, a tarefa de sua educação consistiria, como me parece, reconfigurar o homem para um vivamente móvel sistema de sóis e planetas e conhecer a lei de sua mecânica superior” (SE/Co. Ext. III 2, KSA 1.343).

Nesse sentido, Schopenhauer aparece como um modelo que concentra as características de um guia da cultura, um verdadeiro filósofo e educador, “capaz de elevar alguém acima da insuficiência da atualidade e de ensinar novamente a ser simples e honesto no pensamento e na vida, e, portanto, extemporâneo” (SE/Co. Ext. III 2, KSA 1.346)15 15 Conforme tradução de NCMS, modificada. . Nietzsche toma Schopenhauer como um exemplo raro de pensador que havia mantido a coerência entre vida e obra, apesar dos perigos e dificuldades. Combateu a visão e os princípios dominantes nas instituições oficiais e nos meios acadêmicos, mantendo sua autonomia em relação aos poderes estabelecidos, não se dobrando a eles. Desse modo, a figura de Schopenhauer se erige para Nietzsche como um modelo de filósofo educador que conseguiu evitar os dois maiores perigos da educação para a filosofia: a rendição da cultura às potências dominantes, do Estado e do mercado, que determinam as metas fundamentais da cultura de acordo com os seus interesses; e por não confundir a formação do filósofo com a do homem de ciência e do operário da filosofia, não fazendo concessões à erudição especializada. Assim, não é o acúmulo de conhecimentos que faz de um filósofo um verdadeiro educador, mas seu exemplo, o modo como age diante da sua vida, pois é ele que impulsiona o desenvolvimento crítico e a atividade criadora individual.

As críticas de Schopenhauer à filosofia universitária ensinou a Nietzsche que não é a filosofia concedida pela graça do Estado em sua época, sobretudo enquanto uma erudição histórica, aquela que conduziria a uma efetiva elevação e construção de uma autêntica personalidade e uma elevação da cultura. Ao contrário, ela trabalha contra isso ao ensinar “cinquenta sistemas reduzidos a fórmulas e cinquenta críticas destes sistemas” (SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.417), em suma, o ensino da crítica das palavras pelas palavras. Por sua vez, o exercício crítico de uma filosofia que permite a experiência de se viver de acordo com ela não é ensinado nas universidades. Ao contrário, o instinto natural filosófico é imobilizado pela cultura histórica. Pode-se pensar, falar, escrever, ensinar filosofia, mas tudo isso dentro dos limites da história da filosofia16 16 Cf. Dias, 1993, p. 107. . Assim como Schopenhauer, Nietzsche acha que não existem filósofos nas universidades, mas apenas professores de filosofia, que são úteis enquanto se mantiverem fiéis ao Estado e que, inclusive, trabalham contra a produção e perpetuação de filósofos. Para ele, enquanto continuar a existir esse pseudopensamento reconhecido pelo Estado, a ação grandiosa de uma verdadeira filosofia não terá êxito. “Maldita seja esta união complexa da inteligência de Estado e do magistério”, diz ele (SE/Co.Ext. III 8, KSA 1.418).

Nietzsche conclui que a reflexão filosófica seria o caminho para superar as condições adversas da modernidade e construir uma cultura autêntica e elevada (cf. SE/Co.Ext. III 8, KSA 1.421-427). Mas, para isso, é necessário privar a filosofia de qualquer reconhecimento do Estado e da universidade, pois uma verdadeira cultura não é serva da necessidade e contrapõe-se ao regramento. Suas instituições não podem se voltar somente ao desenvolvimento das habilidades técnico-científicas, ao conhecimento enciclopédico, ou à profissionalização. Ao contrário, elas devem ter um caráter de transformação, de não conformidade com o senso comum, de formação para a emancipação, favorecendo o nascimento dos grandes homens. “A humanidade deve constantemente trabalhar para engendrar os grandes homens - eis aí a sua tarefa, e nenhuma outra” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.383-384), aqueles que deixariam sua marca original para os tempos vindouros e serviriam como parâmetro seguro para avaliar a grandeza de uma época. Consciente dessa tarefa, deve buscar e instaurar as circunstâncias favoráveis que permitiriam o nascimento destes grandes homens, conhecendo o que lhe é hostil e tirando-lhe do caminho (cf. SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.383-404). “Uma cultura da exceção, da experimentação, do risco, do matiz - uma cultura de estufa para as plantas excepcionais não tem direito à existência senão quando há muitas forças para que mesmo o dispêndio se torne ‘econômico’” (NF/FP, 1888, 16 [6], KSA 13.484-485).

Assim, uma cultura poderá tanto propiciar o desenvolvimento das potencialidades do homem e assim elevar a si própria, como impedir esse pleno desenvolvimento de acordo com o tipo de educação que oferece.

Referências

  • DIAS, Rosa Maria. Nietzsche educador 2ª ed. São Paulo: Scipione, 1993.
  • JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia Trad. Markus A. Hediger. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. Vol. I.
  • MARTON, S. Nietzsche: uma filosofia à marteladas. São Paulo: Brasiliense, 1999 (Coleção tudo é história).
  • NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Edição organizada por G. Colli e M. Montinari. Berlin: Walter de Gruyter & DTV, 1988. 15 vol.
  • NIETZSCHE, F. W. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • NIETZSCHE, F. W. Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
  • NIETZSCHE, F. W. Escritos sobre educação Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004.
  • NIETZSCHE, F. W. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe (eKGWB). D’IorioPaolo (Org.). Paris: Nietzsche Source, 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/ekgwb Acesso em: 10 mai. 2022.
    » http://www.nietzschesource.org/ekgwb
  • RINGER, F. K. O declínio dos mandarins alemães São Paulo: Edusp, 2000.
  • 1
    O Pädagogium era o nível intermediário entre os seis anos do ginásio e a universidade, equivalente a uma espécie de nível secundário ou médio no Brasil, e consistia, no seu todo, em três anos de curso, divididos semestralmente. Na Universidade da Basileia, os docentes da faculdade de Filosofia tinham de lecionar também às classes superiores do Pädagogium. Nietzsche dava aulas nos últimos semestres, numa média de seis horas semanais.
  • 2
    Nietzsche relata um pouco de sua intensa rotina em diversas cartas que envia nos primeiros meses como docente. Na carta à Friedrich Ritschl, em 10 de maio de 1869, escreve: “A cada manhã da semana faço minha primeira preleção às sete horas da manhã - nos três primeiros dias, sobre a história da poesia lírica grega, e nos três últimos, sobre as Coéforas, de Ésquilo. A segunda-feira traz também o seminário, que organizei conforme o seu esquema. [...] Às terças e sextas dou duas aulas no ‘Pädagogium’; às quartas e quintas, apenas uma: faço isso agora com prazer” (http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869,3; tradução conforme Markus A. Hediger in Janz, 2016JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia. Trad. Markus A. Hediger. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. Vol. I., p. 267). Conferir também as cartas a Elisabeth (29/05/1869) e a Paul Deussen (início de julho de 1869). Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869.
  • 3
    Cf. carta a Gersdorff (11/04/1869), escrita dias antes de ocupar seu cargo). Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869,632.
  • 4
    Cf. carta a Gersdorff de 11/04/1869. Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1869,632.
  • 5
    Conforme tradução de Noéli C. de Melo SobrinhoNIETZSCHE, F. W. Escritos sobre educação. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004., in Nietzsche, 2004. Todas as citações de BA/EE e SE/Co. Ext. III são conforme esse tradutor, a partir de agora NCMS.
  • 6
    Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1870,113.
  • 7
    Doravante Conferências.
  • 8
    Trata-se aqui das cinco conferências escritas por Nietzsche a respeito do futuro dos estabelecimentos de ensino alemães e ministradas na Universidade de Basileia, a convite da Sociedade Acadêmica de Basileia, no início do ano de 1872, entre os meses de janeiro e março. Nietzsche anunciou seis palestras e tem esboços para uma sétima, mas só foram realizadas cinco.
  • 9
    Em suas duas primeiras extemporâneas: David Strauss, o devoto e o escritor e Da utilidade e desvantagem da história para a vidaNIETZSCHE, F. W. Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. , Nietzsche utiliza a expressão “filisteus da cultura”, assim definida por ele: O ‘filisteu’ era uma personagem de bom-senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais. [...] Há muito, os acadêmicos e os críticos de arte e literatura estariam trilhando o mesmo caminho; usavam como critério de avaliação essa balança de mercadores. [...] Fizeram da cultura algo venal, puseram-na à venda, submeteram-na às leis que regem as relações comerciais” (MARTON, 1999MARTON, S. Nietzsche: uma filosofia à marteladas. São Paulo: Brasiliense, 1999 (Coleção tudo é história)., p. 31).
  • 10
    A Guerra Franco-Prussiana ou Guerra Franco-Germânica (19 de julho de 1870 - 10 de maio de 1871) foi um conflito ocorrido entre França e o Reino da Prússia no final do século XIX. Durante o conflito, a Prússia recebeu apoio da Confederação da Alemanha do Norte, da qual fazia parte, e dos estados do Baden, Württemberg e Bavária. A vitória incontestável dos alemães marcou o último capítulo da unificação alemã sob o comando de Guilherme I da Prússia. Também marcou a queda de Napoleão III e do sistema monárquico na França, com o fim do Segundo Império e sua substituição pela Terceira República Francesa. Também como resultado da guerra ocorreu a anexação da maior parte do território da Alsácia-Lorena pela Prússia, território que ficou em união com a Alemanha até o fim da Primeira Guerra Mundial.
  • 11
    Cf. Ringer, 2000, p. 33.
  • 12
    O termo “mandarim” refere-se às classes “cultas” alemãs de modo geral, mais especificamente aos professores universitários. De acordo com Ringer (2000, p. 95), a elite cultural teve um papel de extrema importância para a sociedade alemã moderna, o que permitiu formular uma nova história intelectual alemã. Havia, portanto, uma íntima relação entre a política e a vida intelectual alemã da época.
  • 13
    Conforme tradução de NCMS, modificada.
  • 14
    O Gymnasium alemão é equivalente aos antigos ginásio e colegial no Brasil, hoje 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental e Ensino Médio.
  • 15
    Conforme tradução de NCMS, modificada.
  • 16
    Cf. Dias, 1993DIAS, Rosa Maria. Nietzsche educador. 2ª ed. São Paulo: Scipione, 1993., p. 107.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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