Acessibilidade / Reportar erro

Pesquisa educacional e experiência humana na perspectiva hermenêutica

Educational research and human experience in the hermeneutic perspective

Investigación educativa y experiencia humana desde la perspectiva hermenéutica

Resumos

O ensaio aborda a fragilidade teórica da pesquisa educacional brasileira, desdobrando a argumentação em três seções. Na primeira, baseando-se em Bernardete Gatti, o texto alinhava alguns traços do diagnóstico sobre as dificuldades e os limites do atual estágio da pesquisa educacional no país. Na segunda, concentra-se em resumir o aspecto nuclear da ambiguidade da experiência ordinária, científica e filosófica. Pretende mostrar que, se tais formas foram acompanhadas por tendências dogmáticas, também apresentam concepções abertas e plurais. Na última parte, procura justificar a experiência hermenêutica gadameriana como perspectiva promissora para ampliar a noção de experiência humana, visando a descortinar um novo olhar sobre a natureza da pesquisa educacional.

Pesquisa Educacional; Epistemologia; Experiência


This essay focuses on the theoretical weakness of Brazilian educational research, deploying its argument in three sections. Based on Bernardete Gatti assessment, the text outlines in the first section some difficulties and limitations of the current stage of educational research. The second section deals with the core aspect of the ambiguity of ordinary, scientific and philosophic experience. It intends to show that, although such forms were accompanied by dogmatic trends, they also embody open and multiple conceptions. The final section presents the Gadamerian hermeneutic experience as a promising approach to broaden the notion of human experience and a potential new perspective on the nature of educational research.

Educational Research; Epistemology; Experience


El ensayo aborda la fragilidad teórica de la investigación educativa brasileña, desdoblando la argumentación en tres secciones. En la primera, basándose en Bernardete Gatti, el texto hilvana algunos rasgos del diagnóstico sobre las dificultades y los límites de la actual fase de la investigación educativa en el país. En la segunda, se concentra en resumir el aspecto nuclear de la ambigüedad de la experiencia ordinaria, científica y filosófica. Pretende mostrar que, si tales formas son acompañadas por tendencias dogmáticas, también presentan concepciones abiertas y plurales. En la última parte, trata de justificar la experiencia hermenéutica gadameriana como perspectiva promisoria para ampliar la noción de experiencia humana, con miras a revelar una nueva mirada sobre la naturaleza de la investigación educativa.

Investigación Educativa; Epistemología; Experiencia.


A pesquisa educacional, em sentido abrangente, investiga a experiência formativa que ocorre entre dois ou mais seres humanos inseridos em um determinado contexto social e natural. Quando se trata de educação, a experiência humana é um conceito-chave do ato investigativo, independentemente da perspectiva teórica ou do procedimento metodológico adotado. Nesse sentido, buscar saber o que ela é e como se constitui torna-se uma questão educacional de primeira grandeza.

Desde sua origem, o saber humano sempre esteve vinculado à curiosidade e à investigação. É lapidar, nesse contexto, a sentença aristotélica formulada já no início da Metafísica: "Todos os homens inclinam-se naturalmente ao saber" (ARISTÓTELES, 1995b______. Metaphysik, Band V. In: ______. Philosophische Schriften in sechs Bänden. Hamburg: Meiner, 1995b., p. 20).1 1 A tradução é de minha autoria, bem como as demais citações, cujo texto original se encontra no idioma alemão, conforme indicado na referência bibliográfica, ao final do ensaio. No âmbito de sua filosofia sistemática, ele associa o saber à investigação das primeiras causas e dos primeiros princípios de tudo o que existe. Contudo, em outros escritos, vincula a necessidade humana de saber, ou seja, o espírito inquiridor, à noção de experiência. Tal é o caso, por exemplo, do Apêndice dos Analíticos posteriores (1995a), no qual Aristóteles descreve como a experiência é produzida e como sua unidade é alcançada a partir de percepções diversas, retendo-se delas características gerais.

Como se pode observar, nesse aspecto da concepção aristotélica mais ampla de experiência já se encontra explícita a tensão profunda entre percepções individuais e sua generalização, a qual cruza a história da tradição cultural ocidental chegando até nossos dias. Por percepções individuais entendo aqui, grosso modo, o particular, o empírico, ou seja, tudo o que é observado e que, portanto, possui relação imediata com nossos sentidos. Por generalização, o esforço teórico de compreender o observado em uma perspectiva mais abrangente, abstraindo-o, inclusive, do próprio contexto no qual é gestado. O fato é que Aristóteles instituiu, a sua própria maneira, os dois polos principais de um procedimento investigativo, o empírico e o teórico, concebendo-os como tensão permanente e inesgotável. O filósofo manteve entre eles uma posição conciliadora, "surpreendentemente indeterminada" (GADAMER, 1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 356).2 2 Esta citação refere-se ao primeiro volume das Gesammelte Werke (Obras escolhidas), no qual consta Wahrheit und Methode (Verdade e método). Como já indicado na nota anterior, todas as traduções do alemão para o português são de minha própria autoria. Ou seja, não só evitou a determinação de um polo sobre o outro como também os conservou em aberto.

No entanto, essa posição "surpreendentemente indeterminada" da noção de experiência é radicalmente rompida, na modernidade, pela vertente tecnicista da ciência, na medida em que provoca a absolutização de seu significado metódico-experimental. A versão moderna de experiência concebe-a como tudo aquilo que pode ser mensurado de acordo com os cânones do modelo físico-matemático. Daí ser inevitável que ao sentido moderno de experiência se vinculem as noções de experimento e medida. Ao proceder desse modo, a ciência moderna, sobretudo aquele modelo que se torna hegemônico no âmbito das ciências naturais, termina por legitimar, por um lado, os aspectos dogmáticos inerentes ao sentido ordinário e comum de experiência, ignorando, por outro, a historicidade que a constitui.

O que se torna amplamente problemático em tal modelo, quando simplesmente transportado ao âmbito das ciências do espírito (Geisteswissenschaften), é que ele objetiva (mensura) aquilo que por princípio não deve ser objetivado, isto é, o próprio ser humano. Querer mensurar o sentido inerente à experiência humana é certamente um dos principais limites do ideal de objetividade, também assumido em parte pela pesquisa educacional. Por isso, persiste, na atualidade, talvez mais ainda do que outrora, o grande desafio de compreender a experiência humana, sobretudo aquela que é expressa como questão educacional, para além dos cânones do procedimento metódico-experimental.

Em síntese, do exposto acima ficam claros dois aspectos: primeiro, que há um vínculo estreito entre esses três elementos, a experiência humana, o saber humano e a curiosidade inquiridora (investigativa). Segundo, que a ciência moderna tendeu cada vez mais a tratar da experiência com base no procedimento metódico-experimental, reduzindo-a ao que pode ser mensurado. Decorre desse segundo aspecto uma dupla consequência: por um lado, mensuração e medida tornam-se forças poderosíssimas do ideal científico de objetividade; por outro, desaparece a historicidade inerente à experiência humana. Ou seja, a esmagadora supremacia do ideal de objetividade ocorre em detrimento nítido da historicidade como elemento constitutivo da condição humana. As repercussões dessa tendência geral ao campo educacional3 3 Emprego "campo educacional" de acordo com o sentido atribuído por Pierre Bourdieu (2003, p. 112) à noção geral de campo como "sistema de relações objetivas entre posições adquiridas em lutas anteriores". Isto é, o campo "é o lugar e o espaço de uma luta concorrencial" que envolve questões de validade, autoridade e competência (BOURDIEU, 2003, p. 112). Zaia Brandão (2010, p. 849-856) oferece um bom exemplo do emprego da noção de campo à pesquisa educacional, especialmente, à sociologia educacional. são imensas. Entre elas está a guinada apressada das pesquisas educacionais na direção do empírico, o qual passa a ser compreendido como um dado que fala por si mesmo ou, na melhor das hipóteses, reduzido ao que pode ser mensurado. O problema é que a concessão excessiva ao empírico ocorre, no mais das vezes, em detrimento dos aspectos teóricos da pesquisa, provocando, em última instância, o enfraquecimento das próprias pretensões de validade do conhecimento educacional.

No presente ensaio, pretendo abordar a problemática da experiência humana como constitutiva do campo educacional. Investigo mais precisamente as seguintes questões: a) Que aspectos comprovam a fragilidade teórica da pesquisa educacional atual? b) Onde repousa a ambiguidade da noção de experiência humana em seu sentido ordinário, científico e filosófico? c) Em que sentido a experiência hermenêutica auxilia a ampliação da noção de experiência que importa diretamente ao campo educacional? Como se pode observar, pressuponho que a perspectiva hermenêutica tem algo a contribuir no debate das pesquisas educacionais atuais e pretendo justificar essa pressuposição na parte final do ensaio.

O diagnóstico feito por vários pesquisadores educacionais brasileiros sobre a fragmentação e a fragilidade das pesquisas educacionais está relacionado com dois fatores interligados entre si: primeiro, com a progressiva renúncia do campo educacional à pergunta pela validade do conhecimento educacional e; segundo, com a diluição da pedagogia em curso de formação de professores, fragilizando-a como área investigativa que pergunta pelo estatuto e pelas condições de validade de seu próprio conhecimento.4 4 É preciso salientar que esse problema não é exclusividade da pedagogia brasileira. No contexto da pedagogia alemã, por exemplo, também há o debate sobre o estatuto da pedagogia e sua diluição em curso de formação de professores. Sobre o estatuto da pedagogia e seu sentido específico como formação humana, ver o ensaio de Ulrich Herrmann (2004, p. 433-449). Não há dúvida de que esses dois fatores também estão na base do enfraquecimento da educação em relação às outras áreas do conhecimento humano. Ademais, a concessão apressada e indevida ao empírico e a transformação da pedagogia em curso de formação de professores tornam evidente sua redução, como investigação da "questão educacional", ao ensino compreendido como procedimento didático, isto é, como técnicas de aprendizagem. Com isso, a pedagogia abre mão de pensar as questões mais amplas e profundas, diretamente relacionadas ao processo educacional formativo do ser humano.5 5 Nesse contexto, é notório o movimento atual de parte do pensamento europeu com o intuito de avaliar os primeiros resultados acadêmicos do Processo de Bolonha. Em estudo recente, Reinhard Brandt (2011) oferece uma visão crítica de conjunto desse processo na universidade alemã. De outra parte, Gert Biesta (2013) também apresenta um diagnóstico breve e preciso do amplo processo em curso de redução das questões educacionais mais amplas a problemas específicos de aprendizagem.

De outra parte, é evidente que somente um esforço coletivo de investigação, sustentado pelo debate público entre as diversas comunidades de investigadores - penso aqui especialmente nos diversos Grupos de Trabalho - GTs - da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd -, será capaz de fazer frente a essa extensa e difícil problemática. É tal debate que fará avançar questões de natureza ética e epistemológica vinculadas à pesquisa educacional. Defendo a hipótese, no âmbito deste ensaio, de que a tradição hermenêutica pode contribuir para a ampliação da noção de experiência, resgatando aquele sentido inerente à condição humana que foi esquecido pela ciência em seu sentido metódico-experimental. Do ponto de vista sistemático, o núcleo de tal contribuição refere-se à ideia da historicidade radicada no caráter de abertura da própria experiência humana que se manifesta na estrutura do diálogo levada a cabo pelo modo inteligente de perguntar. Ou seja, segundo a perspectiva hermenêutica gadameriana, é pelo diálogo movido pela pergunta de caráter aberto e interminável que o ser humano pode projetar-se além do aspecto dogmático inerente aos modos de experiência ordinária, científica e filosófica.

Divido o ensaio em três partes, cada uma delas visando a tratar respectivamente das três perguntas acima formuladas. Na primeira, baseando-me em Bernardete Gatti (2012GATTI, Bernardete. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012.), alinhavo alguns traços do diagnóstico sobre as dificuldades e os limites do atual estágio da pesquisa educacional no país. Deixo aqui propositalmente de lado a avaliação positiva, também necessária, sobre os enormes avanços organizacionais e acadêmicos que a área da educação conquistou nestas últimas décadas. Na segunda parte, concentro-me em resumir o aspecto nuclear da ambiguidade da experiência ordinária, científica e filosófica. Pretendo mostrar que, se tais formas são acompanhadas por tendências dogmáticas, também apresentam concepções abertas e plurais. Na última parte, procuro justificar a experiência hermenêutica gadameriana como perspectiva promissora para alargar a noção de experiência humana e, por conseguinte, como aporte para problematizar a noção de pesquisa educacional centrada no empírico.

Fragilidade teórica da pesquisa educacional

O recurso a algumas fontes revela o quanto o campo da pesquisa educacional é marcado pela dispersão, fragmentação teórica e ausência de fio condutor geral. A observação detida sobre a estrutura organizacional da ANPEd, dividida em grupos de trabalho, a participação em seus encontros nacionais e, sobretudo, a interpretação de parte dos trabalhos que aí são apresentados mostram um quadro desordenado de pesquisa. A fragmentação teórica também é visível no âmbito dos programas de pós-graduação e na produção acadêmica tanto do corpo docente como discente. Uma visão panorâmica dos títulos e resumos de algumas teses e dissertações permite apontar a variedade temática e a ausência de uma diretriz que possa articular minimamente as linhas de pesquisa, oferecendo uma unidade básica aos programas. Da necessária pluralidade temática e teórica, da indispensável liberdade acadêmica e da solidão intelectual produtiva ruma-se a passos largos à liberalidade e à fragmentação caótica, fortalecendo o individualismo possessivo de um perfil acadêmico ao estilo hobbesiano.6 6 Trata-se da justificação do egoísmo individual e social baseado no modelo da liberdade negativa. Sobre isso, ver a interpretação recente de Axel Honneth (2011, p. 36). Esse parece ser o perfil da "nova geração Capes" enfronhada nos ditames do produtivismo acadêmico.7 7 Para uma crítica sobre os rumos que assumiu a avaliação da pós-graduação em educação no Brasil, ver especialmente o ensaio de Antonio Flavio Moreira (2009). Por fim, as revistas especializadas também são um exemplo considerável para a constatação da crescente fragmentação teórica da investigação na área educacional. Em síntese, a ANPEd, os programas de pós-graduação e os periódicos especializados são três fontes respeitáveis para avaliar o que está acontecendo na pesquisa educacional brasileira.

De outra parte, a constatação da fragilidade teórica e da ausência de uma diretriz mínima não deve ser vista como defesa de uma forma única de pensamento ou da exclusividade e monopólio de determinada tradição de pesquisa. Também, no que se refere à reivindicação de uma cultura epistemológica, não se trata de postular o retorno do monismo metodológico ou epistemológico e, menos ainda, da simples reposição dos ideais de objetividade que marcaram o procedimento metódico-experimental da ciência moderna. Trata-se, sim, para enfrentar a predominância irrefletida do empírico e a fragilidade teórica, de repor na agenda da pesquisa educacional o problema da formação de uma cultura epistemológica compatível com as exigências das sociedades contemporâneas, plurais e complexas. Tal cultura precisa amparar-se então em um amplo conceito de razão, falibilista e encarnado social e historicamente, que seja capaz de problematizar o sentido reduzido da noção de experiência humana.

Em ensaio publicado recentemente, Bernardete A. Gatti oferece um diagnóstico sobre alguns aspectos do atual estágio da pesquisa. Gatti (2012GATTI, Bernardete. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012., p. 13) possui o objetivo mais amplo de referir os

[...] conceitos utilizados para caracterizar o campo de estudos em educação, sua polissemia, ambiguidades e [a] complexidade por suas subáreas de pesquisa em variadas abordagens, analisando aspectos que interferem na identificação do campo científico e suas formas investigativas.

Desse objetivo geral destacam-se três aspectos, analisados pela autora ao longo de seu ensaio, que interessam especialmente ao ponto em discussão. O primeiro corrobora o próprio diagnóstico já feito acima da fragilidade teórica do campo. Considerando as exigências de qualidade e excelência acadêmica que estão postas na atualidade, a pesquisa educacional não pode deixar de preocupar-se com a validade e o alcance social do conhecimento produzido, fato que requer do próprio estudo consistência argumentativa para justificar suas propostas e conclusões. Justamente por não formular determinadas perguntas que são indispensáveis à pesquisa e por não empregar de modo preciso os conceitos, o campo da educação torna-se gelatinoso e pulverizado. Nesse contexto, Gatti (2012GATTI, Bernardete. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012., p. 18) pontua claramente uma exigência:

É quase um imperativo para que o campo da pesquisa em educação se afirme e deixe de ser considerada "uma geleia geral", expressão jocosa que ouvimos de profissionais de outros campos, ao se referirem aos termos pouco precisos, pouco explicitados que os profissionais da educação muitas vezes usam.

O segundo aspecto, intimamente relacionado à fragilidade teórica, diz respeito à frouxidão e à imprecisão de conceitos nucleares ao campo educacional, tais como educação, pedagogia, didática e prática de ensino. Gatti esclarece que o sentido desses conceitos é na maioria das vezes pressuposto ou tomado simplesmente como sinônimo, sem que haja a preocupação de problematizar as definições assumidas. Essa imprecisão conceitual dificulta a autoafirmação do campo educacional frente a outros campos científicos, impedindo seu reconhecimento. Segundo a autora: "Há sempre um questionamento, especialmente de cientistas sociais e profissionais da filosofia, sobre o estatuto da educação como campo de conhecimento" (GATTI, 2012GATTI, Bernardete. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012., p. 19). Por outro lado, ambiguidade e fraqueza conceitual desembocam na própria formação inconsistente de novos docentes pesquisadores.

Há, notadamente, a meu ver, fatores estruturais externos mais amplos que estão na origem da fragilidade teórica e da imprecisão conceitual do atual estágio da pesquisa educacional, os quais merecem aprofundamento. Dentre eles, destacam-se a invasão abusiva da economia global de mercado no âmbito educacional e, dela decorrente, a mercantilização (monetarização) crescente do ensino. Esse fator estrutural externo impõe um sentido pragmático e utilitário às instituições de ensino, distanciando-as das especificidades pedagógicas que constituem a relação entre educador e educando. Nesse caso, a relação pedagógica que ocorre em sala de aula exige uma noção de espaço e tempo mais complexa e indeterminada do que aquela requerida pelo modelo do gerenciamento empresarial regido pelas leis do mercado. O modelo da gestão empresarial, especialmente aquele baseado na competição agressiva, torna-se inadequado para dar conta do âmbito da experiência humana que se mostra na forma de processos educativos formais e informais.

Contudo, além de fatores estruturais externos, há um fator interno à própria pesquisa educacional que acentua a fraqueza teórica e a ambiguidade conceitual do campo. Trata-se do esquecimento da pergunta pela validade do conhecimento educacional. A pedagogia, também por influência dos fatores externos, mas, principalmente, pelo fato de ter se transformado exclusivamente em curso de formação de professores, renunciou a sua pretensão de ser um conhecimento investigativo da educação. Nas próprias palavras de Gatti (2012GATTI, Bernardete. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012., p. 18):

O termo pedagogia, entre nós, mais geralmente associado ao curso formativo de professores das séries iniciais, mostra-se nas representações, conceitualmente, distante de seu objeto, tal como Hameline e outros teóricos discutem, com imagem diferente de campo específico de pesquisa e de estudos com foco claro.

Com isso, a pedagogia abre mão do aprofundamento sobre o estatuto epistemológico e metodológico do conhecimento educacional, deixando de pensar sistematicamente sobre as formas de racionalidade que lhe são subjacentes. Ao reduzir-se a curso de formação de professores, além de relegar suas pretensões epistemológicas de fundo, a pedagogia também renuncia à intenção de ser uma pedagogia geral, como foi pensado, por exemplo, entre outros, por Johann Friedrich Herbart (1997HERBART, Johann Friedrich. F. Systemtische Pädagogik. Band 1: Ausgewählte Texte. Weinheim: Belzt, 1997.).8 8 Essa noção de pedagogia geral pensada por J. F. Herbart consolidou-se como tradição pedagógica e teoria da educação na Alemanha. Na atualidade, um de seus principais defensores é Dietrich Benner (2001).

Poderia objetar-se a minha argumentação, neste ponto, que a guinada à formação de professores também é marcada pela reflexão epistemológica acerca da ação docente, pois proporciona, por exemplo, o surgimento de muitas pesquisas sobre a epistemologia do professor reflexivo. Não há como negar esse fato, pois essa temática, amparada em autores como Antonio Nóvoa, Donaldo Schön e Kenneth Zeichner, aparece constantemente, nestes últimos anos, em eventos científicos e periódicos especializados da área. Entretanto, a preocupação específica com a formação do professor reflexivo/pesquisador parece ocorrer, por um lado, em detrimento do aprofundamento de questões epistemológicas e, por outro, como retórica legitimadora das reformas educacionais.

Desse modo, a adoção acrítica da proposta do professor reflexivo pode causar sérios problemas, entre os quais: a) ao se dirigir a reflexão exclusivamente para os problemas da prática pedagógica, assume-se uma postura muito mais adaptativa do que transformadora, preservando justamente aquilo que precisa ser questionado; b) ao se secundarizar o papel da teoria na reflexão pedagógica, termina-se por não fomentar a capacidade do professor de pensar de forma autônoma; c) por fim, ao se reduzir a validade do conhecimento educacional ao critério da aplicabilidade à prática, corre-se o risco de distanciar o professor do tipo de reflexão teórica que, embora não esteja necessariamente orientada a um fim prático imediato, é indispensável para pensar a questão educacional em sentido mais abrangente.9 9 Baseei-me aqui em uma livre reconstrução de Marli André (2001, p. 57). Mutatis mutandis, essa crítica poderia ser estendida também ao movimento da assim denominada epistemologia da prática, tomada como referência para pensar a formação de professores.10 10 Penso aqui em outros autores como, principalmente, Maurice Tardif (2002).

Volto-me agora ao terceiro e último aspecto do diagnóstico de Bernardete Gatti, o qual está relacionado com as formas investigativas. Baseando-se em Beillerot (2000BEILLEROT, Jacky. La recherche en éducation en France: résultats d'enquêtes sur les centres de recherches et les périodiques. Revue Suisse des Sciences de l'Éducation, n. 1, 22 année, Fribourg, Suisse, p. 145-163, 2000.), a autora refere três problemas vinculados a essas formas: a) a complexidade de discursos e abordagens sobre educação; b) as maneiras de proceder nas pesquisas; c) a relação entre pesquisa e demanda social. Depois de analisar cada um deles em separado, destacando a importância de ocupar-se da relação entre pesquisa e demanda social, Gatti (2012GATTI, Bernardete. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012., p. 22) arremata seu raciocínio nos seguintes termos: "Trata-se de consistência na construção do campo educacional e do exercício da crítica - da liberdade de pensar nos limites de métodos robustos". Nesse sentido, a autora elege a consistência argumentativa e o exercício da crítica como dois pilares das formas investigativas e, em sentido lato, da própria pesquisa educacional. Fica claro também, no que se refere às formas investigativas, que o grande desafio é justamente a construção de "métodos robustos", embora a autora não defina o que entende por tal conceito.11 11 Penso que uma discussão adequada sobre o sentido da expressão "métodos robustos" precisa considerar, entre outros aspectos, a historicidade e contextualidade da racionalidade contemporânea e, com ela, a questão da pluralidade epistemológica e metodológica.

Essa breve reconstrução do diagnóstico de Bernardete Gatti permite delinear uma visão panorâmica de algumas características importantes do atual estágio da pesquisa educacional brasileira. Há, contudo, outro fator que não é suficientemente abordado em seu diagnóstico e que, a meu ver, é central para compreender por que a pedagogia deixou progressivamente de conceber-se como campo investigativo, contribuindo decisivamente para o aumento da fragmentação e da fragilidade teórica da pesquisa nessa área. Refiro-me à primazia do empírico em detrimento da dimensão teórica da pesquisa. Segundo Hans-Georg Flickinger (2014FLICKINGER, Hans-Georg. À contramão das atuais correntes pedagógicas. Kassel, Alemanha, 2014. (Ensaio inédito). , p. 1): "Nas últimas décadas observa-se, no entanto, uma forte tendência de sobrevalorizar as questões prático-empíricas da Educação em detrimento de sua reflexão teórica". Assim, a pedagogia precisa retomar sua capacidade teórica de reflexão e vertê-la contra o sentido reduzido de experiência humana, pois somente desse modo poderá enfrentar com amplitude de visão a questão propriamente educacional.

Parece ter se tornado lugar comum na pesquisa educacional brasileira, e também mundial, a ideia de que a investigação com qualidade depende do olhar dirigido ao empírico. De acordo com tal entendimento, sem dialogar com o empírico, a pesquisa educacional perderia já de início sua própria credibilidade. O que está em jogo aqui, obviamente, é o próprio significado de empírico, ou seja, como ele é apreendido (questão metodológica) e como é interpretado (questão epistemológica), orientando-se por qual finalidade (questão ética e política). Tal questionamento mostra de imediato que o empírico não existe por si mesmo nem pode ser tratado de maneira desinteressada. O problema é que, ao promover sua "guinada ao empírico", a pesquisa educacional abandona tendencialmente tais questões (epistemológicas, metodológicas, éticas e políticas), fragilizando com isso suas próprias pretensões.

Um breve contraponto à perspectiva hermenêutica pode ser elucidativo neste momento. Segundo tal perspectiva, o empírico não é simplesmente o resultado das percepções imediatas, como algo pronto para ser catalogado e ordenado. Tampouco é um simples dado que fala por si mesmo, afetando imediatamente o pesquisador e determinando-lhe o que deve ser apreendido. Ao contrário, o empírico é resultado da produção cultural e, no sentido estritamente epistemológico, uma construção teórica, cuja validade brota do consenso provisório que é alcançado pelo diálogo entre pares da comunidade de investigadores. Do ponto de vista hermenêutico, o empírico, por mais "puro" que possa parecer, sempre é produto da experiência humana, mais precisamente, do processo compreensivo que nasce do diálogo entre seres humanos. Voltarei a esse aspecto na parte final do ensaio.

Nesse contexto, um dos limites da pesquisa educacional atual, pelo menos de parte dela, consiste em que sua guinada ao empírico ocorre em detrimento da questão teórica mais ampla, identificando o empírico com o que é dado imediatamente às percepções sensíveis. Ao proceder desse modo, preserva aquele fundo dogmático que está inerente tanto à experiência ordinária como à científica e filosófica. Ou seja, embora esses três âmbitos - ordinário, científico e filosófico - evidentemente diferenciem-se muito entre si, podem assumir, em determinada circunstância, uma semelhança dogmática espantosa. Mas de que dogmatismo se trata? Essa questão é esclarecida quando se considera o sentido ambíguo que cruza o conceito de experiência humana.

Ambiguidade da experiência humana

A pluralidade de sentidos da experiência humana não pode ser concebida de uma única perspectiva nem definida de modo uniforme. Sua redução ao empírico compreendido pelo ideal de objetividade próprio ao procedimento metódico-experimental mostra-se muito limitada às pesquisas educacionais. Na sequência, gostaria de mostrar brevemente em que sentido a ambiguidade cruza esses três tipos de experiência humana: o ordinário, o científico e o filosófico.

A experiência ordinária compreende o vasto leque do fazer humano cotidiano. Diz respeito a tudo o que é realizado espontaneamente, sem necessidade de pensar detidamente, com base em critérios, sobre o que se faz. A experiência cotidiana compreende aqueles modos de ação que consomem a maior parte do tempo do ser humano, direcionados ao atendimento de suas necessidades imediatas. Destacam-se, como exemplos típicos, o ato de dirigir um carro, de levantar-se da cadeira e ir até a geladeira buscando algo para comer ou o ritual diário feito para manter a higiene pessoal. Embora qualquer um desses modos de ação não ocorra fora de um contexto cultural significativo, o fato é que para executá-los o ser humano lança mão de uma racionalidade mecânica, tornando rotina sua própria maneira de proceder. A rotina nada mais é do que o modo de habitualização da experiência, ou seja, a repetição frequente do mesmo modo de ação. Como hábito, a rotina dá origem ao esquema mental fixo, adotado invariavelmente, em qualquer contexto, para satisfação das necessidades ordinárias. Ora, o dogmatismo repousa justamente nessa fixidez invariável do procedimento, acentuando-se quando adotado como norma geral para a solução de problemas que vão além daquela rotina própria à satisfação das necessidades elementares da vida cotidiana.

O contexto pedagógico de sala de aula pode ser tomado como exemplo típico do procedimento habitualizado inerente à experiência ordinária. Mostra-se, nesse caso, por meio da postura do professor que habitualiza (rotiniza) obstinadamente sua própria prática pedagógica. Ao agir desse modo, credita enorme peso a sua experiência prática, adotando-a como referência inquestionável para transmitir o conhecimento que domina e para enfrentar os conflitos que emergem da relação mantida com seus alunos. Quando desafiado ou posto em questão, recorre à certeza de sua prática, a qual também é herdeira de uma tradição, fazendo valer intuitivamente aquele fundo de saber resumido na expressão do "sempre aprendi a fazer assim e por isso agora também o faço". Procura ensinar da maneira como aprendeu de seus pais e de seus professores. Desse modo, faz sua autoridade de professor repousar simplesmente em sua prática pedagógica e na tradição que a sustenta. Em síntese, esse exemplo revela um casamento infeliz entre o aspecto habitualizado da experiência ordinária e a prática pedagógica cotidiana da sala de aula. Tal aliança mantém intocado o aspecto dogmático da consciência espontânea, fomentando a mecanicidade do agir e a incapacidade do pensar.12 12 Para uma abordagem mais detalhada do problema da dogmatização da experiência pedagógica, ver o segundo capítulo de meu livro Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo (DALBOSCO, 2007). Abordo aí o problema no contexto da distinção entre fazer e agir pedagógico.

Mas a consciência espontânea própria à experiência ordinária não se constitui somente de uma racionalidade mecânica, sujeita frequentemente à habitualização e ao dogmatismo. Se fosse assim, seria somente no âmbito da episteme (âmbito do procedimento metódico e do pensar sistemático) que se encontraria a maneira adequada de solucionar nossos problemas. Nesse sentido, toda crítica arrogante e destruidora da consciência espontânea conduz ao intelectualismo cego e vazio. Ao se dirigir o olhar à história da humanidade, ainda no mundo antigo, sobretudo no pensamento do Sócrates histórico, encontra-se a valorização do diálogo vivido que brota da esfera da doxa.13 13 Expressão grega, empregada por Platão para designar a esfera da mera opinião, em contraposição à esfera da episteme, ou seja, do conhecimento científico (filosófico). No caso do Sócrates histórico, contrário ao próprio pensamento de Platão dos Diálogos intermediários, há nitidamente a valorização da doxa (opinião) como fonte do conhecimento veraz. Sócrates concebe, no âmbito dos assuntos humanos, a arte de perguntar e responder como força propulsora do diálogo vivido, atribuindo papel preponderante às perguntas formuladas de modo inteligente. Ora, é essa estrutura aporética do diálogo, cujo sentido maior repousa no pôr-se dialogicamente a caminho sem querer chegar obstinadamente a algum lugar, que será retomada muitos séculos depois pela hermenêutica gadameriana.

Em Wahrheit und Methode (Verdade e método), Gadamer considera válido um aspecto da experiência ordinária que não é científico nem filosófico. Trata-se da perspicácia (Einsicht) do homem experimentado, que é o mais radicalmente não dogmático, "porque tem feito tantas experiências e aprendido muito delas que está particularmente disposto a voltar a fazer novas experiências e continuar aprendendo algo delas" (GADAMER, 1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 361). A perspicácia representa então um sentido autêntico da experiência porque exige o retorno à posição inicial que havia sido assumida de maneira ingênua e cega. Como reconhece Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a), o homem experimentado desenvolve sua sagacidade (argúcia perspicaz), tornando-se um apreciador certeiro, com capacidade de captar e de corresponder adequadamente à situação do momento. Trata-se de um tipo de saber que ele aprende com a experiência de vida e não diretamente no ambiente acadêmico, embora possa ser por ele problematizado. Ora, perspicácia e apreciação certeira também são qualidades indispensáveis de um bom pesquisador, podendo ser ainda mais potencializadas quando confrontadas com a reflexão teórica.

No que se refere à experiência científica, cabe destacar antes de tudo a força poderosa dos métodos experimentais oriundos das ciências naturais. A versão tecnicista da ciência moderna concebe a experiência no sentido metódico-experimental, reduzindo sua definição a algo que pode ser observado e resistente ao teste da verificação empírica. Desse modo, o critério da verificação ancorado na mensurabilidade dos fenômenos é instituído como ideal de objetividade, ao qual a própria noção de experiência deve estar submetida. O procedimento metódico experimental clássico alicerça-se em três passos básicos: observação, experimentação e descrição dos fenômenos, cabendo ao cientista segui-los rigorosamente. Esse procedimento fortalece-se em uma dupla perspectiva: como forma de ordenar o mundo caótico das percepções sensíveis, transformando em objeto o que é percebido, e como modo de apropriar-se das forças naturais. Quanto mais a experiência é regrada experimentalmente, mais o ser humano torna-se senhor de si mesmo e da própria natureza. Daí o enorme esforço investigativo depositado na busca pela regularidade da experiência. O que está pressuposto aqui é o sonho de uma razão soberana e onipotente que, por meio do procedimento metódico-experimental, seria capaz de adquirir controle absoluto de tudo o que vem a seu encontro, não só o mundo físico, mas também o social e cultural.

Essa versão experimental de ciência sofre críticas duras não apenas das ciências humanas, mas também de alguns teóricos das próprias ciências naturais. Em seu estudo Ciência e o mundo moderno (2006), Alfred N. Whitehead, um dos maiores filósofos do século XX, mostra que a ideia de ciência ultrapassa, já em sua origem, aquele sentido experimental acima referido. Além da paciência na observação minuciosa e do interesse apaixonado pelos fatos particulares, também há a crença decidida na ordem das coisas e a igual dedicação à generalização abstrata. Assim arremata Whitehead (2006, p. 34):

A fé na ordem da natureza que tornou possível o crescimento da ciência é um exemplo particular de uma fé mais profunda. Essa fé não pode ser justificada por nenhuma generalização indutiva [...]. Experimentar essa fé é reconhecer que, ao sermos nós mesmos, somos mais do que nós mesmos; reconhecer que nossa experiência, mesmo opaca e incompleta como é, ainda ecoa o mais profundo da realidade.

Embora muitos aspectos do extrato acima possam ser comentados, limito-me a apenas dois: primeiro, além de afirmar a imbricação entre ordem da natureza e fé mais profunda, o autor denuncia o limite da generalização indutiva14 14 A crítica mais séria ao princípio da indução como constitutivo das ciências empíricas foi elaborada por Karl Popper em seu livro A lógica da pesquisa científica. Assim conclui o autor em uma das passagens da referida obra: "Dessa forma, a tentativa de alicerçar o princípio de indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita" (POPPER, 1993, p. 29). como referência para tratar dessa fé. Nesse sentido, a ampliação da ideia de ciência ocorre mediante o reconhecimento de que há um conjunto de coisas inserido no que Whitehead (2006) denomina "fé profunda". O filósofo deixa claro, na passagem citada, que tal fé não se enquadra simplesmente no princípio da indução, ou seja, ela não pode fazer parte das observações empíricas porque está fora do âmbito das percepções sensíveis. O segundo aspecto refere-se à noção de que nossa própria experiência pode fazer ecoar o mais profundo da realidade, desde que seja capaz de ir além da generalização indutiva. Com sua crítica, Whitehead nada mais faz do que indicar os limites do sentido experimental da ciência moderna e, subjacente a ele, da própria noção instrumental de experiência.

Com isso já tenho o suficiente para concluir favoravelmente acerca da pluralidade da ideia de ciência e, sobretudo, dos limites da ciência experimental. Ainda segundo Whitehead (2006, p. 71): "Em outras palavras, a ordem da natureza não pode ser justificada pela mera observação da natureza". Contudo, o que prevaleceu no desenvolvimento científico moderno foi a noção experimental de ciência, desdobrada em suas mais diferentes variantes. Tão estrondoso foi seu sucesso que o ideal de objetividade passou a inspirar tanto a filosofia moderna como as ciências humanas e sociais. O pensador francês Augusto Comte, considerado o fundador da sociologia, serve aqui como exemplo paradigmático, pois busca fundar a nova ciência tomando como modelo as ciências naturais. Ou seja, segundo ele, a física social deveria espelhar-se diretamente na física da natureza. Como se verá a seguir, a hermenêutica já é, como postura intelectual, um esforço de crítica às ciências naturais, não aceitando mais tomá-la como modelo exclusivo de inspiração para pensar a experiência humana.

A mesma ambiguidade que constitui tanto a experiência ordinária como a científica também é encontrada fartamente na filosofia. Antes dela, a tragédia grega talvez tenha sido a experiência mais originária daquilo que Whitehead (2006) denomina "sentido profundo da realidade". A tragédia torna-se referência indispensável para pensar a condição humana, porque, como mostra Martha C. Nussbaum (2009NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Tradução de Ana A. Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), é capaz de assinalar de maneira desconcertante o problema da vulnerabilidade humana.15 15 No referido estudo, Nussbaum está convencida de que a poesia trágica é capaz de revelar algo da condição humana que a filosofia não nos permite acessar. Em suas palavras: "A poesia trágica, assim, pode trazer a uma investigação sobre a fortuna e a bondade humana um conteúdo especial que poderia escapar-nos se nos restringíssemos aos textos filosóficos convencionalmente admitidos" (NUSSBAUM, 2009, p. 13-14). Ora, é a consciência dessa condição trágica inevitável do humano, ou seja, seu estado de fragilidade, que sustenta a postura socrática da humildade (docta ignorantia) e que certamente está na base do espanto filosófico originário. Compreendida assim, a experiência filosófica torna-se uma experiência de liberdade, porque rompe com o mecanicismo inerente à experiência ordinária, conduzindo o ser humano à própria experiência profunda da realidade.16 16 A consciência da própria finitude humana, diretamente vinculada ao problema da morte, talvez seja o principal aspecto que constitui a "experiência profunda da realidade". Em livro publicado recentemente, o filósofo alemão Peter Bieri concebe a dignidade humana, enquanto valor ético central, como reconhecimento da própria finitude (BIERI, 2013, p. 331-373). Tal experiência vem representada, no mundo grego, pelo espanto originário. Como assinala Heidegger (1979HEIDEGGER, Martin. Que é isto - a filosofia? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores)., p. 21): "O espanto é, enquanto páthos, a arkhé 17 17 Arkhé refere-se à origem ou ao princípio de todas as coisas. Deixar-se espantar significa, no sentido filosófico do termo, ir à raiz das coisas, buscando sua origem ou seus princípios. da filosofia".

Mas também em sua origem, no mundo grego, a filosofia nasce com a pretensão de ser um saber absoluto, buscando equivaler-se ao perfeitamente Absoluto. É com essa ambição que se autointitula prima ciência (prothê philosophia), cuja tarefa consiste na investigação dos primeiros princípios e do fundamento último de tudo o que existe. Essa crença conduz à distinção entre sensível e inteligível, delegando ao nous (pensamento puro) o poder exclusivo de pensar o inteligível. Nesse contexto, considerando que não há como se desfazer do sensível, todo o empreendimento consiste em isolá-lo e afastá-lo da atividade especulativa e solitária do nous. Inicia-se aí uma longa tradição que passa por inúmeros filósofos, desaguando, na modernidade, em Georg W. F. Hegel. Seu pensamento representa a síntese mais bem elaborada do idealismo alemão e, por isso, da experiência do pensar filosófico na forma de um sistema especulativo. Na Fenomenologia do espírito, por exemplo, uma das principais obras filosóficas da modernidade, Hegel (2008HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2008.) expõe detalhadamente o movimento empreendido pela consciência, em seus diferentes níveis, desde a certeza sensível até atingir o saber absoluto. Como afirma Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 361): "Por isso, a dialética da experiência precisa terminar na superação de toda a experiência alcançada no saber absoluto, isto é, na identidade completa entre sujeito e objeto". Nessa perspectiva, Hegel compreende a experiência filosófica como a busca permanente pelo saber absoluto, culminando, desse modo, na "onipotência da reflexão" (GADAMER, 1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 348).

Dessa reconstrução esquemática do sentido ambíguo que permeia a experiência ordinária, científica e filosófica gostaria de extrair duas breves conclusões, importantes à sequência de minha reflexão. A primeira conclusão é que a guinada ao empírico assumida pelas pesquisas educacionais brasileiras não problematiza suficientemente o sentido ambíguo da noção de experiência humana que sustenta os processos formativos educacionais. Ao proceder dessa maneira, e essa é a segunda conclusão, as pesquisas não conseguem defrontar-se seriamente com o aspecto dogmático inerente a cada tipo de experiência acima esquematizado. Considerando que a virada ao empírico conduz a pedagogia diretamente às práticas educativas, o risco que se corre aí é o de não questionar o aspecto dogmático da própria prática educativa. Assim, o problema do empírico não é só um problema epistemológico e metodológico intrínseco à natureza da pesquisa, mas também um problema pedagógico de primeira grandeza, uma vez que está diretamente relacionado com os processos educativos e suas respectivas práticas sociais. Ora, sem que o aspecto dogmático da prática educativa seja posto em questão, não é possível, por meio da educação, fazer a "experiência profunda" da realidade.18 18 No contexto da pesquisa sociológica, esse problema é tratado por Pierre Bourdieu (2004) quando esclarece que a justificativa plausível da teoria sociológica depende de sua crítica à espontaneidade desordenada do senso comum. Na obra Ofício de sociólogo (2004), escrita juntamente com Chamboredon e Passeron, Bourdieu trata da "ruptura" do senso comum com base na concepção de que o fato é conquistado contra a ilusão do saber imediato.

Uma abordagem qualitativa do empírico requer - e esse é um dos grandes desafios teóricos da pesquisa educacional - uma reconsideração da noção de experiência humana. De outra parte, não há dúvida de que essa tarefa não é monopólio de uma só tradição intelectual e menos ainda de um só pesquisador. Considerando isso, gostaria de alinhavar a seguir alguns traços da ampliação da ideia de experiência humana com base na noção gadameriana de experiência hermenêutica.

Experiência humana como experiência hermenêutica

Inicio com uma objeção geral que comumente é dirigida pelos críticos à obra Wahrheit und Methode (Verdade e método) (1999a). Gadamer teria elaborado aí, assim soa a crítica, um juízo apenas negativo da ciência moderna, ignorando a ambiguidade que cruza seu conceito. Por desconsiderar os avanços internos das teorias da ciência, o filósofo se deteve somente no enfoque objetivador dos métodos experimentais. O próprio Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 352) parece atestar isso quando afirma: "Não pode ser deixado lugar na ciência à historicidade da experiência." Esse juízo não considera que modernas teorias, como é o caso de Stephen Toulmin (1953) e do próprio Alfred Whitehead (2006) citado acima, já pensam no horizonte da historicidade problemas próprios à ciência, como descoberta, leis da natureza e regularidade. Seria difícil não reconhecer que tais autores levam a sério o problema da historicidade da experiência em suas preocupações teóricas, pois é justamente em seu nome que eles também se tornam críticos do predomínio metódico-experimental na ciência moderna.

Mas essa crítica a Gadamer não invalida sua contribuição decisiva à ampliação da noção de experiência.19 19 Outras iniciativas teóricas também precisam ser levadas em conta como esforço genuíno de ampliação da noção de experiência humana. Gostaria apenas de mencionar duas: o racionalismo crítico de Karl Popper (1993) e a ampla problematização que Michel Foucault (2004) oferece da experiência de si como estética da existência. No âmbito da filosofia educacional brasileira, cabe ressaltar o recente livro publicado por Pedro Pagni (2014). A rigor, é possível extrair das entrelinhas de seu texto ideias que significam seu reconhecimento implícito ao movimento de autocrítica realizado pela própria ciência. Considerando que o vínculo sistemático entre experiência humana, abertura e pergunta é o que me interessa agora, preciso voltar-me diretamente ao seu texto. Reconstruo três elementos que caracterizam a estrutura geral da experiência na perspectiva hermenêutica: o aspecto finito (falível), a abertura e a intersubjetividade (experiência do estranhamento com o outro).

O aspecto falível20 20 O aspecto falível da experiência humana de que fala Gadamer não pode ser confundido com a questão popperiana da falibilidade do conhecimento, embora ambas tenham em comum a crítica ao dogmatismo da razão moderna, tanto em sua versão filosófica como científica. Para Gadamer (1999a), o aspecto falível da experiência humana possui um fundo existencial forte, pois emerge diretamente da condição finita do ser humano. Ou seja, é a admissão de sua historicidade que leva o ser humano a não dogmatizar seu ponto de vista. destaca-se na medida em que assegura que a validade de uma experiência permanece até não ser refutada por outra nova experiência. O que se exige de qualquer ação, indistintamente, é que ela seja constantemente experimentada, tornando insustentável, desse modo, a noção de uma experiência absoluta, com validade definitiva e incondicional. Esse sentido falível de experiência vale, como reconhece o próprio Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 356), tanto para sua "organização científica no sentido moderno [como para a] experiência da vida cotidiana tal como é feita desde sempre". A conclusão é clara: experiência científica e experiência ordinária não possuem validade absoluta. No caso especificamente hermenêutico, como toda experiência precisa passar pelo "teste" do diálogo movido pelo interminável jogo do perguntar e responder, obviamente não pode oferecer um "produto" cabal e definitivo.

De outra parte, a abertura, como traço distintivo da experiência humana, tem uma longa história na tradição hermenêutica, sendo considerada por Martin Heidegger (2008), em Ser e tempo, como importante existencial analítico do ser-aí (Dasein). Embora seja certa a influência de Heidegger na formulação gadameriana,21 21 Cabe lembrar que Gadamer foi aluno de Heidegger e que derivou sua hermenêutica filosófica em grande parte da fenomenologia hermenêutica heideggeriana. Gadamer mesmo documenta tal influência em muitos ensaios, parte dos quais se encontra reunida no volume 10 de suas Gesammelte Werke (1999b). o ponto de partida de Wahrheit und Methode (Verdade e método) (1999a), ao menos da parte que tenho como referência aqui, é outro. Gadamer retira inicialmente o sentido de abertura, como característica central da experiência humana, da problemática aristotélica vinculada à relação entre saber universal e experiência particular. Ele sublinha, nesse contexto, o modo como o próprio Aristóteles deixa obscura a questão. De qualquer sorte, o ponto resume-se à relação entre experimentar (Erfahren) e reter (Behalten) algo daquilo que é experimentado e, por conseguinte, consiste no problema da unidade da experiência. Não é muito difícil perceber a atualidade desse problema, pois contém em germe a tensão entre o empírico e o teórico, ou seja, no âmbito específico da pesquisa, o embate entre as observações particulares e a busca por uma generalização possível.

A posição gadameriana afirma, na continuidade, que a experiência só ocorre de maneira presente nas observações particulares. Como tais observações precisam ser confirmadas e como não se pode fazê-lo em definitivo, elas remetem então para uma nova experiência. Isso é afirmado literalmente pelo autor de Verdade e método nos seguintes termos: "a autenticidade da experiência contém sempre a referência a novas experiências" (GADAMER, 1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 361). Nesse sentido, o caráter de abertura da experiência brota de seu próprio limite, uma vez que a experiência não possui validez absoluta. Tal limite radica, em última instância, na própria condição frágil e vulnerável do ser humano: "A experiência autêntica é aquela na qual o ser humano se torna consciente de sua finitude" (GADAMER, 1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 363). Ora, como a consciência da finitude é base da historicidade, então a experiência autêntica é a experiência da própria historicidade. Na perspectiva hermenêutica, a radicalidade da experiência humana e, portanto, seu aspecto desconcertante, repousa na consciência da historicidade de tudo o que é humano.22 22 A historicidade diz respeito à relação entre ser humano e tempo. Como não posso abordar aqui esse difícil problema, remeto o leitor ao interessante livro Futuro passado, de Reinhart Koselleck (2011).

O aspecto falível e a abertura são duas faces da mesma moeda, constituindo o sentido nuclear da experiência. Como afirma Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 358):

[...] a experiência tem lugar como um acontecer do qual ninguém é dono, que não está determinada pelo peso próprio de uma ou outra observação, senão que nela tudo vem a se ordenar de uma maneira impenetrável.

Vertendo esse pensamento ao campo da pesquisa, é possível inferir que a noção do sujeito pesquisador soberano, capaz de apropriar-se inteiramente da observação e descrevê-la de maneira totalmente isenta simplesmente não existe. Trata-se aqui de um sentido mais profundo de experiência marcado pela historicidade e pela linguagem, as quais, por não se deixarem ser calculadas e manipuladas experimentalmente, contradizem o conhecimento objetivador, desbancando a posição onipotente do sujeito pesquisador. Como marca distintiva da experiência profunda, a linguagem como diálogo abre um horizonte inesgotável de sentido que não pode ser apreendido pelo procedimento objetivador das ciências experimentais.

Contudo, há ainda um terceiro elemento constitutivo da experiência, sem o qual não se poderia compreender o significado da experiência hermenêutica para as pesquisas educacionais e, simultaneamente, tomá-la como crítica aos métodos científicos experimentais. Reporto-me aqui à experiência do tu (die Erfahrung des Du), cuja referência filosófica não é mais Aristóteles, mas Hegel (2008HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2008.). Esse filósofo alemão pensou uma dialética do reconhecimento recíproco que inspirou as teorias da intersubjetividade posteriores, incluindo, entre elas, a própria hermenêutica. O ponto de partida dessa abordagem, que força as ciências do espírito a pensarem além do ideal de objetividade posto pelos métodos experimentais, consiste em tomar o tu (ou seja, o outro) não mais como objeto. Ao se reportar à "experiência do tu", Gadamer apenas está iniciando a reflexão, em Verdade e método, de um tema que será central, nas décadas posteriores, para pensar o problema da intersubjetividade e do reconhecimento do outro.23 23 Para uma abordagem atualizada sobre a questão do outro no campo da educação e, especificamente, da filosofia da educação, ver o livro de Nadja Hermann (2014).

Em todo caso, no contexto específico da obra referida, mediante a presença do outro, os dois aspectos destacados anteriormente - o falível e a abertura - modificam-se profundamente. Assim afirma Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 364, grifos meus): "Como o objeto da experiência tem o mesmo caráter de pessoa, tal experiência transforma-se em um fenômeno moral, da mesma forma que o saber adquirido nessa experiência, ou seja, a compreensão do outro". A conclusão parece trivialmente clara e ao mesmo tempo desconcertante: porque o outro é sujeito e não objeto, a compreensão que dele se faz não pode ocorrer no modo objetivador próprio ao procedimento científico experimental.

No âmbito daquilo que Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a) denomina de experiência do outro, há dois aspectos que interessam ao que estou trabalhando aqui. O primeiro refere-se ao fato de que a compreensão do outro precisa ocorrer de tal modo que o outro não seja aniquilado. Em vez disso, deve deixar em aberto a possibilidade de não só se referir a si mesmo, mas também a uma outra pessoa. Considerando que uma pretensão levantada por alguém sempre pode ser contraposta por outro, isso caracteriza o movimento tensional que constitui o reconhecimento recíproco. O segundo aspecto repousa na historicidade que a relação entre sujeitos (entre as categorias eu e tu) comporta. Como pretensão e contrapretensão não são definitivas, ou seja, como nenhum dos sujeitos envolvidos possui a última palavra, a luta por reconhecimento recíproco é constante e os consensos que resultam daí são provisórios. Nesse contexto, levar-se a sério mutuamente exige estar aberto, pois, como afirma Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 367), "[não] existindo esta mútua abertura, tampouco há vínculo humano autêntico. O fato de se pertencerem uns aos outros põe a exigência de sempre se ouvirem mutuamente". Ou seja, o sentimento de pertença surge da capacidade de escuta, a qual é a base do diálogo autêntico.

Preciso insistir um pouco mais nessa questão da "experiência do tu", embora a reflexão gadameriana em Verdade e método seja ainda muito embrionária. Como núcleo da experiência hermenêutica, ela se torna equivalente à presença do outro e, por isso, contém muitos elementos significativos para pensar não só a pesquisa educacional, mas também a questão educacional em sentido mais vasto. Um desses elementos consiste na experiência do distanciamento e, por conseguinte, do estranhamento. Eu só posso chegar até o outro e incluí-lo autenticamente em meu mundo, ou seja, tomando-o como uma pessoa, na medida em que eu deixar de ser eu mesmo. Como indica Hans-Georg Flickinger (2010, p. 39): "Parece tratar-se de uma situação paradoxal, pois o outro de nós se torna o motivo para a experiência de nós mesmos". Ou seja, aprendemos muito de nós mesmos ao levarmos a sério o processo de estranhamento que o olhar do outro nos provoca.

O fenômeno moral de que antes falava Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a) parece esclarecer-se agora: a consciência da finitude humana conduz à mútua abertura entre os sujeitos. Compreendida como vínculo humano autêntico, a abertura traduz-se em escuta. Essa perspectiva se distancia da relação entre sujeito e objeto que caracteriza a experiência científica em seu sentido experimental, pois o outro não é um objeto nem pode ser reproduzido experimentalmente. Ora, na medida em que a escuta é colocada como o vínculo autêntico entre sujeitos, essa nova fenomenologia moral rompe com a neutralidade exigida pelo ideal do sujeito objetivador. O próprio ideal de objetividade não se sustenta mais quando referido à historicidade definidora da condição humana.

No âmbito da pesquisa, tem-se então o flagrante contraste entre a postura objetivante e a postura ouvinte do sujeito pesquisador: ouvir o outro obviamente não possui nem deve possuir o mesmo sentido que observar e descrever um objeto. Trata-se, nesse caso, de um tipo diferente de experiência daquela que se origina do procedimento metódico-experimental. O processo formativo do sujeito pesquisador requer então, na perspectiva hermenêutica, a capacidade de ouvir o outro. A "observação" transforma-se em escuta e saber observar significa saber escutar. Em síntese, na perspectiva hermenêutica gadameriana, torna-se parte indispensável da "boa" formação do sujeito pesquisador sua abertura para ouvir o outro. Abertura e escuta são dois núcleos fundantes de sua formação.

Alcancei até aqui o resultado de que falibilidade, abertura e intersubjetividade são três aspectos estruturantes da experiência hermenêutica e, por conseguinte, também da pesquisa, conferindo-lhe singularidade em relação ao procedimento metódico-experimental. Tais aspectos preparam o terreno para que a experiência hermenêutica transforme-se em arte da conversação, ou seja, arte do diálogo. Gadamer toma como referência inicial o modelo clássico da dialética platônica, especialmente o procedimento maiêutico socrático alicerçado na pergunta. Sua tese geral é que sem o perguntar o ser humano não pode fazer experiência autêntica. Assim, a abertura que caracteriza o núcleo da experiência hermenêutica assume agora a forma estrutural da pergunta.

Mas o que há de significativo na pergunta que a torna importante não só para a experiência hermenêutica, senão também para a pesquisa educacional? Não posso percorrer agora todos os passos dados em Verdade e método para justificar a importância da pergunta. Gostaria apenas de resumir o essencial em dois tópicos. O primeiro refere-se ao conteúdo da pergunta autêntica, o qual repousa no fato aparentemente simples de que quem pergunta o faz porque deseja saber o que ainda não sabe. Ou seja, o perguntar autêntico origina-se da docta ignorantia, conduzindo à ruptura do aspecto dogmático inerente à experiência humana em suas formas mais variadas, como a ordinária, a científica e a filosófica. Assumir sua ignorância significa aceitar o simples fato de que tanto a experiência ordinária como a científica não possuem a última palavra e, por isso, não podem ser tomadas como critério último de verdade. No caso de ambas, a douta ignorância impede que o empírico seja tomado como algo certo e seguro por si mesmo ou simplesmente para legitimar o que se sabe de antemão. Ora, como afirma Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 380), o sentido originário da pergunta autêntica repousa em sua capacidade de pôr em suspenso o que já se sabe. A pergunta que brota da abertura possibilita então que o sentido do empírico permaneça inesgotável, ou seja, algo a ser permanentemente compreendido e de maneira diferente a cada situação.

O segundo tópico reside no fato de que não existe, para Gadamer, um método próprio para o ato de perguntar, pois a pergunta autêntica não obedece a procedimentos calculados nem se sujeita ao que é determinado rigidamente de antemão. É nesse contexto que se torna plausível sua afirmação de que "o perguntar é mais um sofrer do que um fazer" (GADAMER, 1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 372). Não se trata do ser-capaz-de-fazer (Können) no sentido instrumental, mas de um tipo de sofrimento semelhante à arte da parteira que auxilia no nascimento de um novo ser. Embora não seja geradora direta da vida, a parteira sabe que a sensibilidade e o refinamento de seu trabalho são indispensáveis para que o novo venha ao mundo de maneira menos traumática possível. Mais ainda, ela sabe que com a leveza de sua mão faz parecer fácil à futura mãe os enormes esforços que esta empreende no momento do parto. O erro irreparável da parteira seria o de querer ocupar o lugar da mãe do bebê. Mas, por ser experimentada em sua arte, inspira profunda confiança, deixando a futura mamãe à vontade, quando mostra generoso auxílio sem querer tomar o lugar que a ela naturalmente pertence. Em síntese, a parteira experimentada só interfere quando necessário, deixando o processo do parto fluir naturalmente.24 24 Há aqui um aspecto nuclear do processo formativo educacional humano que a tradição pedagógica trata como educação natural. O caso exemplarmente paradigmático desse tratamento é oferecido por Rousseau no Émile. Ocupei-me dessa temática em meu livro Educação natural em Rousseau: das necessidades das crianças e dos cuidados do adulto (DALBOSCO, 2011).

A metáfora da parteira é propícia para pensar a pesquisa educacional e a condição do pesquisador. No caso específico da pergunta, formulá-la com uma direção inflexivelmente definida já seria obter a resposta antes mesmo de fazer a investigação. Para evitar que o jogo seja decidido antes de ser jogado, é preciso que a pesquisa, como forma de pensamento, tenha a capacidade de manter a pergunta em aberto. Isso Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 372) tem em mente quando afirma: "A arte de perguntar é a arte de seguir perguntando e isso significa que é a arte de pensar". Nessa perspectiva, pesquisar nada mais é do que a arte de continuar pensando, mesmo quando se acredita ter chegado a um resultado satisfatório. Mas como deve ser o pensar? Não deveria ser tomado aqui como uma capacidade abrangente que contemple tanto o pensar em algo como o dirigir-se a si mesmo? Ora, é justamente nesse ponto que pensar e perguntar são fenômenos cooriginários. Gadamer (1999______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.a, p. 381) resume seu ponto de vista, em Verdade e método, com uma frase lapidar: "Quem quer pensar deve perguntar-se." Isso significa, para o contexto de nosso problema, que quem quer pensar por meio da pesquisa precisa abrir-se à dimensão inesgotável que a pergunta autêntica carrega em si mesma, pois interromper a pergunta corresponderia a parar de pensar.

Salta aos olhos o quanto essa indicação hermenêutica do caráter inexaurível da pergunta contribui para a formulação do problema de investigação no âmbito do projeto de pesquisa e da execução da própria investigação. Se a questão de pesquisa não deve receber uma formulação pronta, também as possíveis respostas encontradas não podem ser tomadas como definitivas. Desse modo, a pergunta como aspecto estrutural-hermenêutico da pesquisa tem repercussão direta na própria condição do sujeito pesquisador, exigindo-lhe provisoriedade de suas afirmações. Ao conceber seu trabalho à semelhança da parteira experimentada, o pesquisador não pode tratar o "material" de seu trabalho como se fosse objeto de sua propriedade pessoal. Considerando que o "material" aqui, como já nos alertou Gadamer anteriormente, não é um objeto, mas sim outra pessoa, o pesquisador precisa conduzir sua mão com leveza ainda maior. Ao se deixar inspirar pela arte da parteira experimentada, o pesquisador nada mais faz do que assumir a perspicácia e o tirocínio prático do homem experimentado que sempre está disposto a retomar seus julgamentos iniciais, evitando assim cair na armadilha do dogmatismo que lhe persegue obstinadamente. Do mesmo modo que a parteira, o pesquisador só deve interferir quando necessário, deixando que as mais diferentes formas brotem naturalmente do material investigado.

Para concluir, espero ter deixado claro acima que a perspectiva hermenêutica auxilia a criticar o dogmatismo inerente à experiência humana, chamando-nos atenção à necessária ampliação de seu sentido. Ao insistir na abertura da postura humana e na dimensão inesgotável da pergunta, também torna possível uma compreensão mais aberta e provisória tanto da teoria como da pesquisa. A dúvida que permanece é se esta noção "fraca" de teoria inerente à postura hermenêutica possui força suficiente para desconstruir, por um lado, o relativismo desesperador que domina o cenário cultural contemporâneo e, por outro, a dogmatização do empírico que subjaz às pesquisas educacionais.

  • ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 51-64, 2001.
  • ARISTÓTELES. Organon I-IV: Kategorien - Lehre vom Satz - Lehre vom Schluß oder erste Analytik - Lehre vom Beweis oder zweite Analytik, Band 1. In ARISTÓTELES . Philosophische Schriften in sechs Bänden. Hamburg: Meiner, 1995a.
  • ______. Metaphysik, Band V. In: ______. Philosophische Schriften in sechs Bänden. Hamburg: Meiner, 1995b.
  • BEILLEROT, Jacky. La recherche en éducation en France: résultats d'enquêtes sur les centres de recherches et les périodiques. Revue Suisse des Sciences de l'Éducation, n. 1, 22 année, Fribourg, Suisse, p. 145-163, 2000.
  • BENNER, Dietrich. Allgemeine Pädagogik. Eine systematisch-problem-geschichtliche Einführung in die Grundstruktur pädagogischen Denkens und Handelns. Weinheim/München: Juventa, 2001.
  • BIERI, Peter. Eine Art zu leben. Über die Vielfalt menschlichen Würde. München: Carl Hanser Verlag, 2013.
  • BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem. Educação democrática para um futuro humano. Tradução de Rosaura Eichenberg. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d'Água, 2003.
  • BOURDIEU, Pierre; CHAMBODERON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Tradução de Guilherme J. F. Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2004.
  • BRANDÃO, Zaia. Indagação e convicção: fronteiras entre a ciência e a ideologia., Cadernos de Pesquisa São Paulo, v. 40, n. 141, p. 849-856, 2010.
  • BRANDT, Reinhard. Wozu noch Universitäten? Ein Essay. Hamburg: Meiner, 2011.
  • DALBOSCO, Cláudio. A. Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo. São Paulo: Paulinas, 2007.
  • ______. Educação natural em Rousseau: das necessidades da criança e dos cuidados do adulto. São Paulo: Cortez, 2011.
  • FLICKINGER, Hans-Georg. À contramão das atuais correntes pedagógicas. Kassel, Alemanha, 2014. (Ensaio inédito).
  • ______. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campinas: Autores Associados, 2010.
  • FOUCAULT, Michel. Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke 1. Hermeneutik I. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999a.
  • ______. Gesammelte Werke 10. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999b.
  • GATTI, Bernardete. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 13-34, 2012.
  • HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2008.
  • HEIDEGGER, Martin. Que é isto - a filosofia? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores).
  • ______. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2008.
  • HERBART, Johann Friedrich. F. Systemtische Pädagogik. Band 1: Ausgewählte Texte. Weinheim: Belzt, 1997.
  • HERMANN, Nadja. Ética & educação. Outra sensibilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
  • HERRMANN, Ulrich. Das Allgemeine der Allgemeinen Pädagogik. Bildung und Erziehung, n. 57, p. 433-449, 2004.
  • HONNETH, Axel. Das Recht der Freiheit. Grundriss einer demokratischen Sittlichkeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2011.
  • KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma P. Maas e Carlos A. Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2011.
  • MOREIRA, Antonio Flavio. A cultura da performatividade e a avaliação da pós-graduação em educação no Brasil. Educação em Revista, v. 25, n. 3, p. 23-42, 2009.
  • NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Tradução de Ana A. Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • PAGNI, Pedro Angelo. Experiência estética, formação humana e arte de viver. Desafios filosóficos à educação escolar. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
  • POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leonidas Hesenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 1993.
  • TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • TOULMIN, Stephen. Einführung in die Philosophie der Wissenschaft. Götingen: Vandenhoeck & Ruprecht in Göttingen, 1953.
  • WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. Tradução de Hermann H. Watzlawick. São Paulo: Paulus, 2006.
  • 1
    A tradução é de minha autoria, bem como as demais citações, cujo texto original se encontra no idioma alemão, conforme indicado na referência bibliográfica, ao final do ensaio.
  • 2
    Esta citação refere-se ao primeiro volume das Gesammelte Werke (Obras escolhidas), no qual consta Wahrheit und Methode (Verdade e método). Como já indicado na nota anterior, todas as traduções do alemão para o português são de minha própria autoria.
  • 3
    Emprego "campo educacional" de acordo com o sentido atribuído por Pierre Bourdieu (2003, p. 112) à noção geral de campo como "sistema de relações objetivas entre posições adquiridas em lutas anteriores". Isto é, o campo "é o lugar e o espaço de uma luta concorrencial" que envolve questões de validade, autoridade e competência (BOURDIEU, 2003, p. 112). Zaia Brandão (2010, p. 849-856) oferece um bom exemplo do emprego da noção de campo à pesquisa educacional, especialmente, à sociologia educacional.
  • 4
    É preciso salientar que esse problema não é exclusividade da pedagogia brasileira. No contexto da pedagogia alemã, por exemplo, também há o debate sobre o estatuto da pedagogia e sua diluição em curso de formação de professores. Sobre o estatuto da pedagogia e seu sentido específico como formação humana, ver o ensaio de Ulrich Herrmann (2004, p. 433-449).
  • 5
    Nesse contexto, é notório o movimento atual de parte do pensamento europeu com o intuito de avaliar os primeiros resultados acadêmicos do Processo de Bolonha. Em estudo recente, Reinhard Brandt (2011) oferece uma visão crítica de conjunto desse processo na universidade alemã. De outra parte, Gert Biesta (2013) também apresenta um diagnóstico breve e preciso do amplo processo em curso de redução das questões educacionais mais amplas a problemas específicos de aprendizagem.
  • 6
    Trata-se da justificação do egoísmo individual e social baseado no modelo da liberdade negativa. Sobre isso, ver a interpretação recente de Axel Honneth (2011, p. 36).
  • 7
    Para uma crítica sobre os rumos que assumiu a avaliação da pós-graduação em educação no Brasil, ver especialmente o ensaio de Antonio Flavio Moreira (2009).
  • 8
    Essa noção de pedagogia geral pensada por J. F. Herbart consolidou-se como tradição pedagógica e teoria da educação na Alemanha. Na atualidade, um de seus principais defensores é Dietrich Benner (2001).
  • 9
    Baseei-me aqui em uma livre reconstrução de Marli André (2001, p. 57).
  • 10
    Penso aqui em outros autores como, principalmente, Maurice Tardif (2002).
  • 11
    Penso que uma discussão adequada sobre o sentido da expressão "métodos robustos" precisa considerar, entre outros aspectos, a historicidade e contextualidade da racionalidade contemporânea e, com ela, a questão da pluralidade epistemológica e metodológica.
  • 12
    Para uma abordagem mais detalhada do problema da dogmatização da experiência pedagógica, ver o segundo capítulo de meu livro Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo (DALBOSCO, 2007). Abordo aí o problema no contexto da distinção entre fazer e agir pedagógico.
  • 13
    Expressão grega, empregada por Platão para designar a esfera da mera opinião, em contraposição à esfera da episteme, ou seja, do conhecimento científico (filosófico). No caso do Sócrates histórico, contrário ao próprio pensamento de Platão dos Diálogos intermediários, há nitidamente a valorização da doxa (opinião) como fonte do conhecimento veraz.
  • 14
    A crítica mais séria ao princípio da indução como constitutivo das ciências empíricas foi elaborada por Karl Popper em seu livro A lógica da pesquisa científica. Assim conclui o autor em uma das passagens da referida obra: "Dessa forma, a tentativa de alicerçar o princípio de indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita" (POPPER, 1993, p. 29).
  • 15
    No referido estudo, Nussbaum está convencida de que a poesia trágica é capaz de revelar algo da condição humana que a filosofia não nos permite acessar. Em suas palavras: "A poesia trágica, assim, pode trazer a uma investigação sobre a fortuna e a bondade humana um conteúdo especial que poderia escapar-nos se nos restringíssemos aos textos filosóficos convencionalmente admitidos" (NUSSBAUM, 2009, p. 13-14).
  • 16
    A consciência da própria finitude humana, diretamente vinculada ao problema da morte, talvez seja o principal aspecto que constitui a "experiência profunda da realidade". Em livro publicado recentemente, o filósofo alemão Peter Bieri concebe a dignidade humana, enquanto valor ético central, como reconhecimento da própria finitude (BIERI, 2013, p. 331-373).
  • 17
    Arkhé refere-se à origem ou ao princípio de todas as coisas. Deixar-se espantar significa, no sentido filosófico do termo, ir à raiz das coisas, buscando sua origem ou seus princípios.
  • 18
    No contexto da pesquisa sociológica, esse problema é tratado por Pierre Bourdieu (2004) quando esclarece que a justificativa plausível da teoria sociológica depende de sua crítica à espontaneidade desordenada do senso comum. Na obra Ofício de sociólogo (2004), escrita juntamente com Chamboredon e Passeron, Bourdieu trata da "ruptura" do senso comum com base na concepção de que o fato é conquistado contra a ilusão do saber imediato.
  • 19
    Outras iniciativas teóricas também precisam ser levadas em conta como esforço genuíno de ampliação da noção de experiência humana. Gostaria apenas de mencionar duas: o racionalismo crítico de Karl Popper (1993) e a ampla problematização que Michel Foucault (2004) oferece da experiência de si como estética da existência. No âmbito da filosofia educacional brasileira, cabe ressaltar o recente livro publicado por Pedro Pagni (2014).
  • 20
    O aspecto falível da experiência humana de que fala Gadamer não pode ser confundido com a questão popperiana da falibilidade do conhecimento, embora ambas tenham em comum a crítica ao dogmatismo da razão moderna, tanto em sua versão filosófica como científica. Para Gadamer (1999a), o aspecto falível da experiência humana possui um fundo existencial forte, pois emerge diretamente da condição finita do ser humano. Ou seja, é a admissão de sua historicidade que leva o ser humano a não dogmatizar seu ponto de vista.
  • 21
    Cabe lembrar que Gadamer foi aluno de Heidegger e que derivou sua hermenêutica filosófica em grande parte da fenomenologia hermenêutica heideggeriana. Gadamer mesmo documenta tal influência em muitos ensaios, parte dos quais se encontra reunida no volume 10 de suas Gesammelte Werke (1999b).
  • 22
    A historicidade diz respeito à relação entre ser humano e tempo. Como não posso abordar aqui esse difícil problema, remeto o leitor ao interessante livro Futuro passado, de Reinhart Koselleck (2011).
  • 23
    Para uma abordagem atualizada sobre a questão do outro no campo da educação e, especificamente, da filosofia da educação, ver o livro de Nadja Hermann (2014).
  • 24
    Há aqui um aspecto nuclear do processo formativo educacional humano que a tradição pedagógica trata como educação natural. O caso exemplarmente paradigmático desse tratamento é oferecido por Rousseau no Émile. Ocupei-me dessa temática em meu livro Educação natural em Rousseau: das necessidades das crianças e dos cuidados do adulto (DALBOSCO, 2011).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    Jul 2014
  • Aceito
    Ago 2014
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br