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Transfobia na Olÿmpia: a insuficiência do “cistema” judiciário na garantia de acesso ao espaço público por corpas dissidentes*

Transphobia in Olÿmpia: The Insufficiency of the Judicial “Cistem” in Guaranteeing Access to Public Spaces by Dissident Bodies

Resumo

Em espaços públicos, a circulação e permanência de corpas dissidentes é, muitas vezes, inviabilizada. A violência exercida de forma institucional e a perseguição têm aumentado, regredindo avanços consideráveis na pauta LGBTI+. Olÿmpia é um bar que visa à ocupação de ambientes da cidade por essas sujeitas, além de permitir sua empregabilidade. Essa pesquisa busca refletir, a partir de casos de transfobia ocorridos nesse estabelecimento, sobre a eficácia da judicialização e de políticas públicas que se propõem a abarcar esse segmento da população. Utiliza-se uma abordagem jurídico-sociológica, pelas vertentes da teoria queer, decolonial e transfeministas, para interpretar essas manifestações do “cistema”.

Transfobia; Espaços públicos; Judicialização

Abstract

In public spaces, the circulation and permanence of dissident bodies is often made unviable. Institutionalized violence and persecution have increased, setting back considerable advances in the LGBTI + agenda. Olÿmpia is a bar dedicated to allowing these subjects to occupy spaces in the city, and to supporting their employability. This study examines cases of transphobia at the bar to reflect on the effectiveness of judicialization and public policies focused on this population segment. A legal-sociological approach is used, based on queer, decolonial and transfeminist theories, to interpret these "cistem" manifestations.

Transphobia; Public spaces; Judicialization

Introdução

Políticas públicas no Brasil não alcançam a realidade cotidiana de pessoas trans1 1 Utilizo o termo “trans” como termo guarda-chuva para englobar toda pessoa que vivencia seu gênero fora de modelos normativos predominantes, pessoas que não se identificam com o gênero atribuído a elas, como transexual, travesti, transgênera, gender queer, pessoas trans não binárias, etc. Compreende-se que há uma dinâmica identitária complexa que demanda distinções, no entanto, dado o escopo do artigo, opta-se por esse termo, sem intenção de representar uma unidade ou ontologia. . Nas ruas, é palpável o apagamento desse segmento da população, que impossibilita o acesso ao mercado de trabalho, tarefas do cotidiano, vivência da cidade como um todo e acesso a serviços básicos. Microrrelações de poder, perpetuadas pela ineficácia de mecanismos de proteção de pessoas dissidentes do que é considerado “normal” pela sociedade, impedem a ascensão econômica e social e restringem pessoas trans à “pista”.

São diversas violências que levam ao medo e desgaste cada vez maior, segregando as ruas e fazendo permanecer apenas aquelas pessoas que conseguem se assimilar à normatividade. A patrulha moral, aumentada pelo Governo Bolsonaro, impossibilita avanços no Poder Executivo e incentiva retrocessos nos demais âmbitos. Além de regressos relevantes, pessoas trans são as últimas a serem alcançadas por políticas públicas LGBTI+, o que agrava esse cenário.

Olÿmpia é um bar gerenciado por pessoas trans e que emprega apenas pessoas trans. Com um viés social, o bar busca a ocupação de espaços públicos por essas sujeitas2 2 Algumas pessoas trans se apropriaram do termo “sujeito”, modificando-o para “sujeita”. Segundo Vergueiro (2015), busca-se uma outra epistemologia, um posicionamento político diante de colonialidade de identidades de gênero dissidentes, a partir dessa dissonância com a linguagem normatizada. O mesmo ocorre com o termo “corpas”, em vez de “corpos”. Essas expressões serão utilizadas em todo o artigo, embora a autoria em referência não o utilize, de forma a seguir esse posicionamento político. Quando se tratar de citação direta, no entanto, serão mantidas as versões originais. e permitir sua empregabilidade. No entanto, por diversos casos de transfobia3 3 É desafiadora a tentativa de descrever a transfobia, uma vez que se trata de uma violência estrutural que atravessa todos os âmbitos de existências. Cavalcanti (2019) aponta algumas das facetas por meio do relato de sua vivência: “Por falar em como um ideal de cisgeneridade autocentrada se estabelece como verdade absoluta a partir da negação do corpo trans, o ódio a essa possibilidade e a necessidade de desmascarar a suposta farsa que constitui a transgeneridade é tanta que nossas autodeterminações, nossos processos de transição e todos os circuitos de vida e afeto que tecemos a partir disso tornam-se ininteligíveis para pessoas que acreditam demasiado em sua suposta natureza cisgênera”. Essas violências são institucionalizadas principalmente pelo Direito, a medicina e a psicologia, que passam a regular corpas e construir uma norma do que seria natural, saudável e correto, que estão presentes no cotidiano de forma macro e micro. O ódio transfóbico, que forma signos de abjeção (Kristeva, 1989) mobiliza diversos aparatos, que levam desde ao enfrentamento direto, como assassinatos brutais, quanto ao apagamento e pautas e tentativas de boicote a avanços pequenos de medidas de proteção, atua em exclusões e impedimentos sistemáticos (Cavalcanti; Carvalho; Bicalho, 2018). Trata-se de discursos de verdade que fazem rir e que permitem o poder institucional matar (Foucault, 2002). Relações de poder são criadas a partir da definição da norma que, historicamente, remete ao homem branco, cis, heterossexual, de classe média urbana e cristão, que atribui a “diferença”, levando a desigualdades e hierarquias (Louro, 2013). Segundo Araújo (2018), ademais, “a transfobia é um vício branco”, pois é a branquitude que constantemente diz quem é humano e quem não é. Estão mais próximas da norma aquelas pessoas com características mais próximas da branquitude e seu ideal. , sua continuidade está cada vez mais prejudicada.

A presente pesquisa busca, a partir dos casos de transfobia ocorridos nesse estabelecimento, compreender a ineficácia da judicialização e ferramentas de garantia de políticas públicas já estabelecidas para esse grupo, resultando na impossibilidade de frequentar espaços.

Utiliza-se, principalmente, o depoimento de Libernina Damasceno4 4 A opção por manter o nome de Libernina, em vez de utilizar um pseudônimo, deu-se pela exposição já ter sido feita por ela mesma para repórteres e em redes sociais. Sendo assim, considero que seria inócuo, no caso apresentado, tentar preservar a privacidade da mesma, buscando o anonimato. Ademais, segundo Souza e Carvalho (2016), não há uma ética universal aplicável a todas as pesquisas, e o anonimato como única opção se insere, em alguns momentos, como um paternalismo, que pode levar ao desprestígio à singularidade de uma história, invisibilizando a pessoa interlocutora. , gerente da Olÿmpia, concedido, em 2020, à Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-MG, além de outros relatos encontrados em reportagens sobre esses casos, para pautar a ocupação de espaços por pessoas trans e a ineficácia do direito de garantir que isso possa ocorrer. Demonstram-se as inúmeras buscas por apoios institucionais, que não solucionam conflitos, levando em consideração as violências impetradas contra pessoas trans – ao contrário, as colocam como autoras de outras “violências”.

Tem-se uma abordagem interdisciplinar jurídico-sociológica para diagnóstico do direito enquanto parte do cotidiano em sua atualidade, utilizando-se das vertentes da teoria queer, principalmente as noções de Butler; de autorias decoloniais, em referência à construção do direito como forma de colonização e controle de corpas; e transfeministas, que enunciam as violências, particulares a pessoas trans, dado o escopo do artigo. Essa articulação é relevante, tendo em vista que a teoria queer avançou muito em compreender estruturas de poder; no entanto, por sua origem norte-americana, deve ser traduzida para o contexto a partir de outros marcos teóricos, como a decolonialidade e o transfeminismo. Promove-se uma interpretação de manifestações do cistema5 5 “Cistema” é um termo cunhado por Viviane Vergueiro, que será definido ao longo do artigo. Será utilizado esse termo sempre que a palavra “sistema” for escrita, independentemente da referência de autoria utilizar ou não essa variação de escrita. , corroborando para o entendimento do cenário atual de lutas nesse campo. Não se objetiva uniformizar as formas de opressão sentidas por cada corpa, mas analisar algumas estruturas relevantes de serem revistas a título de inclusão social dessas sujeitas minorizadas.

A construção do gênero nas ruas e a precariedade induzida de pessoas trans

A convivência social no Brasil se dá pela negação das diferenças, não seu reconhecimento. Aquelas pessoas que não se adequam às normativas da inteligibilidade devem esconder sua abjeção para poder frequentar com mais tranquilidade espaços públicos. Assim, considerando a cis-heteronormatividade, Beatriz Pagliari Bagagli (2016)BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. Afinando a noção de “socialização” e refutando algumas distorções. Transfeminismo, 2016 [https://transfeminismo.com/afinando-a-nocao-de-socializacao-e-refutando-algumas-distorcoes/ - acesso em 10 maio 2020].
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afirma que a socialização de gênero ocorre com o aculturamento para a cisgeneridade.

Viviane Vergueiro (2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado Multidisciplinar), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2015.:15) utiliza o termo Cistema para denotar um “[c]istema-mundo ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capitalista/patriarcal” que produz ‘hierarquias epistêmicas’”, em referência ao conceito de Grosfoguel (2012)GROSFOGUEL, Ramon. Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, v. 2, n. 2, São Carlos, 2012, pp.337–362 [https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/86 – acesso em 08 jul 2022].
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, enfatizando o caráter estrutural e não individualizante da transfobia. A cis-heteronormatividade é um projeto diário e violento (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.), que permeia os âmbitos biológico, moral, espiritual, econômico, social, cultural e político, intrínseco à organização da sociedade e domínios comportamentais, não apenas restrito ao sexo estrito senso (Curiel, 2013CURIEL, Ochy. La Nación Heterosexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación? São Paulo, En La Frontera, 2013.).

Trata-se de uma visão binária que elenca como a única forma legítima de se viver aquela colocada como norma, sendo qualquer divergência uma aberração, desvio, crime, doença, perversão ou pecado. Reduz-se a sexualidade ao fator reprodutivo e codifica como correta uma forma específica de ela ser realizada (Junqueira, 2003JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia: limites de um conceito em meio a disputas. Revista Bagoas, v. 01, n. 01, Rio Grande do Norte, 2003 [http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v01n01art07_junqueira.pdf - acesso em 17 out. 2018].
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).

É relevante ressaltar que o gênero é construído a partir da relação com o outro. A binariedade e unidade de gênero são efeitos de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade de gênero por uma heterossexualidade compulsória (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15aed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.). Inteligíveis são os gêneros que instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, diante das normas instituídas. Os demais, abjetos.

Uma pessoa teria sua identidade forjada na relação com o outro, dentro da matriz de dominação que normatiza quem será reconhecível e quem não (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15aed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.). A identidade seria performativamente construída por meio das “expressões” cotidianas e visíveis, normalmente tidas como resultantes; portanto, não haveria uma essência por trás dessas expressões (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15aed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.). Trata-se de uma produção discursiva ocultada dentro de discursos biologizantes.

Gênero, assim, são atos repetidos em uma estrutura reguladora que o cristaliza para produzir a aparência de substância, segundo Butler (2017)BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15aed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.. Isso não inviabiliza identidades políticas para reivindicações estratégicas de direitos dentro desse contexto de relações de poder na sociedade.

Ao se dar em contato com o outro, é nas ruas que a identificação de gênero ocorre, no espaço público. A exposição da corpa constitui a sujeita fundamentalmente. A agressão e violência são direcionadas àqueles mais distantes da “pureza” de estar próximo do “original” (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15aed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.). No caso de pessoas trans, isso está diretamente ligado à passabilidade, que seria o quanto alguém é lido enquanto cis6 6 Utilizo esse termo para denotar todas as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer. por quem a observa. O marcador da identificação por outros de uma pessoa cis está diretamente relacionado a um padrão de gênero ideal europeu de feminilidade ou masculinidade, imposto por processos civilizatório e colonizador, de apagamento de culturas e subjetivações dissidentes (Lustosa, 2016LUSTOSA, Tertuliana. Manifesto Traveco-terrorista. Revista Concinnitas, ano 17, v. 01, n. 28, Rio de Janeiro, UERJ, set. 2016.). Em outras palavras, quanto mais próximo desse ideal, mais passabilidade uma pessoa tem. Dessa forma, não é possível tratar de passabilidade e vivência de agressões sem ter em vista imbricações de raça.

Corpas trans, como outros grupos vulneráveis, têm uma precariedade induzida pela violência e ausência de políticas públicas protetivas (Butler, 2018BUTLER, Judith. Corpos e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. Tradução Fernanda Siqueira Miguens; revisão técnica Carla Rodrigues.). É nesse contexto que se dá a Necropolítica. Segundo Achille Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3aed. São Paulo, n-1 edições, 2018., necropolítica seria o poder de matar, deixar viver ou expor à morte, o que pode se dar pela condição de negligência cistemática produzida por essa ausência. Assim, aquelas pessoas que estiverem mais distantes do padrão da inteligibilidade estariam expostas a uma precariedade maior, produzida por uma negligência cistemática proposital e, portanto, teriam mais dificuldades de viver uma vida boa (Butler, 2018BUTLER, Judith. Corpos e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. Tradução Fernanda Siqueira Miguens; revisão técnica Carla Rodrigues.).

Foucault (1996)FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, 1996. utiliza a noção de discursos úteis, como aqueles que perpetuam uma “verdade”, embora aparentem inocentes, contendo uma ligação com desejo e poder. Discursos podem ser utilizados para que a categoria trans seja mantida na abjeção, preservando a inteligibilidade para pessoas cis e heterossexuais, principalmente brancas, em certos espaços.

No espaço público, a abjeção se manifesta de diversas formas. É esperado que certa parte da sociedade se atenha a determinados espaços sociais. Àquelas pessoas consideradas “inapropriadas”, ao saírem do local a elas determinado, haveria um “olhar imperial” tentando fazê-las retornar à sua posição “natural” por meio de violências simbólicas e físicas; essa posição é chamada por Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EdUfba, 2008. de zona do não-ser. A partir desse processo, são lembradas de sua posição periférica.

Leticia Sabsay (2011)SABSAY, Leticia. Fronteras Sexuales: Espacio urbano, cuerpos y ciudadanía. Buenos Aires, Paidós, 2011. entende que a cis-heteronormatividade é mantida apenas pela repetição de suas normas e práticas. Sua visibilidade como algo “normal” potencialmente desestabiliza uma norma criada, por isso o espaço público é tido como possível apenas para aqueles dentro da norma. Visibilizar o que é apagado propõe uma reestruturação social, negando a clivagem entre a zona do ser e do não-ser (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EdUfba, 2008.). Trata-se de uma afirmação da corpa enquanto agência de intervenção política e intelectual.

Isso se dá por uma corpa não ser digna de existência no espaço urbano. Maria Léo Araruna (2018ARARUNA, Maria Léo Fontes Borges. O direito à cidade em uma perspectiva travesti: uma breve autoetnografia sobre socialização transfeminina em espaços urbanos. Revista Periódicus, n. 8, v. 1, Salvador, BA, UFBA, abr. 2018, pp.133-153.:150), mulher trans no exercício de uma autoetnografia, expõe que essas violências as levaram ao:

afastamento de algumas interações, o receio de usufruir alguns espaços, o medo e o fetiche dos homens cis, a insegurança e a vergonha em reagir a certos tratamentos, o temor em falar, a necessidade de manter os olhares distantes de mim, minhas tentativas em me esconder; tudo isso, entre outras coisas, foram sentimentos e comportamentos que adotei para traçar uma perspectiva de mim.

Trata-se de microrrelações sociais que permitem o monitoramento mútuo, mantendo o espaço público como ele é (Groffman, 2010). Aplica-se a situações assim o que Maria Aparecida Bento (2002)BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese (Doutorado em Psicologia), Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. chama de pacto narcísico, ou seja, processos de cumplicidade de camadas privilegiadas para garantir a manutenção do cistema como ele está, em que quem está no poder não se reconhece como parte essencial na permanência das tensões sociais existentes. Bento utiliza essa noção para a questão da raça e a branquitude, no entanto, é possível traçar um paralelo com a cis-heteronormatividade, principalmente em se tratando de pessoas trans não brancas. A cis-heteronormatividade, presente em ambientes públicos, é especialmente relevante em se tratando de mulheres trans7 7 Refiro-me a qualquer pessoa trans, sendo pessoa não-binária ou de qualquer outra identidade, contanto que lida por outros em ambientes públicos como mulher trans. , incomodando a cultura hegemônica que busca retomar o controle por meio dessas interações estratégicas de manutenção desse poder.

Uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (Nuh)8 8 A pesquisa utilizou uma amostra de 141 travestis e transexuais; é considerada representativa, tendo em vista o caráter transitório e flutuante desses segmentos populacionais no espaço urbano, junto à extensão do questionário, que dificultou o acesso (NUH, 2016). , em 2016, sobre a violência na experiência de travestis e transexuais em Belo Horizonte, constatou que 96,4% das entrevistadas já sofreram algum tipo de violência física. O Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), revela que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans do mundo, e 99% das pessoas LGBTI+ participantes afirmam não se sentirem seguras9 9 A amostra contou com 1350 pessoas, dentre as quais, apenas 4 responderam se sentirem seguras no Brasil (Antra, 2019). . Em 2019, houve um aumento do índice de violência direta a pessoas LGBTI+, totalizando 11 pessoas agredidas diariamente, segundo o mesmo dossiê.

Fraser (2006)FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, n. 14/15, São Paulo, 2006, pp.231-9. Trad.: Júlio Assis Simões. afirma que, ao serem condenadas à invisibilidade social, essas pessoas sofrerão: marginalização econômica, isto é, cargos profissionais a elas restritos; privação, ou seja, a dificuldade de atingir um padrão de vida material adequado; e desrespeito, que seria a estereotipação cotidiana, que as desqualifica; dentre as demais manifestações não destacadas.

Pessoas trans têm um alto índice de evasão escolar, são frequentemente expulsas de casa e, segundo o dossiê da Antra já mencionado, 90%10 10 Não há referência a números absolutos relativos a esse percentual no dossiê. Tem-se, no entanto, a explicação metodológica que o baseia: “A metodologia segue o padrão internacional da ONG Transgender Europe – TGEU. Novamente, salientamos que não existem dados governamentais sobre os assassinatos de pessoas trans no Brasil. O levantamento é feito de forma quantitativa, visto que não existem dados demográficos a respeito da população trans brasileira, e a partir de pesquisa dos casos em matérias de jornais e mídias vinculadas na internet, de forma manual, individual e diária. Há, ainda, aqueles casos em que nenhuma mídia cobre ou publica o assassinato e, por conta disso, contamos com relatos de pessoas locais, conhecidos ou instituições LGBTI que publicam informações sobre pessoas assassinadas e/ou são enviadas informações através da rede de afiliadas da ANTRA e parceiros, além dos mais diversos meios e canais de comunicação (E-mail, Facebook, Whatsapp, etc)” (Antra, 2019:6) das travestis e mulheres transexuais ainda vivem como trabalhadoras do sexo. Majoritariamente, o exercício dessa profissão ocorre nas ruas, o que aumenta sua vulnerabilidade. Isso se deve também pela dificuldade de conseguir empregos. Mulheres trans são imediatamente associadas a trabalhadoras do sexo no imaginário popular, profissão ainda muito malvista e recriminada.

O espaço reservado a pessoas trans, então, é voltado a quem não tem família, emprego, casa e direitos fundamentais. Resta, muitas vezes, ficar na esquina e no bordel, na “pista”, segundo Andrade (2015)ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. Rio de Janeiro, Metanoia, 2015., e apenas lá haverá sociabilidade e visibilidade. A experiência dessas pessoas estaria relacionada a essa interdição a diversos locais da cidade, inviabilizando a ascensão econômica e social.

Nesse cenário, é comum que elas evitem circular pelas ruas durante o dia, restringindo-se à noite, período mais identificado com práticas sexuais e comerciais (Silva, 2009SILVA, Joseli Maria. A cidade dos corpos transgressores da heteronormatividade. In: SILVA, Joseli Maria (org.). Geografias subversivas: discursos sobre espaço, gênero e sexualidade. Ponta Grossa, Todapalavra, 2009. pp.135-150.). Paul Preciado (2017)PRECIADO, Paul. Cartografias “queer”: o “flâneur” perverso, a lésbica topofóbica e a puta multicartográfica, ou como fazer uma cartografia “zorra” com Annie Sprinkle. Revista Performatus, ano 5, n. 17, Inhumas, 2017 [https://performatus.net/traducoes/cartografias-queer/ - acesso em: 10 mai. 2020].
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entende que o espaço urbano é heterossexual. Dessa forma, pessoas LGBTI+ seriam intrusas nele, e sua intromissão e a criação de espaços pseudo-secretos, considerados sujos e degradantes, são condição para que se possa existir o sujeito heterossexual em contraposição ao homossexual, a diferença entre eles e a segregação do espaço urbano. Aqui podemos entender esse sujeito como cisgênero, heterossexual, branco, classe média e alta, dentre outras normatividades colocadas como neutras e dentro do padrão, em contraste a todas as dissidências. Espaços públicos também podem ser entendidos como qualquer espaço comum, isto é, qualquer espaço em que há o contato ou interação com alguém desconhecido.

Nesses espaços, há uma relação direta com a sociedade, portanto, espaço permeado por tensões políticas e sociais, assim como o imaginário social. Dizer que esses espaços são hegemonicamente cis-heteronormativos é dizer que a cis-heteronormatividade é integrante e resultante do discurso hegemônico que polariza a ordem social em binarismos e marginaliza a sujeita que não se adeque à suposta coerência entre sexo, gênero, sexualidade e desejo (Silva, 2009SILVA, Joseli Maria. A cidade dos corpos transgressores da heteronormatividade. In: SILVA, Joseli Maria (org.). Geografias subversivas: discursos sobre espaço, gênero e sexualidade. Ponta Grossa, Todapalavra, 2009. pp.135-150.). A inadequação será vigiada e controlada para que a sujeita seja assimilada à norma ou marginalizado por dispositivos de controle.

É nesse contexto que existem empreendimentos e organizações que buscam a empregabilidade trans, especificamente, assim como um movimento de ocupação de espaços na cidade por elas, para favorecer seu acesso a ambientes públicos, sua ascensão social e econômica e, muitas vezes, também sua sobrevivência.

Casos de violência e transfobia na Olÿmpia

A Olÿmpia é um bar localizado no edifício Maletta em Belo Horizonte. Segundo a página do Facebook, é um “Bar Trans/Travesti Vegano de BH, que visa a criar um espaço de desconstrução e descontração, com práticas pós-modernas, contra-hegemônicas, de justiça social, economia solidária, LGBTI, antirracista, feminista, progressista, e de feitiçaria”.

Menos focado em ser um empreendimento lucrativo, sua proposta é criar um ambiente de trabalho “livre de opressões”, possibilitar emprego para pessoas trans e ocupar o espaço do Maletta, cujo aluguel é mais barato que o valor de mercado, para iniciativas sociais, segundo a postagem realizada no Prosas (Olÿmpia Coop Bar, s.d.OLŸMPIA COOP BAR c. Informações. Belo Horizonte. [s.d.]. Prosas: Olympia Coop Bar [https://prosas.com.br/empreendedores/16141?locale=en - acesso em: 9 jun. 2020].
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, c).

Os debates sobre o acesso à cidade, o feminismo e o vegetarianismo são reflexões importantes que direcionam a nossa identidade. No tradicional Ed. Maletta, o espaço se constrói para que os membros e as demais pessoas reflitam sobre práticas autônomas, o empoderamento e a política (Olÿmpia Coop Bar, s.d., cOLŸMPIA COOP BAR c. Informações. Belo Horizonte. [s.d.]. Prosas: Olympia Coop Bar [https://prosas.com.br/empreendedores/16141?locale=en - acesso em: 9 jun. 2020].
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).

Iniciado em 2014, o bar contava com pessoas trans em seu quadro de funcionários dois anos depois. Hoje, todas as funcionárias são mulheres trans. Dentre os obstáculos que enfrentam, está a rotatividade de trabalhadores, a falta de capital de giro, que dificulta o pagamento de dívidas, e o fato de alguns dos equipamentos serem emprestados, ainda segundo a mesma publicação. No entanto, alguns dos problemas que mais dificultam sua resistência no local são as barreiras colocadas pelo condomínio para que elas façam eventos, o preconceito de clientes e donos de outros bares dentro do Maletta (Olÿmpia Coop Bar, s.d.OLŸMPIA COOP BAR c. Informações. Belo Horizonte. [s.d.]. Prosas: Olympia Coop Bar [https://prosas.com.br/empreendedores/16141?locale=en - acesso em: 9 jun. 2020].
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Antes de adentrar nos casos de transfobia, cabe uma reflexão acerca da relevância da existência da Olÿmpia. Cavalcanti (2019)CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42. coloca a necessidade de que os espaços passem a conviver com pessoas trans e se tornem acolhedores para elas, pois, dessa forma, levarão outros espaços semelhantes a se tornarem acolhedores para aquelas que vierem depois. Compreende que há uma temporalidade ambígua no presente, em que há uma primeira geração de pessoas trans que furam estatísticas absurdas:

Jota Mombaça nos lembra de que, apesar dos avanços, o mundo segue sendo nosso trauma. Contudo, nossas vidas, ainda que impossibilitadas por engessamentos e aridez, seguem se manifestando umas nas outras e, ambiguamente, apesar de um país que nos mata tão cedo e de tantas formas, acabamos por ser imorríveis (Cavalcanti, 2019CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42.:38).

Essas vidas se tornam menos impossíveis por aberturas resultantes de processos sociais, políticos e históricos de movimentos trans, que produzem alianças (Cavalcanti, 2019CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42.). Cavalcanti (2019)CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42. explica a importância de quem toma para si a tarefa de ajudá-las a respirar, evitando sufocamentos por refazer pactos coletivos de morte os transformando em pactos de vida coletiva. Trata-se de invenções de futuros trans (Cavalcanti, 2019CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42.). Parte desse respiro se dá pela ocupação de espaços negados, disputas de territórios e hegemonias.

Para as funcionárias da Olÿmpia, o senso de responsabilidade parece ser acrescido pela cobrança feita por outros devido à gestão ser realizada por pessoas trans: “ninguém acredita que somos capazes de ter um negócio de sucesso. Já que as pessoas que estavam lá não conseguiram, quem somos nós para fazer isso?” (Olÿmpia Coop Bar, s.d.OLŸMPIA COOP BAR c. Informações. Belo Horizonte. [s.d.]. Prosas: Olympia Coop Bar [https://prosas.com.br/empreendedores/16141?locale=en - acesso em: 9 jun. 2020].
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, c). Essa declaração vem do fato de que, anteriormente, o mesmo local era gerido por pessoas cis, que não tiveram sucesso com o empreendimento (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.). Esse fenômeno de descrença na possibilidade de sucesso por parte de pessoas trans pode ser entendido como uma profecia autorrealizada de fracasso (Camilloto, 2019CAMILLOTO, Ludmilla Santos de Barros. Direito de ser: diálogos e reflexões sobre o reconhecimento das identidades trans. Belo Horizonte, Conhecimento Livraria e Distribuidora, 2019.) – o medo constante de comprovar o mito existente, baseado no estereótipo de que não seriam capazes de realizar tarefas diferentes daquelas a elas designadas, como a prostituição.

Halberstam (2020)HALBERSTAM, Judith. A arte queer do fracasso. Recife, Cepe editora, 2020. trata o fracasso enquanto algo embutido no dominante, em que vencer é um evento multivalente, mantendo o perder na sua lógica e conectando-o à incapacidade de acumular riqueza. Isso significa, também, que o fracasso pode ser a não conformidade à normatividades do cistema, uma potência contra-hegemônica de quem se encontra nas dobras, falhas e faltas (Halberstam, 2020HALBERSTAM, Judith. A arte queer do fracasso. Recife, Cepe editora, 2020.). Somente a troca cortês poderia ensejar uma vitória, e, na maioria dos casos, ganhar pode ser tornar-se parte de um cistema político ao qual quer-se se opor (Halberstam, 2020HALBERSTAM, Judith. A arte queer do fracasso. Recife, Cepe editora, 2020.). O sucesso poderia significar se apagar para estar dentro da norma. É importante apontar que fracassar não pode ser romantizado – fracassar pode significar perder a vida em determinadas situações. Mombaça (2019) pontua: “O que sobra de um corpo negro, quando ele próprio consente perder a batalha contra o mundo?” Um caminho potente pode ser violento. No entanto, é interessante a busca por acionar o inverossímil e o improvável, imaginando alternativas para o cistema hegemônico, em vez de tentar vencer no mundo dos dominantes.

O Edifício Maletta está localizado no Centro de Belo Horizonte e é composto por diversos bares, algumas lojas de comércio, apartamentos residenciais e restaurantes (Belo Horizonte, 2017BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal de. BH em Cantos: Maletta, um Patrimônio Democrático. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Belo Horizonte, 03 ago. 2017 [https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/bh-em-cantos-maletta-um-patrimonio-democratico - acesso em: 9 jun. 2020].
https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/b...
). Historicamente, foi um ambiente democrático e de resistência durante a Ditadura Militar do Brasil e, atualmente, seria ponto de encontro de “todas as tribos”, um “patrimônio democrático”, como descrito no site da prefeitura e em algumas reportagens.

Em julho de 2017, a administração do edifício proibiu a entrada de vendedores ambulantes no prédio. A decisão teria sido feita de forma arbitrária, sem consulta a lojistas e após um incidente em que o dono de um dos bares expulsou um vendedor, que reagiu o agredindo fisicamente (All Events, 2017ALL EVENTS. Rolezinho de Vendedores Ambulantes no Maletta. All Events: Usuário, Belo Horizonte, 29 jun. 2017 [https://allevents.in/belo%20horizonte/rolezinho-de-vendedores-ambulantes-no-maletta/143287246227008 - acesso em: 9 jun. 2022].
https://allevents.in/belo%20horizonte/ro...
). Como forma de manifestação contrária ao ocorrido, foi organizado um rolezinho11 11 O termo rolê vem de gíria comum no Brasil, que significa circular pela cidade para se divertir. Entretanto, esse encontro para lazer se tornou uma violação de direitos, com grande repercussão em 2013, quando jovens de periferia, majoritariamente negros, encontraram-se em um Shopping Center de São Paulo (Barbosa-Pereira, 2016). Lojistas, administradores e frequentadores do Shopping se sentiram ameaçados pela aglomeração de jovens brincando e fazendo barulho, cantando músicas de funk ostentação, e chamaram a polícia, que agiu com truculência (Barbosa-Pereira, 2016). O funk ostentação, resumidamente, é uma modalidade de funk que exalta a posse de dinheiro, compra de grifes, carros e bebidas. O funk e bailes funks já são estigmatizados e criminalizados. Hershmann (2005) questiona a estigmatização como sendo do segmento social que é protagonista dessa expressão cultural. Os rolezinhos evidenciaram questões de convívio, segregação e estigmas entre segmentos da população, trazendo a discussão do lugar do pobre, seu direito ao lazer e acesso à cidade, expondo fissuras sociais (Hershmann, 2005). Esse movimento pode ser compreendido como uma cidadania insurgente, pessoas cidadãs reivindicando um espaço para si, provocando ruídos no discurso hegemônico segregador. A possibilidade de esse grupo social estar presente nesses locais é de modo “disciplinado” e “vigiado”, para não configurar uma ameaça. Desde esse acontecimento, rolezinhos foram organizados como manifestação política de ocupação de espaços negados, assim como passaram a ser chamados de rolezinho também os encontros de pessoas LGBTI+, por trazerem conceito semelhante. , mas a decisão permaneceu (All Events, 2017ALL EVENTS. Rolezinho de Vendedores Ambulantes no Maletta. All Events: Usuário, Belo Horizonte, 29 jun. 2017 [https://allevents.in/belo%20horizonte/rolezinho-de-vendedores-ambulantes-no-maletta/143287246227008 - acesso em: 9 jun. 2022].
https://allevents.in/belo%20horizonte/ro...
).

Segundo publicação da Olÿmpia, o “Maletta tem se tornado cada vez mais higienista e perdendo o público que tinha afinidade com os nossos ideais, entre outros inconvenientes” (Olÿmpia Coop Bar, s.d.OLŸMPIA COOP BAR c. Informações. Belo Horizonte. [s.d.]. Prosas: Olympia Coop Bar [https://prosas.com.br/empreendedores/16141?locale=en - acesso em: 9 jun. 2020].
https://prosas.com.br/empreendedores/161...
, c). A forma de gestão do local influenciou o público que frequenta, dificultando a existência de uma maior diversidade, segundo a publicação.

A higiene pública, historicamente, é colocada pela delimitação de “classes perigosas” e a configuração de um dever do Estado de retirá-las (Cavalcanti, 2021CAVALCANTI, Céu. Políticas, polícias e medidas de saúde pública de enfrentamento ao covid-19 em contextos de prostituição hiperprecarizada. Rio de Janeiro, Metax, 2021 [https://revistas.ufrj.br/index.php/metaxy/announcement/view/477 - acesso em 15 mar. 2021].
https://revistas.ufrj.br/index.php/metax...
). A saúde, a segurança e o direito atuam para atualizar o que Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2002. chama de promiscuidade médico-jurídica, em que se alia saberes e práticas a um interesse comum que informam uma à outra na produção de anormalidades a serem corrigidas. Pessoas de gêneros dissidentes que embaralham ou confundem sinais “próprios” diante da “moral” de determinado território são marcadas como desviantes, atravessadoras que deveriam retornar ao seu local, que serão tratadas como infratoras e sofrerão penalidades (Louro, 2013LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre a sexualidade e a teoria queer. 2aed., Belo Horizonte, Autêntica, 2013.). Essas penalidades – ou estratégias para garantir esse retorno – vão se diferenciar em escalas de violência. Ocupar, nesse sentido, pode configurar habitar esses locais sem negar sua existência. Os impasses para isso são inúmeros.

Libernina Damasceno (2020)DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020., gerente do bar Olÿmpia, conta que, desde que mulheres trans começaram a trabalhar lá, sofreram com deboches, risadas, comentários e violência, mas que em sua maioria conseguiam ser resolvidos na hora. Com a falta de penalização desses ocorridos, os mesmos se tornaram mais recorrentes, alguns envolvendo os seguranças do condomínio que se uniam aos agressores (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.).

Houve um caso em que água suja foi jogada da varanda do segundo andar do Maletta em algumas alunas trans da ONG Transvest, que estavam no ponto de ônibus logo abaixo dela. Quando subiram o edifício, havia um balde em frente ao bar do lado da Olÿmpia (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.), o mesmo estabelecimento do incidente a respeito de vendedores ambulantes. Pediram as filmagens da câmera ao condomínio, não tendo sido elas concedidas. Assim, foram ameaçadas de morte, impedindo-as de registrarem o ocorrido na polícia. Libernina comenta que “Travesti chamando polícia para gente cis, travestis pretas ainda, iam colocar a culpa na gente” (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.). Cavalcanti diz que há um termo para acontecimentos como esse: “Era de Cisperar”, de tão recorrentes as linhas de violências que parecem ser inevitáveis (Cavalcanti, 2019CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42.). À época, Duda Salabert, coordenadora da Transvest, falou com o síndico, que novamente foi transfóbico, levando à mudança de localização da organização, que antes era no edifício.

Audre Lorde (1977) afirma que as políticas do medo se transformam em silêncios, sufocando e abafando palavras pela gramática das hegemonias normativas. Para ela, lutar contra tiranias do silêncio é produção de vidas. O silêncio não é capaz de proteger, ele cria circuitos de mortificação das diferenças, impossibilitando a formação de alianças (Lorde, 1977).

Transitar na rua tranquilamente não é um direito de qualquer corpa; para uma corpa dissidente, isso é uma falácia (Ravena, 2020RAVENA, Isadora. Sinfonia para o fim do mundo. 3. Ed. Fortaleza, LAC, 2020.). Se há concessão temporária para essa ocupação, ela é carregada de recessões e vigilâncias, são contratos para se adentrar espaços institucionais, em que é necessário o diálogo malicioso, entrando em silêncio ou arrombando as portas, utilizando-o para objetivos políticos, sem que se permita por ele ser domesticada (Ravena, 2020RAVENA, Isadora. Sinfonia para o fim do mundo. 3. Ed. Fortaleza, LAC, 2020.). A corpa trans rompe com um “equilíbrio” colocado, retirando certezas colocadas por projetos políticos e para estar em certos espaços. Ele terá que ser tomado, não concedido, logo, há uma reação para recolocá-las à margem. A luta pela descolonização, como ensina Mombaça (2016)MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. São Paulo, Oficina de Imaginação Política, 2016., é uma luta pela abolição do ponto de vista colonizador, assim, luta pelo fim do mundo – de um mundo.

O bar ao lado do Olÿmpia começou a invadir a área da Olÿmpia com suas mesas e acomodar ali seus clientes. A situação recorrente era de protelar para a retirada das mesas até que houvesse uma discussão, e chamavam as funcionárias da Olÿmpia de “loucas”. Uma vez, entraram na loja delas e as xingaram, chamando-as de “viados” (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.). Contataram à administração do edifício, porém não tomaram nenhuma providência.

A partir de então, quando clientes pediam para se sentar na mesa da Olÿmpia e consumir nesse outro bar, as funcionárias explicavam a situação de transfobia e negavam, individualmente, para o cliente. Ocorre que em uma dessas vezes, Suria, mulher trans que trabalha como garçonete no local, estava explicando o ocorrido para um cliente, e o filho do dono do bar ao lado a ofendeu, dizendo que ela era louca e falando para o cliente se sentar em seu bar.

Ainda segundo o depoimento de Libertina Damasceno, no final de janeiro de 2020, as funcionárias da Olÿmpia escreveram na placa do bar ao lado, que já estava na frente do estabelecimento, “o bar ao lado é transfóbico e escroto”. Em seguida, os responsáveis pelo local vieram reclamar, dizendo que isso era um crime, que elas estavam difamando seu bar e que, se quisessem reclamar, teriam que fazer um Registro de Ocorrência. Eles chamaram um policial para registrar a difamação, e, no momento, Libernina estava sem documentos. Ela informou seu nome social aos policiais, que insistiram que se tratava de falsidade ideológica e que ela deveria cooperar. Rafa, outra mulher trans que trabalha no local, entregou seu próprio documento.

Começaram a se referir à situação como se Libernina tivesse entregado documento falso, embora ela estivesse sem documento na hora. O boletim de ocorrência foi registrado no dia 28 de fevereiro relativo à suposta difamação feita pelas funcionárias da Olÿmpia (Negrisoli, 2020NEGRISOLI, Lucas. Após denunciar discriminação, bar comandado por trans terá que sair do Maletta. O Tempo, Belo Horizonte, 10 mar. 2020 [https://www.otempo.com.br/cidades/apos-denunciar-discriminacao-bar-comandado-por-trans-tera-que-sair-do-maletta-1.2308706 - acesso em: 9 jun. 2020].
https://www.otempo.com.br/cidades/apos-d...
), à revelia de tudo que ocorreu contra elas ou de seu reconhecimento a partir de seu nome social, um direito.

Isso demonstra que o nome social é realmente uma gambiarra legal (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.): não somente ele é desrespeitado por agentes estatais, como narrativas de pessoas trans e violências impetradas contra elas valem menos, garantindo a exclusão e impedimentos cistemáticos. Há um projeto político de extermínio da população trans, projeto que carece de atenção, pois não se inicia e encerra no assassinato, mas contempla os exercícios de mortificar, excluir, patologizar e retirar os poucos direitos adquiridos por tantas lutas (Ravena, 2020RAVENA, Isadora. Sinfonia para o fim do mundo. 3. Ed. Fortaleza, LAC, 2020.). Esse caso representa essa retirada de direitos e o entendimento como “cidadãos de bem” daqueles dentro da norma, que não poderão ser contraditos ou expostos por sujeitas abjetas.

A partir desse caso, as funcionárias foram novamente registrar em ata do condomínio o ocorrido e realizar uma reclamação na secretaria, sendo recebidas com agressões e com o requerimento de que elas retirassem a placa (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.). A mesma perseguição se dava com o bar Nesganega, também localizado no Maletta e com funcionários trans. Muitas vezes se manifestava por uma suposta reclamação de vizinhos à secretaria sobre o volume das músicas, apesar dos demais bares estarem com música no mesmo volume.

Além das denúncias na secretaria, as gerentes da Olÿmpia solicitavam recorrentemente a ela que fosse realizada uma campanha ou treinamento com demais pessoas funcionárias e proprietárias (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.).

Relevante nesses casos, também, é a busca pela desindividualização e desprivatização do sofrimento decorrentes da transfobia. Embora haja uma ineficácia do cistema, foi procurada a administração do prédio, policiais, redes de militância e de afeto, parcerias, noticiários, dentre outros que podem não ter chegado a esta pesquisa. Foucault (1993)FOUCAULT, Michel O anti-édipo: uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade, v. 1, n. 1, São Paulo, Núcleo de estudos e pesquisas da sub-jetividade do programa de estudos pós-graduados em psicologia clínica da PUC-SP, 1993, pp.197-200. aponta a necessidade de se combater microfascismos que se inserem no cotidiano, diminuem e mortificam, em níveis simbólicos, vidas. Também alerta que aqueles atos do fazer rir têm poder institucional de matar (Foucault, 2010).

Em fevereiro, o advogado do proprietário da loja foi ao estabelecimento informando que o contrato estava vencido e que não o renovariam. Portanto, teriam 30 dias para se retirar. Apesar de ter falado que mandaria uma carta posterior com as mesmas informações, até hoje, nada foi recebido, de acordo com a gerente do estabelecimento. O contrato venceu em janeiro, mas contém a previsão de que, se não houver uma carta formal o rescindindo, o mesmo é prorrogado por tempo indeterminado. O pagamento de 5 taxas de condomínio estava atrasado, mas com aluguel em dia até o pedido de retirada, momento em que pararam de efetuar o pagamento.

Libernina tentou contatar o proprietário que bloqueou suas chamadas após não as responder. Ao encontrar o advogado, ele a informou de uma oferta de 6 mil reais pela loja e disse que, se quisessem lá continuar, teriam que cobrir o valor. Anteriormente, o valor era de quase 1/5 deste, o que tornava inviável tal possibilidade.

No início de março, o síndico passou na Olÿmpia à procura do responsável e conversou com a Rafa. Ordenou que retirassem a placa e, em meio a agressões verbais e físicas, o segurança do local interveio. A todo momento, ele a chama pelo masculino e de “viado”, dizendo enxergar um homem (Olÿmpia, 2020).

Em seu relato, Libernina (2020) lembra, ainda, que o condomínio passou a intervir apenas quando colocaram a placa, devido às reclamações de quem trabalha no bar ao lado. Aqui entra o pacto narcísico de que trata Bento (2002)BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese (Doutorado em Psicologia), Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002., como referido anteriormente: somente quando o incômodo é de quem está na posição de poder é que providências serão tomadas. Após a repercussão que se deu pela postagem do vídeo e de reportagens a respeito desse último acontecimento, o síndico, o dono da loja e seu advogado não mais entraram em contato com elas.

Libernina ressalta que o objetivo nunca foi lucrar, era uma causa social, de contratação de pessoas trans. Relata que, inclusive, o bar foi recebido por elas com dívidas. Com essa crescente higienização do local e aumento do desrespeito, a vontade de manter o bar no Maletta diminuiu. Segundo a gerente (Damasceno, 2020DAMASCENO, Libernina Andrade. Depoimento concedido à Comissão de diversidade sexual e de gênero da OAB-MG. Belo Horizonte, 2020.), o objetivo é saírem de lá, uma vez que não querem ter que sofrer essas agressões rotineiramente. Pensam em ter o próprio espaço em outro local, possivelmente junto ao bar Nesganega, proporcionando eventos culturais. No entanto, revela que, financeiramente, isso ainda não seria viável.

Esse último acontecimento foi o estopim, mas foram diversos casos, além dos aqui retratados, que foram impedindo a presença delas nesse território. O espaço público é um espaço de produção da masculinidade heterossexual, de homofobia e homoerotismo, assim como do prazer provocado por essas segregações (Preciado, 2017PRECIADO, Paul. Cartografias “queer”: o “flâneur” perverso, a lésbica topofóbica e a puta multicartográfica, ou como fazer uma cartografia “zorra” com Annie Sprinkle. Revista Performatus, ano 5, n. 17, Inhumas, 2017 [https://performatus.net/traducoes/cartografias-queer/ - acesso em: 10 mai. 2020].
https://performatus.net/traducoes/cartog...
). Em vez de homofobia e homoerotismo, pode-se pensar a título de transfobia e transerotismo. Segundo Boletim da Antra (Benevides, Nogueira, 2019), esse processo de exclusão – que criminaliza e desqualifica vidas por valores sociais pautados em dogmas religiosos que buscam colocar corpas em representações preconceituosas e estereotipadas – rotula mulheres trans como imorais diante da sociedade em que estão inseridas.

A sociedade naturalizou esse processo de exclusão que ensina pessoas a sentir medo perante travestis – que, por sua vez, são por esse processo impedidas de transitar nas ruas – e a evitar espaços onde elas estejam, por representarem risco às “pessoas de bem” (Benevides, Nogueira, 2019). Essa existência marginal e marginalizada desperta ódio e desejo diante da subversão representada por essas corpas, que ocasiona a tentativa de associá-las a atividades ilícitas, as quais “justificam” a violência contra elas ou seu assassinato (Benevides, Nogueira, 2019). O “equilíbrio” dos espaços de “pessoas de bem” depende da ausência de corpas trans e, quando ele é perturbado, a forma de o reinstaurar é pela violência, que as expulsa, sem que sua busca para acionar cistemas públicos de proteção surta efeito ou que outras pessoas no ambiente as apoiem.

Nossas resistências se fazem destas dores, destas memórias trágicas de passados e presentes, e também das memórias que vamos produzindo a cada momento: nossas existências e nossos corpos12 12 Não se utiliza “corpas”, uma vez que é uma citação direta. , sobreviventes a racismos e cissexismos interseccionalmente localizados, produzem as histórias, afetos e esperanças que perfuram o véu higienista+elitista branco+cisgênero e mostram que, sim, a história é nossa. Apesar de todos os pesares.

Tratadas como epidemia, vetor de transmissão do indesejável a famílias e círculos sociais higienizados, batizados, ungidos: poderemos perceber e analisar, para além da obviedade sangrenta dos ódios transfóbicos explícitos, todo desprezo e colonialidade que mal se escondem nas entrelinhas de intere$$es, ignorâncias e silêncios que nos atravessam as vidas? E como responder a todas estas violências, especialmente se nos propusermos uma recusa a fortalecermos um cistema prisional brutalizante? (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado Multidisciplinar), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2015.:219).

Em seu relato, Libernina expõe sempre a busca para que a administração do Maletta efetue algum treinamento com funcionários ou campanha para que se torne um lugar mais inclusivo, mesmo que o Olÿmpia tenha que ser transferido. Manifesta em seu depoimento o desejo de uma possível indenização por danos morais e materiais.

Após terem procurado assessoria jurídica pelo Transpasse13 13 Transpasse é um projeto, em Belo Horizonte, que une integrantes da ONG Transvent, da Clínica de Direitos Humanos da UFMG, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e do Instituto DH. , entraram em contato com a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-MG, que está apurando a denúncia de discriminação (G1, 2020). No entanto, até junho de 2020, a situação encontrava-se paralisada, tendo em vista o isolamento social em virtude da pandemia de Covid-19. O Decreto 17.304 de 18 de março de 2020 foi editado, impossibilitando bares de funcionar, direcionamento que se manteve por muitos meses.

A partir do cenário demonstrado, as opções para judicializar o ocorrido parecem inúmeras: podem buscar uma indenização por danos morais e materiais; habeas data requerendo as filmagens das câmeras de segurança e qualquer documentação que comprove os ocorridos; podem alegar abuso de autoridade pelos policiais; ou, na esfera criminal, alegar crime de transfobia, que faria parte do crime de homofobia, análogo ao de racismo após decisão do STF na ADO. n. 26 e MI. n. 4.733 em 2019. Ademais, seria possível a permanência delas no local pela continuidade do contrato, conforme estabelecido anteriormente. Além dessas possibilidades, existem diversas outras que podem ser pensadas; no entanto, será que existe alguma que garanta que, desta vez, a permanência do bar no local seria isenta de transfobia, agressões e violências verbais? Seria o cistema judiciário, nesse caso, capaz de surtir efeitos sobre as violências cotidianas? Seria ele capaz de evitar possíveis retaliações?

Colocamos o "O Bar ao Lado é Transfóbico" para ficar subjetivo e provocativo mesmo, porque tanto o bar que está bem ao lado da Olÿmpia, aqui dentro do Maletta, quanto bares fora do Maletta, no centro e onde quer que seja em BH e Região metropolitana e no mundo, são a maioria transfóbicos sim, os poucos que não são que lutem e se posicionem de verdade para mostrar que não são!

Sem citar nomes, já estamos sofrendo perseguição, imagina se falarmos o nome dos bares que são transfóbicos e que estão envolvidos com milícia e tráfico. A poeta Rosa Luz muito bem disse “Se a morte não chegou é mais um dia de sorte”, e nós não temos tempo para ter medo da morte, mas já nos resta tão pouco pra viver, pra gente morrer assim e ninguém se importar, e as pessoas continuarem passando pano e frequentando esses lugares como se nada tivesse acontecido, como continuam frequentando mesmo depois de vários casos de transfobia que já aconteceram nesses lugares (Olÿmpia, 2020).

Foi realizada uma publicação com o mesmo objetivo no Facebook:

Bem como nós da Olÿmpia, ao expor a transfobia que sofremos no Edifício Maletta pelo bar ao lado, acabamos sofrendo uma tentativa de coerção e silenciamento pela polícia militar, que foi chamada pelo referido bar contra a gente. Apesar da insegurança de fazerem algo mais contra a gente, não vamos deixar de falar sobre isso, pois já basta o que temos que passar, não somos obrigades a fingir que nada aconteceu e sorrir para os nossos algozes (Olÿmpia Coop Bar, s.d.OLŸMPIA COOP BAR b (olympiacoopbar). Sobre. Belo Horizonte. [s.d.] Facebook: olympiacoopbar [https://www.facebook.com/pg/olympiacoopbar/about/?ref=page_internal - acesso em: 9 jun. 2020].
https://www.facebook.com/pg/olympiacoopb...
, b).

Se apenas uma placa denunciando já é capaz de gerar retaliações nessas proporções, e a reclamação sobre terem jogado água suja em alunas do Transvest leva a uma ameaça de morte para que o caso não seja levado à polícia, é difícil imaginar que a judicialização do caso consiga minimizar a transfobia rotineira, que segue demonstrando quão descartáveis são essas vidas para a hegemonia.

Primeiramente, é necessário ressaltar que o processo judicial poderia levar a uma revitimização. Apesar de grande parte dos avanços institucionais da pauta LGBTI+ ter se dado por decisões do STF, o discurso do judiciário, assim como grande parte das decisões tomadas em casos concretos, ainda vai contra pessoas trans. O judiciário costuma associar travestilidade a práticas ilícitas, atribuindo caráter de periculosidade a essa identidade. Muitas vezes essa análise é prejudicada quando somado a questões de raça (Pereira, Rausch, Moreira, 2017PEREIRA, Bruno Campos; RAUSCH, Antonio Augusto Lemos; MOREIRA, Lisandra. Construções Discursivas de Transgeneridade e Travestilidade na Jurisprudência. In: XIX Encontro Nacional ABRAPSO. Uberlândia, 2017.).

A pressão política e denúncia por meio da mídia e ações de militância que deem visibilidade à causa podem também auxiliar em casos como esse. No caso em questão, as funcionárias estão se articulando com a Gabinetona14 14 “Gabinetona” é uma ocupação cidadã da política institucional, ou seja, a reunião de 4 mandatos parlamentares em um mandato coletivo. e já foram realizados eventos, como o Malettrans, e convocações para que pessoas não frequentem bares transfóbicos, como a campanha “o bar ao lado é transfóbico: evitem lugares assim” (Olÿmpia, 2020). O Malettrans (Olÿmpia Coop Bar, s.d.OLŸMPIA COOP BAR b (olympiacoopbar). Sobre. Belo Horizonte. [s.d.] Facebook: olympiacoopbar [https://www.facebook.com/pg/olympiacoopbar/about/?ref=page_internal - acesso em: 9 jun. 2020].
https://www.facebook.com/pg/olympiacoopb...
, b) é um evento de ocupação do Maletta por pessoas trans e aliadas, com os pontos de apoio sendo o Olÿmpia Coop Bar e o Nesganega Africando, trazendo desfiles e performances para visibilizar a existência dessas pessoas nesses espaços.

O termo “ocupar” guarda especial relevância, porque indica que essas corpas não podem existir nesse local sem que haja um tencionamento para essa inserção. Tem-se um projeto político-ideológico que impede esse acesso, hegemonias que criam um conjunto de relações de poder, que são centrais no campo social. Hegemonia depende de um antagonismo, que transforma um território em disputa de poder. O conjunto de violências apresentado tem como consequência o apagamento de diferenças para se estar em determinado local ou a uma resistência que impossibilita o estar em tranquilidade no mesmo.

É preciso se atentar à estruturalidade da demanda, em vez de isolar casos. As formas de manifestações disruptivas do cistema posto são inúmeras e constantes; todavia, é preciso que busquemos possibilidades jurídicas de segurança e acessibilidade de corpas dissidentes a esses espaços.

Obstáculos ao enfrentamento da situação pelo âmbito judicial

O Brasil, ao ser tradicionalmente considerado “paraíso sexual” por alguns, apaga hierarquias e exclusões que atravessam as experiências sexuais, afetivas e identitárias (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.). Jair Bolsonaro foi eleito presidente em 2018 com uma campanha repleta de discurso de ódio e notícias falsas, desqualificando a democracia, utilizando preconceitos e estimulando violência contra grupos minorizados, além de ter aproximação com uma política de controle moral e sexual. A moralidade conservadora é um dispositivo central de sua trajetória (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.).

O Presidente atual mobiliza valores associados à defesa de um ideal de família tradicional, cis-heterossexualidade compulsória e visão de mundo religiosa. Isso resulta em pânico moral por muitos grupos, como pessoas LGBTI+ (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.).

Há uma marcante omissão do Legislativo, sobretudo pela hegemonia de uma bancada fundamentalista religiosa com capacidade de veto a temas moralmente sensíveis, que está cada vez mais favorecida (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.). O Poder Judiciário, valendo-se de seu papel contramajoritário, tem sido o campo possível para acesso a direitos LGBTI+ (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.); porém, ainda em termos de direitos abstratos, pouco em termos de judicialização, que será tratado posteriormente.

O Poder Executivo no campo de políticas públicas a níveis federativos seria relevante, principalmente, pela possibilidade de atuação na educação, cultura e saúde. No entanto, em vez disso, tem-se utilizado tal força para gerar uma espécie de patrulha moral (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.). Consequência desse cenário é a precariedade e fragilidade de políticas de gênero e sexualidade, além de inconsistência, por dependerem do Governo vigente para sua continuidade e efetividade (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.).

Tem-se um aparato legal-jurídico que garantiria os direitos iguais. Sendo assim, o “fracasso” de inserção na sociedade de pessoas que seriam abarcadas por essas garantias, muitas vezes, é tratado como uma responsabilidade ou “culpa” delas mesmas, assim como quando ocorrem violências propriamente ditas (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.). Isso demonstra mais uma faceta do fato de que as leis nem sempre são capazes de alterar mentalidades.

O caminho mais apropriado seria o oposto, de acordo com Bento (2017)BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017., diante de debate e enfrentamentos na sociedade, construindo ambiente favorável para sua implementação. A criminalização do racismo não foi capaz de impedir o racismo; a criminalização da homotransfobia, por si só, dificilmente será capaz de impedi-la.

Em um Estado Democrático de Direito, o direito é responsável pela produção de saberes, práticas, regulações e serviços e produz efeitos extensos em afirmação de verdades e produção de subjetividades (Cidade e Bicalho, 2017CIDADE, Maria Luiza Rovaris; BICALHO, Pedro Paulo Gastalho. A racionalidade médico-jurídica dos processos de alteração do registro civil de pessoas trans no estado do Rio de Janeiro. Revista de Direito, v.9, Viçosa, MG, 2017, pp.161-203.). Assim, ele precisa debater questões atuais, de pessoas que vivem, circulam e se encontram, que buscam judicialmente a resolução de conflitos e que efetivam soluções próprias que produzem recriações do direito (Cidade e Bicalho, 2017CIDADE, Maria Luiza Rovaris; BICALHO, Pedro Paulo Gastalho. A racionalidade médico-jurídica dos processos de alteração do registro civil de pessoas trans no estado do Rio de Janeiro. Revista de Direito, v.9, Viçosa, MG, 2017, pp.161-203.). Não é possível que o Direito seja um cistema à parte da realidade, reivindicando uma posição neutra em meio a conflitos sociais.

O debate público sobre pessoas LGBTI+ está mais possibilitado, mas, quando em relação a pessoas trans, está ainda muito incipiente (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.). No entanto, recentemente, mesmo a viabilidade de diálogo público a respeito do restante da comunidade LGBTI+ retrocedeu. Não se trata de entender que a realidade anterior não era de exclusão de pessoas LGBTI+ do espaço público, mas de que havia um certo avanço que, agora, aparenta retroceder, e de que a discriminação está em um ambiente de maior aceitação.

O Dossiê de 2019 apresentado pela Antra relata casos de “travestis sendo atacadas ou assassinadas aos gritos de ‘bolsonaro’”. Esse nome tornou-se uma ameaça contra quem desafia o cistema:

Assim como o capitalismo, o racismo e o machismo, essa violência tem dinamizado suas formas de perpetuar o poder que autoriza quem manuseia essas ferramentas de opressão e de violência sobre os corpos15 15 Não se utiliza “corpas”, uma vez que é uma citação direta. que são matáveis. Acreditamos que a LGBTIfobia, especialmente a Transfobia, também tem migrado do epicentro do ódio para assumir outras formas, em que matar seria o ponto mais extremo e a violência passa a se intensificar sob outros aspectos, simbólicos, psicológicos, estruturais e institucionais (Benevides, Nogueira, 2019:8).

É nesse paradoxo de avanços da pauta e aumento da violência que vêm sendo construídas ferramentas, relatórios, dossiês, cursos e cartilhas para agregar medidas eficazes no combate à violência e em sua prevenção (Benevides, Nogueira, 2019).

Segundo Foucault (1985)FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1985., o poder no campo da sexualidade não é apenas de proibição e restrição, mas também de estímulo e coerção de profusão de discursos sobre, pautando padrões inteligíveis. É perceptível que essa contaminação do debate público já produziu consequências no imaginário brasileiro (Quinalha, 2019QUINALHA, Renan. Desafios para a comunidade e o movimento LGBT no Governo Bolsonaro. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.70-83.).

Apesar desse cenário, existe um grande número de normas que buscam a inclusão de pessoas LGBTI+ no cistema. Elas se pautam em uma lógica assimilacionista, em vez de proporcionar rupturas, assim, ao mesmo tempo que pessoas mais próximas do considerado “normal” conseguem acessar alguns espaços, desde que apaguem ao máximo suas diferenças, a maioria permanece vivendo uma precariedade induzida. Ademais, essas iniciativas têm pouco apoio político, o que as mantém como medidas isoladas e setorizadas (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.).

Durante os últimos anos, alguns direitos protetivos de pessoas LGBTI+ foram reconhecidos pelo STF. Em 2019, por exemplo, tivemos a já mencionada interpretação pelo STF da homotransfobia como tipo de racismo, portanto, penalizável como um crime inafiançável igualmente. Concomitantemente, não há um sistema estatal efetivo de denúncia, o que dificulta a materialização desse direito. Essa interpretação é uma “gambiarra” no judiciário (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.), cuja eficácia é duvidosa. Segundo Bento (2017)BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017., o mesmo Estado que reconhece o direito, em algumas hipóteses, o nega e precariza.

Isso resulta na “subcidadania”, isto é, essas sujeitas não acessam todos os direitos supostamente garantidos à cidadania. A busca por igualdade, muitas vezes, produz esse apagamento, ignorando diferenças essenciais e colocando no indivíduo todas as explicações para a exclusão (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.).

Essa situação permite que pessoas LGBTI+ existam, desde que não cruzem linhas delimitadas e se contentem com a ficção da igualdade legal. Não é possível que “poluam” os espaços públicos com sua existência (Bento, 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador, EDUFBA, 2017.).

O espaço público reproduz o imaginário social, portanto, seria impossível estar desvinculado da cis-heteronormatividade; logo, é também marcado da rejeição de pessoas trans. Para que seja em algum momento retirado o estereótipo a elas imposto, é necessário que sejam visíveis e acessem o espaço público, sem que seja posta uma barreira entre os locais de acesso de pessoas consideradas inteligíveis e as abjetas.

É imperativo que se leve em conta o isolamento de grupos, o sentimento de pertencimento social, os casos de anomia e as crises de vínculos sociais e de coesão social (Filgueiras, 2004FILGUEIRAS, Cristina Almeida Cunha. Exclusão, Risco e Vulnerabilidade: Desafios Para a Política Social. In: CARNEIRO, Carla B.; COSTA, Bruno L. D. (org.). Gestão Social: o que há de novo? Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 2004, pp.25-34.:26). Tendo isso em consideração, o poder público deve pensar o espaço público como local em que se produzem e se mantêm processos de estigmatização presentes nas relações sociais.

Torna-se relevante ressaltar que existem hierarquias e apagamentos também em instâncias de crítica à normatividade que fazem certas pautas avançarem, ao passo que outras permanecem apagadas (Lustosa, 2016LUSTOSA, Tertuliana. Manifesto Traveco-terrorista. Revista Concinnitas, ano 17, v. 01, n. 28, Rio de Janeiro, UERJ, set. 2016.).

Em referência à dificuldade de avanços de pautas trans, Viviane Vergueiro (2016) questiona a validade de diversas alianças de movimentos autodenominados LGBTI+, mas que se centralizam em demandas de homens cisnormativos gays, brancos e de classe média e alta. Isso pode ser visto como estratégia para a obtenção de mínimos direitos para homens gays, brancos principalmente, que podem “esconder” mais sua abjeção e são mais capazes de serem assimilados, uma intenção de preferência para acelerar uma pauta mais possível de ser acolhida. Não devemos minimizar tais conquistas ou colocar o movimento gay como o problema em questão, mas compreender que os pleitos de pessoas trans, ainda mais se forem de uma intenção assimilacionista, continuam muito apagados.

Para isso, uma política pública que vá levar em conta pessoas trans precisa pensá-las como um grupo separado, tendo em vista as interseccionalidades presentes, não como abarcadas em qualquer política LGBTI+. É necessário desagregar os problemas vivenciados, com seus componentes, compreendendo efetivamente a realidade de diferentes setores sociais que são afetados por isso (Schwartzman, 2004SCHWARTZMAN, Simon. Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo. São Paulo, Augurium Editora, 2004.). Assim, eles seriam enfrentados de forma separada, para que a situação de “subculturas de marginalidade social” possa ser considerada por suas ações (Schwartzman, 2004SCHWARTZMAN, Simon. Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo. São Paulo, Augurium Editora, 2004.:110). As exclusões devem ser analisadas em seu sentido plural.

Quando ocorre a violação dos direitos já referidos, muitas vezes, busca-se o judiciário. A judicialização compreende o fenômeno da demanda cotidiana das instâncias jurídicas que legitimariam as relações cotidianas (Moreira, 2019MOREIRA, Lisandra Espíndula. Gênero e judicialização: Entre urgências, persistências e resistências. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.173-185.). As violações, antes naturalizadas, seriam passíveis de tutela pelo Estado. Trata-se de uma forma de fiscalizar a atuação do outro (Moreira, 2019MOREIRA, Lisandra Espíndula. Gênero e judicialização: Entre urgências, persistências e resistências. In: BAHIA, Alexandre de Moraes et al. (org.). Gênero, sexualidade & direito: dissidências e resistências. Belo Horizonte, Initia Via, 2019. pp.173-185.). Ocorre que ela só será um instrumento eficaz se as instituições de fiscalização, como órgãos da polícia, os juízes, e demais, tiverem compreensão das circunstâncias dessas vivências. Outrossim, mais do que isso, havendo investimento em políticas que favoreçam o acesso a espaços públicos do cotidiano, os conflitos judiciais podem ser evitados. A judicialização, no caso da Olÿmpia retratado, já falhou em alguns momentos anteriores. Apesar de demonstrada como uma solução insatisfatória por quem viveu essas agressões, uma nova tentativa caberia, se posta em prática junto a outras ações.

Paradoxalmente, grupos submetidos ao abandono estatal têm como única alternativa recorrer ao próprio poder estatal para buscar uma vida mais vivível (Butler, 2018BUTLER, Judith. Corpos e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. Tradução Fernanda Siqueira Miguens; revisão técnica Carla Rodrigues.). As instâncias de denúncia de ocorridos devem ser favoráveis a isso, assim como todos devem se autorresponsabilizar pela mudança, uma vez que o direito é consolidado, construído e perpetuado pelos cidadãos da sociedade. O poder é algo que circula, funciona e se exerce em rede (Foucault, 1998FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução: Roberto Machado. 13ªed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1998.). Não há alguém que é alvo inerte ou isento a ele – todos sempre funcionam como centros de transmissão (Foucault, 1998FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução: Roberto Machado. 13ªed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1998.). Dessa forma, cabe a todos, e em todas as instâncias, a ruptura com esse cistema que produz abjeções e violência.

Conclusão

No caso discutido no presente artigo, é possível perceber que, embora a militância tenha conseguido realizar relevantes avanços na garantia de direitos LGBTI+, o espaço público não consegue ser vivido por pessoas trans junto a pessoas cis de forma tranquila. É preciso que haja uma política pública que afete a cultura e os modos de vida, não apenas pela tipificação penal, por direitos abstratos ou corrigindo burocracias que as impediriam de ser quem são. O cenário demonstrado causa diversas vulnerabilidades, dentre elas, o aumento da insegurança, a dificuldade de empregabilidade e impasses à existência de espaços de socialização. Além de atitudes do poder público, é preciso que todos demandem essas mudanças, já que todos são responsáveis pela efetivação do direito. Devemos repensar atitudes, mobilizar coletivos, pressionar políticos, votar a partir dessa pauta e escutar:

Por isso a gente está convocando vocês pessoas cis com privilégios. Já passou da hora de vocês tomarem uma atitude e parar de passar pano e de frequentar esses lugares, ou começar a cobrar do lugar desconstruidíssimo que vocês vão, ter pessoas trans trabalhando lá, ao invés de achar o máximo que lá tenha banheiros unissex, e mais que isso, começar a valorizar e fortalecer o rolê de pessoas trans, ao invés de sempre endeusarem quem não é trans só porque eles não estão fazendo mais que a obrigação deles que é de respeitar as pessoas trans (Olÿmpia, 2020).

As mudanças significativas demandam o reconhecimento de vozes que apontam hierarquias reproduzidas até dentro de movimentos sociais (Melino, 2018MELINO, Heloisa. Feminismos e Movimentos LGBT – a Revolta de Stonewall: como marco de lutas pela despatologização e as semelhanças com o cenário acadêmico-ativista brasileiro. In: BOITEUX, Luciana; MAGNO, Patricia Carlos; BENEVIDES, Laize (org.). Gênero, feminismos e sistema de justiça: discussões interseccionais de gênero, raça e classe. Rio de Janeiro, Freitas Bastos Editora, 2018, pp.397-422.). As ocupações de espaços públicos por um grupo de pessoas trans, muitas vezes, são para acessá-los com segurança e dar visibilidade a essas corpas. Segundo Maria Léo Araruna (2018)ARARUNA, Maria Léo Fontes Borges. O direito à cidade em uma perspectiva travesti: uma breve autoetnografia sobre socialização transfeminina em espaços urbanos. Revista Periódicus, n. 8, v. 1, Salvador, BA, UFBA, abr. 2018, pp.133-153., elas podem ser uma mudança nos pressupostos do urbano cotidiano:

Aquele momento de união e solidariedade entre nós, lotando um espaço público da cidade, me proporcionou calmaria. Eu, pela primeira vez, estava vivendo a urbanidade de uma forma distinta: não estava cercada por interpelações e abordagens cunhadas no constrangimento cisnormativo (Araruna, 2018ARARUNA, Maria Léo Fontes Borges. O direito à cidade em uma perspectiva travesti: uma breve autoetnografia sobre socialização transfeminina em espaços urbanos. Revista Periódicus, n. 8, v. 1, Salvador, BA, UFBA, abr. 2018, pp.133-153.:149).

Trata-se de alcançar um processo político e coletivo contrário às relações discriminatórias e desiguais que permitem e legitimam a produção do espaço por meio da dominação física e ideológica de alguns em detrimento de outros (Lima da Silva, Morais dos Santos, 2015LIMA DA SILVA, Andréa; MORAIS DOS SANTOS, Silvana Mara. O sol não nasce para todos: uma análise do direito à cidade para os segmentos LGBT. Ser Social, v. 17, n. 37, Brasília, jul-dez. 2015, pp.498-516.).

As demandas que estão em pauta e as conquistas do movimento LGBTI+ são usos estratégicos da luta por direitos, porém, para transformar o cistema, é preciso avançar também em outros enfrentamentos de estruturas capitalistas que permanecem intactas (Bello, 2015BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucionalismo latino-americano. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 7 (1), janeiro-abril 2015, pp.49-61.). As disputas são feitas em ambientes de disparidade de força política, e, portanto, prevalece a estrutura como é, com pequenas diferenças, assimilando algumas pessoas abjetas dentro da forma da inteligibilidade. Os obstáculos materiais de implementação, como o econômico e cultural, impedem a concretização de uma ruptura maior (Bello, 2015BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucionalismo latino-americano. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 7 (1), janeiro-abril 2015, pp.49-61.). Dessa forma, as normas jurídicas que poderiam alterar esse cenário têm pouca efetividade.

Libernina aponta em seu relato a resistência que constituía a ocupação daquele bar, o incômodo que causava em tantas pessoas, sua persistência durante anos e o exaurimento de todas. Expõe a sua vontade de recriar o bar em outro lugar, onde teria maior facilidade de organizar eventos culturais e menos assédio, mas também revela a intenção de realizar campanhas e oficinas sobre pessoas trans, para facilitar o acesso delas ao Maletta em outro momento.

Essa luta cotidiana não foi em vão: ela seguirá com outras pessoas trans dispostas a ocupar territórios como esses. Além disso, a produção de vida e invenção de um futuro é, por si, só uma luta. Inventar sobrevivências e inventar redes é um potente ato de produzir vida. O direito à leveza, enquanto política de vida, é fundamental para a luta trans em meio a tanta dor coletiva (Cavalcanti, 2019CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42.). Nas linhas de medo e deslegitimação, estratégias de busca por leveza também são um caminho transformador para vidas atravessadas por impedimentos e negativas (Cavalcanti, 2019CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42.):

Talvez um grande segredo de sobrevivência que nossas ancestralidades trans nos sopram aos ouvidos é justamente como extrair alegria, coletividade e mesmo escárnio como ferramentas de guerra. Produzir felicidades ainda que breves em meio a um mundo hostil adquire a complexidade da produção das linhas de fuga que, por momentos, desestabilizam os destinos que as normas da cisgeneridade tóxica e compulsória traça para nós. Jota Mombaça, que diz o seguinte: é preciso aprender a desesperançar, a caminhar numa desesperança e encarar efetivamente o que está na nossa frente, que é esse passado colonial, e fortalecer estratégias que existem e estão aí (Cavalcanti, 2019CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42.:37).

Um desejo que Libernina aponta, ademais, é o de que não saiam impunes os atos de LGBTI+fobia ocorridos no espaço, apesar da intenção de retirar-se do ambiente e formar um bar em outro local.

A demanda é evidente, o direito não está tendo efetividade e o mais relevante é uma mudança de cultura para que haja respeito. Durante toda a narrativa, é possível perceber que elas nunca foram colocadas como vítimas, mas como autoras de ilegalidades, quando em busca de sobreviver e se manter no local. A produção de dados, a ocupação de espaços, a construção de campanhas informativas e a difusão de informações são pautas de movimentos sociais para que se tenha visibilidade. A proposta é vencer barreiras sociais sendo vistas como protagonistas de suas histórias (Pedra, 2018PEDRA, Caio Benevides. Acesso a cidadania por travestis e transexuais no Brasil: um panorama da atuação do Estado no enfrentamento das exclusões. Dissertação (Mestrado em Administração Pública), Fundação João Pinheiro, Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Belo Horizonte, 2018.). A circulação precisa ser possibilitada para além das “pistas”, e ela só ocorrerá havendo maior sentimento de segurança. Para isso, é necessária a atuação do Estado a partir dessas vivências do cotidiano e a atuação da população todos os dias para que desde já a mudança se concretize.

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  • VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado Multidisciplinar), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2015.
  • 1
    Utilizo o termo “trans” como termo guarda-chuva para englobar toda pessoa que vivencia seu gênero fora de modelos normativos predominantes, pessoas que não se identificam com o gênero atribuído a elas, como transexual, travesti, transgênera, gender queer, pessoas trans não binárias, etc. Compreende-se que há uma dinâmica identitária complexa que demanda distinções, no entanto, dado o escopo do artigo, opta-se por esse termo, sem intenção de representar uma unidade ou ontologia.
  • 2
    Algumas pessoas trans se apropriaram do termo “sujeito”, modificando-o para “sujeita”. Segundo Vergueiro (2015)VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado Multidisciplinar), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2015., busca-se uma outra epistemologia, um posicionamento político diante de colonialidade de identidades de gênero dissidentes, a partir dessa dissonância com a linguagem normatizada. O mesmo ocorre com o termo “corpas”, em vez de “corpos”. Essas expressões serão utilizadas em todo o artigo, embora a autoria em referência não o utilize, de forma a seguir esse posicionamento político. Quando se tratar de citação direta, no entanto, serão mantidas as versões originais.
  • 3
    É desafiadora a tentativa de descrever a transfobia, uma vez que se trata de uma violência estrutural que atravessa todos os âmbitos de existências. Cavalcanti (2019)CAVALCANTI, Céu. Patologizações, autodeterminações e fúrias – uma breve carta de amor. In: SOUSA, Ematuir Teles de; AMARAL, Marília dos Santos; SANTOS, Daniel Kerry dos (org.). Psicologia, travestilidades e transexualidades: Compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis, Tribo da Ilha, 2019. p. 28-42. aponta algumas das facetas por meio do relato de sua vivência: “Por falar em como um ideal de cisgeneridade autocentrada se estabelece como verdade absoluta a partir da negação do corpo trans, o ódio a essa possibilidade e a necessidade de desmascarar a suposta farsa que constitui a transgeneridade é tanta que nossas autodeterminações, nossos processos de transição e todos os circuitos de vida e afeto que tecemos a partir disso tornam-se ininteligíveis para pessoas que acreditam demasiado em sua suposta natureza cisgênera”. Essas violências são institucionalizadas principalmente pelo Direito, a medicina e a psicologia, que passam a regular corpas e construir uma norma do que seria natural, saudável e correto, que estão presentes no cotidiano de forma macro e micro. O ódio transfóbico, que forma signos de abjeção (Kristeva, 1989KRISTEVA, Julia. Poderes del horror. México, FCE, 1989.) mobiliza diversos aparatos, que levam desde ao enfrentamento direto, como assassinatos brutais, quanto ao apagamento e pautas e tentativas de boicote a avanços pequenos de medidas de proteção, atua em exclusões e impedimentos sistemáticos (Cavalcanti; Carvalho; Bicalho, 2018). Trata-se de discursos de verdade que fazem rir e que permitem o poder institucional matar (Foucault, 2002FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2002.). Relações de poder são criadas a partir da definição da norma que, historicamente, remete ao homem branco, cis, heterossexual, de classe média urbana e cristão, que atribui a “diferença”, levando a desigualdades e hierarquias (Louro, 2013LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre a sexualidade e a teoria queer. 2aed., Belo Horizonte, Autêntica, 2013.). Segundo Araújo (2018), ademais, “a transfobia é um vício branco”, pois é a branquitude que constantemente diz quem é humano e quem não é. Estão mais próximas da norma aquelas pessoas com características mais próximas da branquitude e seu ideal.
  • 4
    A opção por manter o nome de Libernina, em vez de utilizar um pseudônimo, deu-se pela exposição já ter sido feita por ela mesma para repórteres e em redes sociais. Sendo assim, considero que seria inócuo, no caso apresentado, tentar preservar a privacidade da mesma, buscando o anonimato. Ademais, segundo Souza e Carvalho (2016)SOUZA, Solange Jobim; CARVALHO, Cíntia de Sousa. Ética e pesquisa: o compromisso com o discurso do outro. Revista Polis Psique, v. 6, n. esp., Porto Alegre, jan. 2016 [http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238-152X2016000100008&lng=pt&nrm=iso - acesso em: 13 mar. 2021].
    http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
    , não há uma ética universal aplicável a todas as pesquisas, e o anonimato como única opção se insere, em alguns momentos, como um paternalismo, que pode levar ao desprestígio à singularidade de uma história, invisibilizando a pessoa interlocutora.
  • 5
    “Cistema” é um termo cunhado por Viviane Vergueiro, que será definido ao longo do artigo. Será utilizado esse termo sempre que a palavra “sistema” for escrita, independentemente da referência de autoria utilizar ou não essa variação de escrita.
  • 6
    Utilizo esse termo para denotar todas as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer.
  • 7
    Refiro-me a qualquer pessoa trans, sendo pessoa não-binária ou de qualquer outra identidade, contanto que lida por outros em ambientes públicos como mulher trans.
  • 8
    A pesquisa utilizou uma amostra de 141 travestis e transexuais; é considerada representativa, tendo em vista o caráter transitório e flutuante desses segmentos populacionais no espaço urbano, junto à extensão do questionário, que dificultou o acesso (NUH, 2016NÚCLEO de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (Nuh). Direitos e violência na experiência de travestis e transexuais na cidade de Belo Horizonte: construção de um perfil social em diálogo com a população. Relatório. Belo Horizonte, UFMG, 2016 [http://www.nuhufmg.com.br/gde_ufmg/index.php/projeto-trans - acesso em: 10 mai. 2020].
    http://www.nuhufmg.com.br/gde_ufmg/index...
    ).
  • 9
    A amostra contou com 1350 pessoas, dentre as quais, apenas 4 responderam se sentirem seguras no Brasil (Antra, 2019).
  • 10
    Não há referência a números absolutos relativos a esse percentual no dossiê. Tem-se, no entanto, a explicação metodológica que o baseia: “A metodologia segue o padrão internacional da ONG Transgender Europe – TGEU. Novamente, salientamos que não existem dados governamentais sobre os assassinatos de pessoas trans no Brasil. O levantamento é feito de forma quantitativa, visto que não existem dados demográficos a respeito da população trans brasileira, e a partir de pesquisa dos casos em matérias de jornais e mídias vinculadas na internet, de forma manual, individual e diária. Há, ainda, aqueles casos em que nenhuma mídia cobre ou publica o assassinato e, por conta disso, contamos com relatos de pessoas locais, conhecidos ou instituições LGBTI que publicam informações sobre pessoas assassinadas e/ou são enviadas informações através da rede de afiliadas da ANTRA e parceiros, além dos mais diversos meios e canais de comunicação (E-mail, Facebook, Whatsapp, etc)” (Antra, 2019:6)
  • 11
    O termo rolê vem de gíria comum no Brasil, que significa circular pela cidade para se divertir. Entretanto, esse encontro para lazer se tornou uma violação de direitos, com grande repercussão em 2013, quando jovens de periferia, majoritariamente negros, encontraram-se em um Shopping Center de São Paulo (Barbosa-Pereira, 2016BARBOSA-PEREIRA, Alexandre. Os “rolezinhos” nos centros comerciais de São Paulo: juventude, medo e preconceito. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 1 n. 14, Colômbia, Universidade de Manizales, 2016, pp.545-557.). Lojistas, administradores e frequentadores do Shopping se sentiram ameaçados pela aglomeração de jovens brincando e fazendo barulho, cantando músicas de funk ostentação, e chamaram a polícia, que agiu com truculência (Barbosa-Pereira, 2016BARBOSA-PEREIRA, Alexandre. Os “rolezinhos” nos centros comerciais de São Paulo: juventude, medo e preconceito. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 1 n. 14, Colômbia, Universidade de Manizales, 2016, pp.545-557.). O funk ostentação, resumidamente, é uma modalidade de funk que exalta a posse de dinheiro, compra de grifes, carros e bebidas. O funk e bailes funks já são estigmatizados e criminalizados. Hershmann (2005)HERSHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2005. questiona a estigmatização como sendo do segmento social que é protagonista dessa expressão cultural. Os rolezinhos evidenciaram questões de convívio, segregação e estigmas entre segmentos da população, trazendo a discussão do lugar do pobre, seu direito ao lazer e acesso à cidade, expondo fissuras sociais (Hershmann, 2005HERSHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2005.). Esse movimento pode ser compreendido como uma cidadania insurgente, pessoas cidadãs reivindicando um espaço para si, provocando ruídos no discurso hegemônico segregador. A possibilidade de esse grupo social estar presente nesses locais é de modo “disciplinado” e “vigiado”, para não configurar uma ameaça. Desde esse acontecimento, rolezinhos foram organizados como manifestação política de ocupação de espaços negados, assim como passaram a ser chamados de rolezinho também os encontros de pessoas LGBTI+, por trazerem conceito semelhante.
  • 12
    Não se utiliza “corpas”, uma vez que é uma citação direta.
  • 13
    Transpasse é um projeto, em Belo Horizonte, que une integrantes da ONG Transvent, da Clínica de Direitos Humanos da UFMG, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e do Instituto DH.
  • 14
    “Gabinetona” é uma ocupação cidadã da política institucional, ou seja, a reunião de 4 mandatos parlamentares em um mandato coletivo.
  • 15
    Não se utiliza “corpas”, uma vez que é uma citação direta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2020
  • Aceito
    25 Jan 2022
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