Acessibilidade / Reportar erro

Notas sobre gênero e modernização em Moçambique* * Arnfred, Signe. Notes on Gender & Modernization. In: ______.Sexuality & Gender Politics in Mozambique. Rethinking gender in Africa. Rochester, NY, Boydell & Brewer Inc., 2011, pp.39-61. Tradução: Osmundo Pinho. Revisão: Daniela Ferreira Araújo Silva. O comitê editorial dos cadernos pagu agradece à autora a autorização para publicar este texto.

Notes on Gender & Modernization

Resumo

Com base em trabalho de campo realizado em Moçambique entre 1981 e 1984 e através da análise de extensivos dados sobre mulheres e relações de gênero, a autora discute os chamados processos de desenvolvimento na África, a partir do que pode observar do seu desdobramento em Moçambique e de seus efeitos sobre as mulheres. Do ponto de vista particular da vida das mulheres, as políticas de desenvolvimento, inicialmente socialistas e mais tarde, neoliberais, levadas a cabo pelo FRELIMO não fizerem muita diferença, o que a autora explora a partir de material etnográfico de diversas regiões do país

Palavras-chave:
Moçambique; Desenvolvimento; Modernização; FRELIMO

Abstract

Based on fieldwork carried out in Mozambique between 1981 and 1984 and through extensive analysis of data on women and gender relations, the author discusses the so-called development processes in Africa, taking in consideration their deployment in Mozambique and its effects on women. From the particular point of view of women's lives, development policies, carried out by FRELIMO, initially socialists and later neo-liberal, didn't make so much difference, which the author explores grounded in ethnographic material from various regions of the country.

Keywords:
Mozambique; Development; Modernization; FRELIMO

Em um ensaio de 1976, a historiadora feminista Joan Kelly resumiu o seu trabalho em história das mulheres como segue:

De fato, o que emerge (quando o estudo da historia é abordado do ponto vista particular das mulheres) é um padrão bastante regular de perda de status por parte das mulheres precisamente naqueles períodos de mudança progressista... Nossas noções sobre os chamados desenvolvimentos progressistas, tal como a civilização ateniense clássica, a Renascença e a Revolução Francesa, sofre assim uma severa reavaliação (Kelly, 1984Kelly, Joan. Women, History and Theory. Chicago, University of Chicago Press, 1984.:2).

Com base em meu trabalho em Moçambique entre 1981 e 1984, e mesmo depois disso, através da análise de extensivos dados sobre mulheres e relações de gênero1 Os dados foram coletados como parte da preparação para a Conferência Extraordinária da OMM (Organização da Mulher Moçambicana) 1984. A procedência do material é diversa, e as citações estão convenientemente assinaladas. "SA entrevista" indica material reunido por mim mesma entre 1981-82 e posteriormente durante o processo de preparação da conferência. "OMM entrevista" são dados da transcrição direta das entrevistas ou contribuições orais coletadas por outros. "OMM relatório" é material da OMM compilado pela OMM com base nas reuniões ao nível distrital ou provincial durante o processo da preparação da Conferência Extraordinária. , eu amplio esse argumento para incluir os chamados processos de desenvolvimento na África, a partir do que pude observar do seu desdobramento em Moçambique.

Moçambique é governado por um poder político, a FRELIMO, que desde 1964, com o início da luta armada contra o colonialismo português, até a aceitação das políticas de ajuste estrutural no final dos anos 80, lutou para estruturar o desenvolvimento em moldes socialistas. Infelizmente, contudo, do ponto de vista particular da vida das mulheres, as políticas de desenvolvimento, inicialmente socialistas e mais tarde, neoliberais, não fizerem muita diferença, e a "a regularidade constante de uma perda de status por parte das mulheres" permanece.

Eu cheguei a essas conclusões pela maneira mais difícil. Isso não era de maneira alguma o esperado. Pelo contrário, quando em 1981 comecei a trabalhar como socióloga na OMM, Organização da Mulher Moçambicana, eu era uma apoiadora entusiástica das políticas socialistas para as mulheres, considerando a introdução da mulher na produção social organizada (cooperativas, fazendas estatais, fábricas) como a principal rota conduzindo ao rompimento com o confinamento tradicional da mulher na família (e sob o poder patriarcal), abrindo, portanto, o caminho para a igualdade de gênero e a emancipação das mulheres.

Um sentimento desconfortável de que as coisas não eram tão simples foi me tomando durante meus anos na OMM. Mas foi apenas a partir de 1984, quando eu deixei Moçambique e meu trabalho na organização das mulheres, e embarquei em um projeto de pesquisa para analisar a massa de dados coletados entre 1982 e 1984 em preparação para a Conferência Extraordinária da OMM que surgiu um padrão mais geral de inter-relações entre processos de desenvolvimento/modernização de um lado, e, de outro, mudanças nas relações de gênero entre homens e mulheres. No que segue eu devo considerar tais inter-relações nos campos a) da iniciação feminina; b) dos sistemas de parentesco (matrilinearidade e patrilinearidade); c) das estruturas de produção; d) das religiões predominantes (cristianismo/islã).

Rituais de iniciação feminina de norte a sul

Duas descobertas interconectadas emergiram no processo de análise dos dados da Conferencia da OMM. Primeiro: que em diferentes partes de Moçambique o que as pessoas referiam como rituais de iniciação feminina não eram, ou não eram mais, a mesma coisa; segundo: presumivelmente, ao menos em parte, por causa disso, uma diferença marcada e sistemática entre Norte e Sul em Moçambique poderia ser notada nas atitudes de homens e mulheres para com os rituais de iniciação feminina.

Eu estou convencida que, no passado, os rituais de iniciação feminina eram mais ou menos similares por todo o país. Isso está sugerido pelo material da OMM, em que pessoas se referem aos rituais nos tempos antigos, por exemplo, nas províncias sulistas de Gaza e Inhambane, onde agora esses rituais virtualmente desapareceram, bem como segundo outras fontes antropológicas.2 2 Dados antropológicos sobre rituais de iniciação feminina em diferentes partes de Moçambique: H. A. Junod (1912/1974) sobre Gaza e Inhambane nos anos 30; Dora Earthy (1933/1968) sobre Gaza nos anos 1920. Sobre rituais de iniciação nos países vizinhos: Audrey Richards (1956.1982) sobre a Rodesia do Norte (Zâmbia) nos anos 1930; Terence Ranger (1972) sobre a Tanzânia do Sul nos anos 1920 e 1930; Marja-LiisaSwantz (1970/1986) sobre a Tanzânia Oriental nos anos 1960. Gostaria, portanto, de sugerir que as diferenças presentes em Moçambique, tal como emergem dos dados do material da OMM, foram produzidas pelo processo de modernização dos últimos 100 anos, afetando diferentes partes do país de maneiras distintas. Essas envolvem uma combinação de influências externas (das quais duas maiores, dinheiro e missões, devem ser investigadas aqui) e estruturas internas no interior das sociedades locais, ou seja, diferentes potenciais para adaptação ou resistência.

A Região Norte: socialização compartilhada e autodeterminação sexual feminina

No norte do país,3 3 Estão incluídas na região norte as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Zambezia e a parte norte da província de Tete. rituais de iniciação feminina (como os masculinos) eram importantes eventos comunitários antes da guerra de libertação. Os rituais representavam um anúncio público do fato de que a filha ou o filho de fulano havia agora passado da infância à vida adulta. Durante a Guerra de Libertação, que foi travada justamente nessas províncias do norte, predominantemente em Cabo Delgado, Niassa e Tete, a vida camponesa normal foi desenraizada a tal ponto que impediu que as celebrações continuassem em sua forma adequada. Após a independência, a FRELIMO rotulou os rituais de iniciação femininos como sendo atrasados e opressivos às mulheres, e campanhas políticas foram organizadas contra eles: "abaixo ritos de iniciação" (em português no original).

Quando, em 1982, eu estava fazendo entrevistas em Cabo Delgado, mulheres de toda parte se queixavam da interdição política aos ritos de iniciação. Uma mulher camponesa me disse:

Vejo um problema só na FRELIMO: a FRELIMO não quer que a pessoa faça o que bem entende com os seus filhos. Antigamente, quando eu era criança, tínhamos cerimônia, dançávamos e tocávamos tambor. Toda a população sabia que a filha da fulana estava nos rituais de iniciação, que ela agora era uma mulher. Eu tenho onze filhas, mas ninguém sabe, porque não as mandei para os ritos de iniciação. Agora, não tenho vontade arranjar casamentos para as minhas filhas, já que elas não passaram pelos ritos de iniciação (SA entrevista, Província de Cabo Delgado).

Nas províncias do norte, a frustração causada pela proibição dos ritos de iniciação feminina era muito evidente, e uma indicação de que até recentemente os rituais eram praticados de forma mais ou menos tradicional. Muitas pessoas continuaram realizando os ritos secretamente, mas foram forçadas a esconder aspectos importantes. Assim, a celebração comunitária compartilhada e os anúncios públicos da maturidade da filha estavam se perdendo.

No curso adequado dos eventos, os ritos de iniciação da mulher deveriam ser precedidos pelo aprendizado, por parte das meninas (entre 8 e dez anos de idade), sobre como manipular os pequenos lábios da vagina, a fim de alongá-los. Anteriormente, essa preparação era um aspecto integrado do tornar-se uma mulher em todo Moçambique. Aqui, uma descrição da província de Gaza:

Grupos de meninas iam para o mato fechado às 3 horas de madrugada, cada uma com uma capulana para cobrir no momento de trabalho, sentavam-se como quem vai dar à luz a uma criança. No primeiro dia eram orientadas pelas madrinhas (mulheres mais velhas encarregadas dos ritos) como fazer, e cada qual continuava por conta própria, usando determinada pomada para facilitar o processo. No decorrer deste trabalho as madrinhas fiscalizavam cada uma das jovens para verificar se estavam puxando satisfatoriamente, e notando que algumas haviam trabalhado pouco. Era altamente proibido que um homem aparecesse no lugar onde as meninas iam para esticar seus lábios vaginais. Caso um homem passasse por ali, ele era expulso por uma chuva de punhados de areia, e o local da iniciação era alterado logo em seguida (OMM entrevista, Província de Gaza).

Quando as meninas alcançavam a época de sua primeira menstruação, depois do cumprimento de vários rituais, elas deveriam ser isoladas por um certo período. Normalmente, o isolamento ocorria em uma cabana cerimonial construída para esse propósito. Durante a reclusão, o paradeiro das meninas deveria ser estritamente controlado, somente mulheres adultas e meninas pequenas teriam permissão para visitá-las na cabana. Para as mulheres adultas os ritos de iniciação pareciam ter uma dupla função. Além de ser a iniciação de suas filhas na vida adulta, eles também forneciam um tipo de espaço livre onde mulheres podiam se reunir por conta própria, sem a interferência dos homens. Esse era o lugar onde as mulheres se divertiam e brincavam entre si. Dois antropólogos portugueses trabalhando em Cabo Delgado, nos anos imediatamente anteriores à Guerra de Libertação, relatam o que viam em tais ocasiões:

As mulheres casadas da aldeia vêm e vão com os bebês amarrados às costas. Falam com alto e com animação. O seu comportamento é diferente daquele que mantêm diante os homens. É evidente que se sentem livres, estando entre si, e não faltam piadas picantes que façam todas rir. ...Os elementos cômicos mais usados eram movimentos sexuais estilizados, constantemente repetidos na dança, sempre recebidos por todos com grande exaltação. Aparentemente, estas mulheres que na presença dos homens se comportam sempre com dignidade, delicadeza e autocontrole, nesta ocasião estavam determinadas a compensar, libertando-se temporariamente de todos os fardos que a sociedade deposita sobre elas (Dias & Dias, 1970Dias, Jorge & Dias, Margot . Os Macondes de Moçambique, III: Vida Social e Ritual. Lisboa, Junta de Investigações de Ultramar, 1970. :219, 233).

A coisa toda é contraditória, contudo, porque ao mesmo tempo em que as mulheres mais velhas se divertem com piadas sexuais e muita alegria, elas são muito rígidas com as jovens, lhes dão provas e as espancam até que aprendam autocontrole, submissão e obediência aos homens. Dias e Dias também notaram as diferenças entre mulheres mais velhas e as mais jovens:

Em contraste com as mulheres alegres, as vaali [jovens candidatas a iniciação] mantem-se sempre sérias, sem contrair um músculo da cara, de olhos baixos, somo se nada se passasse à sua volta. Durante longas horas nunca as vimos sair do seu papel (Dias & Dias, 1970Dias, Jorge & Dias, Margot . Os Macondes de Moçambique, III: Vida Social e Ritual. Lisboa, Junta de Investigações de Ultramar, 1970. :220).

Claramente há uma relação de autoridade e dominação das mulheres mais velhas sobre as mais novas; isso é evidente em todo material da OMM.

Mas as mulheres cuidam dos assuntos de mulheres e os homens têm muito pouco a ver com ritos de iniciação feminina, além de atuarem ocasionalmente em papéis prescritos pela mulher mais velha à frente das cerimônias. Mas, se as jovens em iniciação aprendem obediência aos homens, elas também aprendem como se encarregar da própria sexualidade. Em continuação do alongamento dos lábios vaginais, as garotas serão ensinadas sobre como proceder na vida sexual de casada (diferentemente de atividades sexuais infantis, em que possam ter se envolvido anteriormente), como agradar o marido, como uma forma de agradar a si mesmas, tudo para propiciar relações sexuais felizes.

Apreciação dos ritos de iniciação feminina

O material da OMM fornece ricas evidências sobre o que esses rituais significavam nas províncias do norte. As mulheres (assim como os homens) estavam muito felizes com os ritos de iniciação feminina e insistiam na sua continuação. Aqui estão apenas alguns exemplos de declarações feitas nas muitas reuniões em que foi discutido esse tópico:

Quanto ao puxamento dos pequenos lábios é opinado na generalidade que se continue com este costume, porque tem como benefício travar o pênis na altura da cópula, isto é, permite a entrada lenta do pênis, comprimindo-o, para permitir que o homem e a mulher se sintam excitados. Os pequenos lábios são grande excitante do homem. Para tal, antes de manter relações sexuais, começa a se excitar puxando-os. Portanto, se os civilizados quando se copulam beijam-se e abraçam-se, para nós estes atos são caracterizados pelos pequenos lábios (OMM relatório, Província de Zambézia).

Essa atividade realiza-se simplesmente para haver um gozo sexual com o seu marido. As senhoras sem ter estes lábios, sem puxar, não são gostadas. Também tem outra particularidade de fazer levantar o pênis do homem com mais rapidez. E já se sabe que há homens alguns, que são fracos de sentir se o tempo é oportuno. Por isso mesmo essas têm necessidade de começar a apalpar esses lábios da mulher para poder sentir-se melhor como outros homens. Em resumo é para facilitar os homens manter relações sexuais (OMM entrevista, Província de Nampula).

Os ritos devem continuar, porque as pessoas que fazem isso ficam alegres por este processo. Acontece que o homem depois dos ritos de iniciação já tem todos os conhecimentos de como tratar a sua mulher, até saber como queimar aquela amêndoa chamada nphixshi, que se utiliza para pintar a vagina a fim de evitar escorregadio no acto sexual. Eu sou velha, mas quando aplica essa pomada torno como uma nova que qualquer homem que me apanhasse ficaria satisfeito ao dormir comigo. Essa satisfação poderia lhe obrigar que manhã seguinte levasse na enxada ir para o campo e trabalhar com toda a vontade (OMM entrevista, Província de Zambézia).

O alongamento dos lábios vaginais (chamado puxamento) torna a menina familiar com seu próprio potencial sexual desde muito nova, e a convenção de que o homem brinque com os lábios alongados da vagina antes do intercurso assegura preliminares adequadas, agradando a ambos os parceiros sexuais. Além disso, durante o período do isolamento, a menina vai começar a fazer tatuagens em seu corpo. Essas tatuagens são dobras de pele preenchidas com pó de carvão; quando cicatrizadas produzem uma superfície corporal irregular. Feitas com lindos desenhos, as tatuagens corporais são/eram consideradas como tendo um valor estético, assim como tendo importantes funções sexuais. É claro que dói um pouco fazê-las. Mas vale a pena:

As tatuagens, assim como as missangas (contas de vidro usadas em volta dos quadris) servem para motivar o homem, uma vez que alguns homens não sabem como excitar sexualmente uma mulher; quando eles sentem a necessidade de ter relações sexuais eles pegam a mulher de surpresa, e sob essas circunstâncias ela tem poucas chances de chegar ao orgasmo, que é o prazer sexual. Contudo se a mulher tiver tatuagens em seu corpo, usar missangas e tiver os lábios da vagina alongados, o homem tem que começar brincando com essas coisas. Ao fazer isso, a mulher fica preparada para o ato sexual resultando em satisfação para ambas as partes (OMM iw, Provincia de Zambezia).

A Região Central: preparação individualizada a fim de agradar ao homem

Na região central (as províncias de Sofala, Manica e o sul de Tete), a situação dos ritos de iniciação difere do norte; na região central (ao sul do rio Zambeze), as relações de parentesco seguem linhas patrilineares. Aqui, a expressão "ritos de iniciação" não parece se referir a nenhuma celebração comunitária. Pelo contrário, os chamados "ritos" parecem ser um assunto muito privado, prático e não ritualizado, apenas lidando com a preparação individual da menina para o casamento. O que era anteriormente uma socialização coletiva e compartilhada para a autodeterminação feminina, tornou-se aqui uma preparação individualizada:

O que eu conheço e que eu vi aqui na Beira, a preparação começa com 10 anos de idade. Quando a mãe vê que a criança atinge esta idade, manda-lhe acordar as 5 horas de madrugada para ir a casa de banho se preparar. Mas como as mães não tem prova de que a criança está a cumprir ou não, arranja uma mulher da família4 4 É sempre outra mulher, nunca a mãe ela mesma, que controla a filha a esse respeito. para ir ver de perto se a menina está a puxar os pequenos lábios (OMM relatório, Cidade de Beira5 5 Beira é a segunda maior cidade em Moçambique. ).

Os assim chamados "rituais de iniciação" nessa parte do país parecem ser pouco mais que isso, combinados com outros ensinamentos individualizados sobre movimentos sexuais para satisfazer ao homem. Não há nenhum sentido de um evento comunitário para marcar a passagem da menina de uma fase da vida para a próxima, nem os muitos sinais da sexualidade feminina autoconfiante do norte. Aqui as forças motrizes sob as "preparações" parecem ser certo medo de que os homens não se agradem e a menina permaneça sem casar-se.

Uma menina de 12 anos tem que ser submetida a esse trabalho. Se uma garota não passar por isso, os homens não vão quere-la. Apenas se ela foi preparada adequadamente com ajuda das velhas, o homem, no casamento, vai ser capaz de dizer: Agora com certeza eu arranjei para mim uma mulher! (OMM iw, Província de Sofala).

Em comparação com o norte, as meninas da região central são preparadas para serem objetos sexuais ao invés de sujeitos sexuais. E é claro que isso produz insegurança: os homens irão preferi-las assim ou assado? Essa não é uma questão simples em tempos de mudança, uma vez que alguns homens preferem as meninas "preparadas" da maneira tradicional (o que inclui tatuagens corporais, alongamento dos lábios vaginais, assim como habilidade de mover-se de maneiras específicas durante a relação sexual), enquanto outros consideram tudo isso antiquado e vergonhoso; eles apenas querem moças modernas com nenhuma preparação sexual. O dilema está colocado no relatório final de uma reunião na Beira:

Os homens querem mulheres iniciadas, porque dão mais gosto no acto sexual. O homem não precisa exigir tanta força. A movimentação das meninas do campo é melhor que a das mulheres na cidade. Faltando isso tudo o homem cansa-se depressa. Não dá vontade ao homem. Segundo os homens, os movimentos das raparigas do interior são melhores do que os das meninas da cidade. Noutro lado agora alguns homens nas cidades não querem mulheres preparadas.6 6 Dizem que cheiram mal, devido a um certo pano tradicional, que deixam secar no corpo (tradicionalmente as mulheres não podem tirar este pano; quem só pode tirar são os homens) (NT). Há homens que exigem às mulheres o uso de camisas de dormir e pijama, a que elas não se habituaram. Isto provoca uma certa angústia e ansiedade nas mulheres, que vêm os seus maridos procurarem mulheres mais novas e não iniciadas (relatório, Cidade de Beira).

Em consequência, nessas áreas do país as mulheres (e os homens) não estão seguros de que eles querem que os ritos de iniciação (ou melhor, o que restou deles) continuem; isso tudo está apenas criando problemas. A maré de mudanças fica realmente evidente em algumas das declarações nas diversas reuniões onde essas coisas foram discutidas: "As tatuagens corporais já estão em processo de extinção. As garotas que nasceram por volta dos anos 50 já não as têm mais. Amanhã serão consideradas uma desgraça" (OMM ix, Província de Sofala).

A Região Sul: nenhuma preparação sexual

Deslocando-se em direção ao sul existe muito pouco que possa razoavelmente ser chamado de rito de iniciação. Na província de Maputo, poucas pessoas parecem saber o que "ritos de iniciação" deveriam ser. Nas províncias de Gaza e Inhambane as pessoas têm longas histórias sobre como isso era no passado. O dilema da região central também é sentido aqui: se um homem espera que a garota seja "preparada" e ela não é, isso não é bom (esse era o problema dos tempos antigos), e se ele não espera que ela seja e ela é, não é bom também (esse é o problema atual). Assim, a conclusão alcançada em uma aldeia comunal em Gaza é amplamente partilhada:

As populações desta aldeia propuseram acabar com esta tradição, porque tem nos causado muitos problemas nas famílias. Antigamente quem não possuísse os lábios vaginais alongados era expulsa pelo seu marido, e agora quem continua a ter é rejeitada pelos homens (OMM relatório, Província de Gaza).

Matrilinhagem versus Patrilinhagem

O material da OMM, tal como relatado acima, sugere uma relação entre matrilinhagem e fortes tradições de ritos de iniciação femininos, e patrilinhagem com o enfraquecimento dos ritos. Contudo, a relação não é nem direta nem simples: 50 ou 60 anos atrás havia ritos de iniciação femininos muito fortes no sul patrilinear (Cf. Junod, 1912/1974 e Earthly, 1933/1968). Os diferentes sistemas de parentesco parecem ter reagido diferentemente às influências modernizantes, afetando estruturas econômicas, assim como as ideológicas. As diferentes implicações da matrilinhagem quando comparadas à patrilinhagem me soaram muito importantes do ponto de vista das mulheres, quando eu entrevistei e falei com mulheres do norte ao sul.

No Norte: Matrilinhagem

Visto de um ponto de vista patrilinear, um fato importante da matrilinhagem é que a transmissão hereditária da terra segue linhas femininas. Quando nas entrevistas isso nunca era mencionado era porque provavelmente a herança matrilinear não estava ameaçada; elas não viam a terra seguindo as linhas femininas como sendo nada específico. Isso seria apenas a maneira como as coisas funcionavam. O que as mulheres mencionavam, contudo, era a forma como elas obtinham o divórcio (atualmente em um processo de mudança, o divórcio se tornou mais difícil). Tradicionalmente, nessas áreas o casamento não é uma celebração muito solene e o divórcio é simples para ambas as partes. Contudo, após o divórcio é o homem que se muda, a mulher permanece na casa com as crianças. Isso é conectado ao fato de que o casamento é largamente matrilocal, o que significa que casal casado recentemente se fixa na terra da família da mulher, cercado por seus parentes (tios, irmãos, mães e irmãs).

Esse padrão de assentamento dá a mulher em áreas matrilineares considerável vantagem. Ela é quem está em casa, o marido é um estranho que é avaliado por seus afins: ele é bom para sua filha/irmã/sobrinha? Ele a trata bem? Ele trabalha bem? É provável que ele gere descendência para a família? Significativamente aqui, o que é testado na noite de núpcias não é a virgindade da mulher, mas a virilidade e a fertilidade do homem: As velhas ficam de olho na performance do jovem na cama e irão recolher um pouco de seu sêmen, examinando-o para verificar se ele fornece uma boa perspectiva de procriação. Em um cenário matrilinear não há preço da noiva (lobolo) envolvido, sendo ele ligado a sistemas patrilocais e patrilineares, como uma compensação para a filha que é dada em casamento. Contudo em locações matrilineares você frequentemente encontrará o serviço da noiva (brideservice): o potencial marido trabalhando por um certo período de tempo na terra da sogra. Esse é o período em que seu trabalho é avaliado e supervisionado: ele trabalha bem?

Além disso, a autoridade paterna e o controle da prole ficam com os tios (os irmãos da mãe), não com o pai. A relação próxima e importante não é entre pai e filho/filha, mas entre tio e sobrinha/sobrinho, isto é, os filhos da irmã. A autoridade paterna era outra questão frequentemente debatida durante a preparação da conferência da OMM, especialmente porque isso se chocava tão agudamente com o ideal moderno, politicamente promovido, da família nuclear: marido, mulher e filhos. Que bagunça então, que desordem insuportável, ter os tios e não o pai de verdade, o "Chefe da Família" [em português no original] controlando as crianças! (Significativamente seriam os homens a externar esse ponto de vista).

Patrilinhagem no Centro e no Sul de Moçambique

As mulheres vivendo sob os termos da patrilinhagem estão em uma situação muito pior em muitos aspectos, comparadas com suas irmãs do norte. Primeiro e mais importante, o casamento é muito mais vinculante e o divórcio muito mais difícil, visto do ponto de vista das mulheres. Isso está ligado aolobolo. O lobolo é uma transferência de valores da família do noivo para a família da noiva, permitindo a esta última se apossar de uma outra mulher (como uma esposa para um de seus filhos), dessa forma preenchendo o espaço vazio deixado pela filha que está se casando e indo embora.

No sul de Moçambique é a mulher que deixa a família a fim de se estabelecer com os parentes do marido nos primeiros anos do casamento. A jovem esposa está literalmente na casa de seus sogros, colocada sob a autoridade da mãe de seu marido, para quem ela trabalha como criada até que ela própria se torne uma mãe, e às vezes mesmo depois disso. Existem muitas histórias sobre as provações na casa da sogra, especialmente nos casos, frequentes no sul de Moçambique, em que o marido foi embora para a África do Sul como um trabalhador migrante, permanecendo por anos no estrangeiro. A sua jovem esposa está então presa com os parentes do marido, incapaz de partir por causa do lobolo.

Para a mulher divorciar-se, ela precisa convencer sua própria família, destinatária do lobolo, a devolvê-lo para o seu marido. Como muito frequentemente o lobolo já se foi, essa não é uma tarefa fácil. Consequentemente, haverá pressão sobre a mulher para que ela fique e suporte, mesmo um mau casamento. Para o homem, o divórcio é fácil. Ele apenas manda a esposa embora, de volta para os seus pais; fica na casa com as crianças (com exceção das muito pequenas, que seguem a mãe) e com os pertences do casal.

Geralmente, na porção patrilinear de Moçambique, a virgindade é uma questão de preocupação; a menina será controlada de diversas formas para assegurar que ela evitou o intercurso sexual antes do casamento, e na noite de núpcias a vigilância das velhas será dirigida a essa questão: ela é ou não é virgem? A primeira condição produzirá alegria e orgulho, a segunda trará vergonha para a sua família. Se acontece que nenhuma criança resulte do casamento, a culpa automaticamente recai sobre a mulher, sendo o fato uma razão perfeitamente aceita para o marido reivindicar o divórcio e devolver a esposa para seus pais - ou exigir uma segunda mulher da mesma família, sem loboloadicional.

Nas discussões da OMM muitas mulheres manifestaram-se contra olobolo, sendo ele visto como a razão para a situação precária das mulheres casadas, que ficam a mercê do seu marido e da família dele. Anteriormente, contudo, a mulher de quem todos tinham pena era aquela pela qual nenhum lobolo tinha sido pago, porque isso significava uma falta de respeito por parte do marido e consequentemente uma ausência de status para a esposa. Além disso, antigamente, julgando por fontes mais antigas (Junod, 1912/1974, Earthly, 1933/1968), mesmo sob condições de patrilinhagem, as mulheres possuíam um espaço, uma força e uma sexualidade para si. A vida das mulheres sob patrilinhagem não parecia tão diferente da vida das mulheres sob matrilinhagem, como parece atualmente. Parece que as condições para as mulheres nos dias de hoje são muito diferentes entre o norte e o sul, e as consequências da matrilinhagem/patrilinhagem mais pronunciadas do que anteriormente eram. Por quê? É minha hipótese que isso pode ser devido a que os diferentes sistemas de parentesco sejam diferentes veículos para modernização. Isso deveria ser investigado levando em consideração que as influências modernizantes, tanto econômicas quanto ideológicas, têm sido também diferentes em diferentes partes do país.

Modernização econômica

Modernização econômica tem frequentemente significado a transformação de economias de subsistência em (mais facilmente exploráveis) economias monetárias.7 7 Essas seções da história econômica de Moçambique estão baseadas em Marc Wuyts 1978, Centro de Estudos Africanos, 1979, eMalynNewitt, 1981. Isso também aconteceu em Moçambique com impostos, culturas comerciais e trabalho assalariado sendo introduzidos pelos portugueses e pelas companhias de concessão que dominavam partes do país até 1940. Agricultura comercial e trabalho assalariado são resultados da coerção econômica: a fim de pagar os impostos você precisa produzir um excedente comercializável, ou fazer dinheiro vendendo sua força de trabalho. Frequentemente, contudo, o poder colonial português não era assim tão sofisticado: ele simplesmente usou coerção física direta para fazer as pessoas trabalharem, através do recrutamento violento para o trabalho obrigatório (xibalo) em rodovias e portos, e/ou através do cultivo forçado. "Cultivo forçado" era o cultivo supervisionado de culturas específicas (arroz, algodão) na própria terra de alguém, obrigado a entregar a produção. Na verdade, por meio dessas rudes medidas de exploração, os portugueses atrasaram o processo de modernização; por causa disso em grande parte do país uma economia monetária não foi efetivamente introduzida.8 8 Newitt coloca dessa forma: "As fases de desenvolvimento que outras colônias atravessaram foram retardadas na África Oriental Portuguesa... A evolução do assalariamento, a sociedade monetária apenas imperfeitamente existia a época da independência" (Newitt, 1981:147, 95).

A Região Sul: trabalho assalariado nas minas da África do Sul

A parte de Moçambique onde a economia monetária penetrou em primeiro lugar no cotidiano foi na região sul. Aqui o trabalho assalariado tem sido parte da vida camponesa por mais de cem anos, não por causa dos portugueses, mas em função da necessidade de força de trabalho na economia vizinha da África do Sul.

Em 1850, os primeiros trabalhadores moçambicanos foram recrutados para os campos de açúcar de Natal, e, posteriormente, com a abertura das minas de ouro do Rand nos anos 1890, o número de trabalhadores moçambicanos multiplicou-se. De 1900 até 1970 uma média de 80 a 100 mil moçambicanos estavam trabalhando anualmente nas minas com contratos de 12 ou 18 meses (Centro de Estudos Africanos - CEA, 1979Centro de Estudos Africanos. Mozambican Miners in South Africa. Maputo, CEA, 1979.). Entre 1940 e 1970 isso representava uma média de 25 por cento da população masculina ativa ao sul do rio Save. Mais que o dobro desse número teria, em algum ponto de sua vida, um contrato nas minas (CEA, 1979Centro de Estudos Africanos. Mozambican Miners in South Africa. Maputo, CEA, 1979.). Em áreas limitadas, metade dos homens em idade produtiva estaria em algum momento na África do Sul (Newit, 1981Newitt, Malin. Portugal in Africa. The Last Hundred Years. London, Hurst & Company, 1981.). O rio Save, a fronteira norte das províncias de Gaza e Inhambane é o limite legal norte para recrutamento para as minas sul-africanas. O governo colonial português havia feito esse acordo com a administração das minas do Rand, a fim de proteger os interesses dos proprietários de terras ao norte do Save, que também necessitavam de força de trabalho.

O trabalho nas minas é propriamente trabalho assalariado. Não é compulsório (exceto pelo fato de que as pessoas estavam migrando para escapar doxibalo), e o salário é razoavelmente alto, ao menos quando comparado com os salários pagos internamente em Moçambique. Homens jovens da região sul estavam orgulhosos de ir para o trabalho nas minas (esse era o caso até o começo dos anos 80). De alguma forma, trabalho assalariado - e o trabalho nas minas por excelência - tornou-se um símbolo de virilidade. A maioria dos homens na região sul não vê a si mesmos como camponeses; o trabalho de cultivo é o que as mulheres fazem, homens devem ser trabalhadores assalariados!

Trabalho nas minas é trabalho industrial; ele não depende das estações ou das chuvas. Quando o contrato era de 12 ou 18 meses, o ciclo do trabalho camponês quebrava-se; o homem voltava para casa em momentos estranhos, de um ponto de vista agrícola. A mulher tinha que assumir a responsabilidade por todo o trabalho na terra, inclusive a aragem, se não houvesse nenhum filho jovem ou outra força de trabalho masculina disponível. Dessa forma, mesmo se o trabalho migratório deu ao homem a vantagem sobre o dinheiro e amplamente aumentou a carga de trabalho das mulheres, também desafiou a divisão do trabalho por gênero. A mulher poderia transgredir os limites tradicionais da esfera feminina de gênero e construir a autoconfiança como mulher em novas bases.

O trabalho mineiro trouxe o homem moçambicano para o contato com uma cultura diferente. Muitos mineiros apreenderam inglês e adquiriram novas visões da vida, investindo o dinheiro que eles trouxeram de volta para casa em implementos agrícolas como arados e gado, e talvez uma nova esposa, para fins de acumulação.

Além disso, os mineiros poderiam com frequência ser os primeiros a trazer um conhecimento do cristianismo de volta para suas vilas natais, tendo missionários estado de serviço nos alojamentos mineiros. A marca da cristandade entrando em Moçambique dessa forma era amplamente protestante (batista e metodista) e mesmo hoje, a maioria das Igrejas Independentes Africanas florescendo em Moçambique é de uma origem protestante/evangélica, e muitas vieram da África de Sul.

Modernização/Individualização

A expansão da economia monetária e do trabalho assalariado trouxe individualização: a destruição das hierarquias tradicionais de parentesco e estruturas de autoridade. No sul de Moçambique, o processo pode ser visto pelo que aconteceu com o lobolo. Antigamente, casamento elobolo eram um assunto de família, controlado pelo chefe da linhagem. Ele decidia quem deveria casar-se, quando e com quem. Ele era aquele que assumia as negociações do lobolo, sendo, naquela época, tipicamente uma quantidade de cabeças de gado.

Contudo, com tantos homens jovens trabalhando nas minas, isso mudou. Olobolo passou a ser pago, ao menos parcialmente, em dinheiro, e o homem jovem tinha grande participação nas decisões. O dinheiro que ele ganhou o permitia pulara hierarquia de parentesco e talvez casar-se antes de seu irmão mais velho ou tomar para si uma segunda esposa de sua própria escolha.

Assim, a introdução do dinheiro significava que as estruturas tradicionais de autoridade do parentesco dissolviam-se, e a autoridade passava a ser crescentemente localizado ao nível da família nuclear; e com chefe masculino da família, o "chefe de família" [em português, no original]. Isso também, contudo, significava a ampliação do poder do marido vis-à-vis a(s) mulher(es). Relações de gênero, tornaram-se então também individualizadas. Anteriormente, homens e mulheres viviam em diferentes esferas, homens com homens e mulheres com mulheres. As estruturas de parentesco cerradas e as redes da família estendidas asseguravam que os grupos de mulheres e os grupos de homens poderiam trabalhar e usufruir do tempo de lazer juntos. Essas redes estão agora se dissolvendo; mulheres frequentemente se encontram sozinhas, com nenhuma outra mulher na casa, apenas seu marido. Como regra geral, o espaço de manobra das mulheres foi se estreitando, mesmo se sob circunstâncias específicas (por exemplo, se o homem estiver longe, nas minas), as mulheres fossem empurradas para novas situações, desenvolvendo novas habilidades.

A economia monetária e a individualização podem trazer liberdade da sujeição à família estendida e à autoridade da linhagem, tanto para homens quanto para mulheres. Mas, mais frequentemente, os homens estão em uma posição muito melhor para tirar vantagem dessa liberdade do que as mulheres. Para as mulheres, os mesmos desenvolvimentos frequentemente significam a perda das redes de gênero da família estendida, e exposição mais imediata ao poder do marido. Os homens, é claro, também perdem a sua rede de gênero da família estendida. Mas como trabalhadores assalariados encontram novas redes: camaradagem no alojamento, e talvez nos grupos de dança; em Moçambique, uma dança masculina muito popular originou-se nos alojamentos como dança de mineiros.

A situação das mulheres se tornava ainda mais precária se a família se movia para a cidade. À dependência social do marido agora se acrescentava uma dependência econômica. Alienada de seus meios tradicionais de subsistência, a terra, através da qual ela alimentava a família, ela agora se tornou dependente do salário do marido.

No contexto da patrilinhagem, a individualização causada pela modernização econômica transforma a tradicional família estendida pela contração da estrutura de autoridade em uma unidade de apenas duas gerações: pais e descendência, na família nuclear. A transformação teve lugar sem maiores problemas; afinal de contas, a família nuclear já estava lá, apenas imersa na estrutura familiar maior.

Porém, no contexto da matrilinhagem, esse tipo de transformação não é tão facilmente realizado. Matrilinhagem e modernização não combinam muito bem. Os valores do parentesco tradicional se chocam com o ideal de família nuclear promovido pelo processo de modernização; o poder paternal na família nuclear não combina com a tradição matrilinear de fortes relações entre tio e sobrinhos. Matrilinhagem, assim, em uma certa medida, significa maior resistência a modernização.9 9 Para outro exemplo da incongruência do desenvolvimento com a matrilinhagem, ver Barbara Rogers (1980) sobre o problema do Banco Mundial com seu Lilongwe Land Development Program na área matrilinear no Malaui. Mas também significa maior vulnerabilidade. Quando a modernização econômica realmente assumir o controle, muito provavelmente a matrilinhagem terá que render-se.

A modernização coloca a mulher em uma situação difícil, mas a modernização também traz alfabetização, educação, novos e mais amplos horizontes, pensamentos e ideias, para as mulheres assim como para os homens. E ajuda a combater as doenças, dá abrigo e roupas (para alguns) e fornece maravilhas tecnológicas de muitos tipos. A modernidade rompe, ao menos parcialmente, com as esferas restritas de gênero. Mulheres agora (em alguma medida) podem fazer e aprender o que estava anteriormente na reserva masculina e vice-versa. Isso é potencialmente positivo e promissor para as mulheres assim como para os homens.

Contudo, o modo como a modernização ocorreu em Moçambique, como em outras partes, promoveu o poder de gênero dos homens às expensas das mulheres, e hierarquias de gênero foram erigidas onde previamente elas quase não existiam. Uma chave para uma compreensão desse desenvolvimento, a meu ver, é acompanhar o que aconteceu com a sexualidade feminina. É aqui onde os desenvolvimentos ligados à iniciação feminina tornam-se importantes, assim como os desenvolvimentos que contribuíram para mudar a moral, os sentimentos e as concepções de sexualidade, tais como as importadas "religiões do livro": o Cristianismo e o Islã. A seguir, discorro sobre as transformações religiosas em diferentes partes de Moçambique. Mas antes, em linhas gerais, devo considerar as mudanças econômicas das regiões central e norte durante o colonialismo.

A região central: trabalho temporário e plantações locais

Analisando o material sobre a atitude das pessoas com relação aos rituais de iniciação femininos, as três regiões, norte, central e sul, delineam-se com o rio Zambezi fazendo a divisão entre norte e centro, e o rio Save entre centro e sul. Em termos econômicos, contudo, a região central torna-se maior e inclui também o nortista Tete e maior parte da Zambezia. Assim definida, a região central torna-se heterogênea em termos de parentesco (patrilinearidade no sul, matrilinearidade no norte).

Desde os anos 1890, a região central foi ocupada por companhias de concessão. "A Companhia de Moçambique" (até 1940) reinou no que agora são as províncias de Manica e Sofala, onde os assim chamados Prazos de Zambeze (domínio político sobre um território econômico) eram o sistema de governo nas províncias de Zambeze e Tete. Parte dos prazos foi transformada posteriormente na Companhia de Zambeze. Sendo Portugal um poder colonial muito fraco para controlar seu território por si mesmo, arrendou a terra a essas companhias, deixando a cargo delas o exercício do poder governamental e a exploração dos habitantes da melhor maneira que pudessem, através de impostos, recrutamento de força de trabalho para companhias agrícolas, sublocação da terra, e controle sobre o comércio da produção camponesa excedente. Esse arranjo de fato assemelhava-se mais ao feudalismo do que ao capitalismo, taxando a produção excedente dos habitantes ao invés de controlar os meios de produção e derivando quase todos os seus recursos de ingresso fiscais, e não de lucros de investimento de capital (Newitt, 1981Newitt, Malin. Portugal in Africa. The Last Hundred Years. London, Hurst & Company, 1981.).

Contudo, um número de companhias (sisal, açúcar, chá, copra), em sua maioria de capital estrangeiro (britânico, alemão, francês, suíço), de fato operava na região, e algumas delas com considerável sucesso. Em 1928, somente no território da Companhia de Moçambique, 138.000 trabalhadores foram recrutados para o trabalho nas plantações, com contratos. Isso significa que a população camponesa na área também possuía experiência com trabalho assalariado, mas de um tipo diferente (se comparado com a região sul) e com um impacto cultural muito menor. Os trabalhadores para as fazendas eram empregados localmente, ou ao menos não tão longe dos seus locais de origem, para o trabalho agrícola sazonal. O trabalho que desempenhavam era razoavelmente semelhante ao trabalho que eles conheciam da roça da família, e o ciclo do trabalho seguia o ano agrícola. Frequentemente, é claro, o pico do trabalho na plantação coincidia com o pico do trabalho na roça da família, o que causava sérios problemas. Mas visto de um ponto de vista ideológico, cultural, o mundo desses trabalhadores assalariados não mudou tanto como no caso dos mineiros migrantes do sul.

Além disso, os salários desses trabalhadores na plantação eram muito mais baixos do que o dos trabalhadores nas minas, não acendendo nenhum sonho de prosperidade econômica e não alterando nenhum meio de produção na roça da família. A espinha dorsal da economia camponesa ainda era o lote familiar, lavrado da maneira tradicional com a enxada e o machete.

A Região Norte: Agricultura Familiar

A região norte (nesse contexto econômico cobrindo, aproximadamente, as províncias de Cabo Delgado, Niassa e Nampula) apresenta outras diferenças. A história econômica da região porta certa semelhança com o centro, na medida em que uma companhia de concessão, a Companhia Niassa, de 1890 até os anos 1930 assenhorava-se do que hoje são as províncias de Cabo Delgado e Niassa, promovendo ainda menos atividade econômica aqui do que havia sido o caso na região central. No norte, os lucros da companhia derivam quase que completamente de taxas sobre a produção camponesa. Os camponeses eram deixados por conta própria, uma das razões sendo que as regiões ao norte do país eram pouco povoadas e mesmo escassamente colonizadas até após a primeira guerra mundial.

Em 1930, contudo, os portugueses introduziram uma nova forma de exploração, que foi praticada por todo o país, mas que pesou bastante na região norte, especialmente na província de Nampula: o cultivo forçado do algodão. Áreas eram repartidas, sementes distribuídas e o cultivo era rigorosamente supervisionado. O cultivo de algodão exige mão-de-obra intensiva, cerca de 150 dias de trabalho por ano para cada campo de algodão. Claramente isso foi devastador para a produção de alimentos dos camponeses. Eles tiveram que adotar a mandioca, de crescimento fácil, mas pouco nutritiva, como alimento básico para conseguir sobreviver. No seu apogeu, em 1944, estima-se que o cultivo forçado do algodão envolveu até 790.000 agricultores (Newit, 1981Newitt, Malin. Portugal in Africa. The Last Hundred Years. London, Hurst & Company, 1981.), muitos desses mulheres, uma vez que os homens foram arrastados pelo xibalo (trabalho forçado). O cultivo forçado do algodão era completamente odiado pelos camponeses, de tal forma que foi difícil para o governo da FRELIMO persuadir as pessoas a continuar a cultura do algodão após a independência. Mas diferentemente de outros tipos de trabalho assalariado, que em diferentes medidas estavam transformando as estruturas sociais camponesas, o cultivo de algodão acontecia em um cenário familiar; era uma coerção insuportável sobre a vida das pessoas, mas não perturbou a estrutura de autoridade de parentesco.

Assim, para concluir essa revisão bastante generalizada da história econômica de Moçambique: os efeitos sociais e culturais da economia monetária e do trabalho assalariado foram mais fortes no sul, mais fracos na região central e quase ausentes na região norte, sendo essa presumivelmente uma das razões para a persistência de estruturas de parentesco matrilineares e dos rituais de iniciação femininos naquela região.

Mudanças religiosas

Além das demandas e mudanças econômicas, outro grande fator de modernização foi ativo nas mesmas áreas e no mesmo período: as missões católicas e protestantes. Sua atividade, em alguma medida, foi demarcada pela expansão contemporânea do Islã. Se a modernização econômica teve um impacto nas relações de gênero (através da individualização e da promoção da família nuclear), o mesmo vale para as missões, no tocante a relações de gênero, moralidade e identidade de gênero feminina. Mas, primeiro, veremos o Islã.

Islã

Na parte norte da costa de Moçambique, nas províncias de Cabo Delgado, Nampula e Zambezia, árabes estão presentes há séculos. Em alguns lugares, o suaíli é a língua falada. Mas o Islã não é apenas um fenômeno costeiro; até o interior, na província de Niassa, as pessoas veem a si mesmas como muçulmanas. A expansão do Islã para o interior no norte parece ter acontecido no final do século XIX, aproximadamente de 1890 até 1930, de acordo com Edward Alpers (1972Alpers, Edward. Towards the History of the Expansion of the Islam in East Africa: The Matrilineal Peoples of the Southern Interior. In: Alpers, Edward. Ranger, Terence and Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa. London/Ibadan, Heinemann Educational Books, 1972.). No começo dos anos 90 do século XIX, Antonio Enes, o Governador Português de Moçambique, descreveu a situação dessa forma:

Se o cristianismo apenas vegeta como uma planta exótica, o maometanismo está espalhado como grama... Está ganhando pelo seu proselitismo todos os distritos do norte da província de Moçambique.10 10 No período colonial, o país inteiro era chamado Província de Moçambique, concebida como província ultramarina de Portugal. O que agora são províncias eram chamados distritos. (As comunidades islâmicas) reagem contra a influência cristã e em certas situações hipotéticas (eles) serão capazes de ação em conjunto (citado em Alpers, 1972Alpers, Edward. Towards the History of the Expansion of the Islam in East Africa: The Matrilineal Peoples of the Southern Interior. In: Alpers, Edward. Ranger, Terence and Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa. London/Ibadan, Heinemann Educational Books, 1972.:189).

Os portugueses viam o Islã como uma ameaça potencial, seguramente como algo não desejado: uma população cristã pode ser mais facilmente controlada. De acordo com algumas teorias sobre o porquê e o como da expansão do Islã na África Oriental, as incursões mais fortes do Islã foram feitas em tempos de crise (Alpers, 1972Alpers, Edward. Towards the History of the Expansion of the Islam in East Africa: The Matrilineal Peoples of the Southern Interior. In: Alpers, Edward. Ranger, Terence and Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa. London/Ibadan, Heinemann Educational Books, 1972.), e certamente a imposição do domínio colonial português, de 1890 em diante, deve ter sido considerada como altamente crítica para os chefes locais - e pela população em geral. O Islã foi visto pelos chefes como um agente de modernização: Islã significava alfabetização. De acordo com um observador contemporâneo (outro funcionário português):

Um dos resultados perceptíveis da influência islâmica é precisamente a expansão da instrução, e a necessidade que todos os chefes têm hoje em dia de serem... educados para ler e escrever, razão para que eles frequentemente convoquem homens da costa. Eles comumente mantêm relações entre eles e com as autoridades por escrito, o que não é o caso no sul da província (i.e. Moçambique) onde os chefes são completamente analfabetos (Citado em Alpers, 1972Alpers, Edward. Towards the History of the Expansion of the Islam in East Africa: The Matrilineal Peoples of the Southern Interior. In: Alpers, Edward. Ranger, Terence and Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa. London/Ibadan, Heinemann Educational Books, 1972.:190).

Quanto à influência sobre a estrutura social e sobre valores e normas das sociedades, o Islã parece ter-se misturado bastante bem com o que havia anteriormente. De acordo com I. M. Lewis:

Enquanto as crenças tradicionais puderem ser ajustadas de tal forma que elas se acomodassem seguindo um esquema muçulmano em que a incondicionalidade de Ala permaneça inquestionada, o Islã não vai pedir aos novos adeptos que abandonem a confiança em todas as suas forcas místicas (Lewis, citado em Alpers, 1972Alpers, Edward. Towards the History of the Expansion of the Islam in East Africa: The Matrilineal Peoples of the Southern Interior. In: Alpers, Edward. Ranger, Terence and Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa. London/Ibadan, Heinemann Educational Books, 1972.:173).

Isso se encaixa na minha própria impressão do Islã em Moçambique: sendo extremamente adaptável, e cada vez mais, à medida que se afasta da costa. Em contraste com o cristianismo, as demandas que o Islã faz às populações locais não parecem ser muitas. Isso pode se dever a uma correspondência maior com os valores e orientações na sociedade tradicional africana. De acordo com Edward Alpers, que estudou especificamente a sociedade Yao (os Yao são o maior grupo étnico em Niassa):

Cada manifestação de veneração do ancestral entre os Yao enfatiza valores comunais ao invés de individuais, em comum com virtualmente todas as tradicionais religiões africanas. [Isso, junto a outros fatores] parece ter favoravelmente predisposto os Yao para a expansão do Islã entre eles (Alpers, 1972Alpers, Edward. Towards the History of the Expansion of the Islam in East Africa: The Matrilineal Peoples of the Southern Interior. In: Alpers, Edward. Ranger, Terence and Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa. London/Ibadan, Heinemann Educational Books, 1972.:176).

Diferentemente das missões cristãs, o Islã não condenava os rituais de iniciação. Na verdade, os ritos foram islamizados (tanto os femininos quanto os masculinos), aparentemente sem fazer nenhuma mudança, quer seja nos rituais eles próprios ou, no caso das mulheres, no costume relacionado de estender os lábios vaginais, fazer tatuagens ou usar miçangas. No material da OMM sobre Niassa, os ritos de iniciação femininos são descritos tão bem quanto em qualquer outro lugar no norte, o costume da defloração ritual sendo mencionado mais frequentemente aqui do que noutros lugares. Mas os rituais são explicitamente referidos como sendo muçulmanos:

Nossa religião islâmica nos ensina os ritos de iniciação, e nós seguimos esse princípio maometano (OMM iw, Província de Niassa).

As crianças que não passaram pelo unyango [rituais de iniciação] não têm respeito por seus pais, ou por outros adultos. Além disso, não pode, entrar na Mesquita (OMM iw, província de Niassa).

As partes orientais da província de Nampula são amplamente islâmicas, assim como é a parte sul de Cabo Delgado e a parte norte da província da Zambezia, todos lugares habitados pelos Makhuwa [em português: macua]. Especialmente em Cabo Delgado, os Makhuwa apreciam definirem-se a si mesmos como islâmicos, em oposição aos Makonde [maconde] do norte de Cabo Delgado, que foram cristianizados pelas missões católicas. Todavia, nos dados do material da OMM para esses lugares, não há nenhuma menção e certamente não tão explícitas, como no caso de Niassa, aos ritos de iniciação islâmicos. De qualquer forma, islamizados ou não, os ritos de iniciação femininos ainda estão sobrevivendo fortemente entre os Makwhua, assim como o sistema de parentesco matrilinear.

De acordo com a muçulmana marroquina e escritora feminista, Fatima Mernissi (1985Mernissi, Fatima. Beyond the Veil: A Historical and Theological Enquiry. Oxford, Blackwell, 1985 [1975].), o Islã, patriarcal como ele pode ser em termos de organização social, aceita e reconhece a sexualidade feminina como subjetiva e ativa. O controle islâmico sobre as mulheres é do tipo externo (por exemplo, nas áreas islâmicas de Moçambique, se a jovem não se casa imediatamente após os ritos de iniciação, seu isolamento continuará até que um pretendente adequado surja e ela possa se casar). Mernissi (1985)Mernissi, Fatima. Beyond the Veil: A Historical and Theological Enquiry. Oxford, Blackwell, 1985 [1975]. cita George Murdock (1949) ao dizer que as sociedades dividem-se em dois grupos com respeito à maneira com que regulam a sexualidade: um grupo enfatiza o respeito às regras sexuais através de uma "forte internalização das proibições sexuais durante o processo de socialização"; o outro reforça o respeito por "salvaguardas externas de proteção tais como regras de evitação". Essas sociedades, segundo Murdock falharam ao internalizar proibições sexuais em seus membros. Ainda de acordo com Murdock, as sociedades ocidentais pertencem ao primeiro grupo, enquanto que sociedades onde o véu prevalece pertencem ao segundo (Murdock, 1949, citado em Mernissi, 1985). Mernissi adiciona a essa distinção a diferença sobre a própria concepção de sexualidade feminina nesses dois tipos de sociedade:

Em sociedades nas quais o isolamento e a vigilância das mulheres prevalecem, o conceito implícito de sexualidade feminina é ativo; em sociedades em que não há tais métodos de vigilância e coerção do comportamento das mulheres, o conceito de sexualidade feminina é passivo (Mernissi, 1985Mernissi, Fatima. Beyond the Veil: A Historical and Theological Enquiry. Oxford, Blackwell, 1985 [1975].:31).

Isso não quer dizer, é claro, que o Islã não seja patriarcal e opressivo para as mulheres, mas ele o é de uma maneira diferente do cristianismo. Mernissi nos dá essa descrição da cultura cristã ocidental/europeia, que me parece bastante adequada:

Na experiência cristã ocidental a sexualidade ela própria foi atacada e degradada como animalidade e condenada como contra-civilizacional. O indivíduo está dividido em dois "eus" antagônicos: a carne e o espírito, o ego e o id. O triunfo da civilização implicava o triunfo da alma sobre a carne, do ego sobre id, do controlado sobre o incontrolado, do espírito sobre o sexo (Mernissi, 1985Mernissi, Fatima. Beyond the Veil: A Historical and Theological Enquiry. Oxford, Blackwell, 1985 [1975].:44).

O Islã, Mernissi diz, tomou um caminho diferente. No Islã, a "sexualidade per se não é um perigo" (Mernissi, 1985Mernissi, Fatima. Beyond the Veil: A Historical and Theological Enquiry. Oxford, Blackwell, 1985 [1975].:44). Ao contrário, tem uma série de funções vitais, positivas, dentre elas o fato de que a satisfação sexual é vista como necessária para o esforço intelectual. Essa linha de pensamento é marcadamente diferente da posição de Sigmund Freud que via o esforço intelectual como resultado da energia sexual desviada, sublimada; para Freud a cultura é conseguida como resultado (custoso e doloroso) das transformações da energia sexual (Freud, 1971Freud, Sigmund. Vorlersungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Wien, Internationaler Psychoanalyitscher Verlag, 1971. ). Sexo, dessa forma, é visto como oposto à realização cultural, as energias sexuais devem ser sublimadas, ou o caos irá prevalecer. Muito pelo contrário, de acordo com Mernissi, "a teoria muçulmana vê a civilização como o resultado da energia sexual satisfeita" (Mernissi, 1985:44). A sexualidade não deveria ser reprimida ou transformada, mas ainda assim deveria ser controlada, e o Islã controla a sexualidade controlando as mulheres: "O que é atacado e aviltado não é a sexualidade, mas a mulher, como a incorporação da destruição, o símbolo da desordem" (Mernissi, 1985Mernissi, Fatima. Beyond the Veil: A Historical and Theological Enquiry. Oxford, Blackwell, 1985 [1975].:44). O resultado em ambos os casos trabalha contra as mulheres, mas de maneiras diferentes.

O material dos dados moçambicanos sugere que o modo muçulmano foi menos devastador do que o cristão, e menos destrutivo para o conceito moçambicano de mulher (womanhood) (Cf. Ranger, 1972 Ranger, Terence Missionary Adaption of African Religious Institutions, The Masasi Case. In: Ranger, Terence; Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa., London/Ibadan, Heinemann Educational Books 1972., abaixo) e para a identidade de gênero feminina e aos modos como era e é sustentada.

Cristianismo

O cristianismo suspeita de qualquer sexualidade que não sirva diretamente à procriação, e a sexualidade feminina é a mais temida. Outra pesquisadora feminista escrevendo sobre África, Nici Nelson, fez observações sobre o cristianismo muito similares às que fez Mernissi:

A filosofia cristã sempre fez uma separação entre corpo e alma: as coisas do corpo são menos valorizadas que as coisas do espírito. ...O medo da sexualidade desenfreada das mulheres permaneceu através da era cristã e permeou a obra de filósofos e psicólogos até o século XX... Na África, esta divisão de carne e espírito como imoral e moral não parece existir (Nelson, 1987Nelson, Nice. Selling Her Kiosk: Kikuyo Notions of Sexuality and Sex for Sale in Mathare Valley, Kenya. In Nelson, Nice; Caplan, Pat (Ed.) The Cultural Construction of Sexuality. New York/London, Routledge, 1987.:235).

Isso também quer dizer que quando essa divisão entre carne/espírito igual a imoral/moral existe em Moçambique, como certamente existe agora, é muito provável que tenha sido implantada pelos missionários cristãos. Para a missão cristã em geral os ritos de iniciação, tanto femininos quanto masculinos, foram vistos como imorais e obscenos. Terence Ranger cita um missionário protestante alemão, que escrevendo em 1934, segue uma lógica freudiana: mais sexo = menos civilização.

O período decisivo na vida da juventude africana é o tempo dos ritos de iniciação, o khoma ou unyago ... Esse período, contudo está envenenado por tantas excrescências da superstição pagã e sensualidade desenfreada que muitos amigos do negro consideram que a interrupção abrupta e o atraso do desenvolvimento intelectual e moral de muitos jovens rapazes e moças na idade de 13 ou 14 anos é o resultado de tais orgias (Ranger, 1972 Ranger, Terence Missionary Adaption of African Religious Institutions, The Masasi Case. In: Ranger, Terence; Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa., London/Ibadan, Heinemann Educational Books 1972.:238).

Consequentemente, Ranger completa, muitos missionários travaram batalha incansável contra a ideia de iniciação. Ranger descreve, nesse contexto, a rara tentativa de uma missão cristã (no caso a UMCA, Universities Mission to Central África) no sul da Tanzânia para cristianizar os rituais de iniciação. No que se refere aos rituais masculinos, a tentativa deu mais ou menos certo, mas com os correspondentes rituais femininos os missionários não fizeram nenhum progresso. Presumivelmente porque a distância entre a sexualidade feminina dos rituais e a sexualidade conhecida para a mulher branca, encarregada da cristianização, era muito grande. Ranger relata:

os rituais das mulheres eram muito mais obscenos do que as cerimônias masculinas... De qualquer modo, os missionários não aprovavam o conceito de mulher (womanhood) na sociedade Masasi, considerando o casamento Yao e Maconde como defeituosos e instituições matrilineares como um impedimento para o estabelecimento da família cristã (Ranger, 1972 Ranger, Terence Missionary Adaption of African Religious Institutions, The Masasi Case. In: Ranger, Terence; Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa., London/Ibadan, Heinemann Educational Books 1972.:237).

Aqui temos novamente a incompatibilidade de matrilinhagem com desenvolvimento e modernização.

No mesmo contexto, Ranger cita uma mulher africana entrevistada em 1963 sobre como os ritos de iniciação costumavam ser. Copiarei a citação porque ela se adequa muito bem em minhas próprias observações:

As moças são preparadas para suas futuras vidas como esposas estendendo suas partes baixas em preparação para o sexo durante sua vida de casada. As instrutoras também se asseguram de que as garotas conhecem todos os jeitos... Os corpos das meninas são lavados com cascas de arvore úmidas para manter sua pele brilhante e bonita e é adorável as ver saindo tão bonitas. As garotas se banham apropriadamente na manhã do dia da saída; elas também recebem roupas novas e seus corpos são untados e cobertos. Ao final da cerimônia cada garota com sua ajudante teria que fazer uma "dança do ventre" e isso era uma grande diversão, especialmente para os rapazes, que usualmente vem e escolhem as melhores dançarinas como suas futuras esposas... Hoje os missionários mudaram tudo isso... nos deixaram agora apenas com a memória dos bons velhos tempos (Ranger, 1972 Ranger, Terence Missionary Adaption of African Religious Institutions, The Masasi Case. In: Ranger, Terence; Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa., London/Ibadan, Heinemann Educational Books 1972.:327).

A Missão Católica Romana

Tantos as missões católicas como as protestantes operaram em Moçambique. As missões católicas vieram de diferentes ordens: Franciscanos, Dominicanos, Jesuítas, etc., e os protestantes da Igreja Anglicana, Missão Suíça, Batistas, Metodistas, etc. Os católicos se vangloriam de um começo precoce, sendo a primeira igreja católica construída em 1505 em Sofala, num momento em que os primeiros exploradores portugueses estavam construindo fortalezas ao longo da costa da África Oriental. Mas, efetivamente, a Missão Católica começou em 1890, mais ou menos na mesma época que as primeiras missões protestantes.

Até 1930, os dois tipos de missão trabalharam em termos comparáveis, nenhuma delas com financiamento do Estado, e se expandiram em ritmo equiparável, sendo que no começo dos anos 30 ambas tinham entre 30-40 postos missionários (Moreira, 1936Moreira, Eduardo. Portuguese East Africa - A Study of its Religious NeedsLondon, Word Dominion Press, 1936.). As protestantes estavam visivelmente agrupadas na região sul, com apenas alguns postos avançados mais ao norte - sendo a Missão UMCA no Lago Niassa a mais renomada. As Missões Católicas estavam mais uniformemente distribuídas, ainda que com grande peso no sul e quase nada no extremo Norte (Anuário Católico de Moçambique, 1974).

Esse estado de coisas mudou drasticamente em 1930. Salazar chegou ao poder em Portugal e introduziu o "Estado Novo" [em português no original]. Na ideologia do Estado Novo, as colônias africanas não seriam colônias, mas "Províncias de Ultramar" [em português no original]. Consequentemente, os moçambicanos deveriam ser ensinados a ver a si próprios como portugueses, e essa grande tarefa civilizatória foi atribuída à Igreja Católica, dali em diante subsidiada pelo Estado. De acordo com as instruções do governo em 1930 para as missões, uma "educação primária rudimentar deve ter como seu objetivo civilizar e nacionalizar os nativos da colônia, disseminando entre eles a língua e os costumes portugueses" (Hedges, 1985Hedges, David. Educação, Missão, Ideologia Política de Assimilação 1930-60. Cadernos de História 1, Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, 1985. ). Isso significa que dali em diante "todo ensino e escrita devem ser em português. Qualquer leitura ou escrita em línguas nativas estão absolutamente proibidas" (Moreira, 1936Moreira, Eduardo. Portuguese East Africa - A Study of its Religious NeedsLondon, Word Dominion Press, 1936.).

Isso foi na prática um severo golpe para a Missão Protestante que tinha como princípio lecionar em cada respectiva língua nativa. Os missionários protestantes, não sendo portugueses, sempre fizeram o esforço de aprender as línguas locais e a Missão Protestante fez um grande trabalho construindo um modelo escrito e traduzindo partes da Bíblia para o Tsonga, uma das línguas do sul de Moçambique (Biber, 1987Biber, Charles. Centansau Mozambique. Reportage sur l'histoire de l'Eglise Presbyterienne du Mozambique. Lausanne, Editions du Soc, 1987. ). Mas, de 1930 em diante, a Missão Católica se expandiu, pesadamente apoiada pelo Estado Português. A Missão Protestante sobreviveu, contudo sob difíceis condições, constantemente assediada pelo governo colonial.

A expansão da Igreja Católica nas décadas seguintes parece impressionante, no mapa e nas próprias estatísticas da Igreja; muitas das chamadas escolas primárias foram construídas por todo o país. Mas o que se aprendia lá, de acordo com Adelina Penicela, do secretariado da OMM em Maputo, era "só Ave Maria e capinar" [em português no original]. A "instrução" era obrigatória para crianças entre sete e catorze anos vivendo em um raio de três quilômetros da escola rural. Adelina Penicela que frequentou ela mesma uma escola como essas, diz sobre elas:

O régulo [em português no original] chamou meu pai dizendo que havia sido construída uma escola em suas terras: "Vá e chame seus filhos e diga a eles para irem à escola". Os pais devem enviar seus filhos, mas apenas os pequenos. Aqueles de quinze anos não poderão ir. Você precisava de dinheiro para ir à escola: nós tínhamos apenas castanhas de caju e produtos do campo para o pagamento. Quando eu era criança não havia muito dinheiro por aí. Os meninos iam para a escola de manhã e as meninas à tarde. Então eu comecei a estudar, mas era apenas aprender a rezar e a cantar: "Ave Maria, Santa Cruz, nome do Pai, nome do Filho, Espírito Santo, Amém" [em português no original]. Era tudo que você aprendia. Ninguém se incomodava de ensinar você a ler ou a escrever. Quando você conhecia esse dogma você passava na escola. O professor dizia para o Padre [em português no original] (na missão, a 13 horas de caminhada): "Agora eu tenho X número de crianças para serem batizadas". O Padre vinha da missão em seu carro e começava a batizar as crianças. Você tinha que pagar 150 escudos por cada criança a ser batizada. O Padre dizia que você não poderia casar com alguém que não fosse batizado, e que nenhum casamento podia ser feito sem o Padre. Para o casamento você tinha que pagar também: 150 escudos. Nas quintas-feiras não havia escola, apenas trabalho nas terras do professor. Nos outros dias, o professor separava dez garotas para buscar água, quatro para pilar o milho, quatro para buscar madeira para combustível. Na época da colheita do caju, cada criança tinha que trazer uma lata de vinte litros de castanhas de caju como um presente para o professor. Muitas crianças fugiam da escola, mas o professor dizia a um grupo de rapazes para ir atrás delas e quando elas eram encontradas, apanhavam. Qualquer um que passasse do quarto grau poderia tornar-se um professor.

As escolas propriamente ditas, dirigidas pelas missões, e certamente escolas secundárias e de ensino médio, eram quase que exclusivamente para crianças portuguesas. Não admira que entre os moçambicanos a Missão Católica tivesse uma má reputação e fosse vista como parte da opressão colonial.

Não fui capaz de encontrar material sobre como a Igreja Católica na prática reagiu aos rituais e costumes tradicionais das pessoas, como por exemplo, os rituais de iniciação. Sem dúvida, ela se opunha a isso por princípio, seguindo a ideologia geral do cristianismo - e do governo português, como nessa declaração de 1940:

Para nós portugueses, colonização é essencialmente elevar as populações indígenas para o nosso próprio nível de civilização, ensinando a eles a nossa religião, nossa linguagem, nossos costumes... é a nossa mentalidade que nós queremos transmitir para os povos das colônias, não estamos pretendendo levar as suas riquezas (citado em Hedges, 1985Hedges, David. Educação, Missão, Ideologia Política de Assimilação 1930-60. Cadernos de História 1, Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, 1985. :14).

Todavia, eu suspeito que na maior parte das vezes isso funcionou da forma inversa: exploração primeiro, "civilização" depois. No comentário seguinte sobre a província de Nampula, o que parece é que a preocupação dos Padres era mais com o imposto dos ritos de iniciação, do que com o conteúdo da cerimônia:

No tempo do colonialismo, para que as cerimônias dos ritos de iniciação para os rapazes assim como para as moças ocorressem, o régulo tinha que informar a administração colonial de que em sua zona um número X de jovens apresentava-se para a iniciação. A administração daria uma autorização mediante o pagamento de certa soma em dinheiro (imposto). Do mesmo modo era necessário pedir autorização dos Padres. Normalmente, a solicitação seria autorizada para o período logo apos a colheita a fim de não interferir com a produção forçada de algodão e outras safras (representante da OMM, Província de Nampula).

Por outro lado, exatamente essa frouxidão, vista de um ponto de vista cristão, pode ser sido afortunada do ponto de vista das mulheres: em alguma medida elas foram relegadas à própria sorte, e seus rituais puderam sobreviver.

A Missão Protestante

Em contraste com a Igreja Católica, a Missa Protestante permanece em alta estima no Moçambique independente de hoje, e por boas razões. Em oposição aos católicos, a educação oferecida pelas missões protestantes era muito melhor e seguia até o ensino secundário. As missões protestantes ofereciam a única possibilidade de uma educação adequada para os moçambicanos. E elas não estavam comprometidas com o regime colonial. Assim, não há nenhuma coincidência no fato de que muitos daqueles que foram depois líderes da FRELIMO tenham suas raízes nas escolas da Missão Protestante. O primeiro presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, foi educado na Missão Suíça. E Samora Machel, o segundo presidente da FRELIMO e o primeiro presidente de Moçambique, durante toda a sua vida sempre teve em alta conta a Missão Protestante, como é evidente em sua fala de 1982 para uma grande reunião pública em Gaza:

Os protestantes nos ajudaram bastante. Eles nos educaram para que nós aprendêssemos o valor de um ser humano. Desde que os portugueses efetivaram a dominação total de nosso país, os protestantes construíram igrejas e lá nos ensinaram a nossa história, nosso valor como seres humanos, nossa identidade. Eles nos ensinaram que nos éramos moçambicanos, africanos e não portugueses. Eles nunca traíram nossa terra como os católicos fizeram; os católicos tentaram nos convencer de que nós éramos portugueses. Por tudo isso: obrigado protestantes [em português no original]. ...Quando a igreja católica se espalhou como aliada do colonialismo português, assim unindo a cruz e a espada, fazendo da religião um instrumento da consolidação da opressão estrangeira, foi nas igrejas protestantes, em larga medida, que o espírito de resistência e a luta contra o opressor pôde buscar refúgio e tornar-se organizada (Machel, 1982Machel, Samora. Discurso na Província de Gaza. Março 1982. Maputo, Revista Tempo 600, 1982. :40).11 11 Essas e outras citações, a não ser quando indicado em contrário, foram traduzidas do inglês e não diretamente do português. Tentamos recuperar todas as citações originais em português, mas infelizmente isso não foi possível.

As missões protestantes parecem ter sido mais zelosas, se comparadas às católicas, tanto na educação quanto na "civilização". Elas realmente fizeram com que novos valores e normas de conduta fossem adotados pelos convertidos moçambicanos, tendo o conceito de disciplina proeminência:

Nas comunidades presbiterianas em Moçambique a "disciplina" desempenhava um papel importante... sendo em Moçambique principalmente: o modo de vestir-se (um terno apropriado ao invés de sacos, capulanas usadas de forma decente); banimento de bebidas alcoólicas, da poligamia, das uniões livres (isso é casamentos não-sacramentais), e também do oráculo de ossos, da veneração dos ancestrais assim como a participação em danças rituais (Biber, 1987Biber, Charles. Centansau Mozambique. Reportage sur l'histoire de l'Eglise Presbyterienne du Mozambique. Lausanne, Editions du Soc, 1987. ).

A citação acima é de uma fonte interna da Missão Suíça, mas é confirmada ao menos a nível geral, no previamente citado discurso de Samora Machel, em que ele celebra a Igreja Protestante pela suas contribuições para instalação e manutenção de normas morais como a higiene coletiva e individual, a dignidade do casamento e da família e a luta contra o alcoolismo e a prostituição: "A Igreja Protestante desenvolveu alguns desses valores. Nós queremos reconhecer publicamente a contribuição que a Igreja Protestante deu ao povo moçambicano (Machel, 1982Machel, Samora. Discurso na Província de Gaza. Março 1982. Maputo, Revista Tempo 600, 1982. :40).

Assim, parece que as missões protestantes tiveram um impacto, e a despeito de seu tamanho pequeno, talvez um impacto maior, em transformar o modo de vida do povo. Esse impacto foi reforçado presumivelmente: (a) pelas missões protestantes estarem localizadas predominantemente no Sul do país onde os efeitos modernizantes da economia monetária e do trabalho assalariado foram mais sentidos, e (b) pela relação estreita entre os líderes da FRELIMO e a Missão Protestante. Líderes significativos da FRELIMO e presidentes da FRELIMO/Moçambique - Eduardo Mondlane, Samora Machel, Joaquim Chissano - todos vieram da província de Gaza, a fortaleza protestante por excelência.

Protestantismo, Socialismo e FRELIMO

Nessa seção final, esboçarei um tema que poderia ser desenvolvido muito mais plenamente: a superposição (parcial) entre a moral da FRELIMO e a protestante, e o uso pela FRELIMO da ética protestante para construir o socialismo. Na fala de 1982 citada anteriormente, Samora Machel deu uma lista de normas morais, incluindo a "dignidade do casamento e da família", e "uma vida organizada rejeitando a carga impura de vagabundice, alcoolismo, prostituição, marginalidade que o capitalismo arrastou consigo", chamando isso tudo deética socialista [em português no original] (Machel, 1982Machel, Samora. Discurso na Província de Gaza. Março 1982. Maputo, Revista Tempo 600, 1982. ).

Em sua análise da "ética protestante", Max Weber aponta a preguiça como um pecado maior: "Perda de tempo é assim o primeiro e a princípio o mais mortal dos pecados" (Weber, 1930Weber, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London, Unwin University Books, 1930 [1920].:157). Weber também notou como o protestantismo é ainda mais feroz que o catolicismo em seu repúdio à sexualidade; o catolicismo decreta o celibato para padres, monges e freiras, mas não há interferência na vida sexual em geral, desde que praticada no matrimônio. Sob o puritanismo protestante, contudo, é permitido o "intercurso sexual, mesmo dentro do matrimônio, apenas como o meio escolhido por Deus para o aumento de sua glória, de acordo com o mandamento 'crescei e multiplicai-vos'" (Weber, 1930Weber, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London, Unwin University Books, 1930 [1920].:158). Samora Machel, em incontáveis momentos (inclusive no discurso de 1982 em Gaza), incide com força contra as "prostitutas"; eventualmente alguém poderia pensar que ele estava de fato atrás de uma sexualidade feminina não controlada enquanto tal.

A coincidência dos valores da FRELIMO e dos protestantes no que se refere aos valores relativos ao casamento e à família já foi insinuada. Além disso, os protestantes, exatamente como a FRELIMO e a OMM, ao propagarem a família patriarcal, nuclear, viam a si mesmos como lutando contra a opressão da mulher. Primeiro, a visão protestante, nas palavras do historiador da Missão Suíça citado acima:

Convencidos de que havia apenas um modelo para a família cristã - monogamia, indissolubilidade, amor fiel, prioridade social do homem sobre a sua mulher, mas dignidade igual diante de Deus - os missionários nas jovens igrejas Presbiterianas lutariam contra a poligamia, contra o lobolo, contra a redução da mulher a objeto de possessão, mas também por educação igual para meninos e meninas (Biber, 1987Biber, Charles. Centansau Mozambique. Reportage sur l'histoire de l'Eglise Presbyterienne du Mozambique. Lausanne, Editions du Soc, 1987. :64).

No documento de conclusão da Conferência Extraordinária da OMM de 1984, a visão política da família da FRELIMO/OMM é muito similar:

A Conferência Extraordinária da OMM realçou muito especialmente a importância vital da coesão, estabilidade e harmonia da família, pois ele é a célula-base da nossa sociedade, alicerce da Nação moçambicana, e base para a consolidação do nosso Estado (OMM, 1984).

Contra esse pano de fundo, a Conferência Extraordinária da OMM recomenda que cada família deveria fazer um esforço para criar um novo equilíbrio, baseado na igualdade de direitos e deveres, e no cumprimento das atribuições de cada um de seus membros, como pai e chefe de família (em português no original), como esposa, mãe e dona de casa (em português no original), e de que juntos deveriam ser os responsáveis pela educação de seus filhos. A realização desse tipo de família é parte do programa para a emancipação das mulheres, suplementada, é claro, pela luta contra a poligamia e o lobolo, e contra os rituais de iniciação. Mesmo que a OMM, em consequência dos debates durante a preparação da conferência, chegara a uma atitude menos diretamente condenatória dos ritos de iniciação femininos do que anteriormente, os ritos ainda são vistos como costumes que "preconizam e inculcam conceitos e comportamentos de interiorização e submissão da mulher perante o homem" (OMM, 1984Omm. Resolução Geral da Conferência Extraordinária Revista Tempo nº 737, 1984.).

De fato, toda a visão socialista sobre a emancipação da mulher, tirada de Friedrich Engels, e exposta no programa da OMM de 1976, ainda está em vigor: (1) o caminho para a emancipação da mulher é a sua integração na produção lado a lado com o homem e; (2) a OMM deveria lutar contra costumes e ideias, obstáculos para a plena participação da mulher na vida social e política. Essa visão não difere marcadamente das declarações protestantes sobe questões das mulheres.

O plano inteiro para o desenvolvimento socialista, em termos econômicos, repousa em transformar toda a economia em fazendas e indústrias estatais. Em apenas uma década, milhões de camponeses de pequena escala seriam transformados em trabalhadores assalariados (como se desejava nos anos 80). Isso segue ordenadamente o caminho da modernização: desenvolvimento tecnológico e racionalização econômica. Um caminho socialista pode diferir de um capitalista em termos da diferença entre o controle estatal ou privado dos meios de produção, e em termos de uma obrigação moral com a democracia, acesso a educação, saúde, etc. Políticas socialistas também podem ser mais insistentes em empurrar a mulher para o trabalho assalariado, como no caso de Moçambique, em que mesmo aumentando a carga de trabalho das mulheres podem prover uma base para uma nova autoconfiança feminina (paralelo ao que foi descrito acima com relação às esposas dos mineiros). Todavia, em termos dos aspectos centrais da modernização aqui sob discussão: (a) os efeitos com viés de gênero da economia monetária e do trabalho assalariado; (b) a preferência pela família nuclear chefiada pelo homem; e; (c) as perspectivas morais sobre a sexualidade feminina - a modernização capitalista ou socialista segue o mesmo caminho - não há ao fim, nenhuma diferença.

A necessidade de organizações de mulheres independentes

Eu me aventurei a avaliar o processo de modernização como ele ocorreu em Moçambique do "ponto de vista das mulheres". A principal conclusão é que, maior o impacto da modernização, menor a vida é para as mulheres, com a autodeterminação sexual vista como um ponto cardeal. Isso implica que FRELIMO/OMM deveriam abandonar o desenvolvimento/modernização? Certamente não! Como eu já apontei, a modernização guarda promessas para mulheres assim como para os homens. Criticar a maneira como a modernização ocorreu não implica na glorificação dos "bons velhos tempos". Essa não é uma dicotomia simples entre o bom e o mau.

A crítica ao processo de modernização, como ele aconteceu em Moçambique e em outros lugares, não deveria apontar de volta para um passado glorioso (que nunca existiu). Pelo contrário, isso deveria fazer emergir a consciência quanto a possíveis alternativas: como pode a modernização, com alfabetização, educação, melhor saúde, novas ideias e um horizonte mais largo, ser promovida de certa forma que, ao mesmo tempo, não solape a autoconfiança sexual feminina e promova o poder de gênero masculino? Como ocorre agora o desenvolvimento quase em toda parte se impõe em termos masculinos, marginalizando as mulheres, com nenhuma ou muito poucas possibilidades para elas defenderem a si próprias no processo.

Para que sejam capazes de reagir, as mulheres devem agir juntas. Organizações de funcionamento democrático são indispensáveis; para desenvolver coletivamente ações e ideias você deve estar organizada. Em raros momentos históricos, o processo de mudança foi dinamizado não por missões ou dinheiro, mas pelo movimento de homens e mulheres eles próprios. Mulheres foram capazes de dar voz a suas próprias necessidades percebidas através de uma organização de gênero - como em Moçambique durante a guerra de libertação, a OMM atuando naquele momento de uma forma muito diferente do que depois tornou-se o caso. Em tais momentos históricos, o viés masculino de gênero do processo de desenvolvimento foi muito menos pronunciado; as mulheres estando em posição de tirar vantagem das novas possibilidades oferecidas pelas mudanças políticas e econômicas; novas experiências e novas habilidades, sem perder a força de suas tradicionais identidades de gênero no processo. Outro exemplo Moçambicano, tal como eu vejo, é a organização desde 1980 de mulheres camponesas na Zona Verde de Maputo, na União Geral das Cooperativas (em português no original), a UGC.

Tipicamente, esse tipo de desenvolvimento é ou de curta duração ou marginal, ou ambos. Mas ao invés de serem exceção ou postas numa via secundária, essas experiências deveriam ser consideradas fundacionais. Elas deveriam ser ponto de partida para a política de desenvolvimento para as mulheres, lideradas por fortes organizações de mulheres. Mulheres precisam de organizações de gênero independentes e democráticas, através que promovam os interesses das mulheres, combatam a marginalização, e insistam em modelar a modernização nos termos das mulheres. Por que o desenvolvimento não seria possível combinado com matrilinhagem? Com autodeterminação sexual feminina? É claro que isso é possível - mas para isso é preciso uma série de organizações de mulheres fortes e independentes que lutem para que essas visões se tornem realidade.

Referências bibliográficas

  • Alpers, Edward. Towards the History of the Expansion of the Islam in East Africa: The Matrilineal Peoples of the Southern Interior. In: Alpers, Edward. Ranger, Terence and Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa. London/Ibadan, Heinemann Educational Books, 1972.
  • Anuário Católico de Moçambique. Lourenço Marques, 1974.
  • Biber, Charles. Centansau Mozambique. Reportage sur l'histoire de l'Eglise Presbyterienne du Mozambique. Lausanne, Editions du Soc, 1987.
  • Centro de Estudos Africanos. Mozambican Miners in South Africa. Maputo, CEA, 1979.
  • Dias, Jorge & Dias, Margot . Os Macondes de Moçambique, III: Vida Social e Ritual. Lisboa, Junta de Investigações de Ultramar, 1970.
  • Earthly, Dora. Valenge Women. London, Frank Cass and Co, 1968 [1933].
  • Freud, Sigmund. Vorlersungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Wien, Internationaler Psychoanalyitscher Verlag, 1971.
  • Hedges, David. Educação, Missão, Ideologia Política de Assimilação 1930-60. Cadernos de História 1, Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, 1985.
  • Kelly, Joan. Women, History and Theory. Chicago, University of Chicago Press, 1984.
  • Junod, Henri-Alexandre. Usos e Costumes dos Bantos. Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1974 [1912].
  • Machel, Samora. Discurso na Província de Gaza. Março 1982. Maputo, Revista Tempo 600, 1982.
  • Mernissi, Fatima. Beyond the Veil: A Historical and Theological Enquiry. Oxford, Blackwell, 1985 [1975].
  • Moreira, Eduardo. Portuguese East Africa - A Study of its Religious NeedsLondon, Word Dominion Press, 1936.
  • Nelson, Nice. Selling Her Kiosk: Kikuyo Notions of Sexuality and Sex for Sale in Mathare Valley, Kenya. In Nelson, Nice; Caplan, Pat (Ed.) The Cultural Construction of Sexuality. New York/London, Routledge, 1987.
  • Newitt, Malin. Portugal in Africa. The Last Hundred Years. London, Hurst & Company, 1981.
  • Omm. Resolução Geral da Conferência Extraordinária Revista Tempo nº 737, 1984.
  • Ranger, Terence Missionary Adaption of African Religious Institutions, The Masasi Case. In: Ranger, Terence; Kinambo, Isaria (Ed.). The Historical Study of African Religion with Special Reference to East and Central Africa., London/Ibadan, Heinemann Educational Books 1972.
  • Richards, Audrey. Chisungu, a girl's initiation ceremony among the Bemba of Zambia. London, Tavistock Publications, 1982 [1956].
  • Rogers, Barbara. The Domestication of Women. London, Kogan Page, 1980.
  • Swantz, Marja-Liisa. Ritual and Symbol. Uppsala, The Nordic Africa Institute, 1986 [1970].
  • Weber, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London, Unwin University Books, 1930 [1920].
  • *
    Arnfred, Signe. Notes on Gender & Modernization. In: ______.Sexuality & Gender Politics in Mozambique. Rethinking gender in Africa. Rochester, NY, Boydell & Brewer Inc., 2011, pp.39-61. Tradução: Osmundo Pinho. Revisão: Daniela Ferreira Araújo Silva. O comitê editorial dos cadernos pagu agradece à autora a autorização para publicar este texto.
  • Os dados foram coletados como parte da preparação para a Conferência Extraordinária da OMM (Organização da Mulher Moçambicana) 1984. A procedência do material é diversa, e as citações estão convenientemente assinaladas. "SA entrevista" indica material reunido por mim mesma entre 1981-82 e posteriormente durante o processo de preparação da conferência. "OMM entrevista" são dados da transcrição direta das entrevistas ou contribuições orais coletadas por outros. "OMM relatório" é material da OMM compilado pela OMM com base nas reuniões ao nível distrital ou provincial durante o processo da preparação da Conferência Extraordinária.
  • 2
    Dados antropológicos sobre rituais de iniciação feminina em diferentes partes de Moçambique: H. A. Junod (1912/1974) sobre Gaza e Inhambane nos anos 30; Dora Earthy (1933/1968) sobre Gaza nos anos 1920. Sobre rituais de iniciação nos países vizinhos: Audrey Richards (1956.1982) sobre a Rodesia do Norte (Zâmbia) nos anos 1930; Terence Ranger (1972) sobre a Tanzânia do Sul nos anos 1920 e 1930; Marja-LiisaSwantz (1970/1986) sobre a Tanzânia Oriental nos anos 1960.
  • 3
    Estão incluídas na região norte as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Zambezia e a parte norte da província de Tete.
  • 4
    É sempre outra mulher, nunca a mãe ela mesma, que controla a filha a esse respeito.
  • 5
    Beira é a segunda maior cidade em Moçambique.
  • 6
    Dizem que cheiram mal, devido a um certo pano tradicional, que deixam secar no corpo (tradicionalmente as mulheres não podem tirar este pano; quem só pode tirar são os homens) (NT).
  • 7
    Essas seções da história econômica de Moçambique estão baseadas em Marc Wuyts 1978, Centro de Estudos Africanos, 1979Centro de Estudos Africanos. Mozambican Miners in South Africa. Maputo, CEA, 1979., eMalynNewitt, 1981Newitt, Malin. Portugal in Africa. The Last Hundred Years. London, Hurst & Company, 1981..
  • 8
    Newitt coloca dessa forma: "As fases de desenvolvimento que outras colônias atravessaram foram retardadas na África Oriental Portuguesa... A evolução do assalariamento, a sociedade monetária apenas imperfeitamente existia a época da independência" (Newitt, 1981Newitt, Malin. Portugal in Africa. The Last Hundred Years. London, Hurst & Company, 1981.:147, 95).
  • 9
    Para outro exemplo da incongruência do desenvolvimento com a matrilinhagem, ver Barbara Rogers (1980)Rogers, Barbara. The Domestication of Women. London, Kogan Page, 1980. sobre o problema do Banco Mundial com seu Lilongwe Land Development Program na área matrilinear no Malaui.
  • 10
    No período colonial, o país inteiro era chamado Província de Moçambique, concebida como província ultramarina de Portugal. O que agora são províncias eram chamados distritos.
  • 11
    Essas e outras citações, a não ser quando indicado em contrário, foram traduzidas do inglês e não diretamente do português. Tentamos recuperar todas as citações originais em português, mas infelizmente isso não foi possível.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br