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Masculinidades e passividade originária: uma análise dos filmes Traídos pelo Desejo e Uma mulher fantástica

Masculinities and Original Passivity: An Analysis of the Films The Crying Game and A Fantastic Woman

Resumo

A partir da análise dos filmes Traídos pelo desejo e Uma mulher fantástica propomos algumas reflexões sobre a constituição das identidades masculinas e cisgêneras. Tais reflexões têm como norteadores alguns elementos das teorias psicanalíticas de Freud, Jean Laplanche e Silvia Bleichmar sobre a construção dessas identidades. Perguntamos o que pode explicar as dificuldades de alguns homens cis em sustentar suas escolhas afetivas quanto aos relacionamentos com mulheres trans. Concluímos que, diante das mulheres trans, homens cis podem experienciar angústias provenientes de seus conflitos psíquicos, em especial daqueles oriundos da constituição de sua identidade de gênero marcada pelo recalcamento da passividade.

Masculinidades; Identificação; Alteridade

Abstract

Based on the analysis of the films The Crying Game and A Fantastic Woman, we reflect on the constitution of male and cisgender identities. These reflections are guided by elements of the psychoanalytic theories of Freud, Jean Laplanche and Silvia Bleichmar about the construction of these identities. We question what can explain the difficulties that some cis men have to sustain their affective choices regarding relationships with trans women. We conclude that, in relation to trans women, heterosexual cis men may experience anguish arising from their psychic conflicts, especially those arising from the constitution of their gender identity, marked by the repression of passivity.

Masculinities; Identification; Otherness

Gênero como código tradutivo

Laplanche (1988)LAPLANCHE, Jean. Problemáticas II: Castração. São Paulo, Martins Fontes, 1988 [1980]., ao estudar o conceito de teorias sexuais infantis de Freud, examina as consequências para a teoria psicanalítica da análise do pequeno Hans. Ao mesmo tempo que Freud e o pai de Hans procuram basear suas conclusões nas ideias incipientes do Complexo de Édipo, a criança mostra-lhes outros caminhos.

Em Análise de uma fobia de um menino de cinco anos, Freud (1996a), a partir do material coletado pelo pai do menino Hans, vê uma oportunidade de observar diretamente a formação das teorias sexuais infantis. Se, até esse momento, as ideias de Freud sobre a sexualidade estavam assentadas na escuta de pacientes adultos, agora ele pode acessar um material bruto. No decorrer das observações de seu pai, Hans começa a apresentar medo de que cavalos o mordessem, a ponto de se recusar a sair de casa. Freud interpreta a fobia do menino como uma resposta à angústia de castração ligada à figura paterna. Entretanto, as indagações que Hans dirige a seu pai explicitam que o garoto se ocupava também de outros problemas, como o apego homossexual ao pai, a descoberta da genitália (que Hans denomina genericamente de “faz-pipi”), da defecação, da origem dos bebês, etc.

As investigações do pequeno Hans e os esforços de seu pai e de Freud para adequá-las às suas próprias hipóteses nos ensinam que, assim como as crianças, os adultos também criam suas próprias teorias sexuais. Por isso, Laplanche traz à superfície a discussão sobre se seria a psicanálise uma teoria sexual adulta. Karen Horney, em 1926, décadas antes de Jean Laplanche, já havia chamado atenção para a proximidade existente entre as teorias sexuais infantis e as ideias psicanalíticas sobre o desenvolvimento da sexualidade feminina. Ela descreve em detalhes a surpreendente coincidência entre as teorias sexuais dos meninos e a descrição psicanalítica do desenvolvimento sexual das meninas. Em quadro esquemático, Horney (1991HORNEY, Karen. A fuga da feminilidade: O complexo de masculinidade nas mulheres segundo as óticas masculina e feminina. In: HORNEY, Karen. Psicologia feminina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1991, pp.51-66 [1926].:54-55) compara frases ditas por crianças do sexo masculino, de um lado, e, do outro lado, ordena pressupostos clássicos da psicanálise:

O QUE O MENINO PENSA NOSSAS IDEIAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO FEMININO Suposição ingênua de que as meninas também possuem pênis Para ambos os sexos apenas a genitália masculina tem alguma atuação Compreensão da ausência do pênis Triste descoberta da ausência do pênis Ideia de que a menina é um garoto mutilado, castrado Crença de que a menina teve pênis e que o perdeu pela castração Crença de que a menina sofreu algum castigo que também o ameaça A castração é concebida como castigo. A menina é considerada inferior A menina se considera inferior (inveja do pênis) O menino é incapaz de imaginar como a menina pode vencer esta perda ou inveja A menina jamais se recupera do sentimento de inferioridade e deficiência e precisa constantemente controlar o desejo de ser homem O menino teme a inveja dela A menina deseja a vida inteira vingar-se do homem por ele possuir algo que lhe falta

A questão proposta por Horney se relaciona à crítica que Laplanche irá desenvolver quando articula o Édipo a um código tradutivo de recalcamento.

A crítica de Laplanche (2015)LAPLANCHE, Jean. O gênero, o sexo e o sexual. In: LAPLANCHE, Jean. Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano: 2000-2006. Porto Alegre; São Paulo, Dublinense, 2015, pp.155-189 [2003]. quanto ao viés filogenético dos complexos apresentados por Freud perpassa a noção de uma “memória coletiva”. É como se os Complexos de Édipo e de castração fossem inscritos na memória da espécie, algo no nível de uma hereditariedade, um traço fundamental verificável em todos os seres humanos. O retorno que Laplanche faz à teoria da sedução resulta numa visão que tende a afastar a gênese da sexualidade humana do extravio biologicista empreendido por Freud. É necessário que consideremos os Complexos de Édipo, de castração e construtos como gênero, masculinidade e feminilidade como códigos tradutivos para o sexual. Longe de serem biológicos, tais códigos são históricos e endereçados à criança pelos adultos que cuidam dela.

Os fundamentos da teoria da sedução generalizada (TSG) dizem de uma situação antropológica fundamental caracterizada pelo envio de mensagens enigmáticas do adulto para o infante. Nessas mensagens, cujo envio se dá por meio de cuidados diversos ao bebê, está contida a atribuição de gênero. Segundo Ribeiro (2017)RIBEIRO, Paulo de Carvalho. Gênero, sexo e enigma no Sexual de Jean Laplanche. In: RIBEIRO, Paulo de Carvalho et al. (org.). Por que Laplanche? São Paulo, Zagodoni, 2017, pp.105-124., a formação do eu e do inconsciente é produto do recalcamento, logo, do processo de tradução dessas mensagens enigmáticas.

Como pode ser possível aos bebês a capacidade de autotradução e autoteorização, como diz Laplanche (1992), se estes ainda não estão dotados de consciência? Ribeiro (2017)RIBEIRO, Paulo de Carvalho. Gênero, sexo e enigma no Sexual de Jean Laplanche. In: RIBEIRO, Paulo de Carvalho et al. (org.). Por que Laplanche? São Paulo, Zagodoni, 2017, pp.105-124. responde a essa questão ao dizer que as primeiras traduções se misturam às propriedades de unificação dos estímulos sensoriais produzidos pelo cuidado dispensado ao bebê. Eles servirão de recurso para as primeiras traduções, para a formação do eu, logo, para o recalque originário.

Podemos assim pensar que as primeiras traduções recalcantes e instauradoras da tópica psíquica confundem-se com o poder de unificação que as ações narcisantes do adulto produzem sobre a dispersão auto erótica e fragmentada resultante das primeiras mensagens implantadas na derme psicofisiológica do bebê (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Paulo de Carvalho. Gênero, sexo e enigma no Sexual de Jean Laplanche. In: RIBEIRO, Paulo de Carvalho et al. (org.). Por que Laplanche? São Paulo, Zagodoni, 2017, pp.105-124.:110).

O ato de designar um gênero à criança serve para dotá-la de recursos narcísicos diante da abertura radical ao mundo no começo da vida. No entanto, devemos lembrar que o processo de tradução não se dá de maneira completa. Exatamente por abrigar ruídos inconscientes daquele que designa o gênero do pequeno ser, sempre sobrarão restos enigmáticos não traduzidos que serão sedimentados no nível do recalcamento originário.

Até aqui, tentamos explicar resumidamente alguns pressupostos da TSG a partir dos primeiros cuidados endereçados ao bebê (Laplanche, 2015LAPLANCHE, Jean. O gênero, o sexo e o sexual. In: LAPLANCHE, Jean. Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano: 2000-2006. Porto Alegre; São Paulo, Dublinense, 2015, pp.155-189 [2003].). É fundamental que sigamos os trilhos da investigação do autor e consideremos que há também a presença de um código social nesse processo. As mensagens do socius (grupo formado por adultos próximos do bebê como irmãos, tios, avós) também são mensagens de designação de gênero.

No segundo tempo do recalcamento, operações complexas como as da lógica fálica se estabelecem e vêm não só retificar o recalcado originário, mas, também, ressignificá-lo a partir de concepções generificadas confirmadas pela percepção da diferença sexual. Ou seja, durante o recalcamento secundário, a experiência de passividade ganhará contornos de feminilidade. O caráter filogenético que os complexos freudianos adquiriram é prova da força recalcante da lógica fálica, isto é, a ideia de diferença sexual que aparece no recalcamento secundário serve ao objetivo do recalcamento primário, que é traduzir e simbolizar a passividade radical e a fragmentação que precedem a formação do eu.

A conveniência da diferença anatômica dos genitais como subsídio para as elaborações do recalcamento secundário reside na associação arbitrária do feminino à passividade, ao fragmentado, à alteridade radical, em suma, àquilo que deve ser recalcado. O masculino, também arbitrariamente, remete à atividade, ao que possui a qualidade de penetrar, ao que é fechado, inteiro (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Paulo de Carvalho. Gênero, sexo e enigma no Sexual de Jean Laplanche. In: RIBEIRO, Paulo de Carvalho et al. (org.). Por que Laplanche? São Paulo, Zagodoni, 2017, pp.105-124.).

É fundamental a crítica aos papéis sexuais atrelados à anatomia. No entanto, é necessário reconhecer que os códigos tradutivos oferecidos pelas concepções de gênero e orientação sexual são importantes para a formação do ego, pois são códigos que munem o sujeito de aparato narcísico. Dentre as contribuições da psicanálise está a disposição para demonstrar como esses mecanismos atuam e são capazes de nos transformar de criaturas andróginas e perverso-polimorfas em homens e mulheres com disposições afetivas diversas.

Considerando as críticas que Laplanche faz ao Édipo e à castração como códigos tradutivos, a análise dos filmes que faremos a seguir visa a criticar a coincidência proposta entre fálico e possuidor de pênis, castrado e não dotado de pênis. O que a problemática da questão trans traz é justamente um questionamento dessa coincidência entre anatomia e a organização do desejo em torno da lógica fálica.

Passemos agora à análise de nossos objetos de estudo, por meio dos quais poderemos desenvolver as hipóteses propostas até aqui.

Traindo o desejo

Traídos pelo desejo, filme de 1992, vencedor do Oscar de melhor roteiro original, começa contando a história da improvável amizade entre o soldado inglês Jody e seu algoz, o guerrilheiro Fergus, membro do Exército Republicano Irlandês, o IRA. Jody pede a Fergus que, caso ele seja morto, vá a Londres encontrar sua namorada Dil (uma mulher trans) e dizer a ela que ele a amava. Quando da morte de Jody, Fergus vai ao encontro de Dil, se apaixona por ela e passa a enfrentar conflitos com relação à identidade de Dil, à sua própria identidade e aos outros membros do IRA.

No cativeiro, Jody narra a Fergus uma anedota que condiz com a ideia de uma herança filogenética do caráter advindo de uma ascendência natural. A metáfora infantil, que faz com que Fergus seja persuadido a tirar o capuz que cobria o rosto de Jody, conta a história de um escorpião que queria atravessar um rio. Por não saber nadar, ele pede carona a um sapo. O sapo diz que, se der a carona, será picado pelo escorpião, que, por sua vez, responde que não o fará, já que isso faria com que ambos morressem afogados. O sapo aceita o pedido do escorpião e, no meio da viagem, é atacado por ele. Diante da indignação do sapo, o escorpião se justifica: “Não posso evitar, é minha natureza”. Em seguida, Jody explica a Fergus que ele deve retirar o capuz de seu rosto e livrá-lo daquele incômodo, pois, ao contrário dos outros irlandeses, é de sua natureza ser gentil. Esse momento interessa à nossa reflexão na medida em que uma das questões que permeia o filme envolve a noção de que os indivíduos possuem uma “natureza”: os irlandeses possuem uma “natureza” diferente daquela dos ingleses, assim como a “natureza” dos homens cis é diferente da “natureza” das mulheres trans.

Tudo parece ir bem desde o encontro entre Fergus e Dil até ele se deparar com a nudez do corpo dela. Fergus imediatamente desfere um golpe no rosto da amante e corre até o banheiro, sob efeito de forte náusea. Apesar de aparecem como um casal na última cena do filme, é patente o constante desconforto de Fergus após a visão do sexo de Dil. Apesar de protegê-la dos demais membros do IRA quando estes tentam matá-la, Fergus censura Dil com frequência quando das tentativas de demonstração de afeto da personagem.

Nossa hipótese é a de que essas duas situações dizem de conflitos separatistas muito radicais: o Fergus guerrilheiro, sendo irlandês, precisa se apropriar de uma parte da Inglaterra, e isso o leva até Dil (por quem se apaixona), que, além de ser inglesa, é uma mulher trans, o que o obriga a lidar com a falibilidade de suas traduções. O protagonista se vê diante do mal-estar causado pelo imperativo de ter que, a um só tempo, ressignificar sua identidade enquanto irlandês, cisgênero e heterossexual.

Compreendemos que, nesse caso, o amor é o aparecimento da fragilidade de algumas traduções. Sabemos que as primeiras relações da criança são aquelas estabelecidas a partir do cuidado do adulto; logo, faz sentido afirmarmos que o cuidado que recebemos quando bebês é a nossa primeira vivência do amor. Para Belo e Marzagão (2011)BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio. Sobre o amor. In: BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio; PEREIRA, Antonio Marcos (org.). Sobre o amor e outros ensaios de psicanálise e pragmatismo. Belo Horizonte, Ophicina de arte e prosa, 2011, pp.9-34., o inconsciente nunca se ausenta de nossas relações amorosas, já que um dos efeitos dessas primeiras ligações com o outro é a construção dos meios pelos quais a pulsão sexual buscará satisfação. O poder estranho-familiar do amor que os autores mencionam é explicado pela lembrança do encontro traumático com o inconsciente adulto, que passa a nos habitar desde então.

Ainda em consonância com Belo e Marzagão (2011)BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio. Sobre o amor. In: BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio; PEREIRA, Antonio Marcos (org.). Sobre o amor e outros ensaios de psicanálise e pragmatismo. Belo Horizonte, Ophicina de arte e prosa, 2011, pp.9-34. e com os pressupostos da TSG de Jean Laplanche (1992), sustentamos a hipótese de que o amor é uma tentativa de tradução para o fato de sermos colonizados pelo inconsciente alheio.

Alguns encontros amorosos, no entanto, podem excitar de uma forma demoníaca este outro interno remanescente, daí decorrem fenômenos como o ciúme, os crimes passionais e o luto sem fim pela relação perdida. Outros encontros amorosos podem excitar este outro interno de forma a gerar os estados positivos do amor. Pensamos que um mesmo objeto de amor, geralmente, provoca os dois tipos de excitação: gera prazer e gera mal-estar (Belo; Marzagão, 2011BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio. Sobre o amor. In: BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio; PEREIRA, Antonio Marcos (org.). Sobre o amor e outros ensaios de psicanálise e pragmatismo. Belo Horizonte, Ophicina de arte e prosa, 2011, pp.9-34.:19).

O encontro com o objeto de amor desencadeia em nós algo da passividade originária, do desamparo que a intromissão da sexualidade adulta nos causa. Pode ser essa a causa da ambivalência de nossas relações amorosas. O afeto que nutrimos por um objeto convive com o aspecto traumático de nossas origens. Para alguns de nós, o que torna esse encontro suportável são as traduções generificadas que incorporamos no recalcamento secundário. Esse parece ser o caso de Fergus. Seguindo essa lógica ambivalente, o encontro com Dil perturbou essas traduções.

Quando Fergus encontra Dil, esse “outro interno remanescente” (Belo; Marzagão, 2011BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio. Sobre o amor. In: BELO, Fábio; MARZAGÃO, Lúcio; PEREIRA, Antonio Marcos (org.). Sobre o amor e outros ensaios de psicanálise e pragmatismo. Belo Horizonte, Ophicina de arte e prosa, 2011, pp.9-34.:19) é perturbado. A constatação sobre o órgão sexual de sua namorada parece ter causado uma pane em seu processo de simbolização. A crença na boa adaptação aos termos da lógica fálica, que traduz o que é ser homem e mulher a partir da diferença sexual/genital, é abalada diante do pênis de Dil. O incômodo das vivências de intrusão do começo da vida é reavivado/aumentado em Fergus. Pensar nas narrativas de homens que amam mulheres trans abre um canal para que passemos a refletir sobre a constituição masculina em seu aspecto mobilizador de angústia.

Ao final do filme, Fergus se entrega para a polícia inglesa e recebe a pena de dois mil dias – assim contados por Dil. No encontro final entre os dois, Dil questiona Fergus sobre ter se entregado, e ele repete, então, a história da natureza do escorpião. É notório o desconforto de Fergus diante das investidas de carinho de Dil. Não seria descabido pensar, na esteira da lógica proposta por Freud (1996b), sobre os criminosos movidos pelo sentimento inconsciente de culpa, e que se entregar para as autoridades talvez tenha sido uma forma de se livrar do incômodo que essa relação lhe provocava, como se precisasse de barras externas para conter aquilo que o recalcamento já não conseguia dominar. Outra interpretação seria pensar que desejar ser punido é oriundo da mesma passividade contra a qual Fergus se defende na relação com Dil, isto é, o desejo de passividade se realiza mesmo que de forma disfarçada.

A tradução do título do filme – “Traídos pelo desejo” –, ainda merece um comentário. O original é The crying game, que é também o nome de uma canção-lamento que Dil canta num momento do filme. A música diz da impossibilidade de ser amada, assim como a personagem endereça isso para todos que a assistem, tanto dentro da cena quanto para os espectadores do filme. Do lado de Dil, portanto, não há traição do desejo: o desejo de ser amada se impõe e não há qualquer resposta.

Do lado de Fergus, no entanto, é possível dizer que ele seja traído pelo seu desejo? Para começar, lembremo-nos de algo importante: preferimos insistir na pluralidade de desejos no inconsciente, sempre articulados às pulsões parciais. De um ponto de vista psicanalítico, o eu é sempre traído pelos desejos inconscientes, pois o eu é constituído para se opor a e/ou organizar esses desejos, por meio do uso das fantasias. Aqueles que são recalcados e que, porventura, retornam, o fazem de forma disfarçada e, quando são reconhecidos, geralmente, é tarde demais. Do ponto de vista inconsciente, porém, é impossível ser traído pelo desejo. Nas situações como aquelas mostradas no filme, os desejos inconscientes parecem trair o eu, mas são fiéis a si mesmos: os desejos objetivam sua satisfação, não necessariamente submetida aos códigos que outrora os recalcaram.

Finalmente, pensamos na estrutura narrativa do filme. Há dois focos narrativos: um amoroso e outro político. Que a situação política escolhida seja a de uma guerra por identidade geopolítica só reforça nossa impressão de que os conflitos de gênero também são radicalmente marcados por questões narcísicas. O término de Fergus na prisão acaba, por fim, por apontar para uma saída melancólica (Butler, 2003) cuja função é manter o esquema heteronormativo que guiava seus desejos até então.

Uma mulher fantástica

A alteridade marca nossa entrada no mundo social, bem como os contornos históricos e políticos traçados pelas operações do recalcamento secundário. A partir disso, seguimos com a hipótese de que o modo como amamos diz daquilo que nos constitui. Propomos a análise de outro filme a fim de expormos de forma mais consistente nossas reflexões.

Uma mulher fantástica, drama chileno vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2018, conta a saga de Marina Vidal (uma mulher trans) após a morte de seu amante Orlando (um homem cis), 20 anos mais velho que ela. A princípio, constatamos que ambos vivem um relacionamento afetivo de acordo com o que supomos geralmente se esperar de uma relação heteronormativa e monogâmica. Vão a jantares, compartilham planos para uma viagem, vivem juntos no apartamento de Orlando. O cotidiano que vimos nos primeiros minutos do filme não representa a dolorosa trama de violências que Marina experimenta, a qual fica mais evidente após a morte de Orlando.

O médico que dá a Marina a notícia da morte de Orlando por um acidente vascular cerebral zomba do nome da protagonista, sugerindo que aquela denominação só poderia ser um apelido, um pseudônimo. E, em seguida, chama a polícia. O médico e o policial inferem que ela só pode ser uma criminosa.

Listamos algumas exposições que Marina sofre a partir desse momento. Certa noite, Bruno, filho de Orlando, invade o apartamento que o casal dividia e interpela Marina de maneira violenta, constrangedora. Pergunta sobre seu corpo, sobre o que ela e seu pai faziam na noite em que ele morreu: “Não entendo o que você é”. Façamos uma advertência importante aqui: a mulher trans parece ocupar o lugar de enigma por excelência. No entanto, insistimos que o enigma do sexual não privilegia nenhuma tradução específica, pois pode ser endereçado por qualquer um(a), independentemente do seu gênero e sexo. O privilégio enigmático que ganha o corpo da mulher trans tem a ver com os códigos que a situam nesse lugar mítico, monstruoso, estranho.

A ex-esposa de Orlando procura Marina. Ela vai a seu encontro e essa situação dá sequência à série de humilhações sofridas pela anti-heroína. Gostaríamos de destacar a seguinte fala da coadjuvante, dita antes de ela proibir a presença de Marina no funeral de Orlando: “Quando me casei com Orlando eu tinha 38 anos. Éramos bem normais. Tínhamos uma vida normal. Então quando ele veio e me explicou, eu pensei que.... Desculpa se pareço rude ou direta ao dizer isto, mas eu só consigo ver isto como uma perversão. Desculpa, mas quando olho para você não sei o que estou vendo. Uma quimera, é isso que vejo”.

Marina é insistentemente procurada por uma investigadora da polícia, que, sem qualquer justificativa plausível, submete-a a um exame íntimo e faz questão de permanecer no local apesar da sugestão do perito para que se retirasse e preservasse a privacidade da examinada.

A situação humilhante no filme retrata bem o que encontramos na realidade. Os resultados de uma análise publicada no Relatório do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) sobre inquéritos policiais envolvendo travestis e transexuais no estado de Minas Gerais (Prado, 2018:55) mostram que “o uso da palavra ‘travesti’ incorpora, tanto sobre o contexto que está sendo descrito como na forma e nos significados da análise do fato delituoso, um conjunto de interpretações pré-definidas, construído historicamente e consensuado pelo pacto social hegemônico”.

Nos documentos analisados, a denominação “travesti” influencia o trabalho dos agentes de segurança em todos os níveis. A condição de travesti e/ou transexual das vítimas serve como referência não só para a identificação dos sujeitos, mas “como um qualificador moral, determinista e prescritivo” (Prado, 2018:55). Esse recurso é utilizado para a construção de uma narrativa que demonstre relação direta entre a presença de travestis e transexuais e um suposto contexto de criminalidade ou periculosidade.

O que gostaríamos de destacar, a partir do uso deste material, é que o estranhamento causado pelo relacionamento entre uma mulher trans e um homem cis que vemos no filme é compartilhado e reforçado culturalmente (dito de outra maneira, por operações do recalcamento secundário). O núcleo familiar de Orlando e os atores que representam as instituições de saúde e de segurança se veem diante de algo que afirmam, por diversas vezes, não entenderem. Alguns homens cis, apesar de serem autores de violência contra as mulheres trans, não são os únicos a propagá-la. Também as instituições a reforçam por outras vias que não a violação da integridade dos corpos dessas mulheres.

Isso confirma parcialmente nossa hipótese de que as escolhas amorosas que fazemos e o lugar determinado pelo gênero que ocupamos nestas relações são construtos políticos. As tensões expostas no filme, bem como as dificuldades de reconhecimento das identidades de mulheres trans e travestis que vemos no relatório do NUH, servem para constatarmos que as relações entre os gêneros são relações de poder, e nelas está contido o libidinal, o sexual. Não há, a título de exemplificação, indícios de que Orlando tenha sofrido quaisquer violências por parte da família ou demais instituições por se relacionar com Marina, enquanto ela era vista como aberração, oportunista e assassina. Acreditamos que a psicanálise fornece algumas ferramentas que podem nos situar quanto ao que mobiliza, a nível psíquico, essa espécie de pacto de marginalização do qual algumas mulheres são vítimas.

Ao ser expulsa do funeral de Orlando, Marina é perseguida por três homens da família dele em um carro. Enquanto tenta fugir, é interpelada por eles:

- O que está olhando?

- Está me ameaçando, veado?

- Vá destruir famílias em outro lugar! Monstro maldito.

Uma das primeiras formulações de Freud (1996dFREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides). In: FREUD, Sigmund. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Vol. XII. Rio de Janeiro, Imago, 1996d [1911], pp.15-87.:52) quando da interpretação do caso Schreber é a de que “nada existe de característico da enfermidade conhecida como paranoia, nada que não possa ser encontrado (e que não tenha sido, em verdade, encontrado) em outros tipos de neuroses”. Freud entendeu que o que é típico da paranoia em Schreber é o caráter persecutório de seu delírio em resposta às fantasias de desejo homossexual. O paciente fantasiou estar em uma posição feminina em relação a seu médico. Como resposta a essa fantasia, houve o que Adler chamou de “protesto masculino” (Freud, 1996dFREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides). In: FREUD, Sigmund. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Vol. XII. Rio de Janeiro, Imago, 1996d [1911], pp.15-87.:52). O autor utiliza essa expressão para designar a reação de repúdio de Schreber que se seguiu ao investimento de cunho erótico em outro homem, momento em que o objeto de seu desejo supostamente homossexual, Dr. Flechsig, passa a abusador.

Ribeiro (2003)RIBEIRO, Paulo de Carvalho. Stanley Kubrik se matou: O que se pode ver de olhos bem fechados. Percurso (30), São Paulo-SP, 2003, pp.13-24. examina o tema da feminização presente no conteúdo delirante de uma parcela importante de casos de psicose em homens. Esse tema assume diversas formas, desde delírios que envolvem a transformação do corpo (como documentado no caso Schreber, por exemplo) “até a quase indefectível convicção, por parte do delirante, de uma dúvida generalizada dos outros sobre a solidez de sua masculinidade e a consequente suspeição de homossexualidade da qual ele seria objeto” (Ribeiro, 2003RIBEIRO, Paulo de Carvalho. Stanley Kubrik se matou: O que se pode ver de olhos bem fechados. Percurso (30), São Paulo-SP, 2003, pp.13-24.:15).

Fica evidente o componente homossexual e o que poderíamos interpretar como uma solução paranoica presentes no conteúdo das falas e nas atitudes dos homens que perseguem e violentam Marina. Ela é chamada de “veado” e de “veadinho” por seus agressores, mesmo sendo uma mulher. A desproporção entre a denominação que a personagem recebe e sua identidade mostra que as acusações de homossexualidade dirigidas a si podem dizer mais sobre uma ameaça que pesa sobre quem as profere. É como se esses homens precisassem localizar no outro as acusações de homossexualidade proferidas contra si mesmos por uma instância psíquica persecutória. Estariam os parentes de Orlando identificados com ele no sentido de reconhecerem em si mesmos a possibilidade de, assim como Orlando, apaixonarem-se por uma mulher transexual? Estariam identificando-se com a passividade percebida em Marina? Isso que denominamos de solução paranoica aparece como saída possível para esses homens.

Compreendemos que uma “solução paranoica” não é a única saída para esse tipo de conflito. Antes de tudo, gostaríamos de seguir revisitando algumas contribuições da teoria psicanalítica, com destaque para o trabalho de Silvia Bleichmar, na tentativa de entendermos melhor a constituição das masculinidades em seu caráter adoecedor.

Algumas hipóteses sobre a construção da identificação masculina nos homens cisgênero

Silvia Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]. reabre questões respondidas parcialmente pela psicanálise, sobretudo por Freud, quanto ao tratamento dado à constituição das identidades masculinas. Para ela, essas questões não estão satisfatoriamente respondidas:

A psicanálise mantém uma dívida com os homens que se aventuraram no divã. Uma dívida clínica, mas também uma dívida ética. Essa dívida é, em primeiro lugar, com nossos pacientes, por terem interpretado suas fantasias de masculinização – que em muitos casos são expressas pela incorporação da virilidade a partir da relação com outro homem – como fantasias homossexuais (Bleichmar, 2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:13).

Sobre esse ponto, Judith Butler (2003) compreende que, mesmo que nos utilizemos da ideia de fantasias homossexuais inconscientes para pensarmos as identificações, é preciso reconhecer que os termos dessas fantasias são adquiridos a partir de determinados contextos históricos. Esse modo de pensar a formação das identidades segue “em oposição à lei fundadora do Simbólico, que fixa identidades a priori, podemos reconsiderar a história das identificações constitutivas sem a pressuposição de uma lei fixa e fundadora” (Butler, 2003:121). Nesta seção, tentaremos indicar alguns caminhos para pensarmos a construção das identidades cis masculinas.

É por considerar que as identidades são resultado de um processo dado a posteriori que Bleichmar (2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:14) afirma que não pode haver algo como uma identidade inconsciente responsável pelos desejos que manifestamos “em razão de que nada pode, simplesmente, ser no inconsciente”. Por isso, não é possível que as fantasias que fazem parte da construção das identidades sejam baseadas em algo no qual o sujeito não se reconhece. Não é possível ser homossexual a nível inconsciente, uma vez que o inconsciente não conhece diferenças como homem/mulher e homossexual/heterossexual.

Para Bleichmar (2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:15), parte do problema consiste no fato de o pênis funcionar como obstáculo epistêmico, “levando a considerar que a sexualidade masculina percorre um caminho linear, porque o menino mantém o objeto primário junto com o órgão de origem, em uma contiguidade que é mostrada hoje pouco fértil”. Analisaremos mais a fundo a questão das identificações masculinas levando em conta apenas o modo de organização familiar priorizado pela psicanálise nos séculos passados (cisheteronormativo, composto por pai, mãe e filhos). A inclusão de outras configurações familiares como a mono ou homoparentais, por exemplo, é fundamental e deverá ser feita em investigações futuras.

Freud (2018aFREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018a, pp.259-276 [1925].; 2018bFREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina. In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018b, pp.285-311 [1931].; 2018cFREUD, Sigmund. O declínio do complexo de Édipo. In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018c [1924], pp.247-257.; 2018dFREUD, Sigmund. A feminilidade (Conferência XXXIII). In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018d [1933], pp.313-345.) nos ensinou que a mãe é nosso primeiro objeto de amor e que esse objeto é retido, pelo menino, no Complexo de Édipo. Após a descoberta da diferença sexual e a ameaça de castração, a mãe deixa de ser a representação de um estado de completude absoluta. É substituída pela derrota narcísica decorrente desses novos eventos e muda de posição na dinâmica afetiva do menino.

As contribuições de Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]. fazem avançar a descoberta freudiana ao considerarem que, com a mudança do objeto, há também uma quebra de continuidade na relação mãe-filho, instituída pelo sentimento de ambivalência e pela presença do pai sexuado. Admitindo que o desejo pela mãe causa uma excitação que é resolvida por uma via autoerótica, a autora prossegue apontando para o curioso fato de que o encontro com a mãe ocorre especificamente a nível genital e não pela totalidade do corpo:

Este fantasma frequentemente expresso na clínica por nossos pacientes do sexo masculino é, em muitos casos, a base de uma sintomatologia variada, da impotência à inibição para estabelecer relações sexuais com mulheres. Por outro lado: que tipo de identificação deve o homem realizar antes do enterro de Édipo, cuja culminação abre a possibilidade de se identificar com o pai através da incorporação das instâncias que constituem o superego, a fim de exercer sua potência genital com o objeto de escolha? (Bleichmar, 2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:25).

Se o pênis é o que assegura o encontro com a mãe, podemos supor que a presença do pai enquanto elemento que interrompe a conexão com ela diz da possibilidade, para o menininho, de que ele também possua um pênis, ferramenta de ligação com o objeto de amor. Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]. chama atenção para o fato de que o que ocorre nesse momento vai além da rivalidade com o pai. Há, antes de tudo, identificação com ele a partir de inclinações de cunho erótico, tal como ocorre com a mãe. Essa identificação é efeito da sublimação das investidas amorosas do menino em direção ao pai, e é a partir desse processo que se abre a possibilidade de exercício da masculinidade.

Para Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]., constituir-se homem diz respeito tanto à construção de papéis de gênero a serem desempenhados socialmente quanto à potência do órgão sexual. Essa potência não se relaciona apenas à capacidade de reprodução do órgão masculino, mas também à propriedade de ele poder ser exibido, oferecido (tanto a uma mulher quanto a outro homem) como objeto de satisfação. Não é, portanto, “a chamada castração no real que está em jogo, mas o desejo de fornecer o objeto de prazer e potência” (Bleichmar, 2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:26). Trata-se de um processo bastante complexo, que Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]. dividiu em três momentos. Partiremos do primeiro momento enumerado pela autora, em seguida mencionaremos o terceiro momento e só depois examinaremos o segundo momento, que é o que, para nossa reflexão, merece mais atenção.

O primeiro deles tivemos a oportunidade de abordar com mais detalhes em seção anterior, quando revisitamos os fundamentos da TSG. É o momento da denominação, pelos adultos, dos caracteres que estes julgam ser mais adequados ao sexo da criança. Esses caracteres vão desde a escolha de um nome até as atitudes que a criança deve reproduzir socialmente. Esses imperativos não são produto do reconhecimento, pela criança, da diferença sexual. Nesse momento, coincidem o polimorfismo sexual do infante e as expectativas transmitidas pelo que Laplanche (2015)LAPLANCHE, Jean. O gênero, o sexo e o sexual. In: LAPLANCHE, Jean. Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano: 2000-2006. Porto Alegre; São Paulo, Dublinense, 2015, pp.155-189 [2003]. chama de mensagens enigmáticas do socius.

O terceiro momento da constituição sexual masculina é aquele marcado pelas operações do recalcamento secundário. Não se trata de inscrever-se narcisicamente na categoria “homem”, mas das escolhas que esse homem fará dentro dessa categoria a partir dos ideais transmitidos a ele, ou, como bem sintetiza Bleichmar (2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:30): “que tipo de homem se deve ser”.

O segundo tempo nos interessa um pouco mais do que os outros. A partir dele, podemos retomar a questão sobre como os modos de constituição das masculinidades podem oferecer saídas mais ou menos mortíferas. Nesse segundo tempo, o menino está às voltas com a constatação da diferença anatômica entre os sexos. Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]. nos lembra de que o mero funcionamento fisiológico do órgão sexual não basta para garantir o estabelecimento da masculinidade, ela sempre se apresentará como um elemento instável, passível de destituição.

Para que o pênis do menino seja provido da potência fálica que o aproximará de uma posição masculina, é preciso que haja o investimento de outro homem, um adulto, já investido dessa potencialidade. Isso ocorre a partir do que Bleichmar (2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:30) chama de “fantasma de incorporação”1 1 O termo “incorporação” se refere aqui ao conceito apresentado por Freud em trabalhos nos quais ele discute o processo de identificação, como Totem e tabu (1913), Luto e melancolia (1917) e Psicologia de grupo e análise do ego (1920). do pênis desse adulto (comumente o pai) e também da percepção de que o órgão sexual (do adulto e da criança) é valorizado pela mãe. Chegamos, portanto ao paradoxo proposto por Bleichmar (2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:30): “somente o estabelecimento da virilidade é possível à custa da incorporação do pênis paterno, que estabelece a angústia homossexual dominante no homem”. É necessário examinarmos mais detidamente esse ponto.

Ao trabalharmos sob a perspectiva da TSG, não nos parece imprudente recorrer à interferência do pai no contato com o corpo do bebê. Seu papel durante o auge das excitações corporais que os cuidados primários evocam não é apenas de interditor da conexão com o corpo materno. Também a criança é para o pai objeto de prazer autoerótico e vice-versa. Essas excitações provocadas pelo pai possibilitam que a criança faça movimentos eróticos em direção a ele. Esses elementos transmitidos no contato com o pai são recebidos, nas palavras de Bleichmar (2009BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006].:33), como “metonímia da mãe” e formarão as bases do desejo erótico pelo pai que marcam o estabelecimento da masculinidade.

Por isso, assim como Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]., evitamos localizar a gênese da identificação masculina em uma suposta homossexualidade inconsciente. Construtos como homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade, por exemplo, são resultantes de operações do recalcamento secundário. Nesse momento, não é possível dizer que o bebê assume uma posição hetero, homo ou bissexual. O que ocorre aqui é a primazia do polimorfismo sexual, da pulsão parcial.

Esse paradoxo proporciona uma nova leitura do pressuposto psicanalítico clássico de que as identificações masculinas se baseiam no imperativo de, ao mesmo tempo, ser como o pai (enquanto homem/sujeito sexuado) e não ser como ele (devido a proibição do incesto). Essa nova leitura considera impossível a identificação a um adversário, como é o pai do Complexo de Édipo, sem vínculo erótico.

Convém levantarmos a questão do motivo pelo qual, tanto em nosso escopo teórico quanto no delírio persecutório, a interpretação do processo de identificação masculina a partir do desejo erótico pelo adulto de mesmo sexo é efeito de uma homossexualidade latente. A passividade do começo da vida é entendida como feminização (e assim também parece ser entendida a homossexualidade masculina), tanto pela teoria quanto pelas quase infinitas estratégias de defesa psíquica, sendo elas neuróticas ou não.

Podemos reconhecer a natureza traumática do encontro com o outro (e gostaríamos de enfatizar aqui sobretudo o encontro erótico/amoroso), pois ele nos coloca, de alguma maneira, em contato com algo da situação antropológica fundamental. Ao concordarmos com Bleichmar (2009)BLEICHMAR, Silvia. Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós, 2009 [2006]. que as masculinidades são um eterno ponto de chegada que precisam ser constantemente alcançadas, quais seriam as perturbações a que elas estariam expostas quando do encontro com uma mulher transexual? O contato, pelo homem cisgênero e heterossexual, com um corpo que ostenta ou já ostentou algum dia um pênis (mesmo que desprovido de potência genital), colocaria a trabalho, em alguma medida, os primórdios de sua história libidinal?

Considerações finais

Os filmes analisados demonstram a marginalização de mulheres trans e travestis e colocam questões ainda pouco trabalhadas pela psicanálise. Não nos referimos aqui ao tema das transexualidades, que, embora careça de maiores desenvolvimentos (sobretudo ao que diz respeito à despatologização de identidades trans), tem se inserido cada vez mais no debate acadêmico por diversas vertentes teóricas. Quando dizemos que esse tema merece um olhar mais cuidadoso pela psicanálise, nos referimos a como a constituição das identidades cisgêneras estão envolvidas na segregação dessas mulheres.

É conhecido o esforço de Freud (1996eFREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Vol. VII. Rio de Janeiro, Imago, 1996e [1905], pp.119-209.; 2018aFREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018a, pp.259-276 [1925].; 2018bFREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina. In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018b, pp.285-311 [1931].; 2018cFREUD, Sigmund. O declínio do complexo de Édipo. In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018c [1924], pp.247-257.; 2018dFREUD, Sigmund. A feminilidade (Conferência XXXIII). In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2018d [1933], pp.313-345.), certamente um dos primeiros estudiosos a se debruçar sobre o enigma de como nos tornamos homens e mulheres. As dificuldades mais evidentes de sua empreitada dizem dos desdobramentos do processo de constituição das mulheres, sobre os quais ele dedica muitos de seus textos, e parece deixar suas conclusões em aberto. Entretanto, é preciso dirigir um olhar desconfiado ao modo linear e contínuo com que ele descreve a formação das identidades masculinas. Laplanche (1988)LAPLANCHE, Jean. Problemáticas II: Castração. São Paulo, Martins Fontes, 1988 [1980]. e Horney (1991)HORNEY, Karen. A fuga da feminilidade: O complexo de masculinidade nas mulheres segundo as óticas masculina e feminina. In: HORNEY, Karen. Psicologia feminina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1991, pp.51-66 [1926]., ao apontarem uma relação de equivalência entre a psicanálise e o exercício da criança de inventar narrativas para suas primeiras experiências sexuais, fornecem argumentos para que sustentemos a constatação de que também a psicanálise é efeito do recalcamento.

Felizmente, nada está perdido. Pelo contrário, o reconhecimento da submissão da psicanálise aos processos de recalcamento torna quase inesgotável o número de questões a serem formuladas. A análise dos filmes possibilitou que começássemos a desenvolver algumas observações acerca das respostas arcaicas às quais os sujeitos recorrem quando em contato com os fantasmas de incorporação que os constituíram. O teor pouco sofisticado dessas respostas nos levou a cogitar que elas possam ser soluções melancólicas ou persecutórias. Acreditamos que essas respostas possam variar muito de acordo com os recursos que a criança receberá dos adultos para lidar com a ameaça de aniquilação que permeia o sempre traumático encontro com o amor. Sabedora disso, cabe à prática clínica acolher os sujeitos em sua singularidade e oferecer a possibilidade de construir outras respostas menos mortíferas.

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  • 1
    O termo “incorporação” se refere aqui ao conceito apresentado por Freud em trabalhos nos quais ele discute o processo de identificação, como Totem e tabu (1913), Luto e melancolia (1917) e Psicologia de grupo e análise do ego (1920).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2018
  • Aceito
    26 Jan 2022
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