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Treinar um assistente de pesquisa

DOCUMENTO

Treinar um assistente de pesquisa

Mariza Corrêa

Professora do Departamento de Antropologia – IFCH e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, Unicamp

Em maio de 1938, Margaret Mead tinha acabado de chegar à Nova Guiné, voltando de um período de pesquisa em Bali, com seu marido, Gregory Bateson1 1 Gregory Bateson, antropólogo inglês, autor de Naven, então terceiro marido de Margaret Mead, com quem publicou Balinese Character: a photographic analysis. New York, New York Academy of Sciences, 1942. Para rememoração e avaliação dos trabalhos do grupo mencionado por Mead na carta, ver MEAD, M. Blackberry Winter. My early years. N.Y, William Morrow & Co., 1972; e BOON, James. Between-the-wars Bali: rereading the relics. In: STOCKING, George. (ed.) Malinowski, Rivers, Benedict and others. Essays on culture and personality. Madison, the University of Wisconsin Press, 1986. Para a história de Buell Quain, ver o romance de CARVALHO, Bernardo de. Nove noites. São Paulo, Cia das Letras, 2002. Tradução da carta de Mariza Corrêa. , quando recebeu uma carta do Brasil, de um aluno do doutorado de Columbia, orientado por Ruth Benedict, e que ela, aparentemente, conhecia bem. Por alguma razão a sua resposta a essa carta levou um ano para chegar até seu destinatário que estava, então, às vésperas de se matar. O destinatário era Buell Quain, que fazia pesquisas no país, e que depois de ler 35 vezes a carta de Mead, como diz nas suas notas, escreveu dois rascunhos de respostas que não chegaram a ser enviadas. As questões que Quain lhe enviava foram, aparentemente, formuladas antes de ele começar sua pesquisa de campo no Brasil – mas a resposta chegou quando ele já tinha, de algum modo, resolvido as questões que lhe colocava. Esta carta de Mead está na pasta de Buell Quain, na Casa de Cultura Heloisa Alberto Torres em Itaboraí, Niterói, no arquivo de Heloisa Alberto Torres.

Sepik River, 13 de maio, 1938

Prezado Buell,

Fiquei contente em receber sua carta, cheia de demandas virtuosas a favor da disciplina férrea, no entanto, odeio post-mortem, e a crítica severa que você implora tão zelosamente não seria tão severa ou tão útil quanto se você me tivesse enviado um manuscrito de seu trabalho. Sou uma leitora muito atenta de manuscritos, faço comentários datilografados, citando as páginas, e de modo inquisitivo, mas construtivo. Isto quer dizer que, se houvesse um manuscrito, eu poderia dizer: "Você não verificou tal ponto? Você não tem algum exemplo relacionado de a, e b, e c, que ajudaria a fortalecê-lo ou ampliá-lo?" e você provavelmente seria capaz de oferecer algum ou todos de a, ou b, ou c, e tudo estaria bem. Mas não gosto das resenhas que afirmam "É uma pena que o autor não tenha mais evidência para apoiar seu argumento sobre... etc". É provável que o autor tenha a evidência, mas não sabia que era evidência, e, de qualquer modo, o tamanho de muitas resenhas não deixa espaço para que a crítica seja detalhada o suficiente para ser útil. Assim, você vê que deveria ter enviado o manuscrito que pedi, e se ele não vai ser publicado até o ano que vem, você teria tempo suficiente para fazê-lo.

Você teve algum contato com Laura Tooting – e algo de seu material foi publicado? Gostei muito do pouco que vi dela e tinha expectativas sobre o que iria publicar.

A única pergunta de sua carta que pode ser respondida de modo relevante diz respeito ao treinamento de um assistente nativo. Um rapaz, aliás, e não uma moça. As moças são muito mais difíceis, mas todos acham que se vai treinar uma moça. O problema é diferente, é claro, dependendo da presença ou ausência de alfabetização. Se você pode obter um nativo alfabetizado, então você pode torná-lo um assistente de verdade. Em Bali tínhamos um rapaz de vinte e dois anos, com uma educação até o oitavo grau, que era muito inteligente, metódico, confiável, empenhado e muito criativo. Nós o ensinamos a datilografar textos em balinês, com cada linha numerada. Você pode achar que este é um detalhe, mas espere até ter milhares de páginas de tais textos com os quais trabalhar. O grosso desses textos eram relatos de eventos aos quais todos assistíamos. Assim, tínhamos relatos triplos de cada evento, o meu, o dele, e as fotografias de Gregory, todos feitos numa escala de tempo. Mesmo se só duas pessoas trabalham juntas, é preciso uma escala de tempo para sincronizar as notas. Eu mantinha um relato sumário dos eventos e atribuía ao secretário nativo, Madé, tarefas definidas, especialmente o registro do ritual, a enumeração das pessoas presentes, o registro dos nomes dos atores e transcrições das conversas. Um de nós, dependendo do assunto, traduzia este texto – também fazendo isso como um exercício de linguagem – usando meu relatório sumário, e qualquer ausência ou detalhes novos eram pedidos a Madé – em fichas soltas, com o número do texto e da linha, e ele ia buscar certos pontos tais como "Por que a esposa de Nang Polih faz a oferenda e não Nang Polih?" etc., e datilografava a resposta em balinês. Essas respostas eram então fichadas separadamente. Entrementes, eu ficava livre para incluir em meu relatório o tipo de material que ninguém mais, não certamente um secretário nativo, poderia coletar, comentários detalhados sobre o comportamento de indivíduos identificados, especialmente crianças. Em Bali, onde o ritual é extraordinariamente detalhado e monótono, era uma enorme economia ter alguém para anotar: "1. Oferenda chamada ... 1 galinha assada, 2 croquetes de arroz, três bolos marrons, três bolos brancos, 4 bananas, 1 ovo de pato." Havia páginas e páginas desse tipo a serem escritas e se eu própria tivesse de fazer isso, nunca poderia escrever todas as observações sobre comportamento, especialmente relatos de comportamentos sincronizados com as fotos que desejávamos.

O outro tipo de assistente nativo é o analfabeto, que não é tão útil, mas que é melhor do que nada. Tal assistente deveria, se possível, mas não é absolutamente necessário, falar inglês, ou espanhol, ou qualquer que seja a língua a partir da qual você está abordando a língua nativa. O treinamento consiste em duas coisas, ensiná-lo a relatar resumida e rapidamente o ponto do que está sendo dito ou feito, e treiná-lo, depois de um evento, com um olho no próximo evento. Tal treinamento seria o que eu queria saber a respeito do que acabava de ver: (1) os nomes de todas as pessoas que faziam coisas, (2) os nomes das ações realizadas, (3) se uma certa ação era parte da cerimônia ou era irrelevante, (4) se um certo ato era opcional ou essencial, (5) o que estava acontecendo fora da casa enquanto eu estava dentro (este treinamento para cobrir outra parte da cerimônia é muito importante), (6) se algo tinha acontecido antes de chegarmos, (7) se há seqüência dessa cerimônia e quando será?, etc., tudo ilustrado no detalhe com o que acabava de acontecer. Assim, antes da cerimônia seguinte, preferivelmente, é claro, uma cerimônia do mesmo tipo, você repassa tudo isso outra vez, se possível com um vago esboço do que vai acontecer, e lhe diz o que ele deve observar e lembrar, quando deve ficar dentro ou ir para fora para observar algo que esteja fora de seu campo de visão ou audição, a quais personalidades ele deve ficar atento, etc. Daí vá à apresentação, volte, peça-lhe para ditar seu relato imediatamente – eu fazia apenas anotações rápidas, Gregory fazia um texto, o que se faz depende do tipo de facilidade lingüística – e critique o relato que ele fez, aponte as coisas que esqueceu, o momento em que ele não acompanhou o homem com o bastão de fogo, etc., etc. Você ficaria surpreso com os resultados que pode obter. Eu nunca fiz nada tão completo assim com um informante analfabeto, porque até Bali minha imaginação não tinha se expandido para avaliar essas possibilidades. Mas tenho feito boa parte disso; tive informantes que podiam fazer um relato muito cuidadoso de um evento, enfatizando os pontos que tinham sido ensinados a olhar para enfatizar. Em Bali, tínhamos duas outras pessoas trabalhando conosco – no mesmo tipo de questões, em outras partes de Bali – e treinamos seus dois secretários, um dos quais tinha doze anos, o outro dezesseis, e eu lia seus relatos escritos e os criticava. É impressionante o que eles conseguiam fazer. Jane Belo estava trabalhando sobre o transe num grande número de aldeias, indo freqüentemente a um espetáculo grande e importante numa aldeia com 1000 ou mais pessoas, onde ela nunca havia estado antes. Seu secretário, o de dezesseis anos, podia chegar, estabelecer relações com os sacerdotes, fazer uma lista das pessoas que usualmente entravam em transe, fazer um esboço do que provavelmente iria acontecer e onde, e identificar a maioria das pessoas importantes, de modo que ela, ou nós, se fossemos com ela, podia acompanhar tudo muito bem, identificar as pessoas importantes para o transe, etc., conforme elas apareciam em cena. Numa sociedade realmente primitiva, o problema é muito mais simples, já que não se trata de "Quem pode entrar em transe?", mas de "Quem são os parentes que vão cortar o cabelo do bebê?", e o campo é imensamente mais limitado.

Creio que vale a pena sugerir outra técnica, para alguém trabalhando sozinho, mas com uma câmera. Você não pode ter um relato escrito completo de, digamos, todas as outras pessoas envolvidas numa cerimônia – se elas são estranhas para você e você precisa recolher todos os nomes – E fazer fotos. Mas se você tirar fotos em número suficiente e revelá-las você mesmo, você pode analisar a cerimônia com um bom informante e reconhecer a todos. Fizemos isso com o transe em aldeias estranhas, fazendo registros fotográficos muito completos – digamos duzentas ou trezentas Leicas, e três ou quatro pés de filme cinematográfico, e então as pessoas que tinham trabalhado naquela cerimônia se juntavam, com os cenários escritos, os relatos e a memória dos secretários, e as fotos reveladas e os rolos de filmes, e identificavam e reviam a todos. Claro que este é um trabalho mais caro e elaborado do que o que você pode tentar fazer sozinho, ou do que duas pessoas poderiam tentar numa cultura primitiva, mas o mesmo plano geral pode ser seguido. Você faria tantas fotos quanto possível, uma atrás da outra, reveladas, postas em ordem, elas são analisadas com informantes, identificando a todos e a sua relação com todos os outros do grupo. Este é um método especialmente bom quando se é novo na cultura, e não se pode falar a língua, e também é importante na uniformização da observação durante todo o período de trabalho de campo, eliminando, pelo menos em parte, o efeito de ingenuidade no começo versus o efeito de sofisticação e de melhor formulação teórica no final do trabalho de campo. É claro que para tirar fotos que possam ser usadas em lugar de notas, deve-se usar câmeras em miniatura, Context ou Leica. Acho que as desvantagens de revelar e copiar fotos no campo são superestimadas. Os nativos podem ser treinados para ajudar, e é um alívio produtivo para o excesso de escrita.

Lembro-me que você me escreveu de Fiji dizendo que falhara em escrever suas notas. Vejo pouca razão para duvidar de que menos notas, adequadamente re-escritas, ou pelo menos inteiramente anotadas para se ter certeza de que elas são completamente inteligíveis, e numa seqüência adequada – claro que isso se consegue retrabalhando com elas, todas as pontas soltas no trabalho de campo se devem ao fato de não se revisar as notas para ver o que falta nelas – são mais valiosas do que uma massa de material fragmentado, quase ilegível, meio digerido e em muito maior volume do que elas.

Como todas essas observações sugerem, estou completamente convencida do trabalho cooperativo, isto é, não apenas pelo menos duas pessoas trabalhando juntas no campo – simultaneamente – mas tão freqüentemente quanto possível ambos registrando, de algum modo, o mesmo evento. Em Bali, tivemos quatro europeus e dois secretários (o terceiro estava doente) ocupados em observar uma enorme cerimônia de transe e valeu a pena. Bali era um lugar ideal para desenvolver métodos que podem ser aplicados tanto a culturas mais simples e a números menores de pesquisadores quanto à nossa própria cultura e a uma equipe maior e mais bem equipada.

Você não incluiu nenhuma notícia pessoal em sua carta. Não sei se você está indo para o campo sozinho, para onde você está indo, que tipo de câmera você tem, se você tem algum problema específico, nada. Se soubesse algumas dessas coisas, eu poderia escrever uma carta melhor. Gostaríamos de não estar tão longe de todos, seria divertido ter a visita de outros pesquisadores de campo e falar sobre métodos. Cora Dubois passou três dias terrivelmente concentrados conosco em Bali e aproveitamos muito.

Estou tendo uma experiência única aqui, nesta cultura que eu só conheço por uma visita de poucos dias e através do trabalho publicado de Gregory, e de falar com ele, que a conhece muito melhor. É como estar sentada num carro ao invés de estar capinando no mato. Ele me ensinou a gramática da língua no navio voltando de Bali, e agora estamos trabalhando nas variações dialetais com um informante – mas nada da escuta apaixonada que é necessária para apanhar toda a gramática a partir de uma fonética não familiar. Ao invés disso, Gregory pode dizer: sim, que te-re-ga-un, resumido em terego, e o primeiro t transformado em l pela influência da vogal – e se aprende. Não há uma necessidade desesperada de descobrir o sistema de parentesco e de clã para sequer começar a pensar, e posso me sentar e usar meus olhos com plena vantagem antes que seu testemunho seja complicado por muita ajuda de meus ouvidos. É uma experiência muito agradável. E eles são pessoas adoráveis. Suponho que você leu Naven e assim tem uma idéia de como eles são. Com todos vocês se transformando em especialistas na América do Sul, vejo que vou ter de reduzir meu trabalho para ficar em dia. Terei de aprender espanhol ou o trabalho de vocês será suficiente? Ainda tenho de aprender holandês, o que é o bastante no futuro.

Com meus bons votos, sinceramente, M. Mead

Recebido para publicação em dezembro de 2002.

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    Gregory Bateson, antropólogo inglês, autor de
    Naven, então terceiro marido de Margaret Mead, com quem publicou
    Balinese Character: a photographic analysis. New York, New York Academy of Sciences, 1942. Para rememoração e avaliação dos trabalhos do grupo mencionado por Mead na carta, ver MEAD, M.
    Blackberry Winter. My early years. N.Y, William Morrow & Co., 1972; e BOON, James. Between-the-wars Bali: rereading the relics. In: STOCKING, George. (ed.)
    Malinowski, Rivers, Benedict and others. Essays on culture and personality. Madison, the University of Wisconsin Press, 1986. Para a história de Buell Quain, ver o romance de CARVALHO, Bernardo de.
    Nove noites. São Paulo, Cia das Letras, 2002. Tradução da carta de Mariza Corrêa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      2002
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