Resumo
Neste artigo examinamos o conceito de autoridade cultural no contexto da profissionalização/corporativização da medicina no final do século XX e seus contornos políticos e morais desde a epidemia de HIV/Aids em São Paulo. A partir de matérias jornalísticas recolhidas do jornal O Estado de São Paulo (1986-1989), buscamos dar relevo ao lugar do especialismo médico, examinando os discursos produzidos sobre a doença, no Brasil, em bases que evidenciam a emergência de atores sociais, disputas por credibilidade e a autoridade clínica sob contestação. Analisamos as narrativas públicas sobre a Aids, situando o lugar da autoridade. Argumentamos que tais discursos, no contexto do pânico sexual, não ocorriam fora de uma dinâmica de autoridade terapêutica/clínica e das normatizações próprias da profissão, que também tornavam imediatamente visível o papel dos médicos, especialistas e demais profissionais de saúde, em diálogo com a gramática moral da doença socialmente corrente. As conclusões ilustram a vinculação da medicina brasileira de fins do século com a história local-global da Aids, concentrando movimentos históricos e políticos que disputavam os sentidos científicos e morais da doença, fraturados pelo embate entre autoridades no campo científico, sanitário e clínico.
Palavras-chave:
HIV/Aids; Autoridade; Sociologia; Biopolítica; Medicina
Abstract
In this article, we examine the concept of cultural authority in the context of the professionalization/corporatization of medicine at the end of the 20th century, and its political and moral contours since the HIV/AIDS epidemic in São Paulo. Based on journalistic articles collected from the newspaper O Estado de São Paulo (1986-1989), we seek to highlight the place of medical expertise, examining the discourses produced about the disease in Brazil, in bases that show the emergence of social actors, disputes for credibility and the clinical authority under challenge. We analyze public narratives about AIDS, situating the place of authority. We argue that such discourses, in the context of sexual panic, did not occur outside a dynamic of therapeutic/clinical authority and the profession’s own norms, which also immediately made visible the role of physicians, specialists and other health professionals, in dialogue with the moral grammar of the socially current illness. The conclusions illustrate the link between Brazilian medicine at the end of the century and the local-global history of AIDS, concentrating historical and political movements that disputed the scientific and moral meanings of the disease, fractured by the clash between authorities in the scientific, sanitary and clinical fields.
Key words:
HIV/AIDS; Authority; Sociology; Biopolitics; Medicine
Introdução
As mortes precoces causadas pela Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) nas décadas de 1980 e 1990 impactaram sobremaneira as políticas internacionais de saúde, as profilaxias de risco para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e o reconhecimento público da doença. Enquanto “grupos expostos” - i.e., homens gays, bissexuais, mulheres lésbicas, usuários de drogas endovenosas, profissionais do sexo e imigrantes - foram estigmatizados e comumente descritos como “reservatórios de doenças infecciosas e venéreas” por epidemiologistas e autoridades sanitárias nos primeiros anos da epidemia, tal linguagem não esteve circunscrita apenas à profilaxia de risco entre pessoas vivendo com a doença. Similarmente, as categorias de exposição às ISTs e os usos sociais da categoria Aids não se restringiram exclusivamente ao meio científico especializado e às autoridades sanitárias11 Jordanova L. Defining features: scientific and medical portraits 1660-2000. London: Reaktion Books with National Portraits Gallery; 2000.
2 McKay R. Patient zero and the making of the aids epidemic. Chicago: University of Chicago Press; 2017.
3 Treichler P. Aids, homophobia and biomedical discourse: an epidemic of signification. In: Crimp D, editor. Aids: cultural analysis, cultural activism. Cambridge: MIT Press; 1988. p. 31-70.-44 Ayala G, Spieldenner A. HIV is a story first written on the bodies of gay and bisexual men. Am J Public Health 2021; 111(7):1240-1242..
Após a descoberta do HIV, isolado artificialmente em laboratório por pesquisadores norte-americanos em 1984, as representações públicas da doença passaram a ser concebidas não mais em termos de práticas, essencialmente, mas de fluidos corporais55 Epstein E. Impure science: aids, activism, and the politics of knowledge. Berkeley: University of California Press; 1998.,66 Perlongher NO. O que é AIDS? São Paulo: Editora Brasiliense; 1987.. Da perspectiva socio-histórica, duas conceituações merecem destaque. Em primeiro lugar, e como um fenômeno tradicional, a Aids produziu temores coletivos e representações sociais negativas para além das implicações biológicas do vírus77 Rosenberg CE. What is an epidemic? AIDS in historical perspective. Daedalus 1989; 118(2):1-17.; a justaposição de sofrimento e morte, ou de comportamentos inadequados e contaminação, levou a uma onda progressiva de classificações e julgamentos morais que estiveram presentes em definições clínicas para pacientes, em protocolos sanitários e em ações preventivas.
Por outro lado, como fenômeno pós-moderno, os sentidos da doença não foram apenas disputados pela base que agregava especialistas, profissionais de saúde e instituições; a mídia, e a imprensa, em particular, tiveram papel preponderante na forma como a doença foi interpretada e representada socialmente77 Rosenberg CE. What is an epidemic? AIDS in historical perspective. Daedalus 1989; 118(2):1-17.. Isso não quer dizer, evidentemente, que a linguagem patológica vigente foi transposta para as mídias de massa sob uma lógica vocabular mais positiva, equitativa ou desassociada de preconceitos e estigmas que marcaram os primeiros anos da epidemia. Como fenômeno pós-moderno, tampouco é possível dizer que as representações da Aids produzidas pela imprensa estiveram isentas de conotações homofóbicas, racistas e xenofóbicas, cujas conceituações marcaram a história da epidemiologia da susceptibilidade88 Brandt AM. No magic bullet: a social history of venereal disease in the United States since 1880. Oxford: Oxford University Press; 1985. ou, mais especificamente, a epidemiologia do risco99 Ayres JRCM, Paiva V, França Júnior I. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos. In: Paiva V, Ayres JRCM, Buchalla CM, editores. Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da sau´de. Curitiba: Jurua´; 2012. p. 71-94.
10 Ayres JRCM. Práticas educativas e prevenção de HIV/aids: lições aprendidas e desafios atuais. Interface (Botucatu) 2002; 6(11):11-24.-1111 Ayres JRCM. Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec; 2002..
No Brasil, em razão de testagens ineficientes e, majoritariamente indisponíveis, a doença também passou a ser cada vez mais relatada entre pacientes hemofílicos no final dos anos 1980, os quais dependiam de transfusões sanguíneas recorrentes. Debates acalorados na imprensa brasileira no período buscavam visibilizar o aumento quantitativo de casos, a inépcia dos governos em relação aos tratamentos produzidos em países desenvolvidos, e davam ênfase às relações bissexuais como meios de intercontaminação entre comunidades homossexuais e heterossexuais.
Como uma doença inicialmente descrita como “homossexual” - e frequentemente apontada como condição sine qua non associada a homens gays, bissexuais, imigrantes não-brancos, afro-americanos, profissionais do sexo, usuários de drogas injetáveis etc. -, os dilemas em torno das representações de adoecimento e morte, produzidas no contexto das décadas de 1980 e 1990 no Brasil, certamente, não devem permanecer indiscutidos.
Nesse artigo, e a partir do exame das representações sobre risco e periculosidade forjado por atores sociais diversificados, analisamos matérias publicadas sobre a epidemia de Aids no Brasil, de 1986 a 1989, no jornal O Estado de São Paulo, considerando sexo, gênero e diferenças raciais/étnicas em uma perspectiva interseccional. Interseccionalidade, nesse sentido, pode ser interpretada como uma analítica do conhecimento que busca articular três propostas complementares, conforme Collins1212 Collins PH. Intersectionality's definitional dilemmas. Annu Rev Soc 2015; 41:1-20. elaborou: (i) interseccionalidade como um campo de conhecimento situado em meio a relações de poder que busca cotejar; (ii) interseccionalidade como uma estratégia analítica que produz novos ângulos de visão de um fenômeno social; e (iii) interseccionalidade como uma práxis crítica que informa projetos de justiça social.
Em termos gerais, buscamos conectar as duas primeiras propostas sobre o conceito de interseccionalidade elaboradas por Collins1212 Collins PH. Intersectionality's definitional dilemmas. Annu Rev Soc 2015; 41:1-20. a fim de interrogar como as classificações da doença e de grupos sociais particulares veiculadas na imprensa jornalística profissional operavam categorias de diferença social ao demarcar categorias epidemiológicas de risco e susceptibilidade. Particularmente, examinamos como as descrições acerca da problemática do sangue contaminado, debatidas amplamente em matérias do período, revelam os contornos do pânico sexual na resposta brasileira à epidemia ao final da primeira década, assim como disputas por sentidos, normatizações e saberes e a dinâmica da autoridade cultural no campo científico, médico e social.
A construção social da doença: autoridade cultural e a Aids
Definições constituem pontos de entrada para abordagens teóricas, ao invés de meras explicações finais de análise. A analítica interseccional sobre a definição de doença nesse estudo incorporou dois pontos complementares a partir de Collins1212 Collins PH. Intersectionality's definitional dilemmas. Annu Rev Soc 2015; 41:1-20.: (i) o exercício de pensar conceitos de doença e adoecimento como socialmente construídos; e (ii) diferenças com base em sexo, gênero, raça e etnia como categorias relacionais, historicamente contingentes e atravessadas por diferentes experiências e realidades materiais. Em grande medida, seguimos também as proposições dos estudos culturais, em particular, Hall1313 Hall S. The work of representation. In: Hall S, editor. Representation. Cultural representation and cultural signifying practices. London: Sage; 1997. p. 15-61. e Cho et al.1414 Cho S, Crenshaw K, McCall L. Toward a field of intersectionality studies: theory, applications, and praxis. Signs 2013; 38:785-810., buscando desvelar como o enquadramento da doença e as dinâmicas de adoecimento se inserem em estruturas de poder e processos sociais de diferença em articulação.
O construcionismo social da doença é um quadro conceitual apropriado em que os processos culturais, sociais e históricos se entrelaçam e deve orientar a análise de fenômenos a priori concebidos como naturais ou estritamente biológicos1515 Roth WD, van Stee EG, Regla-Vargas A. Conceptualizations of race: essentialism and constructivism. Annu Rev Soc 2023; 49(1):1-20.. Ao analisar os discursos sobre a Aids veiculados na imprensa jornalística, a ênfase dada a aspectos socio-históricos permite compreender os sentidos axiológicos produzidos por diferentes atores como inerentes ao contexto social. Em oposição ao quadro teórico-conceitual essencialista, e aos chamados “significados naturais”1515 Roth WD, van Stee EG, Regla-Vargas A. Conceptualizations of race: essentialism and constructivism. Annu Rev Soc 2023; 49(1):1-20.
16 Cornell S, Hartmann D. Ethnicity and race: making identities in a changing world. Thousand Oaks: Pine Forge Press; 1998.-1717 Morning A. The nature of race: how scientists think and teach about human difference. Berkeley: University of California Press; 2011., consideramos que a definição de doença também faz parte de um processo sociológico fluido e flexível, que pode variar de acordo com o contexto, período histórico, sociedades e regiões1818 Bilge S. Intersectionality undone: saving intersectionality from intersectionality feminist studies. Du Bois Rev 2013; 10:405-424.
19 Treitler VB. The ethnic project: transforming racial fictions into ethnic factions. Stanford: Stanford University Press; 2013.
20 Domínguez VR. White by definition? Social classification in creole Louisiana. New Brunswick: Rutgers University Press; 1986.
21 Loveman M. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press; 2014.-2222 Roediger DR. Working toward whiteness: how America's immigrants became white: the strange journey from Ellis Island to the suburbs. New York: Basic Books; 2005..
Segundo Conrad e Barker2323 Conrad P, Barker KK. The social construct of illness: key insights and policy implications. J Health Soc Behavior 2010; 51:67-79., o construcionismo social da doença é uma alternativa à distinção conceitual comum cuja percepção da doença se desenvolve sob dois enquadramentos: primeiro, a doença, apreendida a partir de uma condição biológica pré-estabelecida e independente; em segundo lugar, o adoecimento, concebido pelo significado social da condição biológica. Limitações e críticas são apontadas a esse modelo, assim como a essas distinções, segundo Timmermans e Haas2424 Timmermans S, Haas S. Towards a sociology of disease. Soc Health Illness 2008; 30(5):659-676., justamente pelo pragmatismo social vigente sobre os processos de saúde e doença ou pelo ceticismo seletivo predominante nas análises da teoria médica, em que o social é concebido em detrimento dos aspectos biológicos; ou, ainda, como aponta Latour2525 Latour B. Science in action. Cambridge: Harvard University Press; 1987., da posicionalidade assimétrica pela qual os conceitos sociológicos assumem um status ontológico privilegiado, enquanto as categorias médicas permanecem obscuras ou controversas.
Em contrapartida, e a fim de evitar tais reducionismos, consideramos o quadro analítico doença-adoecimento em iteração, parte de um processo híbrido em que diferentes atores sociais atribuem explicações com base em elementos subjetivos (ou seja, sentimentos que envolvem perda, medo, raiva, dor, sofrimento, solidariedade, afeto etc.) e elementos objetivos (a descrição do processo biológico de adoecimento, ou características fisiológicas do corpo)2323 Conrad P, Barker KK. The social construct of illness: key insights and policy implications. J Health Soc Behavior 2010; 51:67-79.. Alternativamente, nos aproximamos da leitura de Hacking2626 Hacking I. The social construction of what? Cambridge: Harvard University Press; 1999., que reconhece falhas na forma como o conceito de construcionismo social tem sido teorizado, assinalando a falsa relação binária criada entre coisas reais e aquelas socialmente construídas. Para o filósofo da ciência, pesquisadores têm invocado o conceito para afirmar que as coisas ditas reais possuem uma base biofísica/empírica própria, enquanto aquelas ditas socialmente construídas, no entanto, não possuem base biofísica que as sustentem2626 Hacking I. The social construction of what? Cambridge: Harvard University Press; 1999.. Tal leitura falha ao fabricar o real como um campo de conhecimento dado, sem permitir que se possa reconhecer o real como parte do que é socialmente construído2626 Hacking I. The social construction of what? Cambridge: Harvard University Press; 1999..
Nas mídias de massa, classificações, normatizações e a lógica vocabular presente nos discursos fazem parte de um fenômeno interativo cuja autoridade e hegemonia transcendem a estrutura institucional da medicina, e do campo da saúde de modo mais amplo, e pode ser descrita como multissituada. Em diálogo com Bowker e Starr2727 Bowker GC, Star SL. Sorting things out: classification and its consequences. Boston: MIT Press; 1999., Armstrong2828 Armstrong D. The COVID-19 pandemic and cause of death. Soc Health Illness 2021; 00:1-13., Timmermans e Epstein2929 Timmermans S, Epstein S. From medicine to health: the proliferation and diversification of cultural authority. J Health Soc Behav 2021; 62(3):240-254., argumentamos que matérias publicadas sobre a epidemia foram moduladas por diferentes estruturas sociais, que tocam na autoridade social do jargão médico, por um lado. Por outro lado, podem produzir descrições informadas por uma espécie de autoridade cultural que é permeada pelo trabalho de especialistas em saúde, jornalistas, familiares, comunidade e pacientes. Nesse sentido, a noção de autoridade cultural é justamente útil na medida em que pluraliza e complexifica a relação da doença com interesses programáticos e atores sociais diversificados2929 Timmermans S, Epstein S. From medicine to health: the proliferation and diversification of cultural authority. J Health Soc Behav 2021; 62(3):240-254.,3030 Epstein S. Inclusion: the politics of difference in medical research. Chicago: Chicago University Press; 2007..
Materiais e métodos
Essa investigação está inserida em dois projetos de pesquisa complementares. Com foco nas produções biogerontológicas e nas biociências, de modo mais amplo, o primeiro projeto se debruçou sobre a emergência de estudos acerca da epidemia de HIV/Aids em áreas interdisciplinares, e que despontavam em popularidade nas décadas de 1980 e 1990 (FAPESP, nº 2017/23665-9). O segundo projeto, por sua vez, incorporou as classificações post-mortem em obituários publicados pela imprensa jornalística comunitária e profissional, entrevendo um debate sociológico sobre como as mortes por HIV/Aids foram publicizadas na imprensa e quais enquadramentos e representações estão associados a elas (FAPESP, nº 2023/02752-1).
Por conseguinte, e dadas as características e recorte empírico dos dois estudos, incorporamos procedimentos metodológicos em abordagem qualitativa. O material utilizado para extração e produção de dados foi o jornal O Estado de São Paulo. A escolha pelo referido material se justificou, pois, conforme observamos em estudos prévios sobre a epidemia de HIV/Aids em São Paulo, prevaleceram investigações que exploraram o jornal Folha de São Paulo; além disso, O Estado de São Paulo foi historicamente conhecido por dar menos espaço a pessoas ligadas a movimentos e grupos sociais organizados em torno da Aids, constituindo artigos de opinião e matérias científicas majoritariamente produzidas por pesquisadores-médicos lotados em centros especializados e universidades públicas. Finalmente, argumentamos que essa seleção, a partir de uma fonte ainda pouco explorada nas pesquisas sobre a epidemia, pode contribuir para um olhar renovado às questões de saúde pública, que envolveram a produção da ciência e das normatizações sobre grupos afetados, e as contendas discursivas em torno da medicina e da Aids.
Como fonte documental primária, examinamos o material tendo como enquadramento histórico-analítico a década de 1980 e, em particular, artigos publicados de 1986 a 1989. Conforme ilustra a Figura 1, as etapas da pesquisa podem ser depreendidas em: (i) identificação, (ii) triagem, (iii) elegibilidade e (iv) analítica. Foram reunidos 809 artigos na etapa de triagem, referentes ao período de janeiro de 1986 a dezembro de 1989, em seções dedicadas ao tema “saúde”. Após leitura e checagem dos textos, observamos que havia 521 textos duplicados - i.e., que haviam sido republicados, ou que constavam de modo repetido no acervo documento do jornal -, que estavam parcialmente ou totalmente ilegíveis, ou não eram propriamente artigos (i.e., propagandas, classificados, notas etc.). Para a etapa de elegibilidade, utilizamos os descritores booleanos “Aids” e “HIV” de duas formas: (i) artigos que continham um termo ou outro; (ii) artigos que continham os dois termos, associados. Foram excluídos 93 artigos em observância ao critério anterior.
A partir dos artigos coletados, produzimos sete categorias interpretativas, a fim de estabelecer uma análise descritiva e comparativa por meio de eixos analíticos comuns - (a) título; (b) tema; (c) síntese-objetivo; (d) autor/a; (e) público-alvo; (f) problemas apresentados; (g) contexto.
Discussão
A mancha roxa: ansiedades clínicas, terapêuticas e as disputas por credibilidade
Ao provocar a deficiência da imunidade e causar afecções apontadas, [a Aids] provoca o emagrecimento, com diarreia, dificuldades para respirar e manchas roxas na pele. As manchas roxas são a face mais temida da doença.
(“Síndrome da Imunodeficiência Adquirida”, Irineu Antônio Pedrotti, Juiz de Direito. O Estado de São Paulo, 26 de julho de 1987, p. 50).
As alterações cutâneas e a história do sarcoma de Kaposi, no contexto da Aids, remontam a representações e temores coletivos sobre doenças dermatológicas desde, pelo menos, a Era Clássica (Figura 2). No Brasil, os dois primeiros casos de Aids foram noticiados pela médica dermatologista Valéria Petri, pesquisadora da Escola Paulista de Medicina (EPM), em 1982: dois rapazes homossexuais, de 30 e 32 anos, de São Paulo, com sarcoma de Kaposi, que haviam voltado de viagem recente aos Estados Unidos.
Manchas roxas, vermelhas ou marrons na pele, à época, simbolizavam um sinal comum no imaginário sociomédico acerca da Aids22 McKay R. Patient zero and the making of the aids epidemic. Chicago: University of Chicago Press; 2017.,3131 Ferreira JP, Miskolci R. "Reservoirs of venereal diseases," "MSM" and "PWA": continuities, ruptures and temporalities in the production of bioidentities in the context of the AIDS epidemic. Cien Saude Colet 2022; 27(9):3461-3474.. Tal reconhecimento, em diálogo com a estrutura semântica e imagética da doença nos primeiros anos, sedimentou a percepção de que a Aids era uma doença visível3232 Slaton A. Style/type/standard: the production of technological resemblance. In: Jones CA, Galison P, editors. Picturing science, producing art. New York, London: Routledge; 1998. p. 78-100.. A decodificação do sarcoma de Kaposi e da Aids entre segmentos populacionais delimitados, apesar disso, não foi um exercício isento de agrupamentos simbólicos e imagéticos que produziam a doença sob categoriais sexuais, de gênero e étnico-raciais eficientes3333 Gilman SL. Disease and representation: images of illness from madness to Aids. Ithaca: Cornell University Press; 1988.. Mais do que meros agrupamentos biossociais de símbolos e imagens equidistantes, a decodificação científica e clínica da doença se deu pelo trabalho de objetivação. Interpretamos o conceito de objetivação em moldes foucaultianos, de modo que é informado por relações de poder, assimetricamente estabelecidas, e coproduzidas por regras e códigos socio-subjetivos, internalizados pelos processos sociais e sem garantias de estabilidade, coerência ou essencialidade3434 Foucault M. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France. 1978-1979. Paris: Gallimard/Seuil; 2004..
A estrutura de objetividade que cercava a doença, a partir de categorizações e imagens produzidas por pesquisas e estudos estatísticos, foi crucial para que esquemas e práticas observacionais estabelecessem uma cultura moral do cientista, do médico e da clínica como instâncias neutras e que não respondiam ao establishment da certeza-verdade, ou da subjetividade. Conforme Foucault3434 Foucault M. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France. 1978-1979. Paris: Gallimard/Seuil; 2004. e Galison3535 Galison P. Judgment against objectivity. In: Jones CA, Galison P, editors. Picturing science, producing art. New York, London: Routledge; 1998. p. 327-359. examinaram, disputas por objetividade não foram eventos históricos constritos ao século XX; elas também eram, segundo Galison3535 Galison P. Judgment against objectivity. In: Jones CA, Galison P, editors. Picturing science, producing art. New York, London: Routledge; 1998. p. 327-359., situações nas quais imagens tecnológicas, objetos manufaturados, experimentos laboratoriais, disciplinas e dinâmicas de controle figuraram certezas epistêmicas e sociais. Sob tal establishment, grassavam expertise e autoridade, os chamados “fatos científicos”, e as construções teóricas de alto-nível sobre esses mesmos fatos. Assim como o caso da objetividade refletiu, coexistiam disputas por acurácia, generalização, reflexividade e sensibilidade cujas formulações, em contraste, eram debatidas por esquemas interpretativos que distinguiam dualismos - objetividade/subjetividade, ciência empírica/experiência, classificação consciente/classificação inconsciente, dependência de índices/observação, perspectiva eletromecânica/intelectual, quantitativo/qualitativo, regras universais/julgamentos individuais, reprodução/interpretação etc.
Os primeiros casos de Aids, conforme observaram Friedman-Kien e Laubenstein3636 Friedman-Kien A, Laubenstein, LJ. AIDS: the epidemic of Kaposi's sarcoma and opportunistic infections. New York: Masson Pub; 1984., a partir de métodos sofisticados que combinavam estudos de probabilidade e inferência estatística, foram identificados em homens homossexuais jovens, sob inventários que, a despeito da possibilidade de serem aplicados a segmentos sociais distintos, como pessoas heterossexuais, mantinham homens homossexuais jovens e adultos-jovens como público-alvo. Dentre as razões pela ênfase nesses segmentos, segundo os autores3636 Friedman-Kien A, Laubenstein, LJ. AIDS: the epidemic of Kaposi's sarcoma and opportunistic infections. New York: Masson Pub; 1984., naquele contexto não havia distinção clara entre o sarcoma de Kaposi e cânceres dermatológicos comuns do processo de envelhecimento. Isto é, canceres dermatológicos, à época, eram normalmente observados em populações mais velhas da perspectiva etária, como consequência de processos somáticos descritos na biogerontologia a partir das teorias da senilidade.
A idade se constituiu como uma espécie de biomarcador que distinguia o status patológico conforme duas categorias demográficas de interesse: sexo e gênero. O trabalho de agregação semântica entre a imunodeficiência e pessoas mais jovens, portanto, se deu menos como resposta correlata ao aparecimento de casos de sarcoma de Kaposi nesse segmento, do que pela maior abertura de homens homossexuais jovens para narrar experiências sexuais em inquéritos epidemiológicos, e a preocupação da epidemiologia em mapear práticas homoeróticas consideradas impróprias e de alta exposição. Conforme observou Slagstad3737 Slagstad K. The pasts, presents and futures of AIDS, Norway (1983-1996). Soc Hist Med 2021; 34(2):417-444., muitos médicos e epidemiologistas do período acreditavam que as anamneses para a Aids eram mais do que suficientes quando se incluía uma questão elementar: “você se relaciona com pessoas do mesmo sexo?”.
No Brasil, apesar disso, a primeira década da epidemia é marcada por transformações no campo da saúde que merecem nota. Da perspectiva da atenção primária, há um movimento progressivo de municipalização da saúde, como resultado da reestruturação da saúde pública pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) em 1985, e dos Centros de Saúde3838 Mota A, Schraiber LB, Ayres JRCM. A reforma Leser: a arquitetura de um projeto de saúde pública paulista, 1967-1979. Saude Soc 2019; 28(4):267-283.. No contexto da Aids, e da integração incompleta entre a clínica médica e a dimensão sanitária nos serviços de saúde, muitos desafios se colocavam à interiorização da saúde e de seus equipamentos, em razão da dissolução de quadros médicos e o esvaziamento de profissionais das unidades de atendimento. Sobre esse ponto, Mota et al.3838 Mota A, Schraiber LB, Ayres JRCM. A reforma Leser: a arquitetura de um projeto de saúde pública paulista, 1967-1979. Saude Soc 2019; 28(4):267-283. retomam o contexto sociopolítico da Reforma Leser n’O Estado de São Paulo até a criação das Organizações Sociais, e observa como a integração do diálogo entre gestores, comunidade e os serviços permaneceram como dilemas presentes no campo para o século seguinte.
Da mesma forma, observamos que o conjunto de estratégias mobilizadas por profissionais e autoridades sanitárias, espelhavam a realidade da atenção primária no Estado, com serviços que misturavam visões orientadas a estratégias assistencialistas, integralistas ou sob correntes de pensamento diversas - grosso modo, entre a medicina comunitária, social e preventiva. Isso tanto obscurecia a pactuação de uma resposta qualificada e programática à Aids, como refletia os paradoxos mais gerais em saúde enfrentados por profissionais e comunidades na primeira década.
Por conseguinte, as matérias sobre a epidemia tendem a privilegiar a realidade metropolitana, colocando São Paulo em uma quase-experiência caso-controle, com o interior sendo uma espécie de “ramo placebo” das reformas sanitárias e democráticas vigentes. Isto é, enquanto a cidade de São Paulo incorpora recursos - nem sempre proporcionais à demanda -, alguma formação profissional específica para o HIV/Aids, e as primeiras testagens em bancos de sangue, a situação encontrada no interior é reconhecida pelo descontrole nos testes sanguíneos, resoluções tardias para os protocolos de testes de sangue contaminados por doadores, o quadro hospitalar-geral em detrimento de hospitais/clínicas especializadas para atendimento de pacientes com Aids, desassistência profissional em razão de baixos salários, concursos incipientes, condições precárias de trabalho, centralização da demanda de internação e tratamento em hospitais da capital e resistência na abordagem da Aids pelos quadros médicos. Em síntese, a dicotomia entre a experiência da Aids na capital do Estado e seu interior empobrecido colocou sob disputa a própria definição da doença no caso brasileiro; e sua consequente inconformidade a explicações homogeneizantes, que tendem a enquadrar a experiência com a epidemia sob um mesmo prisma social e geográfico.
Na primeira década da Aids, a estrutura epidemiológica formada por conceituações do sarcoma de Kaposi levou a uma onda progressiva de normatizações e reclassificações nos campos científicos, médico e social, coproduzindo a insígnia do risco de contaminação pela convergência entre homossexualidade, práticas sexuais não-reprodutivas e o sexo anal. Da perspectiva sociológica, tal estrutura, conforme elaboraram Pelúcio e Miskolci3939 Pelúcio LM, Miskolci R. A prevenção do desvio: o dispositivo da AIDS e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex Salud Soc 2009; 1:125-157., foi o mote da repatologização da homossexualidade, que passa a ser reclassificada de transtorno mental a perigo epidemiológico. Essa virada de classificação, particularmente, segundo os especialistas, equipara a homossexualidade a uma “doença altamente contagiosa”, e cristaliza o elemento principal do pânico sexual da Aids: o medo da morte, ou do próprio desvio sexual3939 Pelúcio LM, Miskolci R. A prevenção do desvio: o dispositivo da AIDS e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex Salud Soc 2009; 1:125-157..
Seguindo esse argumento, os resultados não apenas confirmam a tese elaborada pelos autores acima, como ilustram e decodificam as complexidades e articulações entre conceituações, o trabalho de especialistas em saúde, e a centralidade de enquadramentos morais sobre a doença no Brasil em meio a disputas por autoridade científica e clínica. Em “Vamos dialogar com os mosquitos” (O Estado de São Paulo, 1987), Vicente Amato Neto, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, apresenta o breve legado da epidemia, discutindo a contaminação sob a lente da imprudência de segmentos afetados que, sabidamente, e conscientemente, propagam a doença, a despeito das ações preventivas e profiláticas oficiais, corresponsabilizando homossexuais “libertinos”, travestis e bissexuais. Amato Neto, durante o período analisado, teve papel preponderante no debate público sobre a Aids, produzindo artigos de opinião na seção sobre saúde do jornal, assim como colaborações em matérias a partir de entrevistas concedidas. Foi o primeiro pesquisador e médico a utilizar a emblemática expressão “reservatório de doenças venéreas e infecciosas” (RIVD) em um artigo de imprensa, além de ter publicado em julho/agosto de 1983 o primeiro caso de Aids em uma revista científica brasileira, a Revista Paulista de Medicina4040 Bortolozzi RM. Entre trapos e colchas: vestígios da memória LGBT sobre as primeiras respostas paulistanas à epidemia de HIV/Aids. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2021.. Amato Neto também foi discípulo da linhagem de pesquisa estabelecida por Ricardo Veronesi - médico, fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, e professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo -, que teorizava sobre a epidemia de Aids em termos similares à hepatite B, reconhecendo no grupo de homossexuais uma “maior tendência à contaminação por hepatite” e, por consequência, ao HIV4141 Teodorescu LL, Teixeira PR. Histórias da aids no Brasil: as respostas governamentais à epidemia de aids. Brasília: Ministério da Saúde; 2015..
A expressão e seu contexto original, contudo, remontam à primeira metade do século XX, quando os estudos da sífilis e das chamadas “doenças venéreas” (DV), criaram um hiato representacional pelo ramo da epidemiologia da susceptibilidade22 McKay R. Patient zero and the making of the aids epidemic. Chicago: University of Chicago Press; 2017.,1010 Ayres JRCM. Práticas educativas e prevenção de HIV/aids: lições aprendidas e desafios atuais. Interface (Botucatu) 2002; 6(11):11-24.,3131 Ferreira JP, Miskolci R. "Reservoirs of venereal diseases," "MSM" and "PWA": continuities, ruptures and temporalities in the production of bioidentities in the context of the AIDS epidemic. Cien Saude Colet 2022; 27(9):3461-3474.. A corrente produziu definições candentes para o exame da mobilidade de grupos populacionais considerados não-brancos nos Estados Unidos, e à latente problemática da integração racial que foi marca da Era Jim Crow (1877-1964). E sedimentou as bases para estudos epidemiológicos entre pessoas consideradas “suspeitas” e “vetores” de contaminação de doenças transmitidas pela via sexual. Tal corrente propunha que, com base em acepções eugênicas, o grau de susceptibilidade para DV poderia ser medido pela raça/etnia, de modo que pessoas afro-americanas, e.g., eram consideradas mais resistentes a doenças sexuais e do aparelho cardiovascular do que pessoas brancas, levando à adoção de formas distintas de auferir a pressão arterial intercomunidades, ou, ainda, a experimentos com placebo no caso da sífilis e a políticas matrimoniais e de controle reprodutivo4242 Reverby SM. Examining Tuskegee. The infamous syphilis study and its legacy. Chapel Hill: University of North Carolina Press; 2009.
43 Hogarth RA. The myth of innate racial differences between white and black people's bodies: lessons from the 1793 yellow fever epidemic in Philadelphia, Pennsylvania. A J P Health 2019; 109:1339-1341.-4444 Bavli I, Jones DS. Race correction and the x-ray machine. The controversy over increased radiation doses for black americans in 1968. N Engl J Med 2022; 387(10):947-952..
Embora a expressão tenha sido cunhada por estudos que investigavam diferenças raciais/étnicas na primeira metade do século XX, ela se populariza, na década de 1960 e adiante, com os estudos da sífilis entre comunidades homossexuais masculinas e urbanas nos Estados Unidos22 McKay R. Patient zero and the making of the aids epidemic. Chicago: University of Chicago Press; 2017.. Na década de 1980, os estudos acumulados da sífilis forneceram à epidemiologia do risco uma nova categoria que, com interesses programáticos difusos em relação à corrente anterior, atualizou a antiga categoria RIVD para “homens que fazem sexo com outros homens” (HSH)3131 Ferreira JP, Miskolci R. "Reservoirs of venereal diseases," "MSM" and "PWA": continuities, ruptures and temporalities in the production of bioidentities in the context of the AIDS epidemic. Cien Saude Colet 2022; 27(9):3461-3474.,4545 Calazans GJ. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2018.. No entanto, os usos de RIVD não foram imediatamente ultrapassados pelos de HSH, que se notabiliza apenas nos anos 1990 em políticas internacionais de saúde vinculadas à Organização Mundial de Saúde (OMS) e à agenda da Saúde Global3131 Ferreira JP, Miskolci R. "Reservoirs of venereal diseases," "MSM" and "PWA": continuities, ruptures and temporalities in the production of bioidentities in the context of the AIDS epidemic. Cien Saude Colet 2022; 27(9):3461-3474..
De qualquer forma, as discussões recolhidas sumarizam o ecletismo categorial que foi marca do período entre a epidemiologia da susceptibilidade e do risco, em que a Aids transita de definições objetivas centradas no sujeito, como um tipo de problemática inata, natural ou idiossincrática - i.e., RIVD -, para novos quadros interpretativos que a associam à personalidade, comportamento e ambiente, segundo interesses pragmáticos correntes22 McKay R. Patient zero and the making of the aids epidemic. Chicago: University of Chicago Press; 2017.,1010 Ayres JRCM. Práticas educativas e prevenção de HIV/aids: lições aprendidas e desafios atuais. Interface (Botucatu) 2002; 6(11):11-24.,3030 Epstein S. Inclusion: the politics of difference in medical research. Chicago: Chicago University Press; 2007.,3131 Ferreira JP, Miskolci R. "Reservoirs of venereal diseases," "MSM" and "PWA": continuities, ruptures and temporalities in the production of bioidentities in the context of the AIDS epidemic. Cien Saude Colet 2022; 27(9):3461-3474.,3939 Pelúcio LM, Miskolci R. A prevenção do desvio: o dispositivo da AIDS e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex Salud Soc 2009; 1:125-157.,4646 Biehl J. Will to live: AIDS therapies and the politics of survival. Princeton: Princeton University Press; 2007.. No Brasil, em contraste, as categorizações étnico-raciais não seguiram as mesmas proposições elaboradas para a realidade norte-americana. Igualmente, pela síntese observada dos artigos, e aos problemas apresentados, não encontramos afirmações sobre diferenças raciais e étnicas nos textos. Nem por isso, elas inexistem. Pelos desenhos e charges analisados conjuntamente e, mais especificamente, em uma matéria publicada em fevereiro de 1989, na seção “Caderno 2 de Leitura”, sobre a Aids, um homem negro aparece ao fundo, com aparência abatida, cabeça baixa, macilento, com o corpo curvado e as mãos apoiadas no chão. Na mesma imagem, ao lado, um grupo formado por três pessoas brancas, dois homens e uma mulher, bem vestidos, saudáveis, visibilizam expressões de espanto, medo e raiva (Figura 3).
Ao longo da década de 1980, o status da doença se altera progressivamente, e incorpora diferenças de gênero e sexualidade como categorias de risco. Para além do ecletismo categorial, o final da década de 1980 é marcado por descobertas biofarmacológicas que traduzem, em grande medida, as ansiedades terapêuticas e clínicas entre pacientes, profissionais e formuladores de políticas públicas em saúde. Em face aos debates presentes nos artigos e a questão da objetividade, especialistas divergem, por exemplo, sobre a credibilidade de técnicas de purificação do sangue aplicadas em institutos públicos e privados. Os debates menos conclusivos giravam em torno da técnica chamada de “pool”, apontada como insuficientemente e imprecisa, pois havia risco de contaminação em transfusões e uso de hemoderivados. Com a mistura de diversos soros, segundo a pesquisadora do Instituto Adolfo Lutz, Mirthes Ueda, poderia haver falsos negativos em razão da combinação de anticorpos do soro positivo que estivessem em baixa quantidade.
Albert Boutros El Khoury, hemoterapeuta do Centro de Hematologia do Hospital do Servidor Público d’O Estado de São Paulo e um dos proprietários do Hemosoro, não concordava com a análise de Ueda, afirmando que “nem os técnicos do Adolfo Lutz, tampouco os do Oswaldo Cruz, divulgaram qualquer trabalho a respeito dos riscos que o sistema de pool tem”. Khoury se apoiou no resultado de uma pesquisa de anticorpos para HIV utilizando pool de cinco soros, pelo teste Elisa indireto, realizado por Zulma Fernandes Peixinho, da disciplina de imunologia da Escola Paulista de Medicina. No estudo, a médica garante que os dados obtidos não mostraram discrepância entre os valores constatados em amostras de soro individuais e aqueles obtidos com as mesmas amostras analisadas em pool. Os usos de pool também estavam relacionados à inadimplência do INAMPS, que não custeava os testes mais avançados anti-Aids. Mensalmente, no Hemosoro, conveniado ao Inamps, dentre as oito mil análises produzidas, 0,34 doadores estavam contaminados, em média, com o vírus da Aids. O número de contaminações em bancos de sangue vinha crescendo substantivamente, tendo triplicado a partir de 1985. Com valor alto, as bolsas de transfusão sanguínea completa permaneceram sendo importadas dos EUA, Japão e Holanda, devido à interrupção da fabricação das bolsas nacionais. Por consequência, o protocolo profilático dispensado era que pessoas que se incluíssem no grupo de risco não doassem sangue - i.e., nominalmente, homossexuais, bissexuais e toxicômanos. A distinção empírica formulada, com base na consciência sanitária presente no imaginário sociomédico do período, foi que os “doadores voluntários” representavam risco ampliado de contaminação. Tal distinção constituiu-se como chave interpretativa elementar para um tipo de objetividade regulatória, que apontava para uma maior incidência de sangue contaminado entre grupos socialmente heterogêneos, enquanto os “doadores familiares”, informados por uma estrutura conhecida de parentesco, eram maiormente recrutados, por proverem sangue mais puro. Os testes obrigatórios em São Paulo somente passaram a vigorar pela portaria do Ministério da Saúde em julho de 1987.
Em adição, a chave interpretativa para a questão da pureza do sangue não esteve circunscrita exclusivamente aos testes e a conceituações técnicas objetivamente formuladas. A categoria “juventude”, por conseguinte, foi frequentemente mobilizada em associação à fluidez, ao sexo desprotegido e aos usos compartilhados de seringas para administração de drogas endovenosas. Houve, por outro lado, reciprocidades entre as categorias “juventude”, “bissexualidade” e “risco”. Quais sejam, e ao passo que segmentos jovens eram comunidades percebidas como mais abertas a relacionamentos com homens e/ou mulheres (homossexuais ou não), a hipótese de infecção incorporava discursos sobre práticas sexuais desprotegidas, que poderiam envolver também uso recreativo de drogas, e as sexualidades não-heteronormativas. A mudança na paisagem epidemiológica de fins da década - de uma doença restrita a homossexuais, tal qual afirmações como “estranha doença” ilustram, para “o mal do século”, quando as comunidades afetadas e suscetíveis transcendiam os clássicos RIVD - é o mote, e.g., da tardia Campanha Nacional de Esclarecimento Contra a Doença, produzida pelo Ministério da Saúde, em fevereiro de 1987.
Similarmente, autoridades e profissionais buscavam visibilizar a inação do governo brasileiro frente a um aumento paulatino dos casos de contaminação por transfusão sanguínea, recolocando no epicentro do debate a situação dos bancos de sangue no país. Cerca de 7% dos casos de Aids no país, entre 1982 e 1987, foram contraídos por transfusão de sangue ou derivados.
Em setembro de 1985, a Santa Casa foi a primeira instituição a introduzir a testagem serológica para detecção de anticorpos do vírus do HIV no Brasil, e a Fundação Hemocentro, do Hospital das Clínicas da FMUSP, foi a segunda. Ao lado das novas medidas, havia um processo de descentralização em curso. O Decreto nº 25.519, de 17 de julho de 1986, definiu a organização básica, a nível regional, dos serviços de assistência à saúde, e criou 57 escritórios regionais de saúde. Sob a gestão do governador Franco Montoro e de seu secretário de saúde, o médico e professor João Yunes, o modelo preconizado pelos Escritórios Regionais de Saúde (ERSAs) envolveu um processo de integração, hierarquização e regionalização dos serviços de saúde, que alterou progressivamente a estrutura dos Departamentos Regionais de Saúde, criados pelo Decreto nº 22.970, em novembro de 1984. Apesar dos esforços de descentralização dos quadros médicos e clínicos, no interior de São Paulo a fiscalização ainda era incipiente e as testagens não ocorriam.
Fora de São Paulo, havia uma ausência ampliada de registros, conforme Biehl4646 Biehl J. Will to live: AIDS therapies and the politics of survival. Princeton: Princeton University Press; 2007. observou em pesquisa de campo em Salvador, na Bahia, tanto pela perspectiva da imprensa, quanto pela ótica dos certificados de óbitos, por exemplo, fornecidos pelos profissionais de saúde. Em resumo, segundo o antropólogo, a discrepância entre as baixas nos sistemas de saúde locais - unidades/centros médicos de atendimento - e os certificados de óbitos analisados constituíam limitações para o reconhecimento do quadro da epidemia no país, especialmente em contextos remotos e empobrecidos4646 Biehl J. Will to live: AIDS therapies and the politics of survival. Princeton: Princeton University Press; 2007..
Como se depreende pelos dados, o sangue se tornou elemento fundamental em matérias jornalísticas na imprensa em fins da década de 1980. Alternativamente, antinomias se constituíram ora como propriedades científicas, ora como entretecidas por visões polêmicas e parciais sobre o quadro epidemiológico e a própria ciência médica que se desejava defender. Amato Neto, em “Benefícios da Aids” (1987, p. 27), avaliou:
A Aids estimulou avanços destacados, como estudos suplementares sobre Virologia, advento de novos testes etiológicos praticados com soro sanguíneo, progresso na área da Imunologia, prestígio para a vigilância epidemiológica e aprimoramento da profilaxia da veiculação da informação em serviços de hemoterapia. Em contrapartida, vêm ocorrendo fatos desairosos, evidenciados de criticável oportunismo e charlatanismo. Entre eles: determinamos hospitais privados estipulam preços elevadíssimos de diárias para a internação de aidéticos, caracterizando ganância; b) médicos passaram a agir charlatanescamente, apregoando virtudes de drogas, sem qualquer respaldo experimental e enveredando, então, para ganhos injustos sob aquilo que eles chamam de “medicina curativa”; c) defensores de métodos alternativos de tratamento, tais como homeopatia, acupuntura, psicoterapia corporal e existencial, exercícios apropriados, ioga, alimentação orgânica e natural mais pura e aplicação de ervas medicinais, valem-se do momento para oferecer mentirosas curas, criando falsas esperanças, mas amealhando novas clientelas.
Conhecimento científico versus conhecimento popular, medicina tradicional versus medicina alternativa, medicina de Estado versus medicina de mercado, legitimidade versus charlatanismo, traduziam, em partes, as ansiedades terapêuticas de profissionais da área médica e a busca por regulamentação da profissão. Os termos eram, por assim dizer, oposições fundacionais para a credibilidade da clínica médica. Tais oposições, produzidas em articulação, e inicialmente descritas como antinomias, foram, na verdade, parte de um si-mesmo4545 Calazans GJ. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2018.,4747 Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Princeton: Princeton University Press; 2007.. Isto é, como empreendimentos associados a um mesmo regime de conhecimento, e a disputas por autoridade sob termos e objetos comuns, os debates aparentemente dicotômicos, e.g., entre medicina de Estado e medicina de mercado, não devem obscurecer interesses por justificação da própria ciência, ou disciplina, que são artificialmente opostas.
Um dos grandes paradoxos da Aids, discutidos exemplarmente por Epstein3030 Epstein S. Inclusion: the politics of difference in medical research. Chicago: Chicago University Press; 2007., está relacionado ao fato de que as contendas nos variados campos científicos, apresentadas como verdades inconciliáveis em suas respectivas arenas de saber, evidenciam, porém, a construção das antinomias como homologias. Ou seja, ao disputar o sentido de verdade sobre um fenômeno (i.e., a doença, a cura, o tratamento, a técnica), as antinomias se tornam intrinsecamente dependentes, na medida em que cada extremo torna seu oponente polar sua raison d’être. A esse ponto, o artigo de Amato Neto permite compreender, em primeiro lugar, que essa dependência na “independência”, ou pela falsa antinomia, não é desprovida de ambiguidades, uma vez que a medicina tradicional, e a medicina de Estado, especificamente, também são normativas e, no contexto da produção dos discursos acerca da doença, são transmissoras de pressões morais e forças econômicas, das quais aparentemente se afirmam fora.
A dissolução dessa antinomia, grosso modo, entre as disputas por uma medicina oficial, empírica, benevolente, assistencial e de Estado - que denominamos como “medicina tradicional” -, recoloca o confronto de visões antagônicas, de pesquisadores ditos “puros”, daqueles supostamente “impuros”. Na realidade, essas são duas formas eficientes de produção da lógica do campo científico3030 Epstein S. Inclusion: the politics of difference in medical research. Chicago: Chicago University Press; 2007.,4848 Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp; 1997.. Neste, a ciência não apenas deve responder imediatamente e com aparato tecnológico e vocabular sofisticado às investidas de outsiders do campo, como opor princípios técnicos como formas universalmente aceitas de promoção do interesse geral.
A defesa da ciência, e da medicina, em particular, que não é necessariamente ciência, por princípio, baliza dois enquadramentos analíticos: em primeiro lugar, pela diferenciação, a medicina e as técnicas dela derivadas são produzidas como categorias homogêneas, análogas e generalizáveis, em que pelo consenso e convencionalização do que é o campo médico, artificialmente, as dinâmicas de poder e autoridade são invocadas; em segundo, como proposições normativas, as relações de autoridade e credibilidade não sobrevivem fora da compreensão lógica dos problemas sociais em oposição, as quais, invariavelmente, abrangem princípios de rotulação social e pânicos morais estabelecidos sob dicotomias4949 Cohen S. Folk devils and moral panics. London: MacGibbon & Kee; 1972.. Convencionalização, em sentido amplo, é concebida como a possibilidade de formação de consenso, ainda que sob critérios e normas imprecisas e questionáveis2525 Latour B. Science in action. Cambridge: Harvard University Press; 1987.. Em que pesem as controvérsias no presente sobre as categorias de risco originadas e seus grupos expostos na história contemporânea da Aids no Brasil, a associação do sangue, manchas roxas e sexualidades não-heterossexuais remontam ao exercício da convencionalização a partir de um princípio biossocial em tríade - i.e., doença-risco-(homo/bi)sexualidade. Nesse contexto, argumentamos que, não apenas a doença foi ativamente disputada, mas também sua estrutura de autoridade-credibilidade, em defesa de uma ciência pura.
Agradecimentos
Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processo 21/07737-5), pelo financiamento e suporte; ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; aos funcionários do setor de arquivamento da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) do Ministério da Saúde - em especial, à Helen Ferreira Cristalino Pereira e Eduardo Bonilha Rolin Júnior; ao Grupo de Pesquisa Samuel Pessoa, do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz, pelos debates que originaram críticas substantivas e generosas que nos permitiram avançar nas discussões produzidas.
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Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
Out 2024
Histórico
-
Recebido
12 Maio 2023 -
Aceito
03 Out 2023 -
Publicado
05 Out 2023