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DEBATEDORES

DISCUSSANTS

Rita Barradas Barata 1

Os desafios da teoria e da práxis da saúde coletiva

The challenges of theory and praxis in collective health

1 Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Cecília Minayo, em seu artigo, traz para a discussão uma das principais antinomias de nosso campo de produção de conhecimentos e práticas, antinomia que se revela na oposição entre pares tais como subjetivo/objetivo; individual/coletivo; determinismo/determinação.

Embora todo o pensamento filosófico a partir do século XVIII, com as contribuições fundamentais de Hegel e Kant, aponte decididamente para a superação da dicotomia entre empirismo e racionalismo que até então havia marcado o pensamento ocidental, sobrevivem diferentes ênfases, pendendo ora a favor de um pólo, ora a favor de outro nas diferentes correntes de pensamento das ciências sociais constituídas durante os séculos XIX e XX.

Assim, a autora assinala o predomínio de posições estruturalistas, senso lato, em autores tão díspares quanto Durkheim e Althusser. Do mesmo modo, assinala a ênfase no sujeito presente nas formulações da sociologia compreensiva, do existencialismo marxista, da teoria da práxis entre outras.

Talvez faça falta a explicitação mais clara das enormes diferenças contidas nessas formulações. A noção de totalidade presente em Radcliffe Brown e Durkheim é aquela das totalidades sistêmicas, da harmonia entre forma e função, portanto, bastante diversa da noção de totalidade em Lévi-Strauss que remete ao mundo fechado do mito como sistema doador de sentidos, distinta também da noção de totalidade althusseriana que entende a estrutura como processo de gênese, isto é, de produção e reprodução. É certo, que todas essas correntes se aparentam pelo predomínio que conferem ao pólo "estrutura social" ainda que a compreendam a partir de teorias distintas.

O mesmo ocorre com as teorias que conferem maior protagonismo aos sujeitos, sejam eles entendidos como sujeitos coletivos (como por exemplo as classes sociais) ou como sujeitos individuais da ação.

Há no artigo em questão uma ausência digna de nota: a discussão proposta por Agnes Heller acerca da teoria das necessidades em Marx. Tal discussão é importante justamente por buscar superar a velha oposição entre o "jovem Marx" e o "Marx maduro de O capital". A autora busca demonstrar que o conceito de necessidades está subjacente a todos os conceitos desenvolvidos por Marx para a crítica da economia política. É posto em destaque o caráter antropológico, extra-econômico, das necessidades. A possibilidade de pensar as questões individuais interligadas às questões coletivas e não em oposição a elas, sem perder de vista a "materialidade" das mesmas, é em si instigante.

Nas obras de Marx a tendência é considerar o conceito de necessidades como categoria antropológica de valor e, portanto, não passível de definição no marco estreito do econômico. A redução do conceito de necessidade à necessidade econômica constitui já uma expressão da alienação em uma sociedade na qual a finalidade da produção não é a satisfação de necessidades dos indivíduos, mas sim a valorização do capital; e na qual as necessidades só podem aparecer no mercado sob a forma de demanda.

Marx emprega o conceito de necessidades sociais em vários sentidos. A interpretação mais freqüente é a de necessidade socialmente produzida, aquela que se coloca acima dos indivíduos e de suas necessidades pessoais possibilitando assim a conclusão, por parte de determinadas correntes de pensamento, de que em caso de conflito entre interesses gerais e particulares os primeiros devem subordinar os segundos. Esse conceito fetichizado de necessidades foi construído por analogia ao conceito de interesse. O interesse é redução e homogeneização das necessidades. Marx afirma que ao cessar o domínio das coisas sobre o homem, quando as relações inter-humanas não forem mais relações entre coisas, então, toda necessidade será governada pela necessidade de desenvolvimento do indivíduo, a necessidade de auto-realização da personalidade.

As antinomias que se expressam no capitalismo constituem as antinomias da produção de mercadorias. Nelas as relações humanas assumem a forma de relações entre coisas, a sociabilidade é fetichizada em coisalidade. A riqueza do gênero humano e a pobreza do indivíduo se fundamentam e se reproduzem reciprocamente. Só a superação da alienação poderá permitir a ampla realização das potencialidades humanas e a afirmação do indivíduo livre, solidário.

A teoria da complexidade se apresenta como uma alternativa às dicotomias apontadas, porém sofre de um viés biologicista forte, na versão de Edgar Morin e de um certo psicologicismo na versão de Castoriadis. Aparentemente as oscilações entre pólos opostos ou complementares seguirão marcando o pensamento humano.

Quanto às relações entre estrutura e sujeito no campo da saúde, gostaria de apontar alguns questionamentos às interpretações de Cecília Minayo. Inicialmente gostaria de questionar a datação de origem da saúde pública na década de 1950. Mesmo se a autora estiver se referindo ao Brasil, o campo se constitui bastante antes. A origem da saúde pública é praticamente simultânea à constituição dos Estados absolutistas; ao surgimento dos conceitos de população e meio ambiente como assinalam autores como Rosen, Ayres, Sigerist e outros.

Outra divergência de interpretação diz respeito ao predomínio de abordagens fenomenológicas nas décadas de 1960 e 1970. O movimento da medicina social e preventiva no Brasil foi marcado fortemente pelo marxismo em suas diferentes versões, nesse período. Os trabalhos nucleares para a construção teórica do campo apresentam todos esta marca. O movimento da saúde coletiva surge, a meu ver, como reação ao "autoritarismo" de Estado. A saúde pública conferia ao Estado, e apenas a ele, a possibilidade de recortar do conjunto das necessidades sociais de saúde aquelas que iriam se constituir em objetos para as práticas de intervenção, que por sua vez, também eram exclusividade do Estado. A saúde coletiva pretende introduzir novos atores na arena política, conferir voz e intencionalidade a outros sujeitos.

Finalmente, quanto à necessidade de substituir o conceito de doença pelo conceito de saúde no núcleo duro da nossa produção de conhecimentos e as questões de promoção da saúde como prioritárias para nossas práticas, esses são, sem dúvida, nossos maiores desafios na atualidade. Entretanto, não sei se a aliança proposta seria capaz de produzir os efeitos esperados. Não tem sido simples superar, na prática e na teoria, as limitações das abordagens individualizadas e descontextualizadas da clínica e da biologia. O interesse da clínica, por exemplo, na incorporação precária do conceito de risco e a introdução de medidas preventivas e promocionais relacionadas aos "estilos de vida" não são suficientes para indicar um novo rumo à saúde coletiva. Tais iniciativas têm alcance limitado justamente por substituírem as abordagens de massa pelas abordagens individuais como tão bem relatou Geofrey Rose.

A atuação sobre indivíduos, construída a partir de propostas de cunho individual, não tem impacto suficiente para modificar os perfis epidemiológicos populacionais ainda que possam apresentar benefícios singulares. Além disso, essas abordagens aumentam bastante a exclusão pois tendem a reproduzir, no âmbito das políticas públicas, aqueles processos de exclusão gerados pela estrutura social iníqua.

Um caminho mais promissor pode estar nas tentativas ainda incipientes, desenvolvidas no âmbito do convênio de cooperação bilateral Abrasco-Associação Canadense de Saúde Pública (CPHA), com execução pela ENSP, de uma proposta de promoção de saúde marcada pela intersetorialidade e pelo desenvolvimento sustentado das comunidades. Pensar saúde e portanto promoção na abrangência da definição que inscrevemos em nossa Constituição Federal pode ser um caminho.

Amélia Cohn 1

Saúde coletiva: em busca da identidade

Collective health: in search of an identity

1 DM-FMUSP/CEDEC

O texto não foge à regra dos demais trabalhos de Cecília Minayo: ele reúne as qualidades da autora em termos de precisão, argúcia, disciplina intelectual e ousadia. Convenhamos, portanto, que este texto, tal como o conjunto de sua obra, testemunha a invejável capacidade da autora de reunir traços essenciais que conformam um perfil de competência científica.

O artigo em discussão é não só oportuno diante de um certo miasma que vem pairando nos últimos tempos sobre a produção e a prática desse campo, como a estratégia intelectual utilizada é pertinente, até pela sua ousadia. Cecília num só movimento debruça-se sobre dois temas extremamente controversos e complexos: no âmbito das ciências sociais, sobre a questão "do determinismo e do protagonismo", e consequentemente sobre a questão do sujeito; e no âmbito da construção da identidade do campo da saúde coletiva, questionando a necessidade de se renovar a área, o que significa renovarmos a nós mesmos, tanto no que diz respeito à produção de conhecimento como no âmbito da ação. Afinal, o que nos é questionado pelo texto é exatamente até que ponto não estamos nos conformando numa atitude com fortes traços de comodismo que nos impele a resistir galhardamente frente às características da realidade atual que desafiam e colocam em xeque nossos arraigados preceitos que fundaram o próprio campo.

Talvez seja exatamente por isso que a opção aqui tenha sido a de começar pelo fim: pelo questionamento que Cecília Minayo nos faz - inclusive a ela - quanto à necessidade urgente de despertarmos para os desafios mais candentes que a realidade vem nos apresentando. E ela aborda a questão a partir de duas perspectivas básicas: o que denominou de "sujeito coletivo da saúde" e de "saúde coletiva como sujeito". Comecemos por este último. Com muita propriedade, a meu ver, e sem desconhecer outras instituições-sujeito, Cecília toma a Abrasco como fio condutor de sua argumentação, apontando a timidez que a instituição (isto é, nós) vem revelando tanto no acompanhamento das novas questões que vem se apresentando, quanto na própria organização institucional de nossos eventos (o que ela denomina de "rede prisional"). De fato, isso está refletindo, em grande medida, já que se instituições dessa natureza não são só conhecimento, conhecimento é poder, a resistência dessa nossa comunidade em aderir na prática a novos postulados e paradigmas.

A discordância com a autora aqui se resume ao que diz respeito à transdisciplinaridade frente à própria trajetória de construção desse campo de conhecimento nesta parte do continente, e mais particularmente no Brasil. Envolvendo várias áreas do conhecimento, provenientes das matrizes das ciências humanas e biológicas, a construção da saúde coletiva vem sendo feita através do entrelaçamento dessas distintas áreas, porém não por um coletivo composto de forma equânime por sujeitos produtores do conhecimento provenientes em sua formação de origem dessas áreas. Longe de qualquer conotação corporativa, o que se quer chamar a atenção aqui é que não só a interdisciplinaridade requerida por esse campo de conhecimento, mas sobretudo a pretensão de se atingir uma transdisciplinaridade reivindicam um trabalho coletivo para sua conquista realizado por sujeitos produtores de conhecimento com sólida formação em suas respectivas áreas. Ora, o que se verifica no nosso caso é que a própria incorporação das ciências sociais e das humanidades em geral pela saúde coletiva ocorreu e vem ocorrendo por pesquisadores e cientistas com formação em outras áreas do conhecimento. Mas se isso, sem dúvida, se configura como uma experiência potencialmente rica, certamente também cobra seu preço, fazendo com que nos deparemos com sérias limitações para enfrentar as exigências próprias de uma transdisciplinaridade. E embora, como adverte Cecília, não se sabendo que é impossível, por vezes pode-se ir lá e fazer; certamente a nossa riqueza pode se constituir na nossa fragilidade caso não nos dermos conta dela.

Outro ponto tocado pela autora merece destaque: a questão do sujeito. A síntese que faz dos autores clássicos nas ciências sociais constitui um instrumento valioso como texto de síntese. No entanto, se essa resenha aborda com criatividade a questão do determinismo e do protagonismo histórico da ótica do sujeito, saudavelmente buscando superar as antinomias que vêm marcando esse debate (por inúmeras vezes transformado em verdadeiros embates), talvez o que seria necessário aprofundar seria exatamente a dimensão da construção das identidades dos sujeitos sociais, uma vez que o que está em jogo, nas distintas correntes de pensamento, é de fato o grau de autonomia dos sujeitos sociais frente à estrutura social e os espaços de construção de suas identidades.

Em conseqüência, retomando os clássicos, volta-se para as distintas concepções de história subjacentes às correntes de pensamento da sociologia: a naturalização da ordem social, no sentido da sua reificação, e a historicidade da ordem social tendo os indivíduos como sujeitos nucleares na qualidade de protagonistas. Mas se isso, em termos sintéticos, levaria os indivíduos à condição de atores e/ou de sujeitos sociais, com distintas concepções de determinação social, por outro lado, não dá conta da questão das identidades sociais dos sujeitos. Nesse sentido, o que nos provoca talvez seja exatamente o fato de a complexidade da realidade contemporânea, e que vem sendo apontada como produzindo uma "opacidade social", vir desafiando os velhos parâmetros de análise das escolas clássicas das ciências sociais. De fato, os sujeitos coletivos - as classes sociais - vêm assumindo outras configurações e identidades, para o que Minayo chama a atenção, e que não são passíveis de serem reduzidas aos antigos parâmetros das determinações (tal como entendidas pelas distintas escolas de pensamento).

No entanto, há que se notar que aqueles parâmetros de determinações também pressupõem espaços de construção de identidades sociais clássicos da ordem burguesa. Não obstante, o que está em jogo, hoje, é a fluidez crescente da definição desses novos sujeitos sociais numa ordem social global, associada a espaços novos e até então não prevalecentes de participação dos indivíduos nas sociedades, ampliando consideravelmente o leque de possibilidades e, em conseqüência, de construção de identidades - individuais e coletivas. A questão aqui é de até que ponto o instrumental clássico e o atual dão conta dessa nova realidade.

O texto de Minayo, nesse aspecto, atua como um alerta para o perigo da tendência atual de se partir para o outro pólo de análise: dos sujeitos coletivos passar-se, via valorização da subjetividade, aos sujeitos individuais como elementos explicativos nucleares dos fenômenos sociais, e por conseguinte, dos fenômenos da saúde. Afinal, o grande desafio que se nos apresenta na atualidade é o de articular as práticas coletivas - portanto a práxis dos sujeitos coletivos - com a construção de identidades coletivas e individuais. Isso, no entanto, dá conta de somente uma parte do problema, uma vez que a nova/velha ordem social vem se caracterizando por novos processos de inclusão/exclusão sociais pautados em grande medida pela lógica da potencialidade dos distintos grupos sociais de serem mais ou menos "globalizáveis", como Fiori vem chamando a atenção. Volta-se, assim, para a outra face da moeda: se quando do predomínio dos parâmetros da ação coletiva os "organizados" lutam e orientam sua prática representando inclusive os segmentos não organizados da sociedade, agora o que está em jogo é quem fala e representa os "excluídos", que, mesmo construindo suas identidades sociais, as constróem como tal, e portanto com chances objetivamente nulas de inclusão, uma vez que "não-globalizáveis".

O alerta que o texto da autora faz, portanto, é exatamente sobre os perigos da armadilha de simplesmente se substituir o parâmetro "das totalidades" pelo parâmetro das "individualidades e subjetividades". Afinal, o que está em jogo, como assinala Boaventura S. Santos, é a questão das possibilidades de construção de novas práticas estruturantes que levem à emancipação dos sujeitos sociais em contextos onde não mais prevalecem os paradigmas clássicos de regulação, e portanto, também de emancipação.

No caso da saúde na atualidade, o que vem chamando a atenção é exatamente um movimento paradoxal em que apesar da existência - com distintos graus de efetividade - dos conselhos de saúde, tal como as demais áreas das políticas sociais, ela vem sofrendo o fenômeno de crescente tecnificação nos processos de tomada de decisões. Em resumo, o paradoxo reside no fato de que o traço característico dos regimes autoritários de substituir a política pela técnica é o que vem sendo praticado pelo governo, haja vista a própria proliferação das agências de regulação no interior do próprio Ministério da Saúde, fragmentando assim ainda mais as distintas áreas de atuação do executivo, e em conseqüência os distintos canais de pressão dos diversos interesses públicos e privados envolvidos. No outro extremo, o que se tem é a formulação de políticas e programas baseada em parâmetros definidos por indicadores selecionados, e que qualificam determinados segmentos e grupos sociais como "socialmente mais vulneráveis", ou "excluídos" ou "miseráveis", e que ao levarem em conta a sua realidade "objetiva" desconhecem exatamente o "mundo da vida" que lhes são próprios. Em conseqüência, não só como sujeitos sociais acabam sendo simplesmente desconhecidos, como transformam-se em abstrações sem identidade e sem subjetividade. Ora, neste ponto vale lembrar, uma vez mais, os textos de Marx e dos marxistas, que enfatizam precisamente a relação com o outro como dimensão da construção de sujeitos sociais coletivos. Assim, talvez o mais difícil seja como recuperar os velhos parâmetros de análise baseados nas totalidades frente às atuais realidades sociais de brutal e crescente fragmentação social, sem no entanto cair na pulverização do social. E nesse campo, a área da saúde coletiva (isto é, nós) tem(os) muito ainda que caminhar, cada um contribuindo com a especificidade de sua formação e especialidade, sem que a ousadia que nos é imposta pela nova complexidade da realidade social com que nos defrontamos prejudique a cautela e o rigor na incorporação das "velhas" e "novas" áreas de conhecimento que constróem o campo da saúde coletiva como um campo de conhecimento e de práticas.

Ana Maria Canesqui 1

Saúde coletiva, sujeito e sociedade: comentários sobre uma proposta

Collective health, subject and society: notes about one proposition

1 Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

Como sempre Cecília instiga com suas reflexões e propostas. Extrai agora, com maestria e crítica, discussões sobre a estrutura e o sujeito, este último reservado aos lugares da ação social, dos atores sociais, dos sujeitos históricos, da subjetividade, conforme se traduzem esses conceitos nas clássicas e nas contemporâneas teorias das ciências sociais. Não é, evidentemente, nos pensadores liberais que o texto se nutre para recuperar a idéia de indivíduo (individualidade) ou em Freud, mas principalmente nas vertentes do pensamento marxista e em autores como Lukács, Gramsci, Habermas, Schaff e Sartre que contribuíram para introduzir, nos pensamentos filosófico e cultural, a importância dos agentes históricos ou dos sujeitos da história nas transformações da vida social.

As reflexões sugerem também inovações epistêmicas e da práxis da saúde coletiva e a autora incorpora ao debate o que designa de sujeito na saúde coletiva (a sociedade, totalizada, repleta de contradições, desigualdades, conflitos e interesses) e a saúde coletiva como sujeito (histórico e epistêmico), trazendo neste último aspecto propostas alinhadas à renovação das práticas da saúde coletiva/saúde pública, dirigidas à promoção da saúde, pauta esta a espera de adesões mais permanentes.

O trabalho apresentado é amplo, denso e sintético, abrindo múltiplas possibilidades aos comentários e, apesar dos vários fios que possam conduzi-lo, eles serão bastante pontuais, como será visto a seguir.

Sem nenhuma casualidade, as reflexões postas continuam debatendo o tema central de nosso último congresso - o Sujeito na Saúde Coletiva - e evocam recortes sob prismas incapazes de cercearem a criatividade e o protagonismo histórico dos agentes sociais, seja pela via que quer subtrair o sujeito social da história, submergindo-o como apoio e efeito das estruturas, tal como queria o althusserianismo, seja por outras que nunca cederam lugar aos seres humanos como sujeitos do processo de desenvolvimento histórico, tomando este último como fruto de determinações exclusivas das leis econômicas férreas fundamentais, que presidem o sistema capitalista.

Certamente o tema sugere diferentes leituras, tanto no âmbito das ciências sociais e humanas, quanto neste "atípico" campo da saúde coletiva, bem caracterizado por Ayres (1997) como: meio teorético, meio pragmático, meio quantitativo, meio qualitativo, meio biológico, meio social, meio universal, meio brasileiro.

Noutros momentos, Cecília já aprofundou e contribuiu significativamente ao equacionamento da pesquisa qualitativa na saúde coletiva, sem ter descartado as similaridades das questões postas neste campo ao conjunto de preocupações pertinentes às ciências sociais, especialmente quando tratam de abordar a saúde, que não se mostra separada de outras instâncias da realidade social (Minayo,1991).

Nesse sentido, admitiu que um conjunto de inflexões de natureza socioeconômica, políticas e ideológicas relacionadas ao saber teórico e prático pesam sobre o processo saúde e doença, as instituições, organização administrativa e avaliação dos serviços de saúde e a sua clientela, de tal forma que a saúde não se subtrai da problemática social mais ampla e a maneira de abordá-la implica abrir-se à sociedade, às suas contradições, conflitos, às relações sociais, desigualdades e diferenças, impondo-se no plano das intervenções a intersetoriedade e multidisciplinaridade. Esta última também aplica-se ao âmbito do conhecimento, que não comporta segmentações, especialmente quando abordam a questão da saúde imersa na totalidade social, comportando ainda suas singularidades.

O presente texto amplia e retoma essas questões, ao sugerir ser objeto da saúde coletiva a sociedade, sinalizando também a inserção da saúde no âmbito da teoria da complexidade, derivada do ecologismo renovado, abraçando novos fundamentos éticos, filosóficos, culturais, científicos e econômicos. Interessa destacar neste debate alguns eixos conceituais e paradigmáticos, renovadores dos saberes e práticas da saúde coletiva, tendo esta como objeto a sociedade, segundo sugerido no texto.

Ainda que o texto deixe mais implícito do que explícito o conceito de qualidade de vida com o qual trabalha, vale a pena aprofundar esse aspecto. Uma vertente desta discussão toma os fundamentos éticos para presidir a democracia, a abolição do apartheid, do equilíbrio ecológico, o bem-estar da sociedade, o respeito à diversidade, a descentralização, a eficiência econômica e a própria abertura internacional (Buarque, 1993).

A qualidade de vida, para o autor, liga-se aos conceitos de igualdade, de democracia e acesso, de um número cada vez maior de pessoas, a bens fundamentais, situando-se como meta a ser atingida. Trata-se do "viver melhor", objetiva e subjetivamente aplicado à economia, à política e à vida pessoal, como critério ético por excelência, capaz de equacionar a mudança social, as condições sociais em geral, incluídas as de saúde e extensivas a várias dimensões da vida social.

Na perspectiva de Crocker (1993) os pressupostos do desenvolvimento (nacional e internacional), que incluem o "viver melhor" e portanto qualidade de vida, calcam-se na viabilização de capacidades humanas básicas, fundadas nas noções de direito, liberdade e justiça e portanto não restritas apenas à obtenção de bens primários essenciais, que embora imprescindíveis à sobrevivência, não esgotam a expressão das capacidades humanas (objetivas e subjetivas) e a ampliação das responsabilidades individuais e coletivas, entrelaçadas com a expressão dos direitos sociais e da cidadania. Isso tudo implica não descartar as bases materiais da qualidade de vida, mas também qualificá-la no plano dos valores, fazendo com que se ultrapasse o conceito de necessidades básicas.

Nesse aspecto, no âmbito do desenvolvimento internacional, o conceito de necessidades básicas norteou alguns economistas e policymakers, para torná-las satisfeitas apenas pela via do crescimento econômico, expresso pela obtenção de um conjunto de indicadores macroeconômicos (produto interno bruto, renda per capita, dentre outros). Outras formulações, como as do economista indiano Amartya Sen, retomaram a discussão do desenvolvimento do ponto de vista ético, incluindo concepções sobre a existência e o florescimento humano, ou nos termos do próprio autor, sobre a "ética das capacidades", que entende o processo de desenvolvimento como expansão de capacidades humanas básicas e como promoção de formas valiosas de existência e de atividades fundadas nas noções de liberdade, direito e justiça (Sen, 1988).

Dessa forma, as necessidades como capacidades se traduzem em realizações humanas fundamentais, como o de gozar boa saúde, ser bem-alimentado e ser alfabetizado, agregando escolhas de se levar determinada vida. Essa concepção de capacidades, diz Crocker, encontra-se com os conceitos de bem-estar e de florescimento humano, moralmente apropriados, fundamentados e operacionalmente práticos, não se deixando cair no fetichismo das mercadorias e no subjetivismo utilitarista (Crocker, op. cit.).

As idéias sobre a qualidade de vida suscitam portanto discussões em torno das tensões existentes entre o conjunto de necessidades sociais ampliadas (objetivas e subjetivas) e redefinições éticas a respeito, enquanto que as discussões sobre o desenvolvimento demonstram as insuficiências de concebê-lo como mero crescimento econômico e tecnológico, uma vez que ambos não se traduzem automaticamente em "mais e melhor vida" para todos, nos marcos dos condicionantes éticos, da democracia, eqüidade e sustentabilidade (Cepal, 1991).

Vale ressaltar que a "sustentabilidade", embora controvertida diante do modo de realização do capitalismo globalizado e de suas nefastas conseqüências sobre a concentração de renda, desemprego, exclusão social, condições e qualidade de vida em geral, preocupa-se com a crise ecológica, os estilos de desenvolvimento adotados e os seus riscos para a saúde, propondo a construção de políticas integradas e participativas.

E certamente, por outras vias mais críticas, a recuperação das relações entre ambiente e saúde, garantidoras de melhor qualidade de vida, em termos de promover capacidades humanas, engendra discussões capazes de superarem, de um lado, a concepção do ambiente como externalidade à sociedade, situando o conforto ambiental no âmbito da qualidade de vida; de outro lado, no plano do conhecimento, novos paradigmas são pensados, criticando os reducionismos naturalistas das ciências da vida que naturalizam a natureza e o sociológico, que por sua vez dicotomiza a natureza e sociedade. As críticas estendem-se ainda ao relativismo antropológico, que subtrai os conteúdos simbólicos, atribuídos pelos sujeitos (individuais e coletivos), bem como às correntes marxista, economicista e estruturalista que subtraem os sujeitos sociais como protagonistas da história e da ação social, como seres dotados de consciência.

Discussões dessa natureza permeiam o debate no âmbito da saúde coletiva, seja para renovar concepções em relação a disciplinas específicas como a saúde e ambiente, seja numa perpesctiva mais abrangente de busca de unidade para a área, sob novos paradigmas transdisciplinares capazes de introduzir as incertezas, o caos, as indeterminações ou a própria noção de complexdidade e que tenha como ponto de partida a saúde e não a doença. Não se trata de retomar a riqueza deste debate, mas a partir dele o texto sugere atenção à idéia de complexidade de Morin, que impõe um novo pensar integrado entre natureza e sociedade, entre o biológico e social sem comportar a fragmentação dos saberes disciplinares. Mas também este autor propõe converter a Terra em nossa pátria (Morin, 1993), resgatando a utopia ecológica, fundada em valores como a democracia, solidariedade e direitos humanos, contra as tendências destruidoras do ser humano e de seu habitat, inspirando desta forma o ecologismo renovado.

Abrem-se essas idéias à síntese dos objetos da complexidade e a sua inclusão, no campo da reflexão dos paradigmas da saúde coletiva/saúde pública - é um debate em construção. Ele desafia, entretanto, as ciências da vida e as sociais e humanas, colocando para estas últimas novas tensões epistêmicas não resolvidas, forçando ambas a construirem objetos complexos, inter ou transdisciplinares e a integrarem as dimensões objetivas e subjetivas, a natureza e sociedade. Algumas tendências convocam ainda a renoação no plano das práticas organizacionais, políticas e científicas, mediante o construtivismo, situando os sujeitos epistêmicos e sociais ativos. O desvalamento para o construtivismo que radicaliza o papel da ação (simbólica e/ou da própria subjetividade) corre o risco de exacerbar, em outro extremo, a permanente indeterminação e fluidez dos processos sociais, negando qualquer permanência à organização da sociedade.

As reflexões sobre o debate ambiental evocam também novas utopias para garantir condições adequadas de vida aos seres humanos e à biosfera. A saúde mostra-se assim como realização individual e coletiva e como ideal e direito a ser conquistado na luta social nas sociedades concretas, capazes de estabelecerem os seus padrões de qualidade de vida como realizações individuais e coletivas.

Fica posto, nesse sentido, conforme sugestão do texto, o reconhecimento da capacidade da sociedade, situada historicamente e organizada politicamente, de equacionar o próprio conceito sanitário, expressar suas demandas e lutas sociais e políticas, disputando continuamente a saúde como bem e ideal. Essa idéia não descarta a presença e a ação de sujeitos éticos, responsáveis e organizados para definir, expressar, priorizar e intervir nas condições de vida e saúde.

Essa perspectiva democrática aposta na força e expressão dos múltiplos interesses e demandas societárias, na definição dos problemas de saúde. Mostra-se crítica aos limites das tecnologias para oferecer respostas à saúde, em especial à "saúde perfeita," subproduto das pesquisas do genoma humano, ou ainda das políticas públicas e dos viéses das alternativas que acentuam apenas práticas mantenedoras, recuperadoras e não promotoras da saúde.

É bastante evidente e consensual que saúde é conquista social associada ao direito e à cidadania, como se infere do texto de Cecília. Pode-se completar que saúde é ainda bem público, que o Estado deve prover ou regular. Entretanto, admite-se que a crise mais ampla da proteção social corrói, neste início de milênio, as bases solidárias do estado de bem-estar social, limitando consequentemente a cidadania que fundou, em muitos países do mundo capitalista avançado, as bases da constituição dos sistemas de proteção social.

No Brasil ficou incompleta a construção do nosso sistema de proteção social, que se ancorou, na sua emergência, na cidadania regulada (Santos, 1979), sem ter sido esta plena e efetivamente ampliada, à medida da ocorrência da crise do próprio estado, no momento em que os direitos sociais acenavam maior expansão. Apesar disso, não se espera minimizar o Estado, mas modificá-lo e redemocratizá-lo, fortalecendo-o, sob os impulsos da própria democracia e do desenvolvimento macro-econômico e social, neste mundo globalizado, que tem debilitado as economias periféricas.

As reflexões de Lechner (1991) são úteis, a meu ver, para elucidar as questões do reformismo e da democracia, que muitas vezes permeiam o debate no âmbito da saúde coletiva.O autor entende o reformismo como promoção da justiça no seio da democracia pluralista e do princípio de iguais e efetivos direitos no terreno das cidadanias civil, política e econômica. Em certas ocasiões, admite Lechner, que o reformismo identifica-se com o compromisso de ampliar a democracia aos distintos âmbitos das relações sociais, o que não deixa de impor questões aos limites e à extensão da própria democracia.

Se a democracia comporta fases (de transição, consolidação e estabelecimento), o reformismo, por sua vez, enfrenta seus dilemas, na análise feita pelo autor para os países latino-americanos. Na transição, é crucial a recuperação das liberdades, quando os regimes ditatoriais cedem ao pluralismo, à soberania popular e aos direitos dos cidadãos.

Na fase de consolidação a democracia é tutelada e controlada, sofrendo sempre os riscos da instabilidade e nesse caso o reformismo tende a normalizar-se. Recuperada a democracia e estabelecidas as regras pluralistas, o reformismo tende a enfrentar inúmeros constrangimentos (de caráter político, econômico e cultural), como também a estabelecer regras para o jogo pluralista, tratando ainda de tornar as instituições mais competentes na resolução dos problemas.

As reflexões de Boaventura dos Santos reforçam, por sua vez, a reinvenção e valorização da tradição solidarista para construir um novo contrato social, que impõe a necessidade de transformar o Estado, sob formas mais amplas, articuladas e integradas a um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações, combinados por elementos estatais e não-estatais, nacionais e globais e, assim sendo, diz que "não faz sentido democratizar o Estado se, simultaneamente, não democratizar a esfera estatal" (Santos, 1999).

Nestes tempos pós-Reforma Sanitária, de consolidação da democracia, sob o signo do ajuste macroeconômico, as muitas tentativas e projetos de reforma da reforma evidenciam bem as injunções político-econômicas e ideológicas em jogo, atravessando o setor, quanto a própria sociedade.

Não são poucos os projetos em disputa de modificação do objeto e práticas da saúde coletiva/saúde pública, sejam os oriundos de sua comunidade epistêmica, sejam os gestados no interior das instituições estatais, responsáveis pelo setor, sejam também vindos dos âmbitos decisórios mais amplos das políticas governamentais (de saúde e econômica). Se todos esses domínios, juntamente com a concretude dos processos sociais, demográficos e dos perfis de saúde e doença, incidem nas permanências ou mudanças dos saberes e práticas da saúde coletiva, Cecília também nos convida a inovar.

No plano epistêmico traça os elos entre natureza e sociedade, pela via da complexidade e, no âmbito das práticas de renovação da saúde pública, propõe a promoção da saúde. Seria necessário mais espaço para uma reflexão aprofundada de ambas as propostas, mas certamente a promoção da saúde transcende as ações setoriais para encontrar a intersetoriedade, a qualidade de vida e ampliar o atendimento às capacidades humanas, bem como proporcionar maior empowerment às capacidades individuais e coletivas.

A promoção da saúde não se restringe, a meu ver, à mera formulação de políticas "saudáveis", paralelas à construção do Sistema Único de Saúde; mas serve de referência para reforçar a saúde como bem público e não para minimizá-lo ou reduzi-lo. No âmbito das intervenções específicas de saúde, a promoção da saúde requer a ampliação e renovação dos modelos de atenção-cuidado-prevenção-reabilitação, cuja implementação das intervenções geralmente se circunscrevem à assistência médica. A promoção da saúde sugere o repensar os modelos e os pressupostos das intervenções em saúde pública e tecnologias adequadas (comunicacionais, educativas e relacionais), embora estas sempre estarão vinculadas a valores, desde que não se fundem apenas nos saberes técnicos, mas se incluam nas práticas sociais, sendo por elas influenciadas.

Referências bibliográficas

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Santos WG 1979. Cidadania e justiça. Editora Campus, Rio de Janeiro.

Eduardo Navarro Stotz 1

Saúde coletiva: conhecimento, identidade e poder

Public health: knowledge, identity and power

1 Núcleo de Estudos Locais em Saúde/Departamento de Endemias Samuel Pessoa, da Escola Nacional de Saúde Pública.

O texto de Maria Cecília de Souza Minayo é um convite para participarmos de um debate cuja relevância consiste em compreender os limites e apontar desafios ao protagonismo histórico da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Representa, em certo sentido, uma resposta polêmica mas instigante à conclamação, contida nas cartas enviadas pela diretoria da Abrasco aos associados em fins de 1999 e meados de 2000, para politizarmos a nossa agenda e superarmos a perda de substância do vetor político da entidade. O texto avança posições de caráter muitas vezes controverso mas é instigante por situar-se na fronteira entre as dimensões acadêmica e política constitutivas da própria entidade.

Com muita propriedade, a discussão sobre o protagonismo histórico se faz no interior da teoria social crítica. Dado o seu interesse em apreciar o papel da Abrasco, elege o tema da relação entre estrutura e sujeito como central à sua análise. Apóia-se inclusive em Perry Anderson para quem essa relação também era um tema central na concepção marxiana da história. Eu acrescentaria que uma das peculiaridades da teorização de Marx consiste em apreender essa relação na dinâmica da sociedade burguesa, examinada do ponto de vista da crítica das categorias econômicas (O capital: crítica da economia política) e de conjunturas históricas determinadas, no âmbito de sociedades nacionais (O 18 brumário).

Sob uma outra perspectiva, o filósofo Hans Lenk (1990) indaga se a estrutura social (por exemplo, o sistema parlamentar) pode ter uma existência independente da participação dos cidadãos e da interpretação dos cientistas políticos e afirma a complementaridade entre os princípios da estrutura e da ação. O filósofo alemão já havia assinalado (o texto original é de 1979) o caráter estéril da polêmica entre os defensores de ciências ativas versus ciências estruturais na sociologia alemã dos anos 60, convocando uma "despedida" dessa discussão.

A relevância conferida pelo filósofo à interpretação do cientista para a compreensão das "regras" que estruturam a realidade e orientam a ação social leva-nos a outro tópico importante do texto da autora, a saber, a do sujeito no campo da saúde coletiva.

Para examinar este tópico cabe questionar inicialmente a possibilidade de se pensar um sujeito coletivo da saúde nos termos formulados. O sujeito, a "sociedade", é algo pensável em uma sociedade dividida socialmente? Se for, não seria apenas como uma abstração universalizante, assimilável apenas na mediação racional do estado democrático?

Alternativamente, a epidemiologia social introduz os interesses de classes que prismam o olhar sobre o social. Castellanos (1987) já apontara para a necessidade de identificar os sujeitos coletivos capazes de formular "problemas de saúde". Um problema de saúde é uma elaboração significativa para sujeitos: os atores sociais atuam para restituir ou reordenar os processos vivenciados em sua imediaticidade como naturais. Uma visão, ainda que vaga e fragmentária da totalidade social, bem como o entendimento da conexão entre os fenômenos no tempo, sempre pressupostos na ação social, permitem entender porque a problematização, sendo produção do sentido, encontra na narração sua forma mais elementar e onipresente (Samaja, 1998). A narração aparece aqui como uma recriação do sentido que se rompeu com a desorganização individual/social dos processos vitais de uma pessoa ou de um grupo de pessoas.

Na perspectiva da educação popular e saúde chama-se a atenção para o fato de que os sistemas nacionais de saúde operam, através dos serviços, como instrumentos de controle social sobre os indivíduos e grupos sociais subalternos. Se não há novidade nisso, como Paul Singer e outros (1988) já haviam assinalado, as implicações para o resgate do papel das pessoas desses grupos como sujeitos de um saber próprio ficam mais evidentes quando pensamos nas limitações dos serviços em termos de resolutividade, de capacidade de diagnóstico e cura (Valla, 1998).

Vejamos agora a questão da saúde coletiva como sujeito, momento em que a autora situa o papel protagônico da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, a associação que formamos atuando juntos. Este sujeito coletivo diferencia-se, por sua vez, em sujeito histórico e epistêmico.

No primeiro caso, trata-se de um sujeito ou movimento-instituição que uniu os ideais das classes médias intelectualizadas. Aqui há uma contribuição importante do ponto de vista sociológico, uma desfamiliarização que nos ajuda a romper com nossas próprias ilusões. Referir-se à Abrasco como um "intelectual orgânico", neste caso, é apontar para os interesses dessas classes que integramos como profissionais, técnicos, professores e pesquisadores acadêmicos do setor público da saúde. Falta, para entender melhor esse processo, como a própria autora aponta, compreender historicamente a trajetória da Abrasco.

Ainda que isso ultrapasse os propósitos do seu artigo, deve-se, contudo, dar maior relevância a esse exame histórico para compreender porque a entidade, em sua dimensão de sujeito epistêmico, não conseguiu superar os limites da biomedicina e, do ponto de vista da formulação da política de saúde, para a dimensão da assistência. A integralidade das ações de saúde foi, aliás, um dos princípios gerais de organização da atenção à saúde defendidos desde pelo menos a VIII Conferência Nacional de Saúde. Em que medida, no debate entre as diferentes propostas capazes de expressar este princípio na estruturação do modelo assistencial (Silva Júnior, 1998), fomos capazes de pensar o desenvolvimento, no processo de trabalho dos profissionais de saúde, da capacidade de escuta da experiência dos doentes e seus familiares como um sinal tanto individual como coletivo de processos que dificultam ou afetam destrutivamente as suas condições de vida (Berlinguer, 1988), integrando assim nos próprios serviços, assistência, prevenção e promoção da saúde?

Mas essa reflexão não nos conduz a perceber a força das "condições dadas", do "peso das estruturas" sobre as pretensões dos porta-vozes do movimento, a ponto de incorporar a racionalidade médica dominante em prol da universalização do direito à saúde?

A esta altura cabem algumas observações sobre o sentido da luta pela saúde nas atuais condições de vida e de saúde da maioria da população brasileira.

Parece-me oportuna a proposta da autora de pensar o papel protagônico da Abrasco a partir de uma posição frente aos atores reais da saúde, a saber, repensar a saúde coletiva com incorporação dos pressupostos da promoção da saúde.

Deve-se advertir desde logo, porém, para a diferença entre os pontos de vista da saúde pública e da saúde coletiva. É interessante aliás a equivalência entre esses dois termos na língua inglesa, quando para nós designam duas configurações teóricas e tradições de pensamento distintas. Na tradição da saúde pública, a promoção da saúde está centrada nos estilos de vida saudáveis. Estilos de vida saudáveis são hábitos pessoais discretos e independentemente modificáveis. Constituem, no jargão epidemiológico, fatores de risco. Tem a força da evidência do senso comum, quer dizer, da compreensão da sociedade como resultado das crenças, decisões e ações dos indivíduos que "pertencem" a ela (Corin, 1996).

Não podemos deixar de considerar o risco da promoção da saúde assim formulada acabar sendo apropriada por estratégias de enfraquecimento ou mesmo de derrogação da responsabilidade da política pública frente aos determinantes da saúde das populações. A situação é obviamente mais grave na periferia do mundo capitalista, onde as desigualdades sociais são uma característica marcante do ordenamento social com sérias implicações para o funcionamento do regime democrático de direito.

Nesse sentido, o conceito e as práticas de promoção da saúde - dentre as quais as atividades educativas em saúde - devem vincular-se à tradição da saúde coletiva, ou seja, à defesa das condições de vida e de saúde e às perspectivas de bem-estar da população. Devem favorecer os processos de redistribuição da propriedade e da renda, de ampliação (e diferenciação) da (na) proteção social, de busca de uma nova escolarização requerida pelos mercados de trabalho etc. Estes são âmbitos da existência de vastos grupos sociais, senão da maioria de nossa sociedade, caracterizada pela vulnerabilidade social (Castel, 1995).

A ênfase governamental no enfrentamento da miséria absoluta, das condições dos chamados "excluídos", fez-nos esquecer dos "vulneráveis", isto é, da maioria da população urbana, integrada de forma desigual ou incompleta que tem as coisas pela metade e patina num mercado informal de trabalho, com acesso restrito à educação e aos serviços de saúde (Sabroza, 2000). No interior desses grupos nascem novos sujeitos coletivos, ainda que marcados pela heterogeneidade, fragmentação e descontinuidade assumidos por força das características do desenvolvimento capitalista na atualidade.

Por outro lado, os assalariados do mercado formal de trabalho encontram-se em boa medida à margem do sistema público de saúde. Vivem ainda limitados por sua condição de "integrados". A percepção da necessidade de avançar na direção de um sindicalismo mais "cidadão", imagem paradoxal que contempla, no discurso dos dirigentes, a segmentação no mundo do trabalho e os efeitos do desemprego agora estrutural sobre o associativismo sindical, abre possibilidades para a retomada da cidadania do ponto de vista social e político.

A compreensão das experiências de vida e a interlocução com esses sujeitos coletivos em torno da saúde e da seguridade constitui talvez o maior desafio ao papel protagônico da Abrasco.

Referências bibliográficas

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Regina Cele Bodstein 1

É preciso avançar o pensamento crítico e criativo

The need to move forward with critical and creative thinking

1 Departamento de Ciências Sociais, ENSP - Fiocruz (bodstein@ensp.fiocruz.br)

O conceito de figuração foi introduzido precisamente por essa razão, porque ele exprime de modo mais claro e inequívoco do que os outros instrumentos conceituais da sociologia que aquilo que nós denominamos "sociedade" não é nem uma abstração das peculiaridades dos indivíduos que existem como que sem sociedade, nem um "sistema" que está para além dos indivíduos, mas sim que, justamente, a sociedade é o próprio entrelaçamento das interdependências formadas pelos indivíduos (Waizbort apud Elias, 1939, I, p. LXVIII, 1999, 102).

Penso ser extremamente pertinente nesse cenário de desencantamento ideológico, de transformações radicais e de globalização acelerada o retorno a um debate clássico no interior das ciências sociais. O artigo de Maria Cecília Minayo, sem dúvida, tem o mérito de resgatar esse debate, expondo questões centrais da teoria social. Porém, o mais relevante reside no fato de que o artigo nos faz pensar sobre o papel das ciências sociais diante desse cenário de início de milênio e sobre a importância do pensamento social para a reflexão da saúde coletiva e para o avanço da pesquisa em saúde.

O artigo oferece assim uma oportunidade de revisitar e atualizar questões, combatendo a armadilha do reducionismo teórico-conceitual que o campo da saúde coletiva frequentemente incorre (Bodstein, 1992).

A título de contribuição gostaria de introduzir dois autores fundamentais para a compreensão das questões colocadas no campo da teoria social contemporânea: Anthony Guiddens e Norberto Elias.

Um dos conceitos explicativos mais férteis da sociologia de Norberto Elias (1897-1990), e que penso que enriquece o debate aqui proposto, gira em torno da noção de figuração, traduzindo a idéia de que a sociedade não deve ser reduzida a um sistema ou a uma estrutura, com existência quase que independente dos indivíduos concretos (com motivações, projetos, desejos, intenções, reflexão), nem deve ser compreendida como uma simples aglomeração ou somatório de indivíduos. Todos os grandes cientistas sociais foram unânimes em mostrar que a explicação sociológica passa pela compreensão das relações sociais, das interações e interdependências entre os indivíduos, ou seja, a matéria-prima da sociologia, como mostrou Weber, é a atividade comunitária, tal como recupera Cecília Minayo no seu artigo.

A complexidade da noção de sociedade, que Elias ilustra com brilhantismo, necessariamente articula e relaciona a totalidade com suas partes constitutivas. Não há, nem pode haver primazia, causalidade ou determinação de uma sobre a outra. O que existe são processos contínuos de interdependência em que a transformação em um dos termos implica transformações no outro. Sociedade é assim um conceito relacional que não convive com dualismos de nenhum tipo nem se presta a nenhum reducionismo.

A questão crucial revelada pelos clássicos da sociologia, e que Elias recupera e aprofunda, evidenciando sua capilaridade no processo civilizatório moderno, diz respeito ao fato de que a sociedade moderna é uma sociedade onde a diferenciação entre os indivíduos é valorizada ao extremo. Assim, a emergência da sociedade moderna é intrinsecamente associada ao processo de diferenciação/individualização, e consequentemente, a todo processo posterior de divisão social do trabalho. A sociedade torna-se mais diversificada e por isso mesmo mais complexa, já que a interdependência entre os indivíduos, como decorrência do processo de diferenciação, é muito maior. É exatamente desse processo que trata Durkheim em sua discussão célebre sobre a noção de "solidariedade orgânica", entendida como uma nova sociabilidade - atrelada a sedimentação de novos valores e vínculos -, que deve ser criada e recriada, cimentando a continuidade e permanência da nova ordem social.

Dessa forma, é possível entender que o problema social clássico, e que fascinou os sociólogos desde sempre, pode ser traduzido em um problema de socialização e de consenso, isto é, de valores e sentimentos comuns, capazes de atenuar os conflitos e tornar viável a convivência relativamente pacífica em sociedades diferenciadas, individualizadas e competitivas. A sociologia pode ser definida como a ciência que tenta explicar esse conjunto de valores vitais para o consenso, o sentimento de pertinência, de inclusão, de adesão, ou seja, de identidade e de cidadania na ordem social moderna.

No caso de Guiddens, sua concepção do que seja a teoria social hoje contribui para superar qualquer dualismo ainda existente entre estrutura e sujeito, e admite que embora a sociedade não seja uma criação dos indivíduos, não pode ser reduzida a qualquer visão estruturalista: As propriedades estruturais dos sistemas sociais só existem na medida em que formas de conduta social são cronicamente reproduzidas através do tempo e do espaço (1989).

Em Guiddens, estrutura é entendida como conjunto de regras, elementos institucionais, normativos ("coerção social") e códigos de significação, que não devem obscurecer o fato de que os cientistas sociais lidam com agentes sociais (Guiddens, 1989). O comportamento dos indivíduos só pode ser compreendido dentro de um sistema de valores mais geral. Assim como Weber, Guiddens entende a estrutura social como estrutura de significação, criada, mantida e transformada pelos indivíduos.

Não é preciso alongar muito essa reflexão, mesmo porque o artigo de Cecília exerce essa tarefa com toda a propriedade. Vale a pena lembrar nesses tempos sombrios e ideologicamente cinzentos que foi a vulgata marxista, responsável por explorar ao extremo os determinismos estruturais de toda a espécie e, por cause, a explicação funcionalista da sociedade, da economia, do imperialismo, do mercado capitalista, tudo conspirando para massacrar os indivíduos, atores e sujeitos sociais e, infelizmente, no mesmo movimento, a democracia, a liberdade individual, os direitos humanos (Bodstein, 1997).

Esse marxismo empobrecido e reducionista teve, e parece ainda ter, um apelo enorme em vários campos de conhecimento e de luta política. Que fique bem claro. O esquema explicativo funcionalista de viés marxista deixa escapar aquilo que é vital para qualquer campo de conhecimento: a descoberta do novo e a autonomia criativa dos agentes sociais.

O campo da saúde coletiva foi muito permeável a essa influência, de tal forma que a explicação funcional é ainda muito utilizada na área das políticas públicas e de saúde em particular. Dadas as características estruturais do Estado no Brasil, da cultura política, do poder político local (clientelista e corrupto) etc., as políticas sociais são analisadas sob essa ótica e, assim, acabam por reproduzir os interesses dominantes, etc. Sofrem por assim dizer desse pecado capital. Já nascem com essa marca e, portanto, estão, por princípio, fadadas ao fracasso. Assim não há, nem parece haver, nada de novo no reino das políticas sociais e de saúde. As análises ficam empobrecidas, e o pior, quanto mais empobrecidas e lineares mais sucesso conseguem. Aqui o conhecimento militante mostra sua face perversa.

Contraditoriamente, a análise crítica das políticas públicas e de saúde, sem dúvida, teve o mérito indiscutível, sob o marco da saúde coletiva, de liderar tanto o movimento sanitário de defesa intransigente do direito à saúde, bem como a reflexão sobre a ampliação da cidadania, da liberdade, da democracia e de combate ao status quo e à ditadura. Toda a fertilidade e o magnetismo desse campo e sua eficácia na promoção do movimento da reforma sanitária deveu-se à convivência de idéias e de práxis, ao desenvolvimento de abordagens, estudos e pesquisas multidisciplinares, onde a reflexão e o conhecimento neste campo é dado pela articulação entre pensamento social e conhecimento médico-sanitário.

A título de exemplo, penso que o Projeto Genoma, assim como qualquer outro, não pode de início ser reduzido "à nova utopia da saúde perfeita", nem identificado linearmente com os grandes interesses econômicos e financeiros. Aqui, como em todos os processos sociais, onde atores e interesses estão em disputa e em conflito, é fundamental saber o que é perversamente estrutural (reproduzindo uma estrutura de poder já consolidada), e o que pode ser inovador e que de fato faz com que o conhecimento científico avance. Isto é, separar o joio do trigo. Implica dizer que, como política pública, o Projeto Genoma deve ser analisado na sua virtual potencialidade e nos seus possíveis riscos, prováveis e improváveis.

O que não parece conveniente, se o que está em jogo é o fortalecimento do campo da saúde coletiva, é engessar o conhecimento a partir de uma visão reducionista ou mecânica dos processos sociais, do desenvolvimento científico e tecnológico. Ou seja, esmagar sob o peso do argumento estrutural as inovações e impulsos transformadores desse campo de conhecimento. Que o legado maior dos clássicos da sociologia nos sirva exatamente para isso: para fazer avançar sempre a imaginação criativa e o pensamento crítico voltado para a reflexão dos grandes temas da sociedade e das principais questões sociais.

Finalmente, quero agradecer publicamente a oportunidade que Cecília Minayo me propiciou de contribuir para este debate, desejando que nossos leitores possam usufruir dessa reflexão conjunta.

Referências bibliográficas

Bodstein R 1992. Ciências sociais e saúde coletiva: novas questões, novas abordagens. Cadernos de Saúde Pública 8(2): 140-148.

Bodstein R 1997. Cidadania e modernidade: emergência da questão social na agenda pública. Texto de Debate. Cadernos de Saúde Pública 13(2): 185-204.

Guiddens A 1989. A constituição da sociedade. Martins Fontes, São Paulo.

Waizbort L (org.) 1999. Dossiê Norberto Elias. EDUSP, São Paulo.

Moisés Goldbaum 1

A Abrasco como sujeito histórico e epistêmico da saúde coletiva

Abrasco as a historical and epistemic subject in collective health

1 Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.

Quando recebi o texto de Maria Cecília Minayo para debater pus me a pensar se estaria eu adequadamente selecionado para fazê-lo. A começar pelo título, senti num primeiro momento que o objeto de análise não compunha minha área central de preocupação. Achei que não me competia debater esse assunto, haja vista minha limitada capacidade e o meu domínio sobre aspectos conceituais de estrutura, sujeito, determinismo e mudanças. Com a leitura completa do texto senti que realmente teria dificuldades para entabular um diálogo sobre o assunto; entretanto, a mudança de tônica no final do trabalho me convenceu a debater com Cecília sobre as suas incursões no desenvolvimento do "campo da saúde coletiva".

Suas posições, no mínimo instigantes, obrigam a refletir sobre o que foi o trabalho implementado nesses últimos pouco mais de 20 anos de existência (o que significa que estamos saindo da adolescência vivida, em parte, em épocas pouco favoráveis à liberdade de criação, o que certamente nos deixou algumas marcas próprias de quem cresce nessa conjuntura) da Abrasco.

Está correta a observação de que a Abrasco, como todas as associações na época, organizou-se como "espaço de defesa corporativa e de debate democrático, frente ao ambiente de autoritarismo político no país". Mas o fato de continuar a dar conta de "momentos anteriores da saga da saúde pública brasileira" não implica qualquer "desvalorização" de seu caráter inovador; assim sendo, redefinir o sentido das campanhas, ou continuar a integrar estudos sobre medicina tropical ou somar a práxis da medicina social e preventiva, significa, entendo eu, a verdadeira superação dialética dos vários momentos anteriores e não a sua negação. Este é, portanto, um primeiro ponto que me permito abordar para iniciar o debate. Essa superação é que permitiu à comunidade técnico-científica da saúde coletiva ocupar de modo competente o espaço que se abriu frente aos novos desafios apresentados pela realidade sócio-sanitária do Brasil. A incorporação de novas estratégias de intervenção (rompendo as barreiras daquelas determinadas pelas campanhas ou atuação focais), e a aderência à análise do universo das doenças (sejam agudas ou crônicas, e as entendendo dentro do processo saúde-doença, extrapolando portanto o mundo das doenças infecciosas) fizeram nesses últimos anos fortalecer a necessidade de uma comunidade que oferecesse alternativas do ponto de vista coletivo. Nisso, a saúde coletiva brasileira não decepcionou, a despeito do enorme conjunto de importantes problemas ainda pendentes de análise e solução. E essa presença se observa em todos os campos que delimitam a sua "área de atuação" (entre aspas pois não há, ainda, um consenso sobre os seus limites, se é que eles existem): na epidemiologia, no planejamento e administração, nas ciências sociais em saúde e, mais recentemente, nas questões ambientais, o que me leva ao segundo ponto do debate, qual seja a afirmação de que a práxis da saúde coletiva continua manietada "aos parâmetros fortemente estruturados da hegemonia médica".

Essa afirmação é igualmente correta; entretanto merece ser relativizada e aprofundada, fazendo com que as três considerações feitas, a partir da rede prisional na qual está a Abrasco, necessitem ser examinadas à luz de outros elementos. Entender que a "produção e prática da saúde coletiva continuam a se pautar nos marcos da atuação médica..." implica não reconhecer os esforços que se têm empreendido naqueles diversos campos da saúde coletiva no que diz respeito à produção técnico-científica visualizada, ao menos, nos trabalhos produzidos pelos nossos programas de pós-graduação (desnecessário arrolar os trabalhos produzidos, revelados e registrados nos periódicos da área, nas teses e dissertações e nos livros editados, nos quais se discute desde aspectos conceituais até operacionais sobre o processo saúde-doença). A busca de explicações que transcendem os aspectos biológicos das doenças constitui-se umas das marcas da comunidade da saúde coletiva (aliás por alguns, indevidamente, criticada) e, certamente, nossos pesquisadores têm contribuído de modo significativo para entender o caráter multidisciplinar deste objeto.

Quanto à prática, é possível pensá-la atrelada às concepções médicas, pois não se pode esquecer que elas são uma das nossas "interlocuções" privilegiadas e o seu objeto representa uma boa parte de nossa atenção. Entretanto, temos que considerar que relações entre a produção de conhecimentos e a sua aplicação não se fazem de modo imediato, ou seja, os processos de inovação na nossa área, como em qualquer disciplina, não se incorporam imediatamente à prática diária, comportando uma série de mediações, cuja complexidade vem sendo objeto de interesse daqueles que estudam as políticas de desenvolvimento científico e tecnológico. Assim sendo, a "juventude" e a consolidação da saúde coletiva podem ser um fator explicativo para a falta de uma presença e influência mais acentuada de sua produção na esfera operacional. Mas não podemos deixar de considerar as importantes repercussões (e Cecília não deixa de fazê-lo) que a comunidade exerceu e exerce em distintos campos de atuação: por exemplo, na definição de políticas e legislação em saúde (vide os capítulos de saúde da Carta Magna de 1988) e na condução dos programas de vigilância epidemiológica, para ficar em dois dos muitos campos com os quais a saúde coletiva tem trabalhado. Isso leva a considerar que ao lado do "atrelamento" àquelas concepções existe uma importante produção que nos remete à interdisciplinaridade dos objetos da saúde coletiva.

Finalmente, como decorrência das considerações feitas no texto sobre a participação mais visível das sociedades clínicas, sugiro recuperar o texto de Rose.2 2 Rose G. Sick individuals and sick populations. International Journal of Epidemiology 14:32-38, 1985. Nele se pode observar as vantagens e desvantagens das estratégias de alto risco e suas possibilidades de atuação no âmbito da clínica. Duas observações se impõem: a primeira refere-se ao fato de que é inegável que a clínica incorpora, na sua prática diária, os conhecimentos (por exemplo, a idéia de risco) produzidos pela epidemiologia (veja-se a puericultura ou mesmo os exemplos apresentados - cardiologia e trauma); trata-se das amplas possibilidades da imediata incorporação com abrangente repercussão (como acentua o texto citado) na esfera individual, enquanto que sua tradução coletiva exige a presença de uma metodologia mais complexa de natureza multidisciplinar ou transdisciplinar que os estudos no âmbito da saúde coletiva são pródigos em revelar. A segunda observação compreende a afirmação de que a "Abrasco não encabeçou nos últimos anos qualquer ação simbólica de promoção da saúde". Se ela é constituída pelo conjunto de seus associados (docentes, pesquisadores e profissionais), entendo que por intermédio destes muito se fez nessa área (é verdade que há muito por fazer dadas as carências de nossa população); mirando a sua produção e prestação de serviços, seja no espaço acadêmico seja no espaço dos serviços de saúde, a comunidade tem se mostrado presente, embora tenhamos que reconhecer a sua forma tímida face ao volume de necessidades. Assim, esta afirmação, no meu entendimento, não procede totalmente; pode apontar com alguma razão a falta de uma maior organicidade do campo, o que torna menos visível a nossa presença.

A sugestão de juntar diversos atores em um espaço multidisciplinar é bastante atraente e não creio que haja alguma matéria dura (afinal o que mais se ouve é que somos jovens, não é possível estarmos já cristalizados) impedindo tal iniciativa; penso, isto sim, que este é um problema de toda nossa comunidade científica, cujo corporativismo impede, por vezes, que essa interação se concretize. Seja como for, com a nossa História esse desafio proposto por Cecília não deve nos atemorizar; pelo contrário, se anteriormente não nos detivemos diante de reais impossibilidades conjunturais, este é um momento propício para compreendermos e estendermos o nosso campo de atuação, aprimorando a nossa contribuição específica para o desenvolvimento técnico e científico em saúde em conjunto com outras áreas e, desta forma, colaborar para o equacionamento dos problemas de saúde de nossas populações.

Jorge Mesquita Huet Machado 1

As possibilidades de repensar estruturas e sujeitos em relações dinâmicas

Possibilities for rethinking structures and subjects in dynamic relations

1 Coordenador de Saúde do Trabalhador da Fiocruz

O texto de Cecília é ao mesmo tempo didático e instigante, pois a autora realiza uma síntese dos autores de maior importância no pensamento sociológico ao mesmo tempo que expõe suas idéias e traz para nós essa reflexão ao campo da saúde coletiva.

Entretanto, na minha opinião alguns pontos podem ser destacados para discussão e aprofundamento do entendimento. Como refere a autora, o foco do trabalho de todos os pensadores sociais na temática da estrutura e do sujeito me leva a formular uma primeira questão, pois a meu ver Cecília faz uma transposição perigosa comparando a estrutura às permanências e o sujeito às transformações, como vemos no exemplo do campo disciplinar da saúde dos trabalhadores adiante.

As estruturas se transformam e reagem a essas transformações também transformando o sujeito; como aponta o próprio Marx em sua obra O capital, o homem se transforma no trabalho e o trabalho transforma o homem em uma interação, ou seja o sujeito transforma a estrutura e a estrutura transforma o sujeito em um moto contínuo, em um sistema aberto a também transformações operadas por forças externas ao sistema seja ele sujeito e estrutura, ou homem e trabalho.

Cito esse exemplo como o mais significativo para mim na medida em que ele fundamenta epistemologicamente a área de saúde do trabalhador, que pode ser vista como tema relacionado às ciências sociais pela sua direta associação entre trabalho e saúde, sendo o trabalho uma categoria fundamental, até bem pouco tempo, mas ainda na ordem dos condicionantes sociais do processo saúde e doença.

Um segundo ponto para reflexão é que algumas vezes podemos estar criticando o estruturalismo pelos seus excessos classificatórios, como vimos na citação de Weber no texto quando este distingue quatro tipos de estruturas construídas pela atividade social em que seus contornos ou fronteiras a meu ver não delimitam, ou seja, não classificam, ficando em generalizações condicionantes e restritivas, porém, não devemos desconhecer a necessidade de classificação e criação de modelos explicativos.

Na segunda parte do texto a autora apresenta a relação das ciências sociais e a saúde coletiva em uma ode a Abrasco, a qual diz muito do que esta instituição deveria ser, com uma conotação construtivista, pois a recoloca em sua verdadeira dimensão e na direção política da área de saúde coletiva, o interesse coletivo superando marcas individualizantes. Essa dimensão política recuperada corresponde, como deixa transparecer a autora, à sua verdadeira vocação de instância de ligação entre o científico e o político.

Entretanto, o peso da produção científica da área das ciências sociais na saúde coletiva é muito maior do que sua expressão política como podemos observar pela revisão realizada por Ana Maria Canesqui (1998), onde a estrutura e o sujeito e mesmo a área de ambiente e trabalho não aparecem como temas em si, as estruturas se incluem no campo das políticas e instituições de saúde e o sujeito bem como o trabalho no tema saúde e doença na qualidade de protagonistas do processo saúde-doença no enfoque da epidemiologia relacionada com as ciências sociais.

Será recente a preocupação central com sujeito e sua relação com as estruturas nessa interação do individual e coletivo na saúde coletiva? Everardo Nunes (1985) também realizando uma avaliação da produção da área o faz incluindo o trabalho como um dos temas centrais. A pergunta então pode ser reformulada para se houve uma dispersão de temas entre 1985 e 1998 em que a questão do sujeito e a estrutura, foco central do pensamento social na saúde coletiva retomado por Cecília, será que esse período ficou obscurecido por abordagens específicas de temas emergentes que produziram uma perda de força política?

Ou apenas como diz a autora: A temática que recobre o conhecimento social participa dos mesmos dilemas epistemológicos que marcam a sociologia e outros ramos das ciências sociais. Por outro lado, a saúde possui reflexões próprias e necessariamente específicas, dadas pelo saber e pela prática. Constituindo assim a década do sujeito como chamado por Cecília os anos 90.

O ressurgimento do tema deve-se ao fato de que o sujeito e a estrutura são conceitos transdisciplinares pois estão presentes em todo campo disciplinar inclusive nos mais técnicos em que a própria técnica é sujeito, na medida de sua interação na arena dos condicionantes (Latour e Woolgar, 1997)

Voltemos ao campo da saúde do trabalhador e ambiental para focalizarmos uma área dinâmica nesse processo de construção da saúde coletiva, que a princípio nos anos 70 estava restrito a instâncias e práticas com um viés fortemente positivista quantitativo, enquadrado institucionalmente em departamentos de saneamento e em delegacias regionais do Ministério do Trabalho e de forte apelo corporativista onde se estabelece o locus da engenharia na saúde coletiva. Essa tradição é recentemente enfrentada pela revisão interdisciplinar da área, colocando pelo menos três vertentes internas: saneamento, saúde ambiental e saúde do trabalhador. E mais, considerando o campo de saúde, ambiente e trabalho como área de fronteira em relação a outras disciplinas fora da saúde coletiva e como campo de prática da saúde coletiva, esse processo de construção interdisciplinar necessita de uma incorporação mais efetiva de teorias complexas articuladoras da transdisciplinaridade para sua evolução científica e implementação de tecnologias relacionadas a esse novo marco isento de corporativismos e dogmas disciplinares, recolocando além do sujeito como emergente da década de 1990 o ambiente em sua complexidade social, geográfica e epidemiológica.

Ou seja, essa trajetória de uma disciplina ou campo disciplinar percorre esse período de reforço do sujeito se transformando em uma estrutura de outra ordem de complexidade, o que demonstra mais uma vez essa interação do sujeito com a estrutura e da estrutura com o sujeito. Posto que nada mais estruturante na ciência do que uma disciplina.

Referências bibliográficas

Canesqui AM 1998. Ciências sociais e saúde no Brasil: três décadas de ensino e pesquisa, Ciência & Saúde Coletiva vol. III (1).

Latour B e Woolgar S 1997. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Ed. Relume-Dumará, Rio de Janeiro.

Nunes ED 1985. Tendências e perspectivas em ciências sociais em saúde na América Latina: uma visão geral. In Nunes ED (org.). As ciências sociais em saúde na América Latina. Tendências e perspectivas. OPAS, Washington.

Juan S. Yazlle Rocha 1

A saúde coletiva e a dialética

The collective health and dialectics

1 Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP.

No seu trabalho: "Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico. Uma reflexão sobre a praxis da saúde coletiva", Maria Cecília de Souza Minayo nos oferece alentada revisão acerca das diferentes perspectivas teóricas de interpretação da relação sujeito e estrutura; além de importante - numa época em que se discute a crise do sujeito na saúde coletiva -, o trabalho é oportuno na medida que esta mesma questão está presente desde os anos 70 e 80, quando se constituía o campo da saúde coletiva, e se debatia intensamente as relações entre a medicina e a estrutura social, a operacionalização do conceito marxista de classes nos estudos de medicina social e saúde pública, entre outras coisas. Não era clara, para todos, a complexidade dos problemas que se abordavam e das opções teóricas que se assumiam; nesse sentido poderíamos dizer que havia mais autores do que, propriamente, sujeitos.

Sempre muito didática, Minayo nos oferece interessante revisão tipificando posições: daqueles que enfatizam o determinismo do social, isto é, autores "funcionalistas" como Durkheim, Radcliffe Brown, e "estruturalistas" como Lévi-Strauss e Althusser, este último de grande interesse para nós, pela marcada influência na medicina social brasileira que dominou a leitura dos escritos de Marx e o pensamento de alguns setores da esquerda. Nos permite compreender como a interpretação de Althusser, de que "Marx eliminou o sujeito humano da teoria social", inviabilizou as tentativas de operacionalizar as classes sociais, que além de consideradas impossíveis, só poderiam soar como verdadeiro sacrilégio aos althusserianos - enquanto nos perguntávamos, como poderia Marx dirigir-se às classes, se elas não passavam de abstratas relações de produção.

A incorporação das correntes que enfatizam o lugar do sujeito e da subjetividade ao campo da saúde coletiva, como assinalado, viria antes da queda do socialismo real, em grande parte pela procura de abordagens que permitissem aprofundar o conhecimento, e definir linhas factíveis de ação. São as abordagens compreensivas - encabeçadas por Max Weber, que contribuem para incorporar na análise os elementos individuais, até aquele momento desconsiderados. Maria Cecília inclui neste grupo alguns autores e correntes marxistas, ao tratar da tensão existente, no marxismo, entre as estruturas e as forças subjetivas, em conflito e confronto permanente, pelo domínio dos processos sociais. Aqui inclui autores como Lukács - o sujeito histórico é constituído pelas classes fundamentais; Gramsci - as forças econômicas jamais prevalecem na história; são os homens, as consciências e o espírito que plasmam o mundo exterior e terminam triunfantes; Sartre - as estruturas são ações humanas objetivadas. Schaff - numa organização social são os seres humanos que dirigem as condições objetivas. A destacar a perspectiva de Kosik: a práxis é a grande mediadora entre o indivíduo, a natureza e a sociedade. ... a prática não pode ser pensada como uma atividade exterior às pessoas ... na verdade, cada ação humana é a apropriação prático-espiritual do mundo: a atividade objetiva que transforma a natureza a marca com sentido humano.

Representando a sociologia crítica, destaca a Habermas para quem é necessário desenterrar as dimensões da racionalidade que incluem os elementos ético-normativos e estético-subjetivos. Habermas entende que a filosofia da ação comunicativa se opõe à clássica filosofia da consciência (dos autores marxistas antes citados). A questão seria, segundo Anderson, encontrar, na compreensão da realidade, o equilíbrio entre estrutura e sujeito e, por conseqüência, entre determinismo e protagonismo histórico.

No que respeita à repercussão dessas questões na saúde coletiva, a autora afirma que o conhecimento médico e da saúde pública tem sido marcado sistematicamente pelo apagamento do sujeito, originado pelo viés positivista e do estrutural funcionalismo, tendendo a transformar sujeitos doentes em leis biológicas e químicas. Concordamos com a autora que a crítica ao estrutural funcionalismo a partir das abordagens fenomenológicas teve influência marginal - provavelmente devido à penetração tardia do pensamento althusseriano na saúde coletiva -, que se constituiu no principal problema pelo viés ao privilegiar as determinações, as relações de produção e o avanço das forças produtivas no domínio médico-social. Ficaram em segundo plano as análises da práxis e dos sujeitos sociais, históricos e culturais presentes na conformação do campo da saúde.

Maria Cecília considera a década de 1990 como a do retorno do sujeito no bojo da incorporação das idéias da teoria da ação comunicativa, dada a evidente insuficiência dos postulados da filosofia da consciência - na qual, quem sabe ou pode, olha os outros como objetos de transformação - para abrir caminho às práticas democráticas de incorporação de conflitos e procura de consensos possíveis. Finaliza levantando duas questões: defende que o sujeito-coletivo da saúde é a própria sociedade que nas condições objetivas e subjetivas ... define tanto o seu conceito sanitário como os níveis e padrões de qualidade de vida que pretende alcançar - o que se confirma com Berlinguer, que afirma a necessidade de envolvimento coletivo quando se deseja a transformação dos padrões de saúde, e Mckeown e Lowe que destacaram a força da sociedade como sujeito histórico, insubstituível ao promover as transformações do saneamento, melhorias de moradias e condições de vida dos trabalhadores. Evidências levantadas pela OMS apontam que nas últimas décadas, a elevação da saúde foi o fator mais decisivo para o crescimento econômico, e não o inverso como estamos acostumados a pensar. Essa inversão - que realiza nosso sonho sanitário de ver a saúde reconhecida como investimento, e não despesa - é uma das idéias-força que a OMS vem defendendo. O segundo ponto se refere à saúde coletiva como sujeito histórico e epistêmico. A síntese seria a Abrasco, movimento-instituição, que imprimiu um novo sentido à história da saúde pública no país, com o que concordamos, sobretudo porque a mesma soube abrir espaço - embora instituição de caráter acadêmico - nos seus âmbitos de reflexão aos trabalhadores do setor, incorporando com eles todos os conflitos e contradições que compõem a realidade da saúde. Termina com três considerações: o movimento da saúde coletiva ainda se funda na filosofia da consciência; sua atuação está calcada na prática médica, fundada na doença e não na promoção da saúde - estilo de vida, ambiente etc.; é necessária uma pauta para integrar investigações e práticas de clínica, biologia e saúde pública.

Compreensível que, após um período de domínio das correntes de interpretação fundadas no determinismo social, viesse, num movimento pendular, a emergência de correntes que recuperam o subjetivismo. Compreensível, também, que alguns autores marxistas sejam descartados por deterministas - como Althusser. Pena que a autora não elabore um pouco as possíveis causas dessa postura, que pode ter mais a ver com as influências político-partidárias do marxismo entre nós (Konder), do que com as suas raízes filosóficas, que valeria a pena retomar. Considerando, também, nossa recente redemocratização, é natural o privilegiamento dos princípios comunicativos, mais adequados à nossa sede de construção da cidadania, em nossa conjuntura atual.

A relação sujeito-objeto está presente quando consideramos o sujeito como "sujeito do conhecimento e sujeito da História; e o objeto, como objeto do conhecimento (processos históricos) e objeto de atuação dos sujeitos da História" (Pereira, 1970). Os autores clássicos da sociologia trataram desse problema desde perspectivas diferentes: assim a relação sujeito-objeto (S ® O) é representada em Durkheim, no texto de Pereira, como uma seta do objeto para o sujeito (S * O) isto é, o sujeito apreende passivamente as características do objeto que a ele se impõem, constituindo o realismo (positivismo). Weber concebeu essa relação de forma inversa (a seta vai do sujeito para o objeto, S ® O), a consciência é constitutiva do objeto do conhecimento, constituindo o idealismo (subjetivismo). Em Marx temos a síntese das duas posições anteriores (muito embora ele a tenha formulado antes deles!) isto é, a dialética é a superação da dualidade sujeito-objeto (representada por setas em ambos os sentidos, S ® O), onde o subjetivo é um momento necessário do processo objetivo (Pereira, ibidem). A dialética seria, pois, o ponto de equilíbrio na relação sujeito-estrutura, reclamado por Anderson, e a sua recuperação poderia nos livrar dos influxos dos movimentos pendulares (o próprio Marx teve de "acentuar" o componente materialista da sua filosofia para contrapor-se aos idealistas alemães) e das ilusões da pseudoconcreticidade. Portanto, a realidade ... apresenta-se como o campo em que (o homem) exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato prático utilitário com as coisas, em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas, o indivíduo "em situação" cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade (Kosik, 1976). Quando a autora traz à discussão o conceito da práxis, ela assume a relação dialética entre sujeito e estrutura, entre o homem e a natureza. "O homem é", segundo Marx, "um ser que necessita objetivar-se de modo prático, produzindo um mundo humano". Este conceito se confirma no enunciado da primeira das suas teses sobre Feuerbach: a falha fundamental de todo o materialismo precedente reside em que só capta o objeto, a realidade, o sensível, sob a forma de objeto ou de contemplação, não como atividade humana sensorial, como prática; não de um modo subjetivo.

O primeiro dos pontos levantados pela autora, ao final do seu trabalho, provoca algumas questões: a sociedade é o sujeito coletivo da saúde tanto quanto é também, ela sociedade, sujeito da educação, da justiça etc., ou seja, admitimos que os homens constróem instituições e sociedades; este é o conceito da práxis: o homem como ser ativo criador, prático, que transforma o mundo não só em sua consciência mas também na realidade, praticamente. Assim, a transformação da natureza não fica dissociada da transformação do próprio homem (Vasquez, 1977). É conhecida a afirmação de Marx que disse: os homens fazem História, nas condições dadas pela História. Como assinalado por Pereira, a ênfase na primeira parte leva ao voluntarismo enquanto a ênfase na segunda parte leva ao mecanicismo (determinismo).

O segundo ponto, a saúde coletiva como sujeito histórico e epistêmico, tomando a Abrasco como símbolo, de forma muito acertada ao nosso ver, deve ser entendido na correlação com o ponto anterior. Como assinalado por Vasquez, os objetos da práxis podem ser matérias-primas, os produtos de outras práxis ou indivíduos ou a própria sociedade; neste último caso temos a práxis política. No caso do trabalho coletivo na saúde temos tanto uma produção material como não-material, destinadas à transformação da sociedade tanto em aspectos materiais como naqueles institucionais, conhecimento e cultura da saúde, e o lugar da saúde e as relações sociais dentro do setor e com os outros setores sociais. Desta forma, concordamos que as atividades promovidas pelo movimento sanitário, aqui representadas pela Abrasco como sujeito, constituem verdadeira práxis. Essa recuperação do significado social da saúde ganha relevância na medida em que a própria Organização Mundial da Saúde, no documento Making a Difference - The World Health Report, 1999, levanta o grande impacto da saúde na economia, ao contrário das idéias mais correntes no setor: evidências apontariam que o desenvolvimento da saúde antecede e promove o crescimento econômico.

Um último ponto que desejamos comentar é a observação - correta também - que a saúde coletiva ainda encontra-se presa ao modelo médico, não tendo incorporado devidamente as áreas da promoção da saúde mais eficientes na produção social do bem-estar. Correta a proposição, não podemos concordar que a incorporação desses elementos se faça promovendo a divisão em saúde individual, de um lado, e saúde coletiva de outro. Primeiro, porque a integração dessas áreas é um dos grandes sucessos do movimento da reforma sanitária, e a saúde integral resultante ainda é muito nova entre nós para ser novamente dicotomizada. Segundo, porque há uma proposta nacional de prática de saúde integral, multiprofissional e interdisciplinar, que incorpora a promoção da saúde e a prevenção de doenças, além de promover a educação/participação da comunidade, que é o Programa de Saúde da Família (PSF). A saúde coletiva não reconheceu - ou o fez tímida e parcialmente - que o PSF é o fato novo e o campo preferencial para a construção da nova práxis da saúde no Brasil. A discussão proposta pela autora deverá incluir a emergência dessa prática e o compromisso que a saúde coletiva deve desenvolver com ela.

Referências bibliográficas

Konder L A derrota da dialética.

Kosik K 1976. Dialética do concreto. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro.

Pereira L 1970 "História e planificação", cap.1. In Ensaios de sociologia do desenvolvimento. Liv. Pioneira Editora, São Paulo.

Vasquez AS 1977. A filosofia da práxis. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro.

Benedictus Philadelpho de Siqueira 1

A propósito do protagonismo da área de saúde coletiva

On protagonism in the collective health field

1 Primeiro presidente da Abrasco. Professor titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina/UFMG, professor emérito da Faculdade de Medicina/UFMG.

Na sua abordagem epistemológica, Maria Cecília Minayo consegue fazer uma resenha/síntese adequada, didática e acessível, tanto aos iniciados na área, quanto àqueles interessados e ainda neófitos. Assim sendo, seu texto merece ser editado para guia em cursos de ciências sociais, de modo especial na área da saúde.

No que tange ao papel protagônico da Abrasco como sujeito histórico das mudanças relacionadas à saúde coletiva no passado recente no contexto nacional, objeto particular de minha discussão, concordo com suas premissas fundamentais.

Tendo participado desde a primeira hora desse movimento, pude acompanhar a evolução da consciência da comunidade acadêmica sobre a possibilidade de construir um sujeito coletivo na área de saúde. Reconheceu-se já no início que o caminho a ser seguido implicava sair dos muros da universidade e trabalhar junto à comunidade, visando materializar o inconsciente coletivo de que saúde é um direito inalienável e básico de toda sociedade e não uma dádiva ou benesse da elite. Concordando com a afirmação de Darci Ribeiro de que somente podem falar das coisas em oposição aos que falam sobre as coisas, aqueles que as vivem e/ou estão ombro a ombro com seus protagonistas, a academia foi entender como realmente se dá o processo saúde-doença na sociedade e como seus protagonistas percebem seu papel na redefinição desse processo.

As conferências municipais, estaduais e finalmente a nacional se sucederam e, pela primeira vez em nossa história, o capítulo da saúde na Constituição foi escrito pelos que falam das coisas. A Abrasco representou importante sujeito histórico desse processo, assumindo o papel de protagonista sociopolítico.

No entanto, creio que se em determinado momento ela conseguiu avançar e ter esse papel protagônico, não foi capaz de manter sua posição estratégica. Embora esta interpretação mereça uma análise mais aprofundada e debatida, minha opinião é que as medicinas de grupo e o complexo médico-industrial perceberam o perigo que as mudanças anunciavam e conseguiram também impor-se como protagonistas na defesa de seus interesses mercantilistas.

Um interesse indicador dessas tendências é a demanda pelas residências médicas em medicina preventiva e social, com altos índices em décadas recentes e com procura próxima de zero na atualidade. Isso pode ser revertido? Creio que sim, desde que a Abrasco busque novamente estar ombro a ombro com os verdadeiros sujeitos da saúde coletiva, recuperando o tempo perdido.

No que concerne à discussão sobre o sujeito epistêmico, sou obrigado a discordar/concordar com a visão da professora Cecília Minayo. Concordar em que os parâmetros da hegemonia médica manietam o conceito de saúde coletiva, concentrando-o na doença ou nos problemas de saúde. E discordar de que isso seja um desejo da categoria médica. A própria autora dá indicações primorosas de setores da área médica que aspiram romper com essa situação, como a cardiologia e a pediatria, por exemplo.

Acredito que a discussão verdadeira deveria centrar-se na questão: a quem interessa a manutenção desse conceito? Ousaria afirmar que não são os profissionais de saúde os maiores interessados, mas sim os grandes grupos que exploram os saberes e as práticas daqueles profissionais e o complexo médico-industrial que maximiza seus lucros com a manutenção e cristalização das predições para os serviços decorrentes daquele conceito, centrados no tratamento das enfermidades.

Aceita esta premissa, resta-nos cerrar fileiras, ombro a ombro, com os profissionais de saúde quer na atuação profissional (serviços, congressos, cursos), quer na área de formação, no sentido de reconstruirmos nossa consciência coletiva de sujeito protagônico na transformação da prática de saúde. Isto envolve a missão de trabalharmos juntos com a comunidade no rompimento da divisão artificial, que separa a saúde em dois campos - individual e coletiva -, com dois atores diferentes, cumprindo o papel subalterno de servir ao sujeito encoberto pelas políticas neoliberais: o capital monopolista.

César Victora 1

Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico: uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva

Structure and subject, determinism and historical protagonism: a consideration about the praxis in collective health

1 Universidade Federal de Pelotas (cvixtota@terra.com.br).

O artigo de Cecília Minayo constitui leitura estimulante em diferentes níveis, desde a problematização conceitual até uma reflexão concreta sobre a práxis dos sanitaristas brasileiros. Nesse último aspecto, Cecília lança um duplo desafio para a Abrasco, tanto no sentido de tomar um papel mais ativo na promoção da saúde no nível da sociedade como um todo, assim como contribuir para a construção de um sujeito epistêmico mais complexo, unindo nossos esforços aos dos clínicos, biólogos e ambientalistas, entre outros.

Ao escrever este comentário, resolvi concentrar-me na questão do papel do sanitarista, e em particular de nossas associações, na promoção da saúde. Para tanto, usei como subsídios os estimulantes debates ocorridos durante o recente seminário nacional III Plano Diretor para o Desenvolvimento da Epidemiologia no Brasil (promovido pela Abrasco em Brasília, de 2 a 4 de agosto de 2000), assim como algumas experiências obtidas na pesquisa e ensino de epidemiologia na UFPEL.

Creio que a saúde coletiva brasileira ainda não desempenha um papel compatível com seu enorme crescimento nas últimas décadas. Como salientou Reynaldo Guimarães no seminário citado acima, nossa área encontra-se atualmente em oitavo lugar no país em termos do número de grupos de pesquisa, estando em patamares similares ao de áreas tradicionais como a física, química, genética e a própria medicina clínica. No entanto, nem nós mesmos, e muito menos a sociedade como um todo, reconhecemos esse intenso crescimento. Nosso estereótipo de um cientista continua sendo um indivíduo de avental branco em um laboratório, não alguém aplicando um questionário domiciliar. Essa visão é amplamente difundida em nível internacional. Por exemplo, o Prêmio Nobel nunca foi atribuído a um sanitarista. Nosso eterno candidato, Sir Richard Doll, perde invariavelmente, todos os anos, para cientistas de laboratório cujas contribuições para a saúde da humanidade são marcadamente mais restritas.

Essa preocupação com a baixa visibilidade dos sanitaristas foi abordada no seminário da Abrasco. Jornalistas que buscam informações sobre a prevenção de doenças inevitavelmente entrevistam clínicos especializados no órgão ou sistema afetado. Esses profissionais, via de regra, têm uma visão menos ampla do processo saúde-doença de que a de um sanitarista, podendo mesmo apresentar um conflito de interesses, pois obteriam benefícios financeiros pela realização de determinados procedimentos. Essa questão foi muito bem tratada por José Eluf, que citou como exemplo a utilização de testes de screening para câncer prostático, cuja recomendação rotineira pelos clínicos é questionada por estudos epidemiológicos.

Assim como outros grupos brasileiros, possuímos na UFPEL alguma experiência, nos níveis local e estadual, de retorno dos resultados de pesquisas para a população. Essa experiência já incluiu a divulgação de um estudo sobre estrutura fundiária e mortalidade infantil através de histórias em quadrinhos produzidas pela Pastoral da Terra; a preparação de folhetos resumindo os resultados de estudos de corte, dando um retorno aos indivíduos acompanhados, por ocasião das próximas visitas; e a participação sistemática de sindicatos nos estudos de saúde do trabalhador. A partir de 1998, instituimos a obrigatoriedade de que toda a dissertação aqui produzida inclua um press release com seus principais resultados, os quais têm sido amplamente divulgados em nível local. Mais recentemente, contratamos um jornalista para fazer a divulgação sistemática de todos nossos estudos através do Jornal da Epidemiologia dirigido ao público em geral, assim como da imprensa local. No entanto, ainda há muito por fazer nessa área.

Talvez caiba aqui um comentário relacionado. Existe um certo "purismo" na epidemiologia tradicional que requer um distanciamento entre o pesquisador e o pesquisado. Por exemplo, argumenta-se que retornar resultados de um estudo ainda em andamento poderia enviesar seus resultados; ou envolver o pessoal dos serviços de saúde em um estudo de avaliação de impacto poderia igualmente ser prejudicial. No primeiro caso, vale perguntar até que ponto seria ético manter os pesquisados alheios aos resultados; no segundo, se qualquer avaliação realmente resultará em mudanças se não for capaz de engajar os avaliados. Esse purismo poderia também estar tomando a forma que Cecília descreve: "nós descobrimos, outros aplicam".

Cecília sugere que, pelo menos em parte, nossa baixa visibilidade se deve a uma certa timidez: ou nós nos contentamos em dizer que são nossos dados que instruem (os clínicos) ... ou aceitamos que a clínica está incorporando, de vez, os conceitos de promoção e prevenção. Assim, continua ela, muitas entidades clínicas estão promovendo campanhas junto à população, enquanto nos mantemos restritos a debates acadêmicos. Estou plenamente de acordo, e creio ainda que nós sanitaristas temos uma vantagem adicional em relação aos clínicos. Devido ao nosso entendimento da doença como um fenômeno populacional, e por não nos restringirmos a um único órgão ou sistema, somos capazes de priorizar ações de saúde, algo que os especialistas somente fazem dentro de sua área restrita. Por exemplo, não se pode criticar um dermatologista por priorizar a prevenção do câncer de pele através da restrição da exposição à luz solar, nem um endocrinologista por enfatizar a prevenção do diabete, pois são essas as principais doenças preveníveis dentro de suas especialidades. No entanto, somente um sanitarista cujo objeto de estudo é a saúde da sociedade como um todo poderá opinar sobre que atividades de promoção e prevenção devam ser priorizadas em termos de investimentos sociais, visando à saúde como um todo.

O seminário referendou a recomendação de que a Abrasco deva contribuir para aumentar a visibilidade dos pesquisadores em saúde coletiva, através de duas propostas específicas: "estimular a divulgação da produção científica nacional da área em veículos como o jornal Ciência Hoje e nos espaços destinados à saúde nos grandes jornais" e "estimular o posicionamento da comunidade científica da epidemiologia frente a temas e problemas de interesse nacional". O texto de Cecília, concebido independentemente do seminário, reafirma esse importante desafio colocado a nós sanitaristas e às nossas agremiações.

Luíza Santos Moreira da Costa 1

Uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva: indícios de uma exclusão?

A reflection on health praxis: evidence of exclusion?

1 Instituto de Saúde da Comunidade, Centro de Ciências Médicas/UFF.

A autora apresentou uma crítica muito bem-fundamentada sobre a práxis da saúde coletiva da qual destacaremos dois pontos: (1) o afastamento do sujeito; e as análises da práxis e dos sujeitos sociais, históricos e culturais, na configuração do campo, sendo deixadas em segundo plano; e (2) o fato de a produção e de a prática da saúde coletiva continuarem a pautar-se na doença e na evitação da doença e não na idéia de promoção, que privilegiaria um conceito positivo de saúde, enquanto que a medicina estaria mais mobilizada para a promoção de estilos de vida saudáveis.

Poderiam esses descompassos serem vistos como o resultado da exclusão da educação em saúde do campo da saúde coletiva? A educação em saúde, desde que foi importada por Paula Souza entre 1917 e 1918 (Merhy, 1984), ainda como educação sanitária, até nossos dias, passou por profundas modificações (Costa, 1999). No entanto, foi muito forte sua atuação dirigida a mudar comportamentos individuais e coletivos, objetivando "a utilização correta dos serviços disponíveis, o respeito a medidas preventivas, a aceitação das recomendações médicas" (Candeias, 1984), e o aumento da demanda dos serviços de saúde, através do "recrutamento e retenção de usuários" (ibid.). Atuavam apenas no nível de proteção específica e no nível secundário de prevenção das doenças, considerando estas como resultado de comportamentos não saudáveis ("culpabilização da vítima"). Se esses comportamentos possuíam uma causa, era a falta de informação dos doentes ou daqueles em risco de adoecer. A educação em saúde se restringia, assim, à transmissão de informações sobre as doenças, e apenas quanto a seus aspectos biológicos. Esta abordagem, denominada educação empírico-racional teria, por objetivo, subsidiar "escolhas" informadas (Greene e Simons-Morton, 1984). Durante muitos anos, a "importância da ação educativa como medida para a redução dos problemas de saúde essencialmente originados por desigualdades sociais" foi inculcada nos profissionais de saúde, tornando-os "agentes de ação ideológica e de controle social" (Ornellas, 1981).

Infelizmente, hoje, a educação em saúde é vista ainda nesses moldes, talvez porque o enfoque crítico só venha sendo posto em prática por organizações não-governamentais, independente das políticas públicas oficiais. Buss (2000) refere como um dos grupos de conceituação para a promoção da saúde atividades dirigidas à transformação de comportamentos dos indivíduos e que estas atividades tenderiam a se concentrar em componentes educativos, primariamente relacionados com riscos comportamentais passíveis de mudanças, que estariam, pelo menos em parte, sob o controle dos próprios indivíduos. Teixeira et al. (1993) situa a educação em saúde junto ao saneamento, controle de vetores e imunização, entre outros, como um dos meios que compõem a tecnologia sanitária. Talvez para escapar da ameaça de verem seus trabalhos assim rotulados, vários autores, entre eles Valla e Stotz (1993) lançam mão do termo educação e saúde para designar um pensar e uma prática diferentes; um trabalho junto a organizações populares e, mais recentemente, educação popular e saúde, termo também utilizado por Vasconcelos (1997, 1998). Na verdade, há mais de duas décadas o enfoque "tradicional" ou do período "clássico" (Sanmartí, 1985) vem sendo criticado, e novas propostas construídas, lembrando que o trabalho desenvolvido por Joaquim Alberto Cardoso de Melo sempre foi muito respeitado. Em outubro e novembro de 1980, o Centro de Estudos de Educação e Sociedade (CEDES) e o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES/Núcleo Campinas) organizaram um curso sobre educação e saúde, em resposta ao interesse de pessoas que estavam exercendo alguma prática "educativa" dirigida às classes trabalhadoras (1984). Seu programa incluiu os seguintes temas e respectivos apresentadores: Educação Sanitária: uma visão crítica - Joaquim Alberto Cardoso de Melo; Dimensões Educacionais da Relação Educação e Saúde - Maria Nilde Mascellani; Educação Popular e a Saúde - Paulo Freire; Técnicas de Educação e Saúde: Sociodrama - Hélio Rubens Figueiredo; Técnicas de Educação e Saúde: Cinema - Ricardo Guilherme de Araújo; Os Movimentos Populares e a Educação e Saúde - Emerson Merhy e padre Júlio Munaro; O Estado e a Educação e a Saúde - Nilson do Rosário Costa (ibid.:2).

O enfoque crítico da educação em saúde vem sendo o referencial de nossa atuação nas áreas de ensino, pesquisa e extensão no Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense, principalmente junto a estudantes de medicina; e da atuação da Assessoria de Educação em Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (2000) que vem, recentemente, promovendo encontros com profissionais de educação em saúde de todos os municípios do Estado do Rio de Janeiro. Mas quais seriam os novos referenciais deste enfoque crítico da educação em saúde que aponto como capaz de reduzir o descompasso da práxis da saúde coletiva? (1) Estrutura e sujeito são levados em conta, à medida que os estilos de vida são percebidos como tendo componentes subjetivos e estruturais, também não esquecendo os conflitos de interesses sociais e políticos que perpassam a sociedade. Na promoção da saúde, a educação em saúde identificaria os fatores favoráveis e os desfavoráveis à escolha de estilos de vida promotores de saúde, participando no reforço dos primeiros e redução dos últimos, o que significa extrapolar o setor saúde. Como exemplos, podem ser citadas a oferta de atividades desportivas e a luta pela garantia de alimentos saudáveis; (2) a participação da população deve ser "real", segundo Pinto (1987), quando a população participa do processo de decisão. São consideradas as expectativas segundo os referenciais da população, mesmo que possam parecer acanhadas. Valla (s.d.) salienta que "o que freqüentemente para o profissional é conformismo, pode ser para a população uma avaliação rigorosa dos limites de melhoria"; (3) ter suas atividades ampliadas a todas as classes sociais; (4) não se restringe a falar; passar também a ouvir, numa prática dialógica e dialética; não para controlar e dominar, mas para, conhecendo as representações cotidianas da saúde e da doença (representações sociais e teorias subjetivas) (Flick, 1992), compreender a "lógica" da escolha de estilos de vida percebidos por nós como "ilógicos" - temas para reflexão; (4) possuir três níveis de atuação: informação, comunicação e reflexão (Costa, 1998), atuando em infinita possibilidade de cenários e de atores, através de parcerias. As "sessões abertas de orientação sobre estilos de vida", realizadas pela Sociedade Brasileira de Cardiologia; a atuação da Sociedade Brasileira de Emergência e Trauma levando ao âmbito das mídias e da sociedade civil o abuso de álcool como um dos maiores "fatores de risco para a morte e lesões violentas"; a produção de "material específico de orientação para todos os pediatras", pela Sociedade de Pediatria, citados pela autora, são exemplos de atuação da educação em saúde; (5) atuação não restrita à prevenção de doenças, mas percebendo a necessidade de se trabalhar em todos os níveis desta prevenção, junto à epidemiologia e ao planejamento e gerência em saúde. A promoção da saúde é identificada como um de seus níveis de atuação, mas não o único; e a saúde percebida como qualidade de vida, considerada em seus parâmetros objetivos e subjetivos (Minayo et al., 2000). Lembrando os versos dos Titãs, Valla (s.d.) deixa claro que não se pode separar esses dois parâmetros, pois afinal, "A gente não quer só comer. A gente quer prazer para aliviar a dor."

Referências bibliográficas

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Everardo Duarte Nunes 1

Um problema não resolvido: estruturas sujeitadas ou sujeitos estruturados

An unsolved problem: subjected structures or structured subjects?

1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas.

Os fatos sociais não são coisas nem idéias, são estruturas /.../. a estrutura nada tira à sociedade de sua espessura ou de seu peso. Ela própria é uma estrutura das estruturas. Merleau-Ponti, Signes, 1960.

Colhidas entre o cristal e a fumaça, segundo a expressão de Henri Atlan, as ciências sociais optaram por privilegiar o cristal, ou seja, a estrutura às custas da fumaça, da não-estrutura, do informal. Dosse, 1994.

Analisar um texto de Cecília não é tarefa fácil. A larga experiência acadêmica, administrativa, política e de articuladora de debates nos mais diversos fóruns na área da saúde faz com que seus trabalhos não se limitem a expor simplesmente idéias. Mais do que isso, a sua exposição é sempre uma arguta reflexão, onde as idéias são elaboradas num grande arco que inclui repensar a teoria e a prática, a formação discursiva e sua adesão ou não aos projetos da sociedade, recompor no plano do logos a realidade e as propostas de mudança.

Assim, ao desvelar a complexa teia de relações dialéticas entre estrutura e sujeito, Cecília nos oferece um erudito estudo e, ao mesmo tempo, reflexões para as nossas práticas cotidianas no campo da saúde coletiva. Ao refletir sobre esse tema, a autora realiza um exercício que cobre o que há de mais complexo na história da sociologia - a estrutura e o sujeito. O percurso que Cecília traça é didático e, ao mesmo tempo, erudito e profundo. Trabalha com o conceito de estrutura e seus conexos (totalidade, interdependência, auto-regulação e transformação) e, ainda, situa os afastamentos estruturalistas da subjetividade, de um lado e, de outro, as aproximações fenomenológicas que conferem um lugar de destaque aos sujeitos, como agentes sociais (Weber), atores (Tourraine), assim como a posição daqueles que, dialeticamente, procuram a retomada do sujeito nas estruturas (Sartre, Gramsci), ou as posições conciliatórias - a do equilíbrio entre estrutura e sujeito (Anderson, Morin). Como se pode perceber, o quadro é denso, a ele associando-se a preocupação da autora de refletir como essas questões repercutem sobre a práxis da saúde coletiva, em especial pelo fato de que, em grande parte, a produção científica nesse campo, durante muito tempo, foi marcada, para usar a expressão de Cecília, pelo "apagamento do sujeito".

Analisar e não debater o texto de Cecília prende-se ao fato de que eu não encontro em seu trabalho questões com as quais possa vir a divergir. Mas, ao lê-lo, várias lembranças foram se juntando e, a cada momento, eu redescobria que, muitas vezes, a pretensa polarização sistema/estrutura-indivíduo/sujeito desaparecia quando o próprio autor enfrentava a sua própria realidade; a vida não distingue estrutura e sujeito.

Veja-se, por exemplo, o caso Althusser (1918-1990). Como é assinalado no texto de Cecília, Althusser empenhou-se em "cortar o nó da relação entre estrutura e sujeito". É a época áurea do estruturalismo. Em um espaço desvitalizado, o estruturalismo cria o espaço do pensar (Dosse), em uma dimensão que instaura "(n)o vazio do homem desaparecido" (Foucault). Mas esse homem, Louis, reaparece em toda a sua dimensão humana e trágica; ele que, internado em um hospital psiquiátrico, após estrangular a sua mulher Hélène, viveu dez anos "desaparecido". Basta ler O futuro dura muito pouco. Ao apresentar o texto, o autor adverte que não se trata de um diário, nem de memórias, nem de uma autobiografia, mas apenas o impacto dos afetos emotivos que marcaram minha existência e lhe deram forma (...) dos afetos em torno dos quais eu, por assim dizer, me constituí (Althusser, 1992). Acrescenta que, como poderá julgar por seus resultados a força em minha vida de certas formações violentas que outrora chamei de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) e que não pude, para minha própria surpresa, poupar para compreender o que me aconteceu (Althusser, 1992). O reencontro do homem com sua história e dos seus afetos emotivos, o sujeito diante de si próprio. E a lembrança do que escreveu, muito antes de Althusser, um não-estruturalista - Charles Wright-Mills (1916-1962) - é imediata, pois para ele o estudo adequado do homem se faz na intersecção da biografia, da história e das estruturas sociais (Wright-Mills, 1965).

Outra lembrança: Sartre de Os caminhos da liberdade, a trilogia formada por A idade da razão, Sursis e Com a morte na alma. Nela estará a ficção literária da obra monumental do existencialismo: O ser e o nada, que precede de poucos anos os dois primeiros romances pois foi publicada em 1943. Mathieu, Daniel, Jacques são personagens emblemáticos das teses existencialistas sobre a liberdade; como analisa Pessanha (1978), em A idade da razão (1945) as questões individuais predominam, a história e a política são panos de fundo, onde cada um vive a sua forma de liberdade: a pura, sem compromisso, de Mathieu; a liberdade como ato gratuito, de Daniel, que se contrapõe a Jacques, que abandona os sonhos juvenis de liberdade para "viver uma vida regular", onde o casamento e o trabalho estarão presentes. No mesmo ano, 1945, Sartre publica Sursis. Nele, o compromisso com a história, com os acontecimentos políticos, revelam que os projetos individuais são, na verdade, determinados pelo curso da história (Pessanha, 1978). Em Com a morte na alma, último livro da trilogia, de 1949, o personagem Mathieu, num engajamento gratuito, arrisca a própria vida, quando os alemães invadem Paris. Sem dúvida, o pensamento de Mathieu, ao final do primeiro volume da trilogia, marcará toda a sua trajetória - Ninguém entravou a minha liberdade, foi a minha vida que a bebeu (Sartre, 1979). As estruturas construídas pelas relações, pelos movimentos sociais, pelo engajamento político são cenários (ou parte integrante?) para que esses sujeitos se revelem. Nesse ponto, cruzam-se a força dos processos sociais e as vidas dos indivíduos.

Terceira lembrança: a frase pronunciada por Jacques Lacan: Se há algo que os acontecimentos de maio demonstram é precisamente a saída para a rua das estruturas. Essa frase, Lacan disse em 22 de fevereiro de 1969, quando o movimento de maio de 68 já era parte da história, durante a conferência de Michel Foucault, na Sociedade Francesa de Filosofia, intitulada "Qu'est-ce qu' un auteur?", ao responder a uma observação de Lucien Goldmann, quando disse: "Você viu, em 68, as suas estruturas. /.../ Era gente o que estava nas ruas". Concordo com a análise de Dosse (1994), que maio de 68 reintroduziu uma problematização do sujeito em plena vigência do estruturalismo, quando a busca da cientificidade nas ciências sociais era o paradigma e o objeto estrutural não era o homem. A ruptura viria, com ela. Como disse, o texto de Cecília é um convite ao diálogo, pois envolve o que, provavelmente, mais aproxima os cientistas sociais quando deparam questões que se situam nas fronteiras estrutura/sujeito/estrutura, a necessidade de estudos interdisciplinares, acrescidos dos retornos acima citados e, mais do que isso, como quer Morin, a integração do pesquisador na observação.

As minhas observações, com certeza, não são suficientes para retratar a complexidade do texto que Cecília nos oferece, mas retomam alguns pontos que continuam a instigar aqueles que se voltam para as situações que afetam a concretude da vida dos sujeitos históricos no enfrentamento da dor, do sofrimento, da doença, do desamparo, da violência, do trabalho sem segurança, do desemprego, da fome... Penso ser esta a mensagem do final do texto de Cecília, quando alerta para o fato de que somente de forma excepcional o campo da saúde coletiva tem dado acolhida aos princípios da filosofia da consciência, cujo enfoque é fundamental, ao lado das "novas alianças" que permitam reconfigurar a saúde coletiva, tanto em sua epistéme, quanto em sua práxis.

Recortei alguns autores e tentei ler a questão sem maniqueísmos. Daí, pensar que não se trata de estruturas sujeitadas ou sujeitos estruturados, mas de uma relação na qual estruturas criam sujeitos, mas sujeitos transformam estruturas. Ninguém melhor do que Castoriadis (1992) para encerrar estas minhas difusas idéias sobre o tema: o sujeito apresenta-se como essa estranha totalidade, que não é uma e é uma, ao mesmo tempo, composição paradoxal de um corpo biológico, de um ser social (indivíduo socialmente definido), de uma <pessoa> mais ou menos consciente, enfim, de uma psique inconsciente (de uma realidade psíquica e de um aparelho psíquico), extremamente heterogêneo, porém definitivamente indissociável.

Referências bibliográficas

Althusser L 1992. O futuro dura muito tempo. Companhia das Letras, São Paulo.

Castoriadis C 1992. O mundo fragmentado/3. Paz e Terra, Rio de Janeiro.

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Pessanha JAM 1978. Apresentação. In Sartre, (Coleção Os Pensadores). Abril Cultural, São Paulo.

Sartre J-P 1981. A idade da razão. Abril Cultural, São Paulo.

Wright-Mills C 1965. A imaginação sociológica. Zahar Editores, Rio de Janeiro.

Maria Cecília de Souza Minayo

A autora responde

The author reply

Ao encerrar o debate sobre a questão do sujeito e da estrutura, tema tão caro ao campo sociológico e tão bom para ser pensado no âmbito da saúde, meu primeiro movimento é de imensa satisfação. Eu me senti, como modesta pesquisadora da área e companheira de tão importantes companheiros e companheiras, totalmente recompensada pelo esforço feito de produzir o presente artigo. Confesso que tinha necessidade, até urgência intelectual de me expor (com certo medo, receio, e mesmo insegurança). Isso me vem de uma certa inquietude ao ver que fundamentos, como os explicitados aqui, ficam obscurecidos na trama das investigações e ações, pelo apressuramento das respostas cotidianas e absolutamente imediatas e necessárias que os problemas de saúde exigem.

Gostaria de dizer a todos os meus debatedores, cuja grandeza ultrapassa qualquer comentário meu, que lhes sou muito grata, pela deferência, pelo respeito e pela generosidade de sua participação. Não vou responder a cada um particularmente, embora gostaria e ficasse tentada. Se fosse fazê-lo, temo que somente nossa discussão preenchesse todo o espaço deste número da revista. Vou apenas nomeá-los: Rita Barata, que brilhantemente percorreu as filiações de nosso campo, concordou, discordou e chamou atenção para lacunas tão importantes como a ausência de Agnes Heller (que me penitencio de ter deixado de fora), cuja contribuição para pensar liberdade, necessidade e valores é fundamental. Amélia Cohn, que participou comigo da inquietação intelectual, percebendo uma certa apatia epistemológica no desenvolvimento da área. Ana Canesqui, que expandiu a reflexão sobre a pertinência de nossos problemas e perguntas, mostrando que têm raízes em questões sociológicas muito mais amplas. Moisés Goldbaum, amigo fiel que, ao se constituir em testemunho vivo da Abrasco, recuperou fios perdidos ou desconsiderados ou confundidos por mim, na tessitura do campo. Regina Bodstein, minha companheira de preocupações teóricas, que ampliou toda a esfera da reflexão com novos autores e novos problemas, mostrando que a "miséria da teoria" certamente tem a ver com a "pobreza da prática política". Eduardo Stotz, que a partir de sua práxis específica sempre faz lembrar a inserção diferenciada das classes e dos grupos no universo da saúde, tornando complexa a idéia do "coletivo". Jorge Machado, que reiterou, a partir de sua perspectiva de pesquisa, a advertência de que não se pode dicotomizar estrutura e sujeito, quando se acredita que qualquer estrutura é uma ação humana objetivada. Juan S.Y. Rocha, que percorreu brilhantemente o campo reflexivo da área e fez distinções importantes e necessárias sobre os temas centrais do texto. Benedictus Philadelpho, com quem a honra de partilhar uma mesa, reiterou em mim a imagem da nobreza dos pioneiros e fundadores, que vêem sua obra, se alegram e pedem mais. César Victora que, com grandeza de quem faz, trouxe para o terreno da prática e das metas, a certeza das possibilidades de mudanças. Luíza Moreira, que conseguiu extrair de uma reflexão tão abstrata, caminhos de possibilidades para o âmbito da educação em saúde. Por fim, nomeio a contribuição de Everardo sempre generosa e brilhante. De profunda grandeza intelectual e beleza poética, seu texto oferece um brilho de erudição e reflexão ao meu, o que o torna um importante "pré-texto" para a expressão dos conhecimentos desse autor seminal do campo da saúde coletiva.

A vocês colegas, que se debruçaram sobre o texto, quero lhes dizer que aceitei de bom grado todas as críticas que me fizeram, reconhecendo nelas, ou a incompletude ou a pobreza de minha reflexão; ou, por vezes, a dificuldade de comunicação, tão freqüente quando falamos de algo que não está muito claro nem para nós. Na verdade, a idéia deste debate foi mais de provocar vocês. Sim, vocês que têm longa liderança histórica na área e que precisam se manifestar, numa nova etapa dessa jornada intelectual, frente à qual, o passado, como os faróis de carro, assim diria Pedro Nava, ilumina para trás. Estou segura de que, as mudanças econômico-político-sociais e culturais, empurradas pelo acelerado avanço técnico-científico (na área da saúde sobretudo o intenso desenvolvimento da biotecnologia, da biologia e da genética), comunicacional e informacional, apresentam novas necessidades explicativas para a práxis. Estamos cercados de desafios por todos os lados, mas não como ilhas isoladas, e sim servidas por barcos e por remos que nos cabem descobrir e utilizar. Por isso não estou preocupada em contestar algum ponto específico. Tenho mais dúvidas que certezas e é isso que me move e nos move a continuar. Porém, se algo está claro é que convém experimentar novos métodos; convém diminuir o que nos separa artificialmente de outras áreas; convém aprofundar nossas especificidades; convém retomar com o mesmo entusiasmo de tempos atrás a busca de novos instrumentos para dar reposta ao fosso abissal que separa a saúde que queremos da saúde que construímos.

Gostaria de assinalar que não considero meu artigo uma voz solitária, primeiro porque vocês compartilharam comigo e também discordaram de mim. Mas também por outros sanitaristas que já tive oportunidade de ler, como o texto de debate de Gastão Wagner no número da revista Ciência e Saúde Coletiva, Cem anos de Saúde Pública e como os vários trabalhos de Naomar de Almeida Filho sobre uma Teoria para a saúde. Felizmente somos muitos a nos inquietarmos. Portanto, não estou preocupada nem mesmo quando minha fala possa ser confundida com uma busca de questionar a politização da Abrasco. Pelo contrário, reconheço-lhe este papel. Minha chamada é para ir mais além: assumir o enfrentamento das questões epistemológicas, certamente uma problemática hoje comum a várias áreas do que repercutem na prática. Quando disse que me dei por satisfeita (e nem merecia tanto!), estou me referindo ao fato concreto de que todos os que debateram o presente artigo estão contribuindo para o avanço de uma conversa necessária a essa área jovem e pujante que constitui a saúde coletiva.

  • 2
    Rose G. Sick individuals and sick populations.
    International Journal of Epidemiology 14:32-38, 1985.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      2001
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