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Que direito? Trajetórias e percepções dos usuários no processo de acesso a medicamentos por mandados judiciais em Santa Catarina

What right? Trajectories and perceptions of users in relation to the process of access to medication by legal writ in Santa Catarina State

Resumos

O objetivo do estudo foi analisar as trajetórias dos usuários de Itajaí (SC) que recebem medicamentos via mandados judiciais contra o Estado de Santa Catarina, suas motivações e percepções sobre esta forma de acesso aos medicamentos. A metodologia consistiu de entrevistas semiestruturadas com os solicitantes de medicamentos de Itajaí no ano de 2006. Aceitaram participar dezoito usuários. Nenhum entrevistado sabia que poderia cobrar o medicamento do estado antes de ser avisado pelo médico (39%), Secretaria de Saúde (22%), advogado (11%), amigos ou associações (28%). A análise temática revelou que uma grande categoria, denominada "Não consciência do direito social", é o eixo estruturante de todas as trajetórias e forma pela qual os usuários percebem a construção do processo judicial. Conclui-se que o recebimento atual do benefício não promoveu a conscientização do direito social, pois a forma de condução dos processos não é empoderante, ao contrário, reforça as relações de dependência e a percepção de impotência do usuário.

Assistência farmacêutica; Acesso universal a serviços de saúde; Direito à saúde; Medicamentos


The objective of this study was to analyze the trajectories of users from Itajaí, Santa Catarina State who receive medications by legal writ against the State of Santa Catarina, their reasons, and their views on this form of access to medications. The methodology consisted of semi-structured interviews with users who requested medications in the year of 2006. Eighteen users were located and agreed to take part in the study. None of the interviewees was aware that they could charge the State for the medication before being advised by their doctor (39%), the Secretary of Health (22%), a lawyer (11%), or friends or associations (28%). The thematic analysis revealed that a major category, denominated "Not aware of the social right" is common to all the trajectories and the way in which the users perceive the construction of the legal process. It concludes that the actual receipt of the benefit did not promote awareness of the social right, since the way in which the processes are carried out does not empower the recipients, but on the contrary, reinforces the relations of dependence and the user's perceptions of impotence.

Pharmaceutical assistance; Universal access to health services; Right to health; Medications


ARTIGO ARTICLE

Que direito? Trajetórias e percepções dos usuários no processo de acesso a medicamentos por mandados judiciais em Santa Catarina

What right? Trajectories and perceptions of users in relation to the process of access to medication by legal writ in Santa Catarina State

Silvana Nair LeiteI; Ana Cristina MafraII

IDepartamento de Farmácia, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro. 70910-900 Brasília DF. silvana.nair@hotmail.com

IIUniversidade do Vale do Itajaí

RESUMO

O objetivo do estudo foi analisar as trajetórias dos usuários de Itajaí (SC) que recebem medicamentos via mandados judiciais contra o Estado de Santa Catarina, suas motivações e percepções sobre esta forma de acesso aos medicamentos. A metodologia consistiu de entrevistas semiestruturadas com os solicitantes de medicamentos de Itajaí no ano de 2006. Aceitaram participar dezoito usuários. Nenhum entrevistado sabia que poderia cobrar o medicamento do estado antes de ser avisado pelo médico (39%), Secretaria de Saúde (22%), advogado (11%), amigos ou associações (28%). A análise temática revelou que uma grande categoria, denominada "Não consciência do direito social", é o eixo estruturante de todas as trajetórias e forma pela qual os usuários percebem a construção do processo judicial. Conclui-se que o recebimento atual do benefício não promoveu a conscientização do direito social, pois a forma de condução dos processos não é empoderante, ao contrário, reforça as relações de dependência e a percepção de impotência do usuário.

Palavras-chave: Assistência farmacêutica, Acesso universal a serviços de saúde, Direito à saúde, Medicamentos

ABSTRACT

The objective of this study was to analyze the trajectories of users from Itajaí, Santa Catarina State who receive medications by legal writ against the State of Santa Catarina, their reasons, and their views on this form of access to medications. The methodology consisted of semi-structured interviews with users who requested medications in the year of 2006. Eighteen users were located and agreed to take part in the study. None of the interviewees was aware that they could charge the State for the medication before being advised by their doctor (39%), the Secretary of Health (22%), a lawyer (11%), or friends or associations (28%). The thematic analysis revealed that a major category, denominated "Not aware of the social right" is common to all the trajectories and the way in which the users perceive the construction of the legal process. It concludes that the actual receipt of the benefit did not promote awareness of the social right, since the way in which the processes are carried out does not empower the recipients, but on the contrary, reinforces the relations of dependence and the user's perceptions of impotence.

Key words: Pharmaceutical assistance, Universal access to health services, Right to health, Medications

Introdução

A garantia de assistência farmacêutica à população é lei no Brasil, inserida no âmbito dos direitos sociais. A Constituição Federal, nos artigos 6º e 196º, prevê o acesso universal às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, como direito social e dever do Estado. A Lei nº 8.080/90 declara, em seu artigo 6º, que "é atribuição do Sistema Único de Saúde a execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica"1. Assim, se o poder público não fornece o medicamento que os pacientes solicitam, recorrer à Justiça, para alguns autores, é o caminho esperado - seja por intermédio de defensores públicos, escritórios-modelo de universidades, advogados particulares ou, em alguns casos, do Ministério Público2.

A judicialização dos direitos sociais é um tema de grande interesse atual, pois tem tomado volume e importância econômica e de gestão dos serviços públicos nunca antes observados. Para Marques3, esta questão é especialmente importante por trazer à tona a discussão sobre os limites de ação dos sistemas jurídico e político na formulação de políticas públicas e alocação de recursos. A autora chama a atenção ainda para o fato de que este processo garante direitos individuais em detrimento de uma coletividade que não se faz representar em juízo - a grande maioria da população, que não tem acesso à informação e nem chega ao poder judiciário.

O número de ações judiciais contra estados e municípios para o fornecimento gratuito de medicamentos não pára de crescer. A situação atual, com milhares de mandados judiciais, consumindo milhões de reais em recursos públicos, tem causas complexas, em que os interesses legítimos - coletivos ou individuais - nem sempre vêm em primeiro lugar2. Má gestão da assistência farmacêutica por municípios e estados, pressão das indústrias farmacêuticas sobre os prescritores e a população e falhas na formação dos médicos são alguns dos fatores que impulsionam o fenômeno que já está sendo considerado uma grande ameaça à sustentabilidade do SUS, atropelando outros programas e projetos na área da saúde.

Estudos sobre o acesso a medicamentos via judicialização no Estado do Rio de Janeiro e na cidade de São Paulo4,5 revelaram que os gestores estão sendo obrigados a disponibilizar medicamentos que não competem ao seu nível de gestão, muitos dos quais representativos de "inovações tecnológicas" e muitas vezes sendo prescritos sem o cumprimento dos protocolos terapêuticos. Para estes autores, os usuários e as instituições que exercem influência sobre este processo parecem totalmente desorientados no que tange aos pleitos de acesso aos medicamentos e carentes de entendimento sobre questões relativas ao uso racional de medicamentos. Marques et al.6 levantam, ainda, a possibilidade de tais ações acobertarem os interesses de determinados laboratórios farmacêuticos, responsáveis pela comercialização de inovações terapêuticas inacessíveis financeiramente aos autores.

No Estado de Santa Catarina, o volume das ações contra o Estado cresce violentamente a cada ano. Dentre os usuários atualmente cadastrados na Secretaria de Estado da Saúde, 4% são residentes na cidade de Itajaí7. As informações contidas nos processos judiciais em geral são bastante limitadas, revelando apenas o nome do usuário, o medicamento pleiteado, a cidade de origem, datas e valores empenhados. Informações que possam dar pistas sobre a origem dos receituários, a forma como o usuário foi orientado, os fatores que influenciaram este processo não podem ser acessadas pelos gestores.

A compreensão dos usuários sobre esta forma de acesso aos medicamentos - suas percepções e nível de entendimento - tampouco é conhecida. A questão do direito à saúde é tema de diversos estudos, principalmente teórico-conceituais, mas também quanto ao cumprimento do direito pelos serviços de saúde. No entanto, é o ponto de vista dos profissionais, pesquisadores e gestores que prevalece nas publicações disponíveis. O ponto de vista dos usuários a respeito do direito à saúde ainda é pouco investigado. Ainda menos conhecida é a perspectiva do usuário em relação ao direito de acesso aos medicamentos enquanto direito à saúde.

É com este intuito de fazer emergir a perspectiva dos usuários de medicamentos de Itajaí que acessaram por mandados judiciais contra o Estado os produtos em questão que o presente estudo se propôs a reconstruir suas trajetórias, buscando compreender suas percepções sobre o processo de acesso a medicamentos na perspectiva da garantia do direito à saúde.

Metodologia

O estudo foi desenvolvido com base na metodologia qualitativa de pesquisa. Foi realizado no município de Itajaí, localizado na Foz do Rio Itajaí-açú, que possui cerca de 160.000 habitantes e população predominantemente urbana. A partir da listagem dos processos gerados por mandados judiciais para fornecimento de medicamentos contra o Estado de Santa Catarina, foram identificados aqueles referentes a usuários residentes na cidade de Itajaí (que representam cerca de 4% do total, segundo levantamento realizado por Pereira7 em 2005) com processo ativo no período de julho de 2006. Realizou-se a busca dos mesmos via telefone (realizaram-se até seis tentativas de contato em dias e horários alternados com cada usuário). Ao contatar os usuários, os pesquisadores explicavam sobre o estudo e convidavam-nos a participar do mesmo.

Para elucidar as trajetórias percorridas pelos usuários até o acesso aos medicamentos via mandados judiciais contra o Estado, assim como identificar os atores sociais e instituições que influenciam neste caminho, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os usuários que aceitaram participar do estudo. As entrevistas foram realizadas no local mais apropriado para o usuário (em sua casa ou de familiares, associação da qual faz parte ou ainda em seu trabalho), informado pelo mesmo por telefone.

As entrevistas foram realizadas com o próprio usuário ou com seus responsáveis, seguindo o protocolo ético de pesquisa com seres humanos e solicitando a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Estas entrevistas foram gravadas e seguiam o roteiro que contemplava as seguintes questões: há quanto tempo tem o problema de saúde, há quanto tempo utiliza o medicamento, se houve outras tentativas de tratamento anteriores para o mesmo problema de saúde, por onde começou a busca pelo medicamento prescrito e todas as etapas que percorreu, quais pessoas ou instituições lhe informaram sobre como conseguir o medicamento ou lhe ajudaram de alguma forma na trajetória, se já fez solicitações de medicamentos ou outros recursos nas secretarias municipal ou estadual anteriormente. Além das entrevistas, outras informações que o pesquisador achou pertinente (como idade, profissão, grau de escolaridade, estado civil, condição financeira) foram anotadas e incorporadas ao material das entrevistas.

A abordagem qualitativa de pesquisa, adotada para este estudo, se baseia na premissa de que os comportamentos humanos só podem ser compreendidos em seu contexto social e por isso é o ponto de vista dos sujeitos sociais que deve ser o objeto de estudo, procurando o significado das práticas cotidianas e sua fundamentação na cultura local e macrossocial8. Portanto, a metodologia aplicada neste projeto de pesquisa pretendia observar e reconhecer os valores, crenças e contingências que motivam a busca da via judicial contra o Estado para a obtenção de medicamentos e as regras sociais e institucionais que organizam esta prática.

As entrevistas, bem como as anotações durante a coleta de dados, foram transcritas e analisadas para a identificação de termos e categorias utilizando como referência os métodos de análise e interpretação de dados propostos por Minayo9 e Victora et al.8.

O projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da UNIVALI.

Resultados

A partir da listagem dos processos gerados por mandados judiciais para o fornecimento de medicamentos contra o Estado de Santa Catarina com processo ativo no período de julho de 2006, foram identificados 44 usuários residentes no município de Itajaí. Destes, onze números de telefone informados não atendiam ou eram de outras pessoas; doze não aceitaram participar da pesquisa alegando problemas de saúde, orientação do advogado ou falta de tempo; três faleceram e dezoito usuários foram localizados e aceitaram participar, moradores de diversos bairros e pertencentes às classes sociais baixa ou média.

As trajetórias em busca dos medicamentos prescritos iniciaram, em 75% dos casos, em longas histórias de sofrimento decorrente da doença, de diferentes tratamentos e das andanças entre serviços, políticos, instituições públicas e privadas, promessas e frustrações. Em 50% dos casos, a prescrição dos medicamentos ocorreu em serviços públicos de saúde. A somatória de medicamentos solicitados por estes dezoito usuários foi de 37, sendo 31 diferentes tipos de medicamentos. Vinte e quatro prescrições utilizavam apenas a nomenclatura comercial dos medicamentos. Os diagnósticos mais comuns (referidos pelos informantes) foram artrite/artrose, doenças cardiocirculatórias e neoplasias. Estas características não diferem substancialmente dos dados relatados por outros estudos4,5. Os medicamentos mais prescritos foram leflunomide, bezafibrato, fumarato de formoterol + budesonida, lisinopril e sulfato de glicosamina + condroitina. O tempo entre a busca do recurso e recebimento do medicamento variou de 48 horas a 6 meses.

A trajetória dos usuários está resumida na Figura 1.


Nenhum entrevistado sabia que poderia cobrar o medicamento do Estado antes de ser encaminhado para esta via de acesso pelo médico (39%), Secretaria de Saúde do município (22%), advogado (11%), amigos, políticos ou associações (28%).

Os usuários com o diagnóstico da doença procuram por um médico especialista por indicação de amigos/conhecidos ou por vontade própria. O médico prescreve o medicamento e a busca por este medicamento pode seguir dois caminhos:

a) ao prescrever o medicamento, o médico não informou sobre o acesso via mandados judiciais. Os usuários recebem esta informação através de políticos ou associação (da qual o usuário faz parte) ou até mesmo da Secretaria de Saúde do município e, a partir daí, os usuários procuram um advogado próprio ou promotoria ou AOB (sempre orientados para isto por um dos informantes anteriores e não por iniciativa própria), que entram com uma ação judicial contra o Estado de Santa Catarina e o usuário passa a receber o benefício;

b) ao prescrever o medicamento, o médico informou sobre o acesso via mandados judi-ciais. A partir de então, ou o usuário buscou pelo benefício com advogado particular ou promotoria ou AOB (orientado pelo médico para isto), que entraram com a ação judicial contra o Estado de Santa Catarina e então o benefício foi concedido ao usuário; ou ainda, o próprio médico, ao informar sobre o acesso via mandados judiciais, encaminhou o caso do paciente para advogados sem que o usuário precise ir em busca do processo, e então o advogado entrou com a ação judicial contra o Estado de Santa Catarina e o usuário passou a receber o benefício.

É importante destacar o papel dos médicos prescritores (da rede pública ou privada) e de outros profissionais da rede municipal de saúde na informação sobre a via judicial para acesso a medicamentos. De forma geral, isto reflete o comprometimento dos profissionais para com a garantia do acesso à atenção integral e com o desenvolvimento da conscientização popular sobre o direito universal à saúde - comprometimento desejável e necessário. Por outro lado, é preciso questionar a prática de encaminhamento direto do médico prescritor para o sistema jurídico, através do que os usuários identificaram como "advogados próprios dos médicos", sem que o usuário necessitasse ele mesmo procurar a promotoria ou um advogado. Apesar de este estudo não ter coletado dados especificamente sobre esta questão, a preocupação de Marques e Dallari6 sobre as possíveis estratégias da indústria farmacêutica para garantir mercado consumidor, mesmo entre usuários que não têm condições financeiras para tanto, vem à tona. Esta questão merece uma reflexão e investigações mais detalhadas.

Mesmo quando o usuário foi encaminhado para a promotoria ou OAB, em algumas situações, ele não chegou a compreender este processo como uma defesa de seu direito de cidadão - foi uma forma de poder ganhar aquele medicamento, pontualmente: Não, eu fui no bem-estar pra arrumar o remédio. Aí o bem-estar me forneceu um advogado, porque eles disseram: "Nós não temos remédio pra dar". Você vai lá no Imaruí, como é, na secretaria, assistente social, na secretaria lá, mas só que você tem que ir na "Belia" (OAB) falar com um advogado, aí tem que entrar com um negócio de, eles sabem o que é. Aí fui ali, eles me ensinaram, fui lá num prédio redondo. Aí fui lá expliquei. Aí ela disse: "Não, nós entramos com processo, lá". (Informante I)

Apesar de o tema "judicialização do acesso à saúde" ser recorrente nas falas, nas preocupações e debates de gestores de todos os níveis, a prática do encaminhamento para o poder judiciário está disseminada nos serviços públicos, tanto na saúde quanto na assistência social. Ou seja: na ausência de formas mais adequadas de gerenciar esta questão, o próprio poder executivo está gerando sua demanda para via judicial.

A análise temática revelou que uma grande categoria, denominada aqui de "Não consciência do direito social", foi o eixo estruturante de todas as trajetórias e forma pela qual os usuários percebem a construção do processo judicial como meio de acesso aos medicamentos. Duas subcategorias foram identificadas na composição da categoria principal:

. A necessidade de justificar a solicitação do benefício na justiça: desde o momento do contato por telefone até o transcorrer das entrevistas, os pesquisadores tiveram o cuidado de não transmitir qualquer impressão aos informantes de que fariam julgamentos a respeito de suas atitudes ou de que as entrevistas teriam finalidade regulatória. As questões do roteiro de entrevista tampouco questionavam diretamente "por que" o usuário solicitou o medicamento na justiça. Mesmo assim, logo da chegada dos pesquisadores no encontro ou que iniciada a entrevista, os informantes se adiantavam em relatar suas dificuldades financeiras, o desemprego e os problemas familiares que os levaram a buscar recursos públicos: Porque eu não posso também tá pagando R$ 150,00 uma, pra mim que sou pensionista, não. Não tenho marido, né? Os meus filhos não me ajudam, eu tenho um agora que separou, veio pra casa e aí tá comendo na minha, nas minhas costas, porque aí então eu não tenho condições, eu tenho inclusive meu IPTU está atrasado três meses, até eu tenho que ir lá pra fazer uma negociação, porque eu tinha renegociado pra pagar por mês, mas como esse final de ano deu um monte de problema, eu atrasei outubro, novembro e dezembro, agora eu tô trombicada, por causa disso. (Informante E)

Eu fui obrigada a abrir o processo, né. Porque os meus remédios são muito caro e meu marido é aposentado com um salário mínimo, então a gente tem que apelar para algum lado, né. (Informante D)

A necessidade de informar que não tinham condições financeiras para comprar os medicamentos remete ao conceito que os direitos sociais são para pobres, como revela a preocupação da Informante M: Aí a assistente social veio aqui, e eu não estava, aí a conclusão dela: ela enxergou a casa, achou porque a gente tinha casa, tinha outros que tinha condições piores do que ele pra receber medicamentos. (Informante M)

Tal conceito é reforçado por alguns procedimentos rotineiros, como a avaliação socioeconômica para recebimento de benefícios da Assistência Social e declarações de profissionais: Porque até a advogada mesmo disse: "Isso é um direito da senhora, isso é próprio para quem não tem condições, né?" (Informante E)

Os relatos extensos sobre as dificuldades financeiras para manter o tratamento foram ouvidos de quase todos os entrevistados, sem que esta questão fosse levantada pelos pesquisadores e sempre num tom de justificativa. Além deste tema, os discursos iniciais também traziam relatos sobre a gravidade da doença, seu sofrimento físico ou psíquico decorrente e incapacidades resultantes, resultando que não tinham outra esperança que não o tratamento em questão: E como eu tava muito ruim, não andava, a minha artrite já tava assim, já bem alterada, né, eu fiquei quase dois anos de cama, sem andar, sem me mexer, como eu tava muito ruim, então ele tentou tratar com outras coisas, né? (Informante S)

Ah, desde uns quarenta anos, por aí assim, porque o meu marido me incomodava muito, meus nervo foram enfraquecendo, enfraquecendo, então eu não tenho mais nervos, o médico disse, qualquer coisinha eu caio até no meio da rua, se eu me incomodar. (Informante F)

Meu Deus do céu, já tô bem dizer todo "estorado", tava deitado até "inda" pouco ali no chão do "soalho". (Informante L)

Até a corrupção foi relatada por um informante como justificativa para a cobrança do medicamento do poder público: Vou te dizer uma coisa, acho que não tem nada a ver com o teu trabalho mas, porque no Brasil, eu acho assim, que dinheiro tem, me desculpe mas dizer que não tem, tem! Só que é mal administrado, se fosse bem administrado teria educação, saúde, é o melhor país do mundo pra se morar e nós temos de tudo de fartura, e tem, mas a roubalheira é grande, né? Então, é brabo minha filha. (Informante N).

Alguns usuários tiveram muito receio de falar sobre o assunto e poder perder o benefício. Dois deles só aceitaram participar por telefone; um foi primeiro consultar o advogado e outros se recusaram mesmo a informar sobre o processo.

. A relação de dependência e submissão ao poder público, aos médicos e aos políticos: as trajetórias revelaram as tentativas de busca pelo medicamento entre instituições, políticos e serviços de saúde e assistência social. Os relatos das trajetórias contemplaram longas andanças, sofrimentos, peregrinações e sensação de impotência: Desses aí, ó eu fui. Eu fui no INPS, do INPS me mandaram pra Secretaria da Saúde, lá na, aí como que é? Eu sei que eu fui na regional, eu fui lá onde que a delegacia da mulher hoje, né? Ali na, no Dom Bosco por ali, eu fui lá no Imaruí. Não consegui nada, aí falava com a secretária, falava com um, falava com o outro funcionário da secretaria, falava com, ih meu Deus, se for contar a história toda não saio daqui hoje. E durou, durou, cinco anos me enrolaram. (Informante F)

Então assim, muitas vezes não tenho dinheiro pra ir de ônibus, daí, ai, ai, eu ia, saia daqui a pé, passava o dia todo, porque é um bom pedaço até lá no Imaruí, né? Ficava a manhã às vezes todinha, aí deixava os dois [filha e o marido doentes] com minha sogra ou com minha mãe e ficava lá até resolver. Eu saía de lá decepcionada. (Informante H).

Não são histórias pontuais, simples - foram sempre carregadas de dificuldades, de luta e esperança de melhora da sua condição de saúde. Demonstraram muito envolvimento com os proble-mas de saúde e grande comprometimento da vida pessoal e familiar em decorrência destes problemas.

As relações com o poder público, os médicos e os políticos revelaram a predominância da percepção pelo usuário de que um "favor" de uma pessoa foi motivadora para concessão do medicamento solicitado. O encaminhamento do processo diretamente por médicos prescritores (que contataram advogados e se responsabilizaram por todo o processo, sem participação ativa do usuário), a bondade de advogados que instalaram os processos sem custos para os usuários (e sem que eles saibam quem arca com este custo), a indicação específica de um funcionário de um serviço promoveram esta percepção para o usuário, como indicam as falas a seguir: Eu posso dizer que foi o doutor [médico pediatra] que conseguiu tudo pra mim, né? Assim, que eu marquei uma consulta lá com ele, fui, aí ele me explicou e aí no mesmo instante ele já mandou eu falar com o doutor. Tava ali, esqueci o nome dele. Aí eu conversei com ele e não levou um mês, não levou um mês e ele já conseguiu o remédio. Aí o doutor [médico] caiu do céu, ele pode ser ruim pra alguns, mas eu não tenho nada que reclamar. (Informante D).

Até depois ainda eu dei um presente pra ela [advogada] porque eu achei assim, que ela foi muito legal comigo, assim, né? Aí depois de eu começar a ganhar o remédio, aí eu fui lá comprei um presente e levei pra ela. (Informante N)

A interferência de um vereador da cidade, como no relato abaixo, também expõe esta percepção de que "alguém" precisa intervir para que se consiga acessar algum benefício do poder público: Quem falou mesmo foi o [vereador] que vinha aqui e disse: "A senhora usa isso tudo de remédio? A senhora compra? A senhora ganha pouco, como é que a senhora sustenta a casa e ainda gasta isso tudo? Não, pode deixar que eu vou arrumar um primo meu que é advogado, ele vai entrar na justiça pra senhora ganhar, vou dar uma ajuda pra senhora". (Informante S)

Dependência e insegurança: que direito à saúde é este?

Os informantes deste estudo estavam, no momento das entrevistas, recebendo medicamentos do estado, muitos deles de elevado valor financeiro, através de um mandado judicial que lhes resguardava o direito social de acesso à saúde. Tinham, portanto, experiência materializada de que tinham direito assegurado por lei. No entanto, a conscientização de que este era seu direito de cidadão, sem condicionantes ou possibilidade de ser questionado, não estava plenamente absorvida entre eles.

Tais relatos de justificativas, tanto de ordem financeira quanto da gravidade do problema de saúde, e demonstrações explícitas de temor quanto à manutenção do seu benefício caso fosse identificado como autor de processo denotaram a insegurança dos beneficiados quanto à lisura da ação empreendida: os sujeitos não queriam falar sobre isto ou, ao menos, procuraram enfatizar que realmente havia a necessidade de buscar esta forma de acesso, de que não se tratava de "malandragem" ou má-fé.

Como configuração preestabelecida nas instituições brasileiras e na sua cultura popular como forma de obtenção do que, na verdade, "pode" (que pode "não poder" em diversas situações), o "jeitinho" inclui a utilização das relações pessoais - amizade, troca de favores, referência à "alguém" que tem a influência necessária10,11. As vias legais não pareceram eficientes aos olhos dos usuários. Assim, para os informantes "foi o doutor [médico pediatra] que conseguiu tudo pra mim", "ela foi muito legal comigo", "foi o vereador que deu uma ajuda". A "consciência de posição social" dos informantes12 foi revelada neste sentido, pois foi o outro, pertencente a outra classe social, que pode fazer a ponte entre o sujeito comum e os benefícios do poder público.

Desta forma, segundo Damatta11, é que o povo brasileiro entende a forma adequada de proceder socialmente, "uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e - também - um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais". No caso estudado, no entanto, é um direito assegurado por lei e assim outorgado pela justiça que se quer alcançar, e não um "burlar" algo.

Então, por que a insegurança quanto à continuidade de recebimento do benefício? Por que supor que o processo judicial pode ser interpretado como ato de má-fé? Por que precisar invocar as relações pessoais e alguém influente para acessar um direito social?

Os relatos aqui descritos indicam que o recebimento atual do benefício - o medicamento - acessado através de um mandado judicial que afirma o direito social do cidadão e se justifica nestes termos, não é o resultado de uma conscien-tização deste direito pelos usuários, como supõem muitos profissionais de saúde e gestores2. Ao contrário: não está promovendo a conscientização deste direito pelos usuários, pois a forma de condução dos processos e as relações que se constroem nas trajetórias não são empoderantes, reforçam as relações de dependência e a percepção de impotência do usuário frente ao poder público, econômico e social. As formas de relações baseadas no clientelismo, segundo Baquero12, são assimiladas pela cultura e naturalizadas, "gerando no campo da política, uma cultura passiva, silenciosa e pouco participativa", permitindo que o assistencialismo vigore como mecanismo de controle dos cidadãos e manutenção política (ou da hierarquização social). Para o mesmo autor, esta situação se sustenta em virtude das deficiências do Estado em responder às demandas da população.

A fragilidade do reconhecimento das pessoas como cidadãos já foi revelada em outros estudos, como nas concepções de usuários de serviços de saúde sobre participação social13. Mais do que um desconhecimento dos seus direitos, segundo Gastal et al.14, a população apresenta uma sensação de resignação, de submissão. Estas conclusões são corroboradas ainda pelas observações de Santos citado por Marques3 de que os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico.

Historicamente, os medicamentos são utilizados como moeda política, como demonstra Grimberg15 no caso argentino, sendo um dos temas tomados pelos movimentos sociais daquele país para a crítica ao modelo de gestão do sistema público. Na experiência da autora, a saúde, como direito a ser exercido e demandado, é um dos mais importantes instrumentos de mobilização e coesão social. A partir de la salud, se denuncian y articulan temas políticos, sociales y de género, se mobilizan personas y se ejecutan distintas actividades, se disputan recursos y se convoca a variados sectores sociales. O fenômeno brasileiro de garantia do direito à saúde pela judicialização, no entanto, não apresenta indicativos concretos de que esteja contribuindo para a desejada mobilização da sociedade enquanto coletividade.

O "empowerment comunitário" defendido por Carvalho16 não pode ser observado nos casos aqui relatados. Talvez o desenvolvimento do enfrentamento da aids no Brasil possa ser indicado como uma experiência em que o acesso a serviços e medicamentos está historicamente relacionado à mobilização da sociedade para a coletividade, sendo a mobilização social motivadora do acesso e vice-versa17.

Cabe ressaltar que, como alerta Carvalho16, embora o desenvolvimento crítico dos indivíduos não seja suficiente para a transformação da sociedade, ele é absolutamente necessário para que ela ocorra, uma vez que o envolvimento em processos de mudança demanda um mínimo de percepção do poder individual que sustente um processo produtivo de convivência nos espaços coletivos. Diante dos resultados, aqui destacados, da falta de conscientização dos usuários a respeito da garantia de seu direito que está sendo declarada através dos processos judiciais, conclui-se que os avanços na garantia dos direitos sociais conquistados não são, necessariamente, decorrentes da mobilização social coletiva - uma vez que é configurada como ações individuais - tampouco individual - por não estar representando um movimento consciente dos autores (na realidade, receptores) dos processos judiciais.

Fica evidente a necessidade de que os serviços de saúde e demais atores sociais envolvidos no processo de acesso aos medicamentos tenham como objetivo final contribuir para a formação de cidadãos. Como sugere Carvalho16, os serviços de saúde no Brasil precisam ir além de prevenir, curar e reabilitar: devem contribuir para o aumento da capacidade reflexiva e de intervenção de diferentes sujeitos sobre o social, conscientes de seu direito e do "direito de ter direitos". Apenas desta maneira entende-se que será possível compatibilizar a garantia dos direitos sociais com os princípios do uso racional de medicamentos, contando com os usuários e as organizações da sociedade civil como construtores da equidade, integralidade e universalidade e independentes de pressões comerciais ou corporativas sobre o uso abusivo de tecnologias na área da saúde e assim evitando que as estruturas do Estado tornem-se simples fontes de atendimento a interesses privados.

Colaboradores

SN Leite analisou os achados de campo e redigiu o texto e AC Mafra coletou e colaborou na análise dos resultados.

Agradecimentos

À Probic, UNIVALI.

Artigo apresentado em 03/09//2007

Aprovado em 14/12/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2007
  • Aceito
    14 Dez 2007
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