Open-access A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição

A Segurança Alimentar e Nutricional pode ser entendida como a “realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base em práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis1. A insegurança alimentar e nutricional afeta de forma desigual os diferentes segmentos da sociedade e é determinada por fatores econômicos, políticos, ambientais, educacionais, entre outros 2. A complexidade desse fenômeno, elemento fundamental da questão alimentar no contexto contemporâneo, exige políticas públicas articuladas e convergentes entre os setores e instâncias de diálogo que superem as barreiras das políticas setoriais 2,3. Há mais de duas décadas, o Brasil tem empreendido esforços nesse sentido.

A experiência que melhor expressa esses esforços é a constituição do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) 4. Pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) 5, a estrutura de governança desse sistema previa como elementos centrais a Conferência Nacional de Segurança Alimentar, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) 1,5. O CONSEA, órgão de assessoramento à Presidência da República (http://www4.planalto.gov.br/consea/), tinha como competência institucional apresentar proposições e exercer o controle social na formulação, execução e monitoramento das políticas de segurança alimentar e nutricional. De caráter consultivo, sua composição previa 1/3 de representantes de diferentes órgãos do poder executivo e 2/3 da sociedade civil. Reunindo representantes de movimentos e organizações de diferentes setores sociais, ele foi um importante espaço em que os titulares de direito, muitas vezes invisibilizados, tinham voz e influenciavam as políticas públicas. Sua composição intersetorial e interdisciplinar foi uma de suas fortalezas.

Importante conquista da sociedade civil após a redemocratização do Brasil e exemplo para diversos países, o CONSEA foi um espaço de diálogo, de articulação, de aprendizado mútuo e de concertação entre governo e sociedade. Além de atuar junto ao Executivo na esfera federal, também estabeleceu diálogo com os poderes Legislativo e o Judiciário e, ainda, com as Unidades da Federação, por meio dos CONSEAs estaduais e municipais. O CONSEA atuou em agendas estratégicas como: inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal; defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas e comunidades quilombolas; fortalecimento das culturas alimentares em consonância com os biomas e ecossistemas brasileiros; fortalecimento da agricultura familiar e agroecológica; redução do uso de agrotóxicos; avanço da agenda regulatória, por exemplo, no âmbito da rotulagem de alimentos (transgênicos, ultraprocessados) e da tributação de alimentos e insumos; avanço do código sanitário de forma a torná-lo mais includente e adequado à produção em pequena escala e à comercialização em circuitos curtos, entre tantas outras 4.

Em um ciclo virtuoso de realização progressiva do Direito Humano à Alimentação Adequada, o CONSEA contribuiu para a concepção e/ou o aprimoramento de políticas públicas para a garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil. Exemplos emblemáticos disso são: a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; os Programas de Convivência com o Semiárido; a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica; o Plano Safra da Agricultura Familiar; o Programa de Aquisição de Alimentos; o Programa Nacional de Alimentação Escolar; o Guia Alimentar da População Brasileira (e o seu caráter orientador de políticas públicas). Esse processo permitiu que, em 2014, o Brasil não mais figurasse entre os países que compunham o Mapa da Fome elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

No âmbito da produção do conhecimento, a partir de um Grupo de Trabalho que reunia conselheiras/os que eram pesquisadoras/es, o CONSEA organizou, em 2012, o 1º Seminário Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional6. Os desdobramentos desse Seminário levaram à criação, em 2017, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (http://pesquisassan.net.br/). Nesse processo, o CONSEA oportunizou a elaboração de uma agenda de pesquisa na qual foram sistematizadas as proposições de temas apontados nas Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional. Também foram debatidos os desafios para a pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, dado seu caráter interdisciplinar, tanto na interlocução com programas de pós-graduação quanto com agências de fomento e com revistas científicas. Desde a sua origem, os referenciais da “ciência cidadã” e da “ecologia de saberes” nortearam as discussões e as bases para o lançamento da Rede de Pesquisa. Os encontros foram organizados de maneira a valorizar e dar visibilidade às pesquisas sobre as diversas dimensões da Segurança Alimentar e Nutricional, das ciências agrárias às sociais e humanas, saúde e gestão pública. Eles promoveram o encontro de saberes, pesquisa e extensão e estimularam o diálogo entre grupos de pesquisa consolidados e emergentes.

Por meio da Medida Provisória nº 870 (MP 870) 7, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de governo, o CONSEA foi extinto, o que fragiliza sobremaneira o funcionamento do SISAN e compromete processos de garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada em todas as esferas de governo. Isso é particularmente preocupante em um cenário de crise econômica aliada a uma política de austeridade fiscal, marcado pelo desmonte de políticas sociais e pelo estancamento ou piora de indicadores sensíveis à degradação das condições de vida: recrudescimento da mortalidade infantil, interrupção do processo de diminuição da desigualdade de renda e de raça, aumento do desemprego e da pobreza (com indícios de que o Brasil retornará ao Mapa da Fome), recrudescimento da violência no campo, entre outros. Além disso, a extinção do CONSEA representa uma afronta à democracia e um retrocesso social, uma vez que desmonta um espaço de participação, um dos pilares da democratização do Estado, conforme pactuado na Constituição Federal.

A reação à MP 870 foi imediata e tem se intensificado a cada dia: CONSEAs estaduais e municipais, personalidades, entidades, coalizões, redes e coletivos da sociedade civil de diferentes áreas e matizes político-ideológicos e entidades internacionais estão se manifestando veementemente contra esta medida 8,9,10,11,12,13,14,15. A MP entrou em vigor quando da sua publicação e será apreciada a partir de fevereiro de 2019 no Congresso Nacional. Caberá aos deputados e senadores recém-eleitos acolher e desdobrar, de forma sensível e comprometida com o interesse público e com a garantia de direitos, as análises e propostas que a sociedade civil encaminhará no sentido de reverter a extinção do CONSEA. Compreendendo que a alimentação é determinante decisivo das condições de saúde e que o Direito Humano à Alimentação Adequada e o direito à saúde são indissociáveis, cabe à comunidade da saúde coletiva se engajar não somente nos debates e análises sobre este contexto, mas também na incidência política para que esse erro histórico seja superado.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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