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Espelhos do tempo: historiografia do político e teoria democrática na obra de Pierre Rosanvallon

Mirrors of Time: Political Historiography and Democratic Theory in Pierre Rosanvallon’s work

Miroirs du Temps: Historiographie de la Théorie Politique et Démocratique dans l’œuvre de Pierre Rosanvallon

Espejos del Tiempo: Historiografía de lo político y de la Teoría Democrática en la obra de Pierre Rosanvallon

RESUMO

A abordagem da história conceitual do político proposta por Pierre Rosanvallon se caracteriza pela combinação entre, de um lado, a tese do ineditismo do tempo presente e, de outro, a afirmação do recurso à historiografia como método para decifração e conceitualização das mudanças nas democracias contemporâneas. Este artigo analisa, a partir do cotejamento entre as dimensões formal-metodológica e substantiva de sua obra, como o recurso à narrativa histórica se articula com a elaboração de uma teoria das mutações democráticas contemporâneas. A hipótese é que tal articulação se ancora em uma filosofia da modernidade política expressa na forma de “aporias perenes” e numa narrativa histórica baseada na noção dupla temporalidade.

história conceitual do político; teoria democrática contemporânea; Pierre Rosanvallon

ABSTRACT

The conceptual history of politics presented by Pierre Rosanvallon combines a thesis of the unprecedented present time and an affirmation of historiography as a method for deciphering and conceptualizing changes in contemporary democracies. This article analyzes, through a comparison between the formal-methodological and the substantive dimensions of his work, how the use of historical narrative is articulated with a theory of contemporary democratic changes. We hypothesize that such articulation is anchored in a philosophy of political modernity expressed in the form of “perennial aporias” and in a historical narrative based on the notion of double temporality.

Conceptual History of Politics; Contemporary Democratic Theory; Pierre Rosanvallon

RÉSUMÉ

L’approche de l’histoire conceptuelle du politique proposée par Pierre Rosanvallon se caractérise par la combinaison, d’une part, de la thèse de l’unicité du temps présent et, d’autre part, l’affirmation de l’usage de l’historiographie comme méthode de décrypter et conceptualiser les mutations des démocraties contemporaines. Cet article analyse, à partir de la comparaison entre les dimensions formelles-méthodologiques et substantielles de son travail, comment l’utilisation du récit historique s’articule avec l’élaboration d’une théorie des changements démocratiques contemporains. L’hypothèse est qu’une telle articulation s’ancre dans une philosophie de la modernité politique exprimée sous forme d’« apories pérennes » et dans un récit historique fondé sur la notion de double temporalité.

Histoire Conceptuelle de l’Homme Politique; Théorie Démocratique Contemporaine; Pierre Rosanvallon

RESUMEN

El enfoque de la historia conceptual de lo político propuesto por Pierre Rosanvallon se caracteriza por la combinación de, por un lado, la tesis del ineditismo del tiempo presente y, por otro, la afirmación del uso de la historiografía como método para descifrar y conceptualizar los cambios en las democracias contemporáneas. Este artículo analiza, basándose en la comparación entre las dimensiones formal-metodológica y sustantiva de su obra, cómo se articula el uso de la narrativa histórica con la elaboración de una teoría de las mutaciones democráticas contemporáneas. La hipótesis es que tal articulación está anclada en una filosofía de modernidad política expresada en la forma de “aporías perennes” y en una narrativa histórica basada en la noción de doble temporalidad.

Historia conceptual de lo político; teoría democrática contemporánea; Pierre Rosanvallon

INTRODUÇÃO

Nas últimas quatro décadas, Pierre Rosanvallon tem desenvolvido um programa de pesquisas caracterizado pela articulação entre historiografia e teoria política. Embora sua contribuição possa ser vista como parte de um movimento mais amplo de renovação da historiografia do pensamento político sob impacto da virada linguística, em alguns aspectos ela se afasta das abordagens mais ortodoxas do contextualismo linguístico e da história dos conceitos alemã, especialmente pela afirmação da indissociabilidade entre a pesquisa histórica e a teoria democrática1 1 . Sobre a virada linguística e seu impacto na renovação historiográfica da Escola de Cambridge e da História dos Conceitos, conferir: Koselleck (1999 , 2006 , 2010 ); Jasmin e Feres (2006) ; Skinner (1996 , 1999 , 2002 ); Richter, (2001) ; Rorty (1992 [1967] ); e Skornicki e Tournadre (2015) . Sobre a contribuição dessas duas escolas para a teoria política contemporânea, conferir Jasmin (2005) e Silva (2017) . . Em sua aula inaugural no Collège de France , o autor sintetizou seu projeto acadêmico como um trabalho compreensivo acerca das questões políticas fundamentais da contemporaneidade a partir do recurso à genealogia histórica: (...) a atenção aos problemas contemporâneos mais explosivos e mais urgentes não poderia estar dissociada de uma meticulosa reconstrução de sua gênese. Este deve ser o método desenvolvido para dar a profundidade indispensável às análises do político: partir de uma questão contemporânea para construir sua genealogia, antes de fazê-la voltar ao término dessa investigação rica em ensinamentos do passado. É desse diálogo permanente entre o passado e o presente que o processo instituinte das sociedades pode se tornar legível; é dele que pode surgir uma compreensão sintética do mundo ( Rosanvallon, 2010 [2002]ROSANVALLON, Pierre. (2010), [2002], “Por uma História Filosófica do Político”, in P. Rosanvallon, Por uma História do Político. São Paulo: Alameda, pp. 65-101.: 77).

Com efeito, a proposição acima se afasta de uma abordagem contextualista ao rejeitar a cisão entre a investigação do passado e a conceitualização do presente, entre a pesquisa historiográfica e a interrogação sobre as questões relativas ao mundo contemporâneo. Ainda que tenha sido formulada como um programa do que viria a ser sua “tetralogia sobre as mutações democráticas”, nota-se que semelhante perspectiva repercute um traço marcante do estilo de pensamento rosanvalloniano, presente desde seus primeiros trabalhos ( Rosanvallon, (1999 [1979]ROSANVALLON, Pierre. (1999), [1979], Le Capitalisme Utopique. Histoire de l’idée de Marché. Paris, Éditions du Seuil. , 1985ROSANVALLON, Pierre. (1985), Le Moment Guizot. Paris, Gallimard. , 1986ROSANVALLON, Pierre. (1986), “Pour Une Histoire Conceptuelle du Politique: Note de Travail”. Revue de synthese, v. IV, n. 1-2, pp. 93-105. ). Esse traço se define por uma leitura da história do pensamento político em diálogo com questões contemporâneas, notadamente o advento do totalitarismo e as raízes do desencanto democrático2 2 . Nos anos 1980, sob a liderança de François Furet, foi criado Instituto Raymond Aron, que reuniu filósofos, historiadores e politólogos. Ainda que alguns desses intelectuais se afirmassem no campo do liberalismo, essa não era uma posição política unânime. A unidade do grupo tinha a ver com o interesse pela história e filosofia do político e com a crítica das experiências totalitárias ( Moyn, 2006 ). Rosanvallon, antes de integrar o Instituto Raymond Aron, militou na esquerda socialista e atuou como assessor econômico na Conféderation Française Démocratique du Travail (CFDT), assessor político de Edmond Maire e redator-chefe do jornal CFDT-Aurjourd’hui (entre 1973-1977). No Partido Socialista integrou a chamada “segunda esquerda” ao lado de Michel Rocard, polemizando durante o Congresso de Nantes com as tendências centralistas e burocráticas do partido. Na década de 1970, Rosanvallon publicou L’âge de l’autogestion, ou la politique au poste de comandement ( 1976 ), Pour une nouvelle culture politique ( 1977 ), escrito em coautoria com Patrick Viveret. Nesses livros defende um modelo de democracia autogestionária, organizado por meio de comitês de fábrica e associações de bairro. Após essa experiência como intelectual orgânico da CFDT, Rosanvallon se aproximou de Claude Lefort, cujo trabalho constituía então um dos ícones da esquerda antitotalitária na França. Lefort viria a se tornar seu orientador na tese que daria origem ao livro Le Capitalisme Utopique: histoire de l’idee de marchée [O capitalismo utópico: história da ideia de mercado] ( 1979 ). A influência de Lefort parece ter sido a mais determinante na trajetória intelectual de Rosanvallon como historiador e teórico da política, tanto do ponto de vista metodológico (na ênfase na relação entre a sociedade e sua autorrepresentação), quanto do ponto de vista do interesse no tema das aporias da democracia moderna. Sobre a Escola Francesa do Político, conferir: Moyn (2006) e Lynch (2010) . . Nesse sentido, nota-se já em suas formulações metodológicas, datadas de meados dos anos 1980, uma perspectiva na qual “compreensão do passado e interrogação sobre o presente participam de um mesmo empreendimento intelectual” e no qual historiografia se apresenta como um valioso “recurso para a apreensão do presente” ( Rosanvallon, 1986ROSANVALLON, Pierre. (1986), “Pour Une Histoire Conceptuelle du Politique: Note de Travail”. Revue de synthese, v. IV, n. 1-2, pp. 93-105.: 102-103). Na trilogia composta pelos livros Le Sacre du Citoyen [A Sagração do Cidadão] ( 1992ROSANVALLON, Pierre. (1992), Le Sacre du Citoyen: Histoire du Suffrage Universel en France. Paris, Gallimard. ), Le Pepule Introvable [O Povo Inencontrável] ( 1998ROSANVALLON, Pierre. (1998), Le Peuple Introuvable: Histoire de la Représentation Démocratique en France. Paris, Gallimard. ) e La Démocratie Inachevée [A Democracia Inacabada] ( 2000ROSANVALLON, Pierre. (2000), La Démocratie Inachevée: Histoire de la Souveraineté du Peuple en France. Paris, Gallimard. ), é delineada uma historiografia de longa duração das aporias democráticas a partir da experiência francesa. A história do sufrágio universal, da representação política e da soberania popular no período, que vai da Revolução de 1789 ao fim do século XX, se centra nos equívocos conceituais e nos impasses práticos que acompanharam a tentativa de construção da democracia naquele país. O “laboratório francês” revela as tensões e contradições que atravessam a modernidade política, como entre liberalismo e democracia, entre o número e a razão, entre a abstração do povo-uno e a realidade incontornável da divisão social3 3 . Para uma introdução à teoria democrática de Rosanvallon, conferir: Al Matary e Guénard (2015) ; Guénard, (2015) , Annunziata (2015); Flügel-Martisen et al (2019) ; e Verdo (2002) . Sobre o conceito de representação política, conferir: Diehl (2019) e Faria (2008) . . Tensões e aporias que continuam a produzir perplexidade, mal-estar e desencanto cívicos. Na trilogia, o diálogo entre história e teoria política se estabelece precisamente a partir dessa autoconsciência dos impasses do ideal democrático e sua realização prática, que aproxima as experiências do presente e as do passado. Porém, na tetralogia sobre as mutações democráticas – La Contre-democratie [A contrademocracia] ( 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ), La Legitimité Démocratique [A legitimidade democrática] ( 2008aROSANVALLON, Pierre. (2008a), La Légitimité Démocratique: Impartialité, Réflexivité, Proximité. Paris, Éditions du Seuil. ), La Societé des Égaux [A Sociedade de Iguais] ( 2011ROSANVALLON, Pierre. (2011), La Société des Égaux. Paris, Éditions du Seuil. ) e Le Bon Gouvernement [O Bom Governo] ( 2015ROSANVALLON, Pierre. (2015), Le Bon Gouvernement. Paris, Éditions du Seuil. ) – encontramos uma leitura da democracia contemporânea baseada nas noções de descontinuidade histórica e ineditismo. Estaríamos, nas palavras do autor, experimentando uma “nova era do político”, “uma grande transformação” ou, ainda, “um vasto movimento de mudança das democracias” que desafiaria a validade e o poder explicativo dos conceitos tradicionais da teoria política. Numa situação em que “nada parece ter acontecido”, o objetivo da teoria democrática consistiria em “extrair os conceitos que podem tornar inteligível esse mundo emergente (...)”, “discernir as novas formas democráticas” e “forjar os tipos-ideais que possibilitem pensar” as metamorfoses do regime democrático ( Rosanvallon, 2008bROSANVALLON, Pierre. (2008b), “Les Métamorphoses de la Légitimité (la Démocratie au XXIᵉ Siècle, III)”, in Annuaire du Collège de France 2007-2008. Résumé des cours et travaux 108e année Cours de Histoire moderne et contemporaine du politique, pp. 459-468. Disponível em: <https://www.college-de-france.fr/site/pierre-rosanvallon/p1346267504941_content.htm>. Acesso em: 31 mai. 2021.
https://www.college-de-france.fr/site/pi...
, p. 471).

Tais formulações, reiteradas nos quatro volumes que formam a tetralogia das mutações democráticas, sugerem um projeto baseado na tese de que vivemos hoje uma era sem precedentes. Ineditismo que, a princípio, contrasta com a afirmação da história como laboratório para orientar a conceitualização da democracia e de seu mal-estar. Diante desse problema podemos levantar algumas questões de ordem metodológica e metateórica. Afinal, qual seria o estatuto desse ineditismo contemporâneo em relação à história longa da democracia? Que tipo de método historiográfico poderia ser útil para tornar inteligível uma experiência caracterizada precisamente pela descontinuidade em relação às formas políticas e sociais passadas? Como o estudo do passado poderia contribuir para o esforço de conceitualização das novas formas democráticas emergentes? Como o autor articula os campos disciplinares da história e da teoria política?

Tendo como ponto de partida essas questões, este artigo explora, a partir do cotejamento entre as dimensões formal e a substantiva da obra de Pierre Rosanvallon, a relação entre historiografia e teoria democrática. A hipótese que guia o estudo é que a narrativa histórica empreendida pelo autor é construída a partir de uma dupla temporalidade. De um lado, uma temporalidade da diferença , que opera no nível institucional e sociológico e que se caracteriza pela tese de que há uma descontinuidade entre as formas de estratificação social e das instituições políticas modernas e contemporâneas. Nesse sentido, conceitos como contrademocracia, impolítico, populismo ou era da singularidade são forjados para dar conta das mutações e das especificidades que caracterizam as formas democráticas na contemporaneidade. De outro lado, há uma temporalidade da identidade , isto é, a concepção de um tempo perene que aproxima as experiências da modernidade e da contemporaneidade e que se define em termos das continuidades das aporias constitutivas da democracia. Nesse plano, o ineditismo contemporâneo é apreendido no quadro de uma história longa da democracia, cuja forma guarda semelhanças com constelações históricas do passado. É essa temporalidade da identidade que permite o estabelecimento de quadros comparativos entre diferentes momentos ou sequências históricas, uma relação especular entre presente e passado que, no limite, subsidia o diálogo entre historiografia e teoria política.

O artigo é divido em três partes. Na primeira, aborda a tese do ineditismo do tempo presente, tal como se apresenta na tetralogia das mutações democráticas, estabelecendo um recorte temático delimitado aos temas das formas da soberania popular e da representação política. Na segunda parte, retoma alguns aspectos formais e metodológicos do programa da história conceitual do político, de modo explicitar a teoria da modernidade política e a noção de aporias constitutivas da democracia. Na terceira parte, analisa como alguns dos impasses dos regimes democráticos atuais são conceitualizados por Rosanvallon a partir do recurso a uma narrativa historiográfica de longa duração.

UMA TEORIA DAS MUTAÇÕES DEMOCRÁTICAS

Como indica o próprio título da tetralogia, a teoria das mutações democráticas se assenta em uma narrativa da descontinuidade temporal. Trata-se de um ambicioso projeto voltado a investigar as transformações da democracia no início do século XXI em sua pluridimensionalidade: forma de atividade cívica, regime político, forma social e forma de governo. Cada uma dessas quatro dimensões revela, segundo o autor, aspectos de descontinuidade em relação às formas pregressas da democracia. Na dimensão da atividade cívica, generalização da desconfiança e a dessacralização da democracia eleitoral-representativa ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ); enquanto regime político, emergência de novas formas de legitimidade como a imparcialidade e a reflexividade ( Rosanvallon, 2008aROSANVALLON, Pierre. (2008a), La Légitimité Démocratique: Impartialité, Réflexivité, Proximité. Paris, Éditions du Seuil. ); enquanto forma social, impasses derivados de uma nova configuração dos vínculos de solidariedade no mundo pós-industrial e do advento de uma “era da singularidade” ( Rosanvallon, 2011ROSANVALLON, Pierre. (2011), La Société des Égaux. Paris, Éditions du Seuil. ); e enquanto forma de governo, uma tendência de fortalecimento do Poder Executivo, frente aos Parlamentos, num movimento de “presidencialização das democracias” ( Rosanvallon, 2015ROSANVALLON, Pierre. (2015), Le Bon Gouvernement. Paris, Éditions du Seuil. ). Como se nota, o objeto dessas obras é conceitualizar as transformações contemporâneas do político, investigando potencialidades e riscos engendrados pelo atual redesenho das formas democráticas.

Este artigo se detém a dois eixos temáticos que compõem a teoria democrática de Rosanvallon, o primeiro relativo às formas da soberania popular e o segundo sobre as formas da representação política.

DESCONFIANÇA E CONTRADEMOCRACIA

No que toca ao primeiro aspecto, é importante destacar que as transformações contemporâneas no âmbito do exercício da soberania popular estão relacionadas ao que Rosanvallon denomina o advento de uma “era da desconfiança”. Para o autor, um dos traços salientes das sociedades contemporâneas consiste na generalização da desconfiança, manifesta em vários domínios da vida social: no campo científico, com o refluxo da ideia de progresso; na economia, com os limites estruturais impostos pela mundialização ao planejamento estatal de longo prazo; e no plano sociológico, com a intensificação da desconfiança nas relações interpessoais. Já no âmbito propriamente político, observa-se um crescente grau de desconfiança dos cidadãos em relação aos políticos profissionais e às instituições políticas democráticas ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ).

Rosanvallon constata que, após o relativo êxito da difusão da democracia eleitoral no Ocidente, vive-se nas últimas décadas a intensificação do desencanto e da contestação cívica frente aos poderes eletivos. Isso teria se dado, sobretudo, a partir das três ondas de redemocratização, desde anos 1970, ocorridas na Península Ibérica, na América Latina e no Leste Europeu. Para compreender esse paradoxo, em que a institucionalização da democracia eleitoral é acompanhada pelo desencanto, Rosanvallon propõe lançar luz sobre o tema da confiança-desconfiança cívica. Para o autor, a confiança constitui uma qualidade democrática, uma “instituição invisível” que “amplia a qualidade da legitimidade, unindo ao seu aspecto estritamente procedural uma dimensão moral (a integridade no sentido amplo) e uma dimensão substantiva (a promoção do bem comum)” ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.»: 11-12). Ela permite, assim, uma articulação entre tempo presente e futuro, na medida em que envolve uma expectativa em relação ao comportamento dos governantes após o momento instituinte das eleições. A medida em que os partidos políticos se “desideologizam” e o vínculo entre eleitor e eleito torna-se mais personalizado, a relação entre cidadãos e governantes torna-se mais instável4 4 . O argumento de Rosanvallon, nesse ponto, ocupa uma posição intermediária entre o desenvolvido por Bernard Manin (1997) , para quem a representação política se daria a partir de uma relação mais personalizada e volátil entre representante e representado, e o de Nadia Urbinati (2014 ; 2019 ), que sustenta que organização partidária seria imprescindível enquanto instância mediadora. Para Rosanvallon, o declínio da “democracia de partidos” implica um enfraquecimento dos vínculos entre representantes e representados com efeitos negativos sobre a vida democrática, especialmente pela perda da função narrativa que os partidos exerciam. .Ora, em um contexto marcado pela corrosão da confiança, os próprios os mecanismos de autorização eleitoral-majoritária mostram maior dificuldade em responder ao desafio da legitimidade democrática ou em tornar efetiva a apropriação social do poder. Diante desse diagnóstico sobre os efeitos políticos da desconfiança, Rosanvallon dirige o foco de suas atenções para o surgimento de um complexo e multifacetado sistema de “soberania popular negativa”, denominando “contrademocracia”. Diferentemente da desconfiança liberal, em que os poderes de controle se assentam numa concepção de liberdade negativa, de proteção do indivíduo e dos direitos fundamentais diante de um poder do demos ameaçador e potencialmente tirânico, a contrademocracia constitui uma das modalidades de apropriação social do poder, e como tal, complementar à democracia eleitoral-majoritária:

a contrademocracia não é o contrário da democracia, ela é antes a forma de democracia que reforça a democracia eleitoral ordinária com uma espécie de muro de contenção, a democracia de poderes indiretos disseminados por toda sociedade. (...) ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.»: 16).

Na teoria liberal os contrapoderes funcionam para bloquear a atividade democrática, protegendo o indivíduo da autoridade pública. Já na contrademocracia os poderes negativos visam fortalecer os mecanismos pelos quais os cidadãos podem exercer suas atividades cívicas, evitando sua usurpação por autoridades eleitas. Assim, a contrademocracia se combina com a democracia eleitoral potencializando e qualificando a participação política no sentido da promoção bem do público.

Com efeito, o conceito de contrademocracia visa dar conta de um fenômeno observável empiricamente no plano das práticas e instituições dos regimes contemporâneos5 5 . O autor cita diversos mecanismos extra-eleitorais que têm se desenvolvido para o controle e supervisão das atividades dos governantes, como leis de acesso à informação, que podem ser utilizadas para a contínua avaliação da gestão dos recursos públicos. . Entretanto, segundo Rosanvallon, tal fenômeno não teria sido devidamente assimilado pela teoria democrática convencional, que continuaria centrada na dimensão positiva da democracia eleitoral. Daí a necessidade de lançar luz sobre as práticas formais e informais que organizam a desconfiança cívica e que se expressam nas formas de controle e vigilância cívica da atividade governamental, na contestação ou no veto a políticas consideradas nocivas ao público ou, ainda, nos sistemas de controle de constitucionalidade das leis6 6 . A teoria da contrademocracia não está isenta de aspectos controversos, especialmente na apreciação otimista que o autor faz da ampliação do poder das autoridades independentes e das formas de política negativa nas democracias contemporâneas. Anderson (2009) e Schramm (2016) sugerem que a teoria de Rosanvallon reforça a desqualificação da representação eleitoral e partidária e termina por fortalecer os poderes mercantis hegemônicos na sociedade civil. Em outra chave analítica, porém também crítica, Nadia Urbinati (2010 ; 2014 ) identifica a idealização de uma “democracia apolítica”, em que as formas da “política negativa” ampliariam o escopo das decisões não-políticas em detrimento das decisões legislativas e o princípio da regra majoritária ( Urbinati, 2010 ; 2014 ). Tais críticas são pertinentes, já que apontam para os riscos de confiscação e despolitização contidos em algumas das formas de política negativa descritas por Rosanvallon. Por outro lado, deve-se levar em consideração que o próprio autor francês alerta para os riscos potenciais da desconfiança, cuja radicalização poderia no limite levar à degradação da vida democrática. Suas reflexões sobre o populismo e o “impolítico” são emblemáticas a esse respeito, pois apontam precisamente para os efeitos deletérios que a desqualificação tout court da política institucional e da democracia eleitoral pode trazer para a democracia. Sobre o conceito de impolítico, conferir: Rosanvallon (2008a) e Annunziata (2015). Para uma análise do populismo, conferir: Rosanvallon (2020) . . Essas novas modalidades de atividade cívica tomam forma na figura do povo-vigilante , com os poderes de controle, vigilância, denúncia, qualificação da ação de representantes – do povo-veto, que se organiza a partir da contestação, e do povo-juiz, por meio do controle constitucional de leis. Desse modo, as democracias contemporâneas caminhariam para a construção um “regime dual”, ou de um “dualismo democrático”, no qual o sistema de soberania popular positiva (autorização eleitoral e poder burocrático-administrativo) é acoplado a esse novo sistema de soberania popular negativa (a contrademocracia), com seus mecanismos de vigilância, veto e julgamento ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ). É importante notar que, para o tema que nos interessa neste trabalho, o conceito de contrademocracia descreve fenômenos típicos das sociedades contemporâneas, se inscrevendo em uma narrativa da descontinuidade temporal. Uma nova paisagem, que surge com a generalização da desconfiança cívica, exige uma pluralização da soberania popular: uma complexificação das formas democráticas no sentido de combinar formas de autorização eleitoral com as modalidades emergentes da contrademocracia.

Esse ponto será retomado mais adiante para examinar como esse diagnóstico do ineditismo contemporâneo se articula com a narrativa historiográfica propriamente dita. Mas antes disso, será analisada outra dimensão das mutações democráticas, relativa à representação política.

OS IMPASSES CONTEMPORÂNEOS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

O segundo aspecto das mutações democráticas tratado aqui refere-se ao tema da representação política e suas metamorfoses. De partida, percebe-se uma narrativa histórica similar àquela desenvolvida em La Contré-démocratie e que se baseada na tese de inovação e descontinuidade temporal.

Para Rosanvallon, a chamada “democracia de equilíbrio” se assentava no protagonismo dos partidos de massa, que atuavam a partir de uma complexa articulação com sindicatos e associações de classe. Não obstante as falhas e limites da forma partido, identificados pela sociologia política do início do século XX ( Ostrogorski, 1979 [1902]OSTROGOSRKI, Moisei. (1979), [1902], La Démocratie et les Partis Politiques. Paris, Éditions du Seuil. ; Michels, 1984 [1914]), as condições específicas da sociedade industrial do pós-guerra teriam, segundo Rosanvallon, possibilitado a imersão dos partidos políticos na vida social. Nessa configuração, os “corpos intermediários” da sociedade civil contribuíam para produzir formas mais ou menos estáveis de identificação coletiva, tornando os partidos organizações adaptadas para a expressão de identidades sociais concretas, notadamente aquelas forjadas no mundo do trabalho. Nas palavras do autor, os partidos políticos podiam então se constituir como “porta-vozes quase exclusivos do mundo social” ( Rosanvallon, 2015ROSANVALLON, Pierre. (2015), Le Bon Gouvernement. Paris, Éditions du Seuil.: 263).

Contudo, desde as duas últimas décadas do século XX, o modelo de representação política vigente nessa democracia de equilíbrio tem mostrado sinais de esgotamento. Evidência disso seria o fenômeno de “dessocilogização da política”, isto é, o rompimento dos “antigos laços entre partidos políticos e classes sociais”, típicos das sociedades industriais, e o advento de um novo cenário no qual “os cidadãos se sentem cada vez menos escutados e representados por aqueles a quem elegeram” ( Rosanvallon, 1998ROSANVALLON, Pierre. (1998), Le Peuple Introuvable: Histoire de la Représentation Démocratique en France. Paris, Gallimard.: 421-422). Estaríamos diante de um processo de perda da “função representativa” dos partidos e do sistema político em geral:

Os partidos políticos tinham uma capacidade representativa que podia qualificar-se de identitária, pelo fato mesmo de seu caráter massivo. Já não a tem. Isso porque a representação da sociedade tem mudado de natureza no novo mundo social. Para restituir a verdade deste em sua complexidade, aquela deve agora ter uma função “narrativa” que os partidos não são capazes de assumir. Ao mesmo tempo, estes têm se distanciado do mundo vivido e sua linguagem ressoa no vazio, saturada de categorias e expressões abstratas que já não evocam o que as pessoas vivem sensivelmente ( Rosanvallon, 2015ROSANVALLON, Pierre. (2015), Le Bon Gouvernement. Paris, Éditions du Seuil.: 29).

Preocupado em apreender conceitualmente essa nova paisagem, bem como suas consequências para o regime democrático, Rosanvallon elabora a tese de que hoje há um progressivo distanciamento entre as dinâmicas da representação eleitoral-partidária (representação-delegação) e a dinâmica da representação enquanto produção de identidade coletiva (representação-figuração). Nesse enquadramento conceitual, o desencanto, ou a malaise democrática, deriva não de uma falha de ordem institucional (que demandaria, por exemplo, uma reforma no sistema eleitoral ou partidário) e tampouco diz respeito a qualquer degradação moral das lideranças políticas. Ao contrário disso, remete a uma pane ou dificuldade de comunicação entre o domínio social e o domínio institucional que, em última instância, remete à dissolução do tipo de estratificação predominante nas sociedades industriais. Em outras palavras, os impasses atuais da representação política derivam da opacidade dos contornos de uma nova sociedade emergente. Nas palavras do autor, de uma “dificuldade de figuração”, de decifração das novas clivagens, identidades e dinâmicas de pertencimento coletivo que passaram a operar no mundo pós-industrial. Trata-se de pensar a crise da representação como uma dificuldade de projetar na cena pública as novas identidades e sujeitos sociais.

Como se nota, o diagnóstico de Rosanvallon sobre a separação entre representação-delegação e representação-figuração, assim como o da contrademocracia, se ancoram em uma narrativa de ruptura epocal; isto é, referem-se a especificidades e traços inéditos das sociedades contemporâneas e suas formas políticas. Seja em termos de generalização da desconfiança, seja quando aponta para a crescente dificuldade de figuração do povo nas sociedades pós-industriais, há a noção implícita de uma temporalidade da diferença , já que a experiência presente se descola e se afasta das experiências passadas da democracia.

Cabe agora retornar à interrogação que foi proposta no início deste artigo, a respeito de como a exigência da historiografia, enquanto matéria prima da teoria política, se articula com a tese do ineditismo democrático contemporâneo.

ASPECTOS METODOLÓGICOS DA HISTORIOGRAFIA DO POLÍTICO

Antes de examinar o uso da história no tratamento desses dos dois aspectos do ineditismo democrático, é necessário antes retomar alguns aspectos formais e metodológicos que definem o programa de pesquisas da “história conceitual do político”. A primeira exposição desse programa foi publicada originalmente na Revue de Synthèse, em 1986, sob o título “ Pour une histoire conceptuelle du politique: note de travail7 7 . Uma versão revisada e ampliada desse artigo seria publicada em 2001 e traduzida para o português e publicada em uma coletânea organizada por Christian Lynch ( Rosanvallon, 2010 [2002] ; Lynch, 2010 ). Não fica claro o motivo pelo qual Rosanvallon altera a expressão “história conceitual do político” para “história filosófica do político” na edição inglesa, já que não há nenhuma alteração substantiva na proposta metodológica. Cabe ainda notar que o autor volta a utilizar a expressão “história conceitual do político” em sua aula inaugural no College de France , em 2002 (também publicada em português na edição acima), o que indica que as duas expressões são intercambiáveis. . Nesse texto, Rosanvallon empreende uma contundente crítica aos equívocos metodológicos e à falta de rigor dos estudos no campo da história das ideias na academia francesa, assinala a contribuição da história das mentalidades e da sociologia política e demarca as especificidades da nova abordagem metodológica acerca do político8 8 . O diagnóstico do estado da arte no campo da história das ideias que se vinha sendo praticada naquele país é bastante pessimista. Rosanvallon cita cinco equívocos metodológicos comuns entre os praticantes de história das ideias: i) inclinação à dicionarização, com estudos monográficos por obra ou autor cuja análise se limita a descrição dos argumentos de uma obra; ii) reificação das doutrinas, isto é, tendência a tomar as doutrinas como coisas externas à consciência dos sujeitos históricos e, portanto, independente da ação política; iii) inclinação a um comparatismo assistemático de autores ou obras sem preocupação com um trabalho de contextualização histórica mais rigorosa; iv) reconstrutivismo, método comumente utilizado na história da filosofia, que visa estabelecer a coerência interna ao pensamento de um determinado autor; e v) inclinação ao tipologismo, isto é, a tendência a restringir a análise à classificação de obras e autores como expressão de ideologias típico-ideais. Embora o autor reconheça a importância da contribuição da história das mentalidades e da sociologia política francesa, considera que essas disciplinas estariam desprovidas de instrumentos mais sofisticados para a compreensão rigorosa de fenômenos políticos de nosso tempo, como, por exemplo, o totalitarismo. Faltaria a esses estudos uma inquirição mais rigorosa de ordem teórica ou filosófica sobre a especificidade da modernidade política. . Em sua formulação original, a “história conceitual do político” se apresenta como uma resposta aos equívocos da história das ideias tradicional, ao mesmo tempo em que procura superar os limites da história das mentalidades e da sociologia política. Nas palavras do autor, sua identidade se definiria por um método e uma questão 9 9 . Rosanvallon identifica um movimento de “retorno ao político” em um conjunto de trabalhos com variados recortes disciplinares publicados desde os anos 1970. Destaca as obras de Claude Nicolet, Pierre Manent, Louis Dumont, François Furet, B. Baczko, Claude Lefort, Pierre Clastres, Marcel Gauchet, G. Swain, Luc Ferry e A. Renaut, que a despeito de situarem em diferentes campos disciplinares, compartilhariam uma abordagem comum sobre “o político”. Sobre a Escola Francesa do Político, conferir: Lynch (2010) e Moyn (2006) . . Enquanto método, parte de uma definição do conceito do político como “lugar onde se articulam o social e sua representação, a matriz simbólica na qual a experiência coletiva se enraíza e se reflete simultaneamente” ( Rosanvallon, 1986ROSANVALLON, Pierre. (1986), “Pour Une Histoire Conceptuelle du Politique: Note de Travail”. Revue de synthese, v. IV, n. 1-2, pp. 93-105.: 9610 10 . A mesma definição é retomada em textos metodológicos, tais como: Rosanvallon (2002; 2010 [2002] ). ). Essa definição retoma uma distinção de Claude Lefort entre o político e a política: o político designa o domínio das representações que instituem o social e as noções (de base teológica ou secular) de pertencimento coletivo; ao ponto que a política diz respeito ao domínio do Estado e das instituições políticas formais (burocracia, sistemas partidários, sistemas eleitorais, etc.). O político, assim, em vez de designar uma “instância” ou um domínio especializado da vida social – como os domínios econômico, estético, jurídico – constitui o lugar de elaboração das representações da vida comum ( Rosanvallon, 1986ROSANVALLON, Pierre. (1986), “Pour Une Histoire Conceptuelle du Politique: Note de Travail”. Revue de synthese, v. IV, n. 1-2, pp. 93-105.: 96). A história conceitual do político consiste, nesse sentido, em uma história dos “sistemas de representação que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou um grupo social conduz sua ação e vislumbra seu futuro” e os toma como “um trabalho permanente de reflexão” da sociedade sobre ela mesma ( Rosanvallon, 1986ROSANVALLON, Pierre. (1986), “Pour Une Histoire Conceptuelle du Politique: Note de Travail”. Revue de synthese, v. IV, n. 1-2, pp. 93-105.: 99-100)11 11 . É importante traçar aqui algumas distinções entre a definição do político na linhagem do pensamento de Carl Schmitt e na Escola Francesa do Político. Em Carl Schmitt, o termo se refere ao modo de agregação-dissociação entre coletividades, configurado pela relação amigo-inimigo. Trata-se de uma definição formal, não substantiva, já que o político pode se constituir de associações econômicas, religiosas, étnicas, etc. O que caracteriza o político, para Schmitt, é a intensidade do conflito produzido por essas identidades, que no limite é capaz de conduzir à guerra. Na teoria política contemporânea, Chantal Mouffe, (1996) , seguindo a trilha de Schmitt, critica a “razão pública livre” de John Rawls ou a “situação ideal da palavra” de Habermas como expressões da negação do político. A autora propõe uma distinção analítica entre antagonismo e agonismo . Enquanto o primeiro postula uma relação amigo-inimigo que no limite conduz à eliminação do outro, a relação agônica poderia conviver nos marcos de uma democracia pluralista ( Mouffe, 1996 ). Nos trabalhos de autores como Lefort (2011 [1981] ; 1986 ), Marcel Gauchet (1985) ou Rosanvallon (2002), “o político” se refere ao momento de instituição do social e evoca a separação ontológica entre a sociedade e sua autorrepresentação. O estudo do político se vale de diferentes campos disciplinares, como a antropologia, a filosofia ou a história e investiga as representações pelas quais uma comunidade projeta seus vínculos de pertencimento. Daí, o interesse entre os autores franceses em elucidar as mutações simbólicas nas formas de produção da identidade coletiva, notadamente na passagem das sociedades primitivas/tradicionais para as sociedades modernas, bem como nas relações entre os regimes totalitários e democráticos. Tal como em Schmitt, a definição do político na Escola Francesa remete à questão a identidade coletiva e acolhe tanto representações teológicas quanto suas formas secularizadas. Porém, diferentemente do autor alemão e de suas ressonâncias na teoria política contemporânea, o conceito do político aqui não implica uma rejeição tout court do pluralismo. Muito ao contrário, Lefort e seus seguidores identificam a modernidade política precisamente como o advento de um modo de instituição do social que reconhece a incontornabilidade da divisão social. A divisão interna da comunidade política é, nessa perspectiva, o real das democracias modernas. .

A inteligibilidade ou a racionalidade de um determinado “sistema de representação” passado depende de que este seja tomado em sua “dimensão de presente”, isto é, que o historiador interprete os eventos do passado levando a sério seu caráter de indeterminação, situando as linguagens utilizadas pelos atores-autores em seu contexto particular de elaboração. A história do político, nesse aspecto, repercute o programa contextualista na medida em que recusa o anacronismo e as narrativas teleológicas que postulam um sentido unívoco da história rumo ao triunfo final da Ideia – enquadramento que deturparia o entendimento do passado tomando-o forma imperfeita da época presente12 12 . É nesse sentido, por exemplo, a crítica de Rosanvallon ao anacronismo da obra de Alphonse Aulard, Histoire Politique de la Revolution Francaise [História Política da Revolução Francesa] (1913), que faria uma leitura da Revolução de 1789 como prenúncio de uma democracia baseada no sufrágio universal, imputando aos atores do passado crenças e motivações que absolutamente não poderiam possuir ( Rosanvallon, 1986 ). .

Porém, enquanto o contextualismo linguístico postula uma hermenêutica centrada intencionalidade autoral e na interrogação acerca “do que o autor estava fazendo” quando escreveu uma determinada obra (Lasllet, 1998; Skinner, 2002 [1969]SKINNER, Quentin. (2002) [1969], “Meaning and Understanding in the History of Ideas”, in Visions of Politics. Cambridge, Cambridge University Press. ), a história do político, ao contrário, toma os textos do passado como respostas às aporias perenes da democracia. Nesse sentido, Rosanvallon postula a inscrição do historiador e de seu objeto em um círculo hermenêutico comum, descrito em termos da permanência de um conjunto de aporias próprias da modernidade política.

A definição do domínio do político a partir da categoria abrangente de “sistemas de representação” indica que seu escopo não se limita aos “textos políticos” clássicos ou ao nível dos conceitos articulados e expressos em tratados de filosofia política. As representações que uma sociedade produz sobre si própria podem ser encontrados em debates parlamentares, artigos de jornais ou panfletos de intervenção política e outros tipos de obras literárias produzidas por autores “menores” e, por vezes, anônimos. Além disso, uma investigação sobre o político deve também tomar como objeto fontes que ultrapassam a fronteira da comunicação textual propriamente dita, valendo-se de materiais como composições musicais, gravuras, charges, representações iconográficas e até mesmo a arquitetura de edifícios públicos. Todo esse universo documental é de interesse da história conceitual porque traduzem potencialmente as formas de autoinstituição da sociedade e de sua autorrepresentação ( Rosanvallon, 2010 [2002]ROSANVALLON, Pierre. (2010), [2002], “Por uma História Filosófica do Político”, in P. Rosanvallon, Por uma História do Político. São Paulo: Alameda, pp. 65-101. )13 13 . Ainda que tanto a história conceitual alemã quanto a história conceitual do político partam da identificação da natureza equívoca e polissêmica dos conceitos políticos e sociais, e estejam interessadas em lançar luz sobre essas variações semânticas na modernidade e sobre como elas organizam a experiência social e as possibilidades da ação política, a categoria de “sistemas de representação”, utilizada por Rosanvallon, procura combinar a análise semântica e filológica com análises mais próximas da história social e a história das instituições políticas. Cf.: Bernardi (2015) ; Koselleck (2006) ; e Rosanvallon (2015b) . .

Além dessa especificidade do método, relativa à definição do político como lugar de interação entre o social e sua autorrepresentação, o programa de pesquisas de Rosanvallon se orienta por uma questão que tem a ver com os impasses e contradições que acompanham o desenvolvimento das sociedades modernas e seu projeto emancipatório. Seguindo a trilha aberta por Lefort (2011 [1981]LEFORT, Claude. (2011), [1981], A invenção democrática. Belo Horizonte, Autêntica Editora. ; 1986LEFORT, Claude. (1986), Essais sur le politique. Paris, Éditions du Seuil. ), a história conceitual do político se vale de uma macro-interpretação da modernidade entendida a partir da dissolução da representação orgânica e hierárquica do vínculo social, de um lado, e o advento da figura do indivíduo e do princípio da igualdade, de outro. Em contraste com a sociedade de corpos do Antigo Regime, em que a pessoa do monarca encarnava a unidade do social, a modernidade política estabelece um novo tipo e uma nova forma de representação do vínculo social e do poder: um universo simbólico baseado na relação entre indivíduos iguais. O poder deixa de remeter a uma instância transcendente (como na teoria do direito divino dos reis), e perde seus referenciais de certeza para se apresentar como produto imanente da própria associação humana ( Lefort, 2011LEFORT, Claude. (2011), [1981], A invenção democrática. Belo Horizonte, Autêntica Editora. ). A nova representação do poder opera um deslocamento da titularidade da soberania do monarca para a figura indeterminada do povo. Entendida dessa maneira, a “invenção democrática”, em vez de designar uma forma de governo ou desenho institucional específico, remete a um longo e multissecular processo de mutação simbólica no qual as representações orgânicas e transcendentais do vínculo social cedem lugar a formas de auto-instituição do social que mobilizam representações seculares, igualitárias e individualistas.

A história conceitual do político toma como objeto privilegiado as aporias, contradições, impasses e irresoluções que acompanham a democracia moderna14 14 . Essa teoria lerfortiana da modernidade política ressoa nas interrogações de Rosanvallon. Porém, cabe notar que, muito embora o conceito do político e as próprias interrogações sobre a modernidade e a democracia indiquem uma continuidade entre o programa de pesquisas de Rosanvallon e Claude Lefort, a categoria de “indeterminação democrática” adquire sentidos distintos em ambos. Para Lefort, ela remete à secularização das representações do político na modernidade. A “incerteza democrática”, nessa acepção, se define pelo advento de uma forma social em que “a crença em uma solução dos problemas últimos da vida social, a crença em uma ordem justa ou estável, conforme a natureza ou a ordenada por potências sobrenaturais, em uma palavra, a crença no bom regime” foram, senão completamente abandonadas, severamente colocadas em questão (Lefort, 1993, p. 05-06). Lefort também utiliza essa categoria para designar uma qualidade democrática em que o poder é representado como um “lugar vazio”. Aqui, a indeterminação democrática diz respeito a um regime que acolhe a divisão e o conflito em seu interior, de modo que ninguém ou nenhum grupo concreto têm condições de reclamar a identificação perene com o poder (sua incorporação) e de que há um desintrincamento dos domínios do saber, do direito e do poder, que atuam com relativa autonomia. Trata-se aqui de uma definição normativa da indeterminação democrática, que se opõe às formas totalitárias e sua tendência de recorporificação do poder e reunificação entre os domínios do saber, do direito e do poder. Em Rosanvallon, a indeterminação democrática tem um sentido mais restrito, ligado as tensões internas e aos equívocos conceituais da democracia. Sobre essas diferenças, conferir: Rosanvallon (2015b) . . Por exemplo, a tensão entre diferentes concepções da emancipação, que ora se expressam como autonomia individual diante das restrições comunitárias, ora se apresentam como expressão da autodeterminação coletiva; confusões sobre o sentido do conceito de povo, que ora se apresenta como corpo cívico unitário, ora, em uma definição sociológica, como uma sociedade atravessada por divisões e conflitos; e ambiguidades em relação ao sentido da representação política, ora associada a expressão de uma ordem capacitaria (representação como escolha “dos melhores”, dos “notáveis”), ora expressão de uma identidade e uma proximidade (representação como espelho da sociedade) (Rosanvallon, 2002; 2015bROSANVALLON, Pierre. (2015b), “Bref Retour Sur Mon Travail”, in S. Al-Matary e F. Guénard (orgs). La Démocratie à’ l’œuvre: Autour de Pierre Rosanvallon. Paris, Éditions du Seuil, pp. 229-250. ).

Desse ponto de vista, a “invenção” de uma sociedade de indivíduos iguais e de um fundamento da autoridade política baseada na soberania do povo, longe de ter como corolário a elaboração de uma narrativa histórica linear, é o ponto de partida para a confecção de uma historiografia sensível à natureza equívoca dos conceitos políticos na modernidade; uma historiografia que postula a existência de problemas “irresolutos”, contradições filosóficas e práticas sobre as quais não há repostas definitivas. A tese da indeterminação democrática se vincula, assim, ao reconhecimento de aporias fundadoras que acompanham o desenvolvimento da democracia moderna e que são continuamente retrabalhadas em momentos, sequências ou constelações históricas concretas. Em vez de descrever modelos normativos mais ou menos fixos, a história do político visa “restituir problemas” ( Rosanvallon, 2010 [2002]ROSANVALLON, Pierre. (2010), [2002]. “Por Uma História Conceitual do Político”, in P. Rosanvallon. Por uma História do Político. São Paulo, Alameda, pp. 65-101. Aula inaugural proferida no Collège de France em 28 mar. 2002.: 78).

Com efeito, a história da democracia é uma história de processos de experimentação, pois seus princípios fundadores – soberania, povo, igualdade, participação e liberdade – não traduzem formas políticas auto-evidentes e de validade universal; diversamente, derivam de adaptações a circunstâncias histórico-sociais concretas, a rigor, contingentes e transitórias. A relação entre historiografia e teoria democrática, portanto, depende do estabelecimento de comparações entre essas diferentes sequências históricas em que se forjam as respostas, sempre incompletas, àquelas aporias perenes que acompanham o projeto de emancipação moderno.

DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E TEORIA POLÍTICA

Diante de todo o exposto já é possível avançar no desenvolvimento de nossas hipóteses iniciais e investigar os modos de articulação entre a historiografia do político e a conceitualização das mutações democráticas contemporâneas.

Como apresentado na seção I, a tetralogia sobre as mutações democráticas está informada por uma narrativa histórica construída a partir da noção de descontinuidade temporal. O advento de uma era da desconfiança generalizada descreve uma situação histórica particular, sem precedentes, com profundos impactos na dinâmica das democracias. Contudo, embora a teoria da contrademocracia se situe nessa narrativa do ineditismo e se dedique à conceitualização das novas modalidades de atividade cívica emergentes na sociedade da desconfiança, há também um movimento no sentido de revisitar a história das múltiplas formas de exercício da soberania negativa e esclarecer as modalidades de controle popular sobre a atuação dos governantes que acompanharam os experimentos democráticos ao longo do tempo. Formas que, ressalta o autor, longe de estarem limitadas ao universo do liberalismo e seu ideal de poder limitado, integram imaginação política e o repertório das lutas democráticas.

Com tal propósito, Rosanvallon parte do exame da longínqua experiência da democracia ateniense, que instituía rígidos mecanismos de controle sobre a atuação dos ocupantes de cargos públicos. Em Atenas, magistrados escolhidos por sorteio, como os euthynoï (auditores de contas), logistaï (controladores), e exétastaï (supervisores) ou ainda os synègoroï (advogados públicos) eram encarregados de controlar a atividade dos administradores da polis , os quais poderiam sofrer sanções em caso de desvio de suas funções ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ). Esses mecanismos institucionais indicam que a democracia, já em seu experimento originário, exprime não apenas formas positivas de ampliação da participação e deliberação na Assembleia ou de rotatividade por meio da designação aleatória de ocupantes de cargos públicos por meio do sorteio. Exprime também uma preocupação com o controle cívico das atividades públicas, de maneira a garantir que o exercício das funções se desse em benefício da cidade ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ).

A teorização de formas negativas de controle popular é central também no rico debate em torno das teorias do direito de resistência desde a Alta Idade Média, em que se destacam autores como Bártolo de Sassoferato, João de Salisbury, Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham. Nessa literatura evidencia-se a preocupação em estabelecer princípios de limitação do poder do monarca, e uma ideia de “prevenção” como forma de garantir o direito de intervenção popular em casos nos quais o príncipe se convertesse em tirano. Mais adiante, já no contexto da Reforma, Calvino, John Knox e os monarcômacos na França também elaboraram doutrinas jurídico-constitucionais com base no direito de resistência popular em caso de usurpação tirânica do poder. Na Alemanha, Johannes Althusius prevê, inclusive, uma estrutura institucional preventiva contra a tirania, em uma elaboração que ultrapassa a concepção extraordinária do direito de resistência tal como formulada pelos calvinistas ao rotinizar o controle da atividade do soberano seguindo o modelo do Éforo espartano ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ). Esses exemplos indicam a formulação de uma teoria protomoderna da soberania popular, cujo núcleo consiste em evitar o exercício tirânico do poder pela referência ao poder constituinte do povo.

Essas teorias do direito de resistência, porém, foram elaboradas num universo mental medieval, inscritas numa concepção orgânica da comunidade política. Foi apenas a partir da Era das Revoluções, no século XVIII, que os debates em torno dos mecanismos de prestação de contas e de controle externo da atividade dos governantes se desenrolam em uma nova representação do político, em que a afirmação do poder coletivo convive com o imperativo da representação e o imperativo da igualdade. Em outras palavras, na modernidade, o controle do poder não tem mais como objeto o príncipe hereditário ou o monarca absoluto, senão aqueles que exercem o poder “em nome do povo” e por ele são escolhidos. Desse modo, o princípio de soberania popular, baseada no sufrágio universal, coloca em novos termos a formulação de uma teoria do poder negativo.

No contexto moderno, tentativas de configurar uma arquitetura constitucional contrademocrática estão presentes, por exemplo, no mecanismo de supervisão dos poderes instituídos proposto por Rousseau e Richard Price, e que seria adotado no artigo 47 da Constituição da Pensilvânia, de 1776. Nele se estabelece um Conselho de Censores composto por membros eleitos, cuja função consiste em verificar os atos dos Poderes Legislativo e Executivo. Como nota Rosanvallon, esses mecanismos de controle previstos na Constituição da Pensilvânia tiveram ampla repercussão nos debates constitucionais franceses na década de 1790 e na Constituição do Ano VIII, revelando:

uma preocupação comum de institucionalizar uma forma de vigilância social e de compreender a soberania como articulação dinâmica e eventualmente conflitiva de um poder representativo e de um poder de vigilância, ambos tendo uma mesma origem popular ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.»: 96).

Com o mesmo espírito, o projeto de Constituição apresentado pelo Marquês de Condorcet, nos turbulentos idos de 1793, se ocupa do risco da usurpação do poder por representantes eleitos. Para Condorcet, não existe oposição entre participação democrática direta e representação, e por isso a soberania do povo deveria combinar e justapor diferentes modalidades de exercício do poder, no sentido de uma pluralização e multiplicação da soberania popular.

Ainda nessa mesma linhagem de pensamento político, Fichte propõe o estabelecimento de um Éforato como forma de controlar o poder das autoridades eleitas. No modelo proposto pelo filósofo alemão, a dimensão eleitoral (a “soberania delegada”) se combinaria com as convenções populares cuja função seria controlar os representantes e seus eventuais abusos, evitando a corrupção da democracia representativa em “aristocracia eletiva”. De modo análogo a Condorcet, Fichte busca superar a antinomia entre democracia direta e representativa, tornando-a uma “democracia reflexiva” ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.»: 142-147).

Rosanvallon argumenta que esses antecedentes são indicativos de uma reflexão democrática sobre os impasses da soberania popular e da tentativa de aprofundá-la pela via da complexificação institucional, estabelecendo canais de controle e vigilância dos cidadãos cujo objetivo seria evitar a autonomização do poder perante a sociedade ( Rosanvallon, 2000ROSANVALLON, Pierre. (2000), La Démocratie Inachevée: Histoire de la Souveraineté du Peuple en France. Paris, Gallimard. ). À diferença da desconfiança liberal, elas não visam bloquear a soberania do povo ou a expressão eleitoral majoritária, mas qualificá-la e aprofundá-la.

Contudo, Rosanvallon nota que, muito embora se possa identificar nessas obras uma “tradição democrática da contrademocracia”, a institucionalização de uma “soberania popular complexa”, arquitetada pela combinação de autorização eleitoral e formas de controle e vigilância dos cidadãos, foi gradativamente perdendo espaço no âmbito da imaginação política e da arquitetura constitucional dos governos representativos modernos. Na França, especificamente, predominou durante quase dois séculos uma hegemonia ideológica de uma concepção monista e abstrata da soberania popular, que oscilava entre a cultura jacobina da insurreição, o constitucionalismo liberal-conservador de inclinações demofóbicas e a concepção plebiscitária-cesarista ( Rosanvallon, 2000ROSANVALLON, Pierre. (2000), La Démocratie Inachevée: Histoire de la Souveraineté du Peuple en France. Paris, Gallimard. ; 2004ROSANVALLON, Pierre. (2004), Le Modèle Politique Français: La Société Civile Contre le Jacobinisme de 1789 à Nos Jours. Paris, Éditions du Seuil. ). Mesmo assim, apesar do fracasso das tentativas de institucionalizar esses poderes de vigilância no século XIX, o tema continuou a frequentar os debates de alguns meios republicanos e socialistas franceses nas décadas de 1830 e 1840; muito embora sem maiores repercussões práticas ( Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ).

Esse refluxo da teoria contrademocrática, evidenciado na marginalização do tema no âmbito da história do pensamento político e constitucional do século XIX, contrasta com a emergência de novas formas de contrapoder o âmbito da sociedade civil. Transitando da história das ideias para a história social, Rosanvallon mostra como, após a conquista do sufrágio universal, a legitimação majoritária das urnas e a monopolização do poder pelos parlamentos competia com outras modalidades de participação política – organizadas principalmente a partir dos sindicatos. Nessa leitura, a luta de classes e o repertório das greves operárias no século XIX expressam um contrapoder disseminado na sociedade, uma nova formulação do direito de resistência adaptado às sociedades capitalistas industriais. Em publicistas e militantes como Émile Pouget, George Sorel, Pelloutier, Griffuelhes, Émile de Girardin, a greve se converte em uma expressão política e social do poder operário e cuja legitimidade não se origina nos critérios majoritários das urnas, mas na identidade e no pertencimento da classe operária. Nesse sentido, a luta de classes e formação dos modernos sindicatos operários se situa em uma discussão teórica sobre a relação entre a legitimidade majoritária e legitimidade social. As democracias industriais se organizam, então, a partir de uma tensão entre o poder parlamentar e o poder dos sindicatos, entre as dinâmicas da soberania popular positiva e da soberania popular negativa ( Ronsavallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. (2006), La Contre-démocratie: la Politique à l’âge de la Défiance. Paris, Éditions du Seuil.» ).

O resgate dessas experiências, inscritas num relato historiográfico que recolhe fragmentos e vestígios de formas políticas do passado, evidencia o modo de articulação entre historiografia e teoria política e a função da história como “laboratório de experiências”, cuja decifração pode contribuir para oferecer novas perspectivas para a teoria política. Assim, a contrademocracia e as novas figuras do povo-vigilante , do povo-veto , e do povo-juiz , ainda que se apresentem como resposta aos problemas inéditos gerados por um contexto particular marcado pela generalização da desconfiança cívica, dialoga com outras constelações históricas já que, no limite, dizem respeito às aporias fundadoras da soberania popular.

Apreendidos do ponto de vista dessa história longa, a soberania popular se apresenta como um problema: uma tensão entre o projeto de dar forma positiva ao poder popular e o de controlar e estabelecer limites ao exercício do poder por parte dos governantes. Ou, em outras palavras, uma tensão entre soberania positiva e negativa. Por meio da relação especular com experiências passadas, a teoria política contemporânea se arma para ressignificar fenômenos contemporâneos como o desencanto e a desconfiança cívica.

Passemos agora ao segundo aspecto das mutações democráticas dedicada das metamorfoses da representação política. Como discutido na seção I, um dos aspectos da malaise democrática contemporânea deriva precisamente da ilegibilidade e da invisibilidade dos contornos da nova sociedade pós-industrial e da dificuldade de projetar, na cena institucional, a emergência de novos sujeitos sociais. A sociedade contemporânea se caracteriza por uma dissociação entre representação-delegação e representação-figuração, já que as mutações no âmbito das classes sociais produzem uma situação em que indivíduos e grupos já não encontram vocalização de suas demandas e modos de vida nas organizações tradicionais da sociedade industrial e da democracia eleitoral. Para Rosanvallon, os mecanismos e procedimentos de autorização eleitoral mediados pela forma partido passam a operar com dificuldade em uma sociedade habitada por um novo exército de trabalhadores atomizados, submetidos ao desemprego ou a empregos intermitentes e baixos salários. Com efeito, esses novos sujeitos sociais não dispõem dos mesmos recursos organizacionais e de solidariedade, o que dificulta a expressão pública e institucional de suas demandas por direitos ( Rosanvallon, 2017ROSANVALLON, Pierre. (2017), O Parlamento dos Invisíveis. São Paulo, Annablume Editora. ).

Para analisar esse descompasso entre a dinâmica das instituições políticas formais e a dinâmica do social a partir de uma história de longa duração, a história conceitual do político oferece um panorama dos paradoxos que, desde a Revolução de 1789 na França, acompanham a relação entre representação-delegação e representação-figuração. O processo revolucionário se caracterizou por um movimento paradoxal no qual a integração política via sufrágio universal convivia, sem ser problematizada no plano teórico, com “situações de exclusão econômica e social” ( Rosanvallon, 1998ROSANVALLON, Pierre. (1998), Le Peuple Introuvable: Histoire de la Représentation Démocratique en France. Paris, Gallimard. , p. 40-41). A Revolução Francesa, nesse aspecto, é emblemática de uma experiência baseada na separação sem mediações entre a esfera política-estatal – enquanto espaço de expressão da totalidade da nação – e a esfera privada entendida como composta exclusivamente por indivíduos apolíticos; experiência que exacerba e leva ao limite a “distância entre os dois povos, o povo-nação em sua abstração e o povo-sociedade em sua indeterminação” ( Rosanvallon, 1998ROSANVALLON, Pierre. (1998), Le Peuple Introuvable: Histoire de la Représentation Démocratique en France. Paris, Gallimard. )15 15 . A cultura política jacobina e suas longevas ressonâncias no republicanismo francês sintetizam essa concepção abstrata do político, assim como seu ancoramento em uma concepção formal da cidadania refratária ao reconhecimento dos grupos e classes concretos que compõem a sociedade civil. Cf.: Rosanvallon (2004) . .

Partindo dessa cisão entre o povo-político e povo-sociedade, a historiografia do político pretende inventariar as múltiplas respostas aos impasses da representação política. Ela se vale de um variado conjunto de fontes e documentos, transitando entre a história intelectual, a história social e a história da cultura, para lançar luz sobre experimentos intelectuais e práticos elaborados como resposta à dificuldade de representação do povo; isto é, que buscaram equilibrar as dimensões da representação-delegação e da representação-figuração.

De início, é eloquente o fato de o tema da representação ocupar lugar central na leitura de Rosanvallon sobre o pensamento político de François Guizot e do liberalismo doutrinário francês ( Rosanvallon, 1985ROSANVALLON, Pierre. (1985), Le Moment Guizot. Paris, Gallimard. )16 16 . Movimento político-intelectual liderado por François Guizot no período da Restauração (1815-1830) e da Monarquia de Julho (1830-1848). . O s escritos e a ação política de Guizot são tomados como expressão de uma nova teoria da representação política e como uma resposta original às aporias da representação política no contexto do século XIX francês. Distanciando-se das formulações de matriz contratualista, cujo conceito de representação é definido em termos de procuração da nação aos representantes e, consequentemente, como uma cisão entre o social e o político, Guizot pensa a representação como um movimento permanente de articulação entre poder e sociedade. Para Guizot, a função do governo representativo não é somar o conjunto das preferências ou vontades particulares pré-existentes, mas “extrair” ou “descobrir” a razão e a justiça por meio de um procedimento cognitivo ( Rosanvallon, 1985ROSANVALLON, Pierre. (1985), Le Moment Guizot. Paris, Gallimard. ; Guizot, 2008 [1820-1822]GUIZOT, François. (2008), [1820-1822], A História das Origens do Governo Representativo na Europa. Rio de Janeiro, Topbooks-Liberty Fund. ). A publicidade e a opinião pública adquirem centralidade nessa concepção da representação política, pois essas instâncias permitiriam uma comunicação permanente entre sociedade e poder público sem o qual as eleições e as assembleias representativas tenderiam a se autarquizar. A despeito do elitismo e do medo das multidões que caracteriza o liberalismo doutrinário, evidenciado em sua férrea oposição ao sufrágio universal, Rosanvallon ressalta que a teoria guizotiana do governo representativo procura responder aos limites de uma concepção puramente delegativa da representação, pensando-a como um contínuo processo de conhecimento da dinâmica do social. A representação deixa de ser um processo mecânico de autorização para o exercício do poder para se tornar um “operador social dinâmico”, um permanente fluxo cognitivo entre sociedade e governo. Trata-se, nas palavras de Rosanvallon, de “reconhecer e descobrir o Um do social no processo dinâmico de acesso a uma nova consciência do mundo e das coisas” ( Rosanvallon, 1985ROSANVALLON, Pierre. (1985), Le Moment Guizot. Paris, Gallimard.: 56-57).

Além da história intelectual expressa em sua pesquisa sobre o pensamento político doutrinário, a genealogia do conceito de representação política mobiliza também saberes da historiografia social e cultural. Em Le Peuple Introvable ( 1998ROSANVALLON, Pierre. (1998), Le Peuple Introuvable: Histoire de la Représentation Démocratique en France. Paris, Gallimard. ), o autor se vale de um vasto conjunto de fontes jornalísticas, literárias e iconográficas que constituíram os primórdios de uma cultura política operária francesa no período da Monarquia de Julho e que buscavam precisamente afirmar uma identidade coletiva dos trabalhadores em um contexto de restrição censitária do direito ao sufrágio. Destaca, nesse sentido, publicações operárias como L’Artisan, L’Écho de la Fabrique, L’Atelier, La Ruche Populaire, o trabalho de poetas como Lapointe, Gilland, Poncy e Magu, de romancistas como Victor Hugo, George Sant e Eugène Sue, Balzac, além de músicos, ilustradores e pintores anônimos que exerciam um trabalho de decifração da nova sociedade industrial urbana, perscrutando os modos de vida dos grupos que a compunham. Mesmo em um contexto de exclusão formal do direito de sufrágio na Monarquia de Julho, esses trabalhos exerciam uma função de figuração das novas identidades sociais forjadas na sociedade industrial, reduzindo a opacidade do social e expressando a constituição de vínculos de solidariedade a partir do mundo associativo do trabalho. Contribuíam, assim, para dar visibilidade aos modos de vida e às demandas desses novos sujeitos sociais, introduzindo-os na cena pública.

Paralelamente, no campo científico, técnicas estatísticas e censitárias foram desenvolvidas e aperfeiçoadas, revelando uma preocupação de ordem cognitiva por parte do poder público e uma tentativa de responder ao déficit de figuração. A própria sociologia, enquanto disciplina acadêmica, pode ser entendida como parte desse grande movimento de perscrutação do social – de uma tentativa de conhecer as faces e condições de vida do povo e das dinâmicas sociais ( Rosanvallon, 1998ROSANVALLON, Pierre. (1998), Le Peuple Introuvable: Histoire de la Représentation Démocratique en France. Paris, Gallimard. ).

Como se nota a partir dos exemplos acima elencados, em Rosanvallon a inquirição sobre o passado e a pesquisa histórica, a partir de fontes documentais de diferentes tipos, está informada por uma interrogação de ordem teórica que diz respeito à relação entre representação-delegação e representação-figuração. A visada historiográfica acerca dessas experiências revela como o problema da representação política não se reduz à dimensão formal do mandato eleitoral (delegação), compreendendo também um “empreendimento de decifração” cujo objetivo consiste em “tornar legível uma sociedade que não se organiza mais a priori por nenhum princípio de ordem” ( Rosanvallon, 1998ROSANVALLON, Pierre. (1998), Le Peuple Introuvable: Histoire de la Représentation Démocratique en France. Paris, Gallimard.: 373).

Com efeito, a genealogia histórica aqui é “instrumentalizada” para a elaboração de uma teoria democrática compreensiva sobre os fenômenos em curso na contemporaneidade, dentre os quais se destaca a separação entre representação-mandato e a figuração das identidades sociais17 17 . Esse diagnóstico da crise da representação informa também a intervenção de Rosanvallon no debate público, em projetos editoriais como o Parlement des Invisibles [Parlamento dos Invisíveis] e Raconter La Vie [Narrar a Vida], que visam dar visibilidade a histórias de pessoas que vivem em situação de marginalização e que não dispõem de meios ou recursos organizacionais de expressão política. Partem da premissa de que a superação da crise da representação passa por “dar a palavra” a novos personagens das sociedades contemporâneas. Esse trabalho de decifração visa aperfeiçoar a representação do social por meio de uma (re)politização do viver comum e de uma reconexão entre o mundo das instituições políticas e as formas da sociedade civil concreta. Cf.: Rosanvallon (2017) . . O diagnóstico contemporâneo da dificuldade de figuração política do povo, ao mesmo tempo em que revela uma descontinuidade histórica em relação ao paradigma da democracia de equilíbrio precedente, demonstra semelhanças estruturais com outras constelações históricas mais longínquas; a saber, aquelas que se situam na transição da sociedade feudal para o capitalismo industrial. Em outras palavras, estamos diante de duas “grandes transformações”, duas situações históricas que exacerbam a dificuldade de figuração política do povo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diferentemente das modalidades normativas da teoria política (de inclinação anti-historicista), como daquelas concepções mais ortodoxas do contextualismo (baseadas na rígida separação entre os domínios da história e da teoria política), a história conceitual do político interroga o passado a partir do presente e ilumina o presente a partir do diálogo permanente com o passado. A historiografia, nessa abordagem, é a matéria prima da teoria política, pois lança luz sobre os experimentos práticos e respostas intelectuais às aporias democráticas.

Assim, as proposições descritivas e normativas desenvolvidas por Rosanvallon na tetralogia das mutações democráticas (notadamente nos temas da soberania popular e da representação política de que nos ocupamos neste artigo), não obstante reconhecerem a singularidade e o ineditismo contemporâneo, estão ancoradas no trabalho historiográfico desenvolvido pelo autor ao longo das últimas décadas.

Como vimos, trata-se de uma teoria democrática que combina duas concepções da temporalidade. De um lado, uma temporalidade da diferença , isto é, a noção de um tempo descontínuo, em que o presente se apresenta como tempo inédito e sem precedentes. Nesse plano, é possível identificar a entropia dos mecanismos tradicionais da democracia eleitoral e da forma partido e o declínio das formas de sociabilidade típicas da sociedade industrial. A “nova era do político” marcaria o advento de uma sociedade de desconfiança generalizada e de difícil “decifração do social”.

Por outro lado, não obstante sustente o reconhecimento do ineditismo do contemporâneo, essa teoria postula uma temporalidade contínua , a concepção do tempo como permanência, postulando identidade entre impasses contemporâneos a história longa da democracia. A aproximação entre o trabalho de conceitualização próprio da teoria política, de um lado, e o trabalho historiográfico de reconstituição do passado, de outro, depende, como vimos, de uma filosofia da modernidade política, expressa na fórmula de “aporias perenes do político”. O tempo histórico, nessa formulação, não é representado como uma linha evolutiva espacial na qual o presente “se distancia” progressivamente do passado em direção a um futuro unívoco, mas como um trabalho reflexivo das sociedades sobre elas mesmas. As respostas intelectuais e práticas a essas aporias do político, os equilíbrios contingentes que cada sociedade ou cada momento particular logra alcançar, se apresentam como um “laboratório em atividade” para o teórico da política, cujos contrastes ou similaridades em relação à experiência presente contribuem para alargar os horizontes conceituais em relação aos novos fenômenos.

É a partir dessa ancoragem historiográfica, do diálogo com as experiências pregressas, que os impasses e as potencialidades emancipatórias contidos nas mutações contemporâneas são conceitualizados.

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NOTAS

  • 1
    . Sobre a virada linguística e seu impacto na renovação historiográfica da Escola de Cambridge e da História dos Conceitos, conferir: Koselleck (1999KOSELLECK, Reinhart. (1999), Crítica e Crise: Uma Contribuição à Patogênese do Mundo Burguês. Rio de Janeiro, EDUERJ e Contraponto. , 2006KOSELLECK, Reinhart. (2006), Futuro Passado. Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro, Contraponto. , 2010KOSELLECK, Reinhart. (2010) [1975], história/História. Madrid, Editoral Trota. ); Jasmin e Feres (2006)JASMIN, Marcelo; FERES JÚNIOR, João (orgs.). (2006), História dos Conceitos: Debates e Perspectivas. Rio de Janeiro, Edições Loyola e Editora PUC-Rio. ; Skinner (1996SKINNER, Quentin. (1996), [1978], As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo, Companhia das Letras. , 1999SKINNER, Quentin. (1999), Liberdade Antes do Liberalismo. São Paulo, Editora UNESP. , 2002SKINNER, Quentin. (2002) [1969], “Meaning and Understanding in the History of Ideas”, in Visions of Politics. Cambridge, Cambridge University Press. ); Richter, (2001)RICHTER, Melvin. (2001), “A German Version of the ‘Linguistic Turn’: Reinhart Koselleck and the History of Political and Social Concepts (Begriffsgeschichte)”, in D. Castiglione; I. Hampsher-Monk (eds.), The History of Political Thought in National Context. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 58-79. ; Rorty (1992 [1967]RORTY, Richard. (1992), [1967], The Linguistic Turn: Essays in Philosophical Method. Chicago, University Of Chicago Press. ); e Skornicki e Tournadre (2015)SKORNICKI, Arnault; TOURNADRE, Jérôme. (2015), La Nouvelle Histoire des Idées Politiques. Paris, Éditions La Decouvert. . Sobre a contribuição dessas duas escolas para a teoria política contemporânea, conferir Jasmin (2005)JASMIN, Marcelo. (2005), “História dos Conceitos e Teoria Política e Social: Referências Preliminares”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 57, pp. 27-38. e Silva (2017)SILVA, Ricardo. 2017. “Da História do Pensamento Político à Teoria Política Histórica: Variações da Hermenêutica do Conflito de Quentin Skinner”. Lua Nova, n. 102, pp. 137-171. .
  • 2
    . Nos anos 1980, sob a liderança de François Furet, foi criado Instituto Raymond Aron, que reuniu filósofos, historiadores e politólogos. Ainda que alguns desses intelectuais se afirmassem no campo do liberalismo, essa não era uma posição política unânime. A unidade do grupo tinha a ver com o interesse pela história e filosofia do político e com a crítica das experiências totalitárias ( Moyn, 2006MOYN, Samuel. (2006), “Antitotalitarianism and After”, in P. Rosanvallon, Democracy: Past and Future. Columbia, Columbia University Press. ). Rosanvallon, antes de integrar o Instituto Raymond Aron, militou na esquerda socialista e atuou como assessor econômico na Conféderation Française Démocratique du Travail (CFDT), assessor político de Edmond Maire e redator-chefe do jornal CFDT-Aurjourd’hui (entre 1973-1977). No Partido Socialista integrou a chamada “segunda esquerda” ao lado de Michel Rocard, polemizando durante o Congresso de Nantes com as tendências centralistas e burocráticas do partido. Na década de 1970, Rosanvallon publicou L’âge de l’autogestion, ou la politique au poste de comandement ( 1976ROSANVALLON, Pierre. (1976), L’âge de l’autogestion. Paris, Editions du Seuil. ), Pour une nouvelle culture politique ( 1977ROSANVALLON, Pierre; VIVERET, Patrick. (1977), Pour une Nouvelle Culture Politique. Paris: Éditions du Seuil. ), escrito em coautoria com Patrick Viveret. Nesses livros defende um modelo de democracia autogestionária, organizado por meio de comitês de fábrica e associações de bairro. Após essa experiência como intelectual orgânico da CFDT, Rosanvallon se aproximou de Claude Lefort, cujo trabalho constituía então um dos ícones da esquerda antitotalitária na França. Lefort viria a se tornar seu orientador na tese que daria origem ao livro Le Capitalisme Utopique: histoire de l’idee de marchée [O capitalismo utópico: história da ideia de mercado] ( 1979ROSANVALLON, Pierre. (1999), [1979], Le Capitalisme Utopique. Histoire de l’idée de Marché. Paris, Éditions du Seuil. ). A influência de Lefort parece ter sido a mais determinante na trajetória intelectual de Rosanvallon como historiador e teórico da política, tanto do ponto de vista metodológico (na ênfase na relação entre a sociedade e sua autorrepresentação), quanto do ponto de vista do interesse no tema das aporias da democracia moderna. Sobre a Escola Francesa do Político, conferir: Moyn (2006)MOYN, Samuel. (2006), “Antitotalitarianism and After”, in P. Rosanvallon, Democracy: Past and Future. Columbia, Columbia University Press. e Lynch (2010)LYNCH, Christian. (2010), “A democracia Como Problema: Pierre Rosanvallon e a Escola Francesa do Político”, in P. Rosanvallon, Por Uma História do Político. São Paulo, Alameda. .
  • 3
    . Para uma introdução à teoria democrática de Rosanvallon, conferir: Al Matary e Guénard (2015)AL-MATARY, Sarah; GUÉNARD, Florent (orgs). (2015), La Démocratie à’ l’œuvre: Autour de Pierre Rosanvallon. Paris, Éditions du Seuil. ; Guénard, (2015)GUÉNARD, Florent. (2015), “Le Système Conceptuel de Pierre Rosanvallon”, in S. Al-Matary e F. Guénard (orgs). La Démocratie à’ l’œuvre: Autour de Pierre Rosanvallon. Paris, Éditions du Seuil, pp. 09-27. , Annunziata (2015); Flügel-Martisen et al (2019)FLÜGEL-MARTISEN, Oliver; MARTINSEN, Franziska; SAWYER, Stephen; SCHULZ, Daniel. (orgs). (2019), Pierre Rosanvallon’s Political Though: Interdisciplinary Approaches. Bielefeld University Press. ; e Verdo (2002)VERDO, Geneviève. (2002), “Pierre Rosanvallon, Archéologue de la Démocratie”. Revue historique, v. 304, n. 3 (623), pp. 693-720. . Sobre o conceito de representação política, conferir: Diehl (2019)DIEHL, Paula. (2019), “Political Theory Through History: Pierre Rosanvallon’s Concepts of Representation and the People and Their Importance for Understanding Populism, in O. Flügel-Martisen; F. Martinsen; S. Sawyer; D. Schulz (orgs). Pierre Rosanvallon’s Political Though: interdisciplinary approaches. Bielefeld University Press. e Faria (2008)FARIA, Alessandra Maia Terra de. (2008), Do Social e do Político: Teorias da Representação Política. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Política), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. .
  • 4
    . O argumento de Rosanvallon, nesse ponto, ocupa uma posição intermediária entre o desenvolvido por Bernard Manin (1997)MANIN, Bernard. (1997), The Principles of Representative Government. Cambridge, Cambridge University Press. , para quem a representação política se daria a partir de uma relação mais personalizada e volátil entre representante e representado, e o de Nadia Urbinati (2014URBINATI, Nadia. (2014), Democracy Disfigured: Opinion, Truth and People. Cambridge; Massachusetts, Harvard University Press. ; 2019URBINATI, Nadia. (2019), Me the People. How Populisms Transforms Democracy. Cambridge; Massachusetts, Harvard University Press. ), que sustenta que organização partidária seria imprescindível enquanto instância mediadora. Para Rosanvallon, o declínio da “democracia de partidos” implica um enfraquecimento dos vínculos entre representantes e representados com efeitos negativos sobre a vida democrática, especialmente pela perda da função narrativa que os partidos exerciam.
  • 5
    . O autor cita diversos mecanismos extra-eleitorais que têm se desenvolvido para o controle e supervisão das atividades dos governantes, como leis de acesso à informação, que podem ser utilizadas para a contínua avaliação da gestão dos recursos públicos.
  • 6
    . A teoria da contrademocracia não está isenta de aspectos controversos, especialmente na apreciação otimista que o autor faz da ampliação do poder das autoridades independentes e das formas de política negativa nas democracias contemporâneas. Anderson (2009)ANDERSON, Perry. (2009), The New Old World. London, Verso Books. e Schramm (2016)SCHRAMM, Luanda Dias. (2016), “O Desprezo da Política Eleitoral: Crise da Representação e Legitimidade Contra-democrática na Obra de Pierre Rosanvallon”. Revista Debates, v. 10, n. 3, p. 107-129. sugerem que a teoria de Rosanvallon reforça a desqualificação da representação eleitoral e partidária e termina por fortalecer os poderes mercantis hegemônicos na sociedade civil. Em outra chave analítica, porém também crítica, Nadia Urbinati (2010URBINATI, Nadia. (2010), “Unpolitical Democracy”. Political Theory, v. 38, n. 1, pp. 65-92. ; 2014URBINATI, Nadia. (2014), Democracy Disfigured: Opinion, Truth and People. Cambridge; Massachusetts, Harvard University Press. ) identifica a idealização de uma “democracia apolítica”, em que as formas da “política negativa” ampliariam o escopo das decisões não-políticas em detrimento das decisões legislativas e o princípio da regra majoritária ( Urbinati, 2010URBINATI, Nadia. (2010), “Unpolitical Democracy”. Political Theory, v. 38, n. 1, pp. 65-92. ; 2014URBINATI, Nadia. (2014), Democracy Disfigured: Opinion, Truth and People. Cambridge; Massachusetts, Harvard University Press. ). Tais críticas são pertinentes, já que apontam para os riscos de confiscação e despolitização contidos em algumas das formas de política negativa descritas por Rosanvallon. Por outro lado, deve-se levar em consideração que o próprio autor francês alerta para os riscos potenciais da desconfiança, cuja radicalização poderia no limite levar à degradação da vida democrática. Suas reflexões sobre o populismo e o “impolítico” são emblemáticas a esse respeito, pois apontam precisamente para os efeitos deletérios que a desqualificação tout court da política institucional e da democracia eleitoral pode trazer para a democracia. Sobre o conceito de impolítico, conferir: Rosanvallon (2008a)ROSANVALLON, Pierre. (2008a), La Légitimité Démocratique: Impartialité, Réflexivité, Proximité. Paris, Éditions du Seuil. e Annunziata (2015). Para uma análise do populismo, conferir: Rosanvallon (2020)ROSANVALLON, Pierre. (2020), Le Siècle du Populisme: Histoire, Théorie, Critique. Paris, Éditions du Seuil. .
  • 7
    . Uma versão revisada e ampliada desse artigo seria publicada em 2001 e traduzida para o português e publicada em uma coletânea organizada por Christian Lynch ( Rosanvallon, 2010 [2002]ROSANVALLON, Pierre. (2010), [2002]. “Por Uma História Conceitual do Político”, in P. Rosanvallon. Por uma História do Político. São Paulo, Alameda, pp. 65-101. Aula inaugural proferida no Collège de France em 28 mar. 2002. ; Lynch, 2010LYNCH, Christian. (2010), “A democracia Como Problema: Pierre Rosanvallon e a Escola Francesa do Político”, in P. Rosanvallon, Por Uma História do Político. São Paulo, Alameda. ). Não fica claro o motivo pelo qual Rosanvallon altera a expressão “história conceitual do político” para “história filosófica do político” na edição inglesa, já que não há nenhuma alteração substantiva na proposta metodológica. Cabe ainda notar que o autor volta a utilizar a expressão “história conceitual do político” em sua aula inaugural no College de France , em 2002 (também publicada em português na edição acima), o que indica que as duas expressões são intercambiáveis.
  • 8
    . O diagnóstico do estado da arte no campo da história das ideias que se vinha sendo praticada naquele país é bastante pessimista. Rosanvallon cita cinco equívocos metodológicos comuns entre os praticantes de história das ideias: i) inclinação à dicionarização, com estudos monográficos por obra ou autor cuja análise se limita a descrição dos argumentos de uma obra; ii) reificação das doutrinas, isto é, tendência a tomar as doutrinas como coisas externas à consciência dos sujeitos históricos e, portanto, independente da ação política; iii) inclinação a um comparatismo assistemático de autores ou obras sem preocupação com um trabalho de contextualização histórica mais rigorosa; iv) reconstrutivismo, método comumente utilizado na história da filosofia, que visa estabelecer a coerência interna ao pensamento de um determinado autor; e v) inclinação ao tipologismo, isto é, a tendência a restringir a análise à classificação de obras e autores como expressão de ideologias típico-ideais. Embora o autor reconheça a importância da contribuição da história das mentalidades e da sociologia política francesa, considera que essas disciplinas estariam desprovidas de instrumentos mais sofisticados para a compreensão rigorosa de fenômenos políticos de nosso tempo, como, por exemplo, o totalitarismo. Faltaria a esses estudos uma inquirição mais rigorosa de ordem teórica ou filosófica sobre a especificidade da modernidade política.
  • 9
    . Rosanvallon identifica um movimento de “retorno ao político” em um conjunto de trabalhos com variados recortes disciplinares publicados desde os anos 1970. Destaca as obras de Claude Nicolet, Pierre Manent, Louis Dumont, François Furet, B. Baczko, Claude Lefort, Pierre Clastres, Marcel Gauchet, G. Swain, Luc Ferry e A. Renaut, que a despeito de situarem em diferentes campos disciplinares, compartilhariam uma abordagem comum sobre “o político”. Sobre a Escola Francesa do Político, conferir: Lynch (2010)LYNCH, Christian. (2010), “A democracia Como Problema: Pierre Rosanvallon e a Escola Francesa do Político”, in P. Rosanvallon, Por Uma História do Político. São Paulo, Alameda. e Moyn (2006)MOYN, Samuel. (2006), “Antitotalitarianism and After”, in P. Rosanvallon, Democracy: Past and Future. Columbia, Columbia University Press. .
  • 10
    . A mesma definição é retomada em textos metodológicos, tais como: Rosanvallon (2002; 2010 [2002]ROSANVALLON, Pierre. (2010), [2002], “Por uma História Filosófica do Político”, in P. Rosanvallon, Por uma História do Político. São Paulo: Alameda, pp. 65-101. ).
  • 11
    . É importante traçar aqui algumas distinções entre a definição do político na linhagem do pensamento de Carl Schmitt e na Escola Francesa do Político. Em Carl Schmitt, o termo se refere ao modo de agregação-dissociação entre coletividades, configurado pela relação amigo-inimigo. Trata-se de uma definição formal, não substantiva, já que o político pode se constituir de associações econômicas, religiosas, étnicas, etc. O que caracteriza o político, para Schmitt, é a intensidade do conflito produzido por essas identidades, que no limite é capaz de conduzir à guerra. Na teoria política contemporânea, Chantal Mouffe, (1996)MOUFFE, Chantal. (1996), O Regresso do Político. Lisboa, Gradiva. , seguindo a trilha de Schmitt, critica a “razão pública livre” de John Rawls ou a “situação ideal da palavra” de Habermas como expressões da negação do político. A autora propõe uma distinção analítica entre antagonismo e agonismo . Enquanto o primeiro postula uma relação amigo-inimigo que no limite conduz à eliminação do outro, a relação agônica poderia conviver nos marcos de uma democracia pluralista ( Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996), O Regresso do Político. Lisboa, Gradiva. ). Nos trabalhos de autores como Lefort (2011 [1981]LEFORT, Claude. (2011), [1981], A invenção democrática. Belo Horizonte, Autêntica Editora. ; 1986LEFORT, Claude. (1986), Essais sur le politique. Paris, Éditions du Seuil. ), Marcel Gauchet (1985) ou Rosanvallon (2002), “o político” se refere ao momento de instituição do social e evoca a separação ontológica entre a sociedade e sua autorrepresentação. O estudo do político se vale de diferentes campos disciplinares, como a antropologia, a filosofia ou a história e investiga as representações pelas quais uma comunidade projeta seus vínculos de pertencimento. Daí, o interesse entre os autores franceses em elucidar as mutações simbólicas nas formas de produção da identidade coletiva, notadamente na passagem das sociedades primitivas/tradicionais para as sociedades modernas, bem como nas relações entre os regimes totalitários e democráticos. Tal como em Schmitt, a definição do político na Escola Francesa remete à questão a identidade coletiva e acolhe tanto representações teológicas quanto suas formas secularizadas. Porém, diferentemente do autor alemão e de suas ressonâncias na teoria política contemporânea, o conceito do político aqui não implica uma rejeição tout court do pluralismo. Muito ao contrário, Lefort e seus seguidores identificam a modernidade política precisamente como o advento de um modo de instituição do social que reconhece a incontornabilidade da divisão social. A divisão interna da comunidade política é, nessa perspectiva, o real das democracias modernas.
  • 12
    . É nesse sentido, por exemplo, a crítica de Rosanvallon ao anacronismo da obra de Alphonse Aulard, Histoire Politique de la Revolution Francaise [História Política da Revolução Francesa] (1913), que faria uma leitura da Revolução de 1789 como prenúncio de uma democracia baseada no sufrágio universal, imputando aos atores do passado crenças e motivações que absolutamente não poderiam possuir ( Rosanvallon, 1986ROSANVALLON, Pierre. (1986), “Pour Une Histoire Conceptuelle du Politique: Note de Travail”. Revue de synthese, v. IV, n. 1-2, pp. 93-105. ).
  • 13
    . Ainda que tanto a história conceitual alemã quanto a história conceitual do político partam da identificação da natureza equívoca e polissêmica dos conceitos políticos e sociais, e estejam interessadas em lançar luz sobre essas variações semânticas na modernidade e sobre como elas organizam a experiência social e as possibilidades da ação política, a categoria de “sistemas de representação”, utilizada por Rosanvallon, procura combinar a análise semântica e filológica com análises mais próximas da história social e a história das instituições políticas. Cf.: Bernardi (2015)BERNARDI, Bruno. (2015), “Pour Une Histoire Conceptuelle du Politique: Questions de Méthode”, in S. Al-Matary e F. Guénard (orgs.), La Démocratie à’ l’œuvre: Autour de Pierre Rosanvallon. Paris, Éditions du Seuil, pp. 31-48. ; Koselleck (2006)KOSELLECK, Reinhart. (2006), Futuro Passado. Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro, Contraponto. ; e Rosanvallon (2015b)ROSANVALLON, Pierre. (2015b), “Bref Retour Sur Mon Travail”, in S. Al-Matary e F. Guénard (orgs). La Démocratie à’ l’œuvre: Autour de Pierre Rosanvallon. Paris, Éditions du Seuil, pp. 229-250. .
  • 14
    . Essa teoria lerfortiana da modernidade política ressoa nas interrogações de Rosanvallon. Porém, cabe notar que, muito embora o conceito do político e as próprias interrogações sobre a modernidade e a democracia indiquem uma continuidade entre o programa de pesquisas de Rosanvallon e Claude Lefort, a categoria de “indeterminação democrática” adquire sentidos distintos em ambos. Para Lefort, ela remete à secularização das representações do político na modernidade. A “incerteza democrática”, nessa acepção, se define pelo advento de uma forma social em que “a crença em uma solução dos problemas últimos da vida social, a crença em uma ordem justa ou estável, conforme a natureza ou a ordenada por potências sobrenaturais, em uma palavra, a crença no bom regime” foram, senão completamente abandonadas, severamente colocadas em questão (Lefort, 1993, p. 05-06). Lefort também utiliza essa categoria para designar uma qualidade democrática em que o poder é representado como um “lugar vazio”. Aqui, a indeterminação democrática diz respeito a um regime que acolhe a divisão e o conflito em seu interior, de modo que ninguém ou nenhum grupo concreto têm condições de reclamar a identificação perene com o poder (sua incorporação) e de que há um desintrincamento dos domínios do saber, do direito e do poder, que atuam com relativa autonomia. Trata-se aqui de uma definição normativa da indeterminação democrática, que se opõe às formas totalitárias e sua tendência de recorporificação do poder e reunificação entre os domínios do saber, do direito e do poder. Em Rosanvallon, a indeterminação democrática tem um sentido mais restrito, ligado as tensões internas e aos equívocos conceituais da democracia. Sobre essas diferenças, conferir: Rosanvallon (2015b)ROSANVALLON, Pierre. (2015b), “Bref Retour Sur Mon Travail”, in S. Al-Matary e F. Guénard (orgs). La Démocratie à’ l’œuvre: Autour de Pierre Rosanvallon. Paris, Éditions du Seuil, pp. 229-250. .
  • 15
    . A cultura política jacobina e suas longevas ressonâncias no republicanismo francês sintetizam essa concepção abstrata do político, assim como seu ancoramento em uma concepção formal da cidadania refratária ao reconhecimento dos grupos e classes concretos que compõem a sociedade civil. Cf.: Rosanvallon (2004)ROSANVALLON, Pierre. (2004), Le Modèle Politique Français: La Société Civile Contre le Jacobinisme de 1789 à Nos Jours. Paris, Éditions du Seuil. .
  • 16
    . Movimento político-intelectual liderado por François Guizot no período da Restauração (1815-1830) e da Monarquia de Julho (1830-1848).
  • 17
    . Esse diagnóstico da crise da representação informa também a intervenção de Rosanvallon no debate público, em projetos editoriais como o Parlement des Invisibles [Parlamento dos Invisíveis] e Raconter La Vie [Narrar a Vida], que visam dar visibilidade a histórias de pessoas que vivem em situação de marginalização e que não dispõem de meios ou recursos organizacionais de expressão política. Partem da premissa de que a superação da crise da representação passa por “dar a palavra” a novos personagens das sociedades contemporâneas. Esse trabalho de decifração visa aperfeiçoar a representação do social por meio de uma (re)politização do viver comum e de uma reconexão entre o mundo das instituições políticas e as formas da sociedade civil concreta. Cf.: Rosanvallon (2017)ROSANVALLON, Pierre. (2017), O Parlamento dos Invisíveis. São Paulo, Annablume Editora. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    3 Jul 2020
  • Revisado
    19 Jan 2021
  • Aceito
    23 Fev 2021
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