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Os Fundamentos Jurídicos e Filosóficos do Autoritarismo Realeano: Experiência, Cultura e Decisionismo 1 1 . Este artigo é resultado de uma pesquisa de pós-doutorado que realizei entre 2016 e 2019 no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCP-UFPE) com financiamento do Programa Nacional de Pós-Doutorado da Capes (PNPD-Capes) e sob a supervisão do professor Ernani Carvalho. Uma versão preliminar foi apresentada no 43º Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, 21 a 25 de outubro de 2019). O autor agradece à debatedora da sessão, professora Maria Arminda Nascimento Arruda, assim como aos coordenadores do ST 28 “Pensamento Social no Brasil: Limites e Possibilidades do Conservadorismo” Bernardo Ricupero e Simone Meucci. O autor agradece também aos pareceristas da revista Dados pelas valiosas sugestões.

Les Fondements juridiques et philosophiques de l’autoritarisme chez Miguel Reale : expérience, culture et décisionnisme

Los fundamentos jurídicos y filosóficos del autoritarismo realiano: experiencia, cultura y decisionismo

RESUMO

Miguel Reale foi um dos juristas brasileiros mais importantes do século XX, tendo produzido uma imponente obra política, jurídica e filosófica. A partir da perspectiva da história intelectual, esse artigo busca estabelecer uma conexão entre essas três dimensões com o objetivo de revelar os fundamentos jurídicos e filosóficos de um pensamento político francamente autoritário e conservador. Mostramos que na base do autoritarismo realeano estão as noções de cultura, experiência e decisão, desenvolvidas sobretudo em seus escritos jurídicos e filosóficos. Argumentamos também que a “obra integralista” de Reale, uma das mais comentadas pelos historiadores e cientistas políticos, não constitui a parte primordial da sua reflexão política. Nossa hipótese é que o jurista evoluiu de um corporativismo autoritário de corte fascista nos anos 1930 para a defesa de um modelo político autoritário e antiliberal devidamente decantado das referências fascistas e, a partir dos anos 1950, amparado num importante instrumental conceitual filosófico e jurídico.

Miguel Reale; Autoritarismo; Experiência; Cultura, Decisionismo

RÉSUMÉ

Miguel Reale était l’un des juristes brésiliens les plus importants du XXe siècle, ayant produit un travail politique, juridique et philosophique impressionnant. Du point de vue de l’histoire intellectuelle, cet article cherche à établir un lien entre ces trois dimensions afin de révéler les fondements juridiques et philosophiques d’une pensée politique franchement autoritaire et conservatrice. Nous montrons qu’à la base de l’autoritarisme chez Reale se trouvent les notions de culture, d’expérience et de décision, développées avant tout dans ses écrits juridiques et philosophiques. Nous soutenons également que « a obra integralista » de Reale, l’une des plus commentées par les historiens et les politologues, ne constitue pas la partie primordiale de sa réflexion politique. Notre hypothèse est que le juriste a évolué d’un corporatisme autoritaire d’une coupure fasciste dans les années 1930 à la défense d’un modèle politique autoritaire et antilibéral dûment décanté de références fascistes et, dès les années 1950, soutenu par un important instrument conceptuel philosophique et juridique.

Miguel Reale; Autoritarisme; Experience; Culture, Décisionnisme

RESUMEN

Miguel Reale fue uno de los juristas brasileños más importantes del siglo XX, habiendo producido un imponente trabajo político, jurídico y filosófico. Desde la perspectiva de la historia intelectual, este artículo busca establecer una conexión entre estas tres dimensiones para revelar los fundamentos jurídicos y filosóficos de un pensamiento político francamente autoritario y conservador. Demostramos que en la base del autoritarismo realiano están las nociones de cultura, experiencia y decisión, desarrolladas sobre todo en sus escritos jurídicos y filosóficos. También sostenemos que la “obra integralista” de Reale, una de las más comentadas por historiadores y científicos políticos, no constituye la parte primordial de su reflexión política. Nuestra hipótesis es que el jurista evolucionó de un corporativismo autoritario de corte fascista en los años 1930 para defender un modelo político autoritario y antiliberal debidamente decantado de las referencias fascistas y, a partir de los años 1950, apoyado por un importante instrumento conceptual filosófico y jurídico.

Miguel Reale; Autoritarismo; Experiencia; Cultura, Decisionismo

ABSTRACT

Miguel Reale was one of the most important Brazilian jurists of the 20th century, having produced an important political, legal, and philosophical work. Based on the perspective of intellectual history, this article seeks to establish a connection between these three dimensions in order to reveal the legal and philosophical foundations of a clearly authoritarian and conservative political thinking. We show that the notions of culture, experience, and decision underlie Reale´s authoritarianism and are developed mainly in his legal and philosophical writings. We also argue that Reale´s so-called “integralist work”, which has been widely commented on by historians and political scientists, is not the primordial part of his political reflection. We hypothesize that the jurist evolved from authoritarian corporatism of fascist inspiration in the 1930s to the defense of an authoritarian and anti-liberal political model arising from fascist references and, from the 1950s, supported by important philosophical and legal conceptual devices.

Miguel Reale; Authoritarianism; Experience; Culture, Decisionism

INTRODUÇÃO

Miguel Reale foi um dos juristas brasileiros mais importantes do século XX, e um dos maiores nomes do pensamento autoritário-conservador. Engajou-se nos grandes movimentos políticos e embates ideológicos da sua época e produziu, paralelamente, uma imponente obra política, jurídica e filosófica. Apesar da profusão dos estudos sobre Reale, essas três vertentes do seu pensamento foram frequentemente abordadas separadamente. O objetivo desse artigo é contribuir com a supressão dessa lacuna, buscando estabelecer uma conexão entre essas três dimensões de seu pensamento. Como iremos mostrar, nos fundamentos do autoritarismo realeano estão as noções de cultura, experiência e decisão, desenvolvidas sobretudo em seus escritos jurídicos e filosóficos.

É importante sublinhar que não há um pensamento inerte em Reale. A maioria dos estudos sobre a dimensão especificamente política do seu pensamento se limitam à sua produção integralista da década de 1930, como se ele tivesse mantido suas ideias de juventude pelo resto da vida. Argumentamos que essa produção, escrita num intervalo de 5 anos – entre 1932 e 1937 –, não constitui a sua parte primordial. Nossa hipótese é que Reale evoluiu da defesa de um corporativismo autoritário de corte fascista nos anos 1930 para a de um autoritarismo decisionista nos anos 1960 devidamente decantado das referências fascistas anteriores, e doravante fundamentado em um sofisticado instrumental conceitual jusfilosófico.

Pela diversidade de suas áreas de atuação, e importância da sua produção, Reale é certamente um dos intelectuais brasileiros mais estudados. Uma publicação intitulada Miguel Reale: bibliografia e estudos críticos (1999) contabilizou 254 textos sobre ele, desde artigos jornalísticos curtos, louvores e homenagens, até livros volumosos, resultantes de estudos aprofundados2 2 . Levando-se em conta que se trata de uma publicação de vinte anos atrás, esse número deve ter aumentado consideravelmente, sobretudo após o seu falecimento em 2006. . Não foi possível fazer a revisão de uma literatura tão vasta. Entretanto, a leitura de alguns desses trabalhos evidenciou que a grande maioria dos estudos sobre o pensamento de Reale foi feita de forma “compartimentada” entre as áreas do direito, da filosofia e, em menor medida, da história. Assim, entre os estudos acadêmicos sobre o autor na área do direito e da filosofia, vários foram consagrados aos conceitos mobilizados pelo jurista paulista em sua obra como os de experiência (Grielli, 1979; Müller, 1990; Martins, 2004MARTINS, Flávio Alves. (2004), A ideia de experiência no pensamento jusfilosófico de Miguel Reale. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris. ), valor (Bagolini, 1952), conjectura ( Pimentel, 1988PIMENTEL, Manoel Cândido (1988), “A noção de conjectura em Miguel Reale”. O pensamento de Miguel Reale: Atas do IV Colóquio Tobias Barreto. Viana do Castelo: Câmara Municipal, pp. 103-111. ), norma jurídica (Ferraz Júnior, 1981), fato ( Lamand, 1966LAMAND, Francis (1966), “Le fait et le droit”. Révue de Métaphysíque et de Morale, 76eannée, n. 1, janvier-mars, pp. 54-73. ), assim como à forma como ele concebia o problema do conhecimento (Llorente, 1978; Olmedo, 1978; Brito, 1998BRITO, Antonio José de. (1998), “Os limites do conhecimento em Miguel Reale”, O Pensamento de Miguel Reale: Atas do IV Colóquio Tobias Barreto. Viana do Castelo, Câmara Municipal, pp. 89-101. ).

Como se poderia esperar, sua teoria tridimensional do direito recebeu uma atenção particular por parte dos estudiosos (Cella, 2001; Czerna, 1999CZERNA, Renato Cirell. (1999), O pensamento filosófico e jurídico de Miguel Reale. São Paulo, Saraiva. ), embora os outros aspectos da sua contribuição jurídica não tenham sido deixados de lado, como pode ser atestado pela importante obra coletiva organizada por Teófilo Cavalcanti Filho (1977). Convém ressaltar os igualmente importantes estudos de Antonio Paim sobre o culturalismo de Reale (Paim, 1971; 1974; 1977). No campo da história, o jurista paulista foi inevitavelmente um dos atores investigados por Hélgio Trindade em seu importante estudo sobre o integralismo (1979), e o trabalho pioneiro sobre o seu pensamento político foi o de Ricardo Benzaquem de Araújo (1988)ARAÚJO, Ricardo Benzaquem de. (1988), In Medio Virtus: Uma análise da obra integralista de Miguel Reale. Rio de Janeiro, CPDOC-FGV. . Mais recentemente, João Fábio Bertonha (2017)BERTONHA, Fábio. (2017), “O pensamento corporativo em Miguel Reale: leituras do fascismo italiano no integralismo brasileiro”, in BERTONHA, Fábio. Fascismos e antifascismos italianos. Ensaios. Caxias do Sul, Educs, pp. 163-176. buscou analisar a circulação de ideias entre Reale e os escritores fascistas italianos e Pedro Ivo Dias Tanagino (2018), a partir da perspectiva contextualista da Escola de Cambridge, analisou os escritos realeanos da década de 1930 dando ênfase a temas como a teoria da história e historiografia, teoria do direito e do Estado corporativista e o papel do historiador na construção do Estado. Especificamente sobre o Reale político “pós-integralista”, há poucos estudos entre os quais se destaca o de Rodrigo Jucerê Mattos Gonçalves (2016)GONÇALVES, Rodrigo Jucerê Mattos. (2016), A restauração conservadora da filosofia: o instituto brasileiro de filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1969). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Goiás, Goiás. , ao qual voltaremos ao longo do artigo. Corolário dessa compartimentação disciplinar, a maioria desses estudos foi realizada a partir da perspectiva dessas distintas áreas, ou seja, com o instrumental teórico, as categorias de análise e a metodologia utilizadas por pesquisadores da área do direito, da filosofia e da história.

Nesse artigo, esperamos trazer uma contribuição por meio de um estudo sobre o pensamento político de Reale a partir de uma perspectiva resolutamente politológica – mais especificamente da história intelectual, entendida como o estudo e elucidação das obras em sua historicidade ( Dosse, 2003DOSSE, François. (2003), La marche des idées. Histoire des intellectuels – histoire intellectuelle. Paris, La Découverte.: 11). Essa perspectiva busca dar conta das produções, percursos e itinerários para além das fronteiras disciplinares. Assim, autores como Pierre Rosanvallon e Reinhart Koselleck foram referências importantes para pensarmos a historicidade dos conceitos elaborados por Reale, a sua dimensão criadora de experiências políticas concretas ( Bernardi, 2015BERNARDI, Bruno. (2015), Bernardi, “Pour une histoire conceptuelle du politique. Questions de méthode”, in S. Al-Matary e F. Guénard (eds.), La démocratie à l’œuvre. Autour de Pierre Rosanvallon. Paris, Éditions du Seuil, pp. 31-48. (E-Book).: 37; Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. (2006), Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, Contraponto/Editora PUC-Rio.: 326) e a sua relação com seus respectivos contextos de produção.

Em outras palavras, mesmo privilegiando a obra de um único autor, nossa análise pretende ir além da exposição da sua visão de mundo. Ela possibilita demonstrar como um dos principais nomes do autoritarismo brasileiro concebeu os problemas políticos do seu tempo e como buscou oferecer soluções para eles a partir da forma como concebia a vida em comunidade. Dessa forma, foi possível acompanhar a construção progressiva de um pensamento político autoritário-conservador onde se articularam dimensões jurídica, filosófica e política. Paralelamente, identificamos como ele fundamentou o seu autoritarismo, ao mesmo tempo em que criou e deu um sentido particular a conceitos políticos, tais como os de democracia, revolução, liberalismo, constitucionalismo etc.3 3 . Dito isso, estamos cientes que a utilização de Pierre Rosanvallon e Reinhart Koselleck traz algumas limitações para o tipo de análise que estamos fazendo nesse trabalho. Tanto Rosanvallon como Koselleck empreenderam em seus trabalhos análises de longa duração, seja sobre as distintas concepções da democracia no caso do primeiro, seja sobre conceitos analisados em sua historicidade e em suas disputas também na longa duração, particularmente durante o período que ele denomina de Sattelzeit (1750 a 1850), no caso do segundo. Nesse sentido, são autores que oferecem insights, mas cujos métodos não podem ser replicados tais quais para o estudo que nos propomos a fazer nesse artigo. . Também recorremos à chamada “história dos intelectuais”, particularmente dos aportes que se pode tirar da reconstituição de itinerários intelectuais ( Sirinelli, 1986SIRINELLI, Jean-François. (1986), “Le hasard ou la nécessité ? Une histoire en chantier: l’histoire des intellectuels”. Vingtième siècle. Revue d’histoire. Vol. 9, n. 9, pp. 97-108. ; 2003).

Esse artigo está dividido em cinco segmentos. No primeiro, procuramos oferecer uma visão panorâmica do pensamento político de Reale nos anos 1930. No segundo, discutimos a construção do seu pensamento jurídico e filosófico, desde suas primeiras influências até a sua Teoria Tridimensional do Direito publicada no final da década de 1960. No terceiro, revisitamos duas noções fundamentais do pensamento de Carl Schmitt (1988a; 1988b), as de decisão e de poder constituinte, para analisar como Reale se apropriou delas para interpretar e legitimar o golpe de 1964 e a ditadura militar. No quarto, nos debruçamos sobre alguns dos seus escritos políticos das décadas de 1960 e 1970 para analisar em que medida suas reflexões jurídicas e filosóficas fundamentaram o seu pensamento político em sua maturidade. No quinto, enfim, apresentamos o que ele entendia por “democracia social”, modelo político que ele considerava adaptado para o Brasil.

O CORPORATIVISMO FASCISTA REALEANO DA DÉCADA DE 1930: UMA VISÃO PANORÂMICA

Miguel Reale nasceu em 6 de novembro de 1910 em São Bento do Sapucaí, em São Paulo, e se mudou para a capital do estado em 1921 para estudar na escola italiana Instituto Medio Dante Alighieri (Reale, 1987a:18). Reale diz que o “Dante” teve uma grande importância em sua formação política, especialmente graças a amizade que ele travou com dois professores anti-mussolinianos, os irmãos Dante e Francisco Isoldi. Enquanto Francisco se voltou para seus estudos de epigrafia e história da filosofia, não sendo particularmente atraído pela política, seu irmão Dante era um socialista admirador do teórico marxista italiano Antonio Labriola. Influenciado pelos dois professores, Reale afirma ter se tornado socialista e, em seguida, aderido ao revisionismo de Carlo Rosselli. No início de 1930, o jovem socialista ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo (Reale, 1987a:42). Foi durante seus anos de graduação que ele abandonou suas convicções socialistas revisionistas para se tornar um dos líderes da Ação Integralista Brasileira, com Plínio Salgado e Gustavo Barroso (Reale, 1987a:72).

Os anos que vão de 1932 a 1937 foram particularmente intensos para Reale. Ele se engajou em tempo integral no movimento de extrema-direita, viajando por todo o país como “Secretário Nacional de Doutrina” (Reale, 1987a:95-117), cargo que conseguiu conciliar com uma produção intelectual significativa. Durante esses cinco anos, ele publicou O Estado Moderno e Formação da política burguesa em 1934; O capitalismo internacional, ABC do integralismo e Perspectivas integralistas no ano seguinte; Atualidades de um mundo antigo em 1936 e Atualidades brasileiras em 19374 4 . Esses livros foram reunidos em três volumes republicados pela editora da UNB em 1983. . A primeira pedra na construção do pensamento realeano é, portanto, eminentemente política. Ela decorre não apenas da leitura de um amplo leque de autores brasileiros e europeus, mas sobretudo da sua militância no movimento integralista.

Como mencionamos na introdução, vários autores se debruçaram sobre os escritos de Reale dos anos 1930. Não temos a pretensão de oferecer, nos limites deste artigo, uma nova interpretação de sua “obra integralista”, nem discorrer longamente sobre as ideias nelas contidas. Convém destacar, contudo, alguns aspectos que nos parecem essenciais para a nosso exame da evolução do seu pensamento político. Entre esses escritos, O Estado Moderno , publicado em 1934, parece-nos um dos mais relevantes do período e permite uma avaliação do seu pensamento político nesse momento, marcado pelo seu caráter autoritário, antiliberal e trazendo uma proposta, para o Brasil, inspirada no modelo corporativista do fascismo italiano.

A crítica ao liberalismo é feita no segundo ensaio do livro supracitado, “O Estado Demo-liberal”, onde o autor retoma historicamente os fundamentos do liberalismo. Reale se propõe a demonstrar, em primeiro lugar, como essa doutrina criou um “sujeito transcendental”, portador de uma razão universal que determina o comportamento humano. O determinismo dessa razão universal gerou uma concepção negativa de liberdade que impediu a expressão das vontades individuais, entre elas a participação na vida do Estado. Em segundo lugar, para o jovem Reale, o liberalismo se transformou, a partir do final do século XIX, numa ficção que podia ser atestada a partir de três elementos: a perda de importância do indivíduo em detrimento de grupos, assim como a exploração de um grupo pelo outro em vez da propalada igualdade; a interferência do Estado em favor da burguesia no lugar da apregoada não-interferência; a perda do caráter nacional da soberania, transferida para sindicatos e cartéis. Sua crítica ao liberalismo é, portanto, ao mesmo tempo radical e erudita, e se estende, naturalmente, ao liberalismo brasileiro da Primeira República. A alternativa estava, para o recém-formado bacharel, no fascismo.

Não se tratava, contudo, de um fascismo totalitário, tal qual era defendido por ideólogos como Alfredo Rocco. O que Reale defendia era o Estado Integral, que buscava superar o que ele considerava uma contradição entre Estado e indivíduo. O funcionamento do modelo está num capítulo intitulado “Democracia Integral”. Argumenta que, numa democracia num território tão vasto quanto o Brasil, o eleitor desconhece os candidatos que se apresentam ao sufrágio e se desinteressam por eles. Além disso, o voto não tem significação, sendo descrito como uma expressão cívica ilusória. Assim, além de não se realizar a democracia em nível nacional, se corrompe a vida municipal. O jovem bacharel, então, sugere a experiência fascista em que a “democracia toma um sentido grupalista” (Reale, 1983:132).

Em que consiste essa “democracia”, única possível no Brasil, segundo Reale? Ela tem sua base no grupo profissional, ou seja, na sua expressão de sindicato. É nesse nível que a vida democrática, no sentido da autodeterminação, é possível. O sindicato não está isolado, ele estabelece laços com outros, em diversos níveis, formando federações e confederações. Em outro nível, acima de tais organizações, estão as corporações, que reúnem interesses comuns em um dado ramo da produção. Finalmente, no topo, deve existir um organismo coordenador, função que deve ser assumida pelo Estado, responsável por englobar as partes num todo orgânico, complementar e hierarquizado. Esse modelo de organização política permitiria a superação da sociedade liberal e do capitalismo, ao mesmo tempo preservando uma individualidade qualitativa e o papel ativo do Estado. Enquanto os sindicatos fazem a mediação entre os indivíduos e as corporações, as corporações fazem a mediação entre sindicatos e Estado. Hierarquicamente, de baixo para cima, as instâncias formadoras da pólis seriam o indivíduo, o sindicato, a corporação e o Estado.

Ao relembrar a década de 1930, Reale diz que não havia um “pensamento integralista” homogêneo (1987a:80). O nacionalismo, o corporativismo e o autoritarismo estavam na base do movimento, mas isso permitia construções ideológicas bastante diferentes, que ele distingue em três eixos: o do líder Plínio Salgado, fundado na doutrina social da Igreja e na exaltação nacionalista; o que ele mesmo defendia, voltado para problemas sociais e sindicais, por um lado, e para os problemas legais e institucionais do Estado, por outro lado; e um terceiro eixo, representado por Gustavo Barroso, fundado no antissemitismo.

Reale insiste num ponto: o movimento integralista não era uma mera aplicação do fascismo no Brasil. Ele não nega a influência do que ele chama de “primeiro fascismo”, em referência àquele que precedeu a ascensão de Hitler ao poder, e que ele considera “uma fase criativa, sob a influência de pensadores como Giovanni Gentile e Ugo Spirito, ou juristas como Giorgio del Vecchio, Antonio Navarra ou Ugo Redanò” (Reale, 1987a:72). Apesar desta influência fascista – que meio século depois diz ter sido “excessiva e ingênua” (1987a:83) – o movimento integralista teria sido impregnado das ideias dos pensadores brasileiros que, desde meados da década de 1910, se voltaram para problemas nacionais para propor soluções políticas, na maioria dos casos autoritárias.

A CONSTRUÇÃO DE UM PENSAMENTO JURÍDICO E FILOSÓFICO

As primeiras obras jurídicas e filosóficas de Reale são posteriores à sua primeira militância política nas fileiras da extrema-direita brasileira e à sua obra integralista. Em 1938, após uma tentativa fracassada de golpe por parte dos integralistas, o jovem jurista seguiu para o exílio na Itália, onde passou pouco mais de um ano. Ele diz em suas memórias que, já decepcionado com o Brasil, se decepcionou também com o regime de Mussolini “quando o viu de perto” (Reale, 1987a:138-139). Seu rompimento oficial com o Integralismo ocorreu quando, da sua volta da Itália em 1939, passou a se dedicar mais aos estudos (Reale 1987a:144). Em 1941, Reale foi aprovado no concurso para a cátedra de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Nessa ocasião, ele publicou suas duas primeiras obras jurídicas: Fundamentos do direito (1940), tese apresentada no concurso, e Teoria do direito e do Estado (1940). Alguns anos mais tarde, ele publicou Filosofia do Direito (1953), livro que considera capital em sua trajetória, pois marcou o ponto de chegada das reflexões que ele vinha desenvolvendo em seus cursos desde 1941. Foi, segundo o autor, um passo conclusivo em sua contínua tentativa de “compreender a lei em sua integralidade racional concreta” (Reale, 1987a:163). Finalmente, já durante a ditadura militar, a publicação de dois outros trabalhos fez dele uma referência internacional no campo jurídico: Teoria Tridimensional do Direito (1968a) e O Direito como experiência (1968b).

Seu pensamento filosófico, por sua vez, começou a se desenvolver paralelamente ao jurídico, ganhando uma crescente proeminência a partir dos anos 1950 com a publicação de vários artigos. Esse pensamento seria sistematizado mais tarde em obras como Cultura e experiência (1977), O homem e seus horizontes (1979) e Verdade e conjectura (1983). A elaboração de uma teoria do conhecimento é o elo que associa, em sua reflexão, direito e filosofia. Aqui, novamente o exercício de síntese comporta um risco de simplificação não negligenciável. Entretanto, em que pese esse risco, buscaremos retraçar a evolução do seu pensamento privilegiando duas categorias intrinsecamente interligadas e que, do nosso ponto de vista, estão nos fundamentos da sua reflexão política a partir da década de 1950: as de experiência e cultura.

Como lembrou Tercio Sampaio Ferraz Júnior (1999FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. (1999), “La philosophie du droit au Brésil après la deuxième guerre mondiale: le role de Miguel Reale”, in Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, Miguel Reale: bibliografia e estudos críticos. Salvador, pp. 83-92. Disponível em: http://www.cdpb.org.br/antigo/miguel_reale.pdf. Acesso em: 27/12/2019.
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: 84), Reale, em sua primeira obra jurídica, Fundamentos do direito (1940), já opera uma ruptura considerável com relação a uma longa tradição jurídica e filosófica brasileira de cunho positivista. Essa ruptura foi possível graças a três importantes fontes intelectuais que o jurista brasileiro começou a estudar nos anos 1930, e com as quais travou um diálogo, ora absorvendo-as, ora se contrapondo a elas: o neokantismo alemão da Escola de Baden, o culturalismo jurídico da Escola do Recife e o normativismo jurídico de Hans Kelsen.

Do neokantismo da Escola de Baden, Reale absorveu a ideia de valor como elemento indispensável para o conhecimento. O retorno à filosofia de Kant na Alemanha de meados do século XIX se deu com vistas a pensar os fundamentos, os métodos e os limites da ciência (Reale e Antiseri, 1991:438). O neocriticismo – como passou a ser chamado – pretendia combater o fetichismo positivista do “fato” e a ideia de ciência metafisicamente absoluta, assim como a redução da filosofia à ciência empírica, à teologia ou à metafísica. Para os neokantianos, a filosofia devia voltar a ser o que era com Kant: análise das condições de validade da ciência e dos outros produtos humanos, como a moral, a arte ou a religião. Em outras palavras, o neocriticismo se importava menos com as situações de fato que pudessem se entrelaçar com a produção e a difusão de uma sociologia, do que com as condições de validade de uma teoria ou de uma norma, fosse ela moral ou jurídica.

Entre os neokantianos estudados por Reale estavam os dois principais representantes da Escola de Baden, Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert, expoentes de uma filosofia dos valores. Windelband atribuía à filosofia a função de buscar os princípios a priori que garantem a validade do conhecimento. São duas as novidades que ele introduz: por um lado, esses princípios são interpretados como valores necessários e universais , tipificados pelo caráter normativo independente de sua realização efetiva. Nesse sentido, a filosofia não tem por objeto juízos de fato, mas sim valorativos. É assim que os valores se distinguem das leis naturais: a validade das leis naturais é a validade do Müssen , a validade empírica de não poder ser de outro modo; a validade das normas, ou dos valores, é a do Sollen , isto é, do dever ser . Para Windelband, portanto, a filosofia consiste numa teoria dos valores: sua função é estabelecer quais são os valores que estão na base do conhecimento, da moralidade e da arte (Reale; Antiseri, 1991:448).

Heinrich Rickert, por sua vez, conhecido pelo esforço de fundar a autonomia do conhecimento histórico, vai retomar de Windelband a concepção da filosofia como teoria dos valores. Em sua análise das antíteses entre sujeito e objeto, ele nega que o conhecimento seja a relação do sujeito com um objeto transcendente, independente dele e com o qual o conhecimento deve se defrontar (Reale; Antiseri, 1991:448). A representação e a coisa representada são ambos objetos e conteúdos da consciência. Por isso, a sua relação é a que existe entre dois objetos de pensamento. Consequentemente, a garantia da validade do conhecimento não reside no ser, mas no dever ser . Como apontam Giovanni Reale e Dario Antiseri (1991):

[…] conhecer para Rickert quer dizer julgar, isto é, aceitar ou rejeitar, aprovar ou reprovar, o que implica no reconhecimento de um dever ser que está na base do conhecimento. Negar o dever ser é negar a norma e isto equivaleria a ratificar a impossibilidade de qualquer juízo, inclusive daquele que nega. Um juízo não é verdadeiro porque expressa aquilo que é; pode-se afirmar que algo é somente se o juízo que o expressa é verdadeiro por força do seu dever ser. E o dever ser, isto é, os valores, ou seja, as normas, são transcendentes em relação à consciência empírica (Reale e Antiseri, 1991:448)

A segunda fonte intelectual de Reale foi a Escola do Recife. Trata-se de um movimento intelectual que difundiu o naturalismo filosófico expresso no monismo evolucionista de Spencer, Haeckel e Noiré, e cujo polo institucional foi a Faculdade de Direito do Recife. O movimento não foi homogêneo, seu desenvolvimento se deu em várias fases e reuniu grandes nomes, entre os quais se destacam os de Sílvio Romero, Clóvis Bevilaquia, Fausto Cardoso, Martins Júnior, Arthur Orlando e Laurindo Leão ( Paim, 1966PAIM, Antonio Paim. (1966), A Filosofia da Escola do Recife. Rio de Janeiro, Editora Saga. ). A liderança inconteste coube, contudo, a Tobias Barreto. Se inicialmente os membros da Escola do Recife se expressaram pela poesia, eles se encaminharam em seguida pelas vertentes filosóficas do evolucionismo, do monismo e do kantismo, até culminar em sua expressão jurídica e social (Machado Neto, 1969:73).

Importa sublinhar, para os propósitos deste artigo, a contribuição desse movimento intelectual e de Tobias Barreto, em particular na supracitada ruptura, operada por Reale, no pensamento jurídico a partir dos anos 1940. Dois aspectos devem ser ressaltados. O primeiro é a crítica ao jusnaturalismo que, para Tobias Barreto, era incompatível com uma ciência social na medida em que o homem devia ser considerado em sua historicidade, o que por sua vez era incompatível com a ideia de universalidade de seus direitos originários e inatos. O segundo aspecto, mais relevante, é o seu culturalismo jurídico. Para Tobias Barreto, “o direito é uma obra do homem, ao mesmo tempo uma causa e um efeito do desenvolvimento humano” (Tobias Barreto apud Machado Neto, 1969:87). Foi através de uma crítica ao jusnaturalismo que o principal representante da Escola do Recife chegou à noção do direito como objeto cultural. Daí o caráter finalístico e axiológico da cultura, já presente em autores como Júlio Froebel – que havia descoberto a relação epistemológica entre natureza e causalidade, por um lado, e cultura e finalidade, por outro. Como lembra Machado Neto (1969:88), foi isso que levou Tobias Barreto a superar o mecanicismo de Haeckel, já que no território humano da cultura, o mecanicismo não apreende e explica plenamente a realidade.

A terceira fonte intelectual de Reale em sua juventude, enfim, foi o formalismo jurídico de Hans Kelsen, que funcionou mais como um contraponto para a sua concepção jurídica. Em suas memórias, o jurista brasileiro escreveu que “cada filósofo tem o seu duplo, e este pode ser um duplo por contraste. No meu caso pessoal, não hesito em dizer que Hans Kelsen desde cedo se tornou o parceiro ostensivo ou oculto do meu diálogo filosófico-jurídico, não obstante as profundas divergências que nos separam” (Reale, 1987b:15). O diálogo que Reale estabeleceu com Kelsen e, mais especificamente suas divergências, já se encontram em Teoria do Direito e do Estado .

Como se sabe, há para Kelsen (2016)KELSEN, Hans. (2016 [1945]), Teoria Geral do Direito e do Estado. Rio de Janeiro, Martins Fontes. uma correspondência entre Direito e Estado, não sendo possível conceber este último como realidade anterior ao sistema normativo que o estrutura. Ambos não são duas realidades jurídicas, mas uma única realidade: a normativa. O Estado não é senão um conjunto de normas jurídicas; sua existência não é natural, mas artificial, uma invenção humana elaborada com vistas a execução de certos objetivos ( Kelsen, 2016KELSEN, Hans. (2016 [1945]), Teoria Geral do Direito e do Estado. Rio de Janeiro, Martins Fontes. ; Sgarbi, 2019SGARBI, Adrian. (2019), O mundo de Kelsen. São Paulo, Marcial Pons.: 102). Em O Estado Moderno , Reale já havia criticado o formalismo kelseniano, crítica que vai se intensificar em Teoria do Direito e do Estado com a rejeição da identificação do Direito com o Estado.

Embora Reale considere Kelsen seu “duplo por contraste”, e que seja a referência a Carl Schmitt que prevaleça em seus escritos políticos dos anos 1960 e 1970, é importante mencionar a interpretação de Rodrigo Jucerê Mattos Gonçalves da apropriação de Kelsen por Reale. Para Gonçalves (2016:147 e seguintes), essa apropriação emerge com clareza em Filosofia do Direito (1953) e se traduz na consideração, por parte do jurista paulista, do dever ser no presente, dando um sentido autoritário à elaboração do jurista austríaco ao transferir a norma para um ato de vontade política. Ainda segundo Gonçalves, essa operação permitiu ao jurista a continuação do diálogo com o fascismo, em particular com Giovanni Gentile. Voltaremos mais adiante à interpretação de Gonçalves e às pontes que, segundo ele, Reale conseguiu estabelecer entre o liberalismo conservador e o fascismo.

O fato é que com Fundamentos do Direito (1940) e Teoria do Direito e do Estado (1940), Reale abriu o caminho no Brasil para uma discussão sobre o direito a partir de uma perspectiva historicista e culturalista. Em Fundamentos do Direito , já se encontra uma distinção entre três esferas: a esfera da natureza, constituída por fenômenos reais e ligados entre si por um elo de causalidade; a esfera ideal dos valores, que transcendem o sujeito e o objeto; e a esfera da cultura ( Reale, 1972REALE, Miguel. (1972 [1940]), Fundamentos do Direito. São Paulo, Revista dos Tribunais.: 179). Percebe-se nesse trabalho as influências da Escola de Baden. Essa via se consolidaria treze anos depois com Filosofia do Direito (1953). Este trabalho representa ao mesmo tempo um ponto de chegada, pois sistematiza uma série de reflexões que ele vinha realizando desde 1940, e o início de uma nova etapa na sua reflexão jurídica que iria culminar com a Teoria Tridimensional do Direito (1968).

Em que consiste a Teoria Tridimensional do Direito? Reale (1968a) entende a experiência jurídica a partir de três dimensões distintas, porém indissociáveis entre si, e que interagem dialeticamente: o fato, o valor e a norma. O fato é o conjunto de circunstâncias que rodeiam o ser humano. São ocorrências geradas seja pela natureza, seja pela ação humana, e que impactam a vida das pessoas. Os valores consistem na significação dada aos fatos pelos seres humanos em determinada época e local. O fato em si não tem significação, ele é julgado valorativamente pelos homens em função de uma determinada cultura: se é desejável ou indesejável, favorável ou desfavorável, bom ou mau. É a partir da consciência que existe e da busca de sentido para a sua existência, que o ser humano estipula os valores e os qualifica, construindo o mundo da cultura. A norma, enfim, é a relação que integra o fato e o valor. Em função de determinados fatos serem considerados valiosos ou não, será estabelecida uma regra para o reforço ou repulsa de determinada conduta humana em função do que é valorizado ou repudiado em uma certa cultura. A partir daí, se configura um ordenamento jurídico. Portanto, diante da concepção tridimensional, o direito é considerado uma experiência cultural, isto é, uma realidade resultante da natureza social e histórica da sociedade, o que exige que se considere tanto o que é natural quanto o que é construído. Nesse sentido, o Direito se apresenta como síntese ou integração entre ser e dever ser, entre fatos e valores (Reale, 1968; Gaziero, 2012; Czerna, 1999CZERNA, Renato Cirell. (1999), O pensamento filosófico e jurídico de Miguel Reale. São Paulo, Saraiva. ).

Se nos voltarmos agora para o pensamento filosófico de Reale, constataremos que o objetivo primordial da filosofia para ele não é a interrogação ontológica, ou seja, sobre o ser, mas sobre o conhecimento do ser. A filosofia não é apenas uma gnosiologia – a preocupação com a validade do conhecimento em função do sujeito cognoscente – mas uma ontognosiologia – que remete à relação a priori essencial entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento. É necessário considerar, portanto, as condições objetivas e subjetivas do conhecimento e o processo de implicação-polaridade entre sujeito e objeto pelo qual o conhecimento é alcançado (Teixeira, [s.d]:7)5 5 . Texto do filósofo português Antonio Braz Teixeira, intitulado “O criticismo histórico-axiológico de Miguel Reale”. O texto encontra-se na internet em PDF, mas sem a referência do local de publicação. Disponível em: http://cdpb.org.br/antigo/criticismo_historico_axiologico_de_miguel_reale.pdf . Acesso em: 26/12/2019. .

Immanuel Kant é o ponto de partida da reflexão filosófica de Reale, em particular a premissa do filósofo alemão de que a estrutura e a natureza do sujeito cognoscente condicionam transcendentalmente os objetos, contribuindo para a sua constituição gnosiológica. Reale (1977) julgava essa concepção insuficiente, operando um deslocamento na relação sujeito-objeto. Para ele, era necessário levar em consideração as condicionalidades sociais e históricas de todo o conhecimento e a natureza histórica do ser do indivíduo. Isso porque, como lembrou António Braz Teixeira ([s.d.]:5), o sujeito transcendental não é uma forma vazia e estática, mas se constitui nos processos de captação do real: o conhecimento é sempre uma correlação dinâmica entre o que há de imanente no sujeito que conhece e o que há de imanente no real. Nesse sentido, o sujeito do conhecimento está necessariamente ligado a suas condições histórico-sociais.

O criticismo de Reale, ontognosiológico, se pretende mais amplo do que o criticismo transcendental, pois não se limita às matemáticas e ciências naturais, mas abrange também a experiência ética. A ontognosiologia realeana sustenta que conhecer é conhecer algo num processo em que o espírito ordena, em novas sínteses, os dados múltiplos e esparsos da experiência conferindo-lhes sentido. O conhecimento então depende de um sujeito que visa a captar algo e fazê-lo seu, e um objeto já possuidor de uma estrutura objetiva. Dentro dessa construção, a noção de experiência ocupa uma lugar central. A experiência não é apenas uma fonte de conhecimento, mas também o domínio em que os entes se manifestam, sendo concebida como um complexo de formas e de processos por meio dos quais o ser humano procura certificar-se da verdade e da intercomunicabilidade das suas interpretações da realidade (Teixeira, [s.d.]:12).

É importante destacar que a noção de experiência implica a de valor, pois qualquer experiência envolve uma tomada de posição axiológica. Ou seja, toda ação – seja no sentido do conhecimento, seja da prática – pressupõe algo valioso que a justifique. A valoração precede, portanto, o ato de conhecimento e o ato de ação. Última observação a respeito da noção de experiência em Reale: ela se inscreve no domínio da cultura, sem a ela submeter-se. São termos complementares, mas não sinônimos, o primeiro é dinamizador da história enquanto o segundo é o conjunto de tudo o que o indivíduo conseguiu objetivar. Os conceitos de cultura e experiências, portanto, estão na fonte de um programa ético, que implica, necessariamente, aspectos políticos e jurídicos (Reale, 1987b:296).

DECISÃO E PODER CONSTITUINTE EM CARL SCHMITT

Tendo esclarecido o sentido dos conceitos de experiência e cultura em Reale, mais especificamente, como eles são filosoficamente e juridicamente fundamentados, é necessário acrescentar aquele que será o terceiro pilar do autoritarismo realeano em sua maturidade: o decisionismo, que toma diretamente de Carl Schmitt. No segundo volume de suas memórias, num capítulo intitulado “Revolução ou golpe de Estado?”, Reale discute o caráter da tomada de poder pelos militares e se o que houve em 1964 foi um golpe ou uma revolução (1987b:123-134). Em determinado trecho, o jurista afirma que se o ex-presidente militar Costa e Silva (1967-1969)

[…] não movera uma palha para o movimento de março, uma vez investido no Comando da Revolução, deu mostras de energia e de decisão incomum, alterando os rumos dos acontecimentos, até o ponto de converter o que poderia ter sido mais um golpe de Estado, de tipo latino-americano, em um autêntico ato revolucionário (Reale, 1987b:124).

Mais adiante, Reale reproduz o relato que Adhemar de Barros lhe teria feito de uma reunião entre Costa e Silva e os governadores favoráveis ao golpe, na qual definiu a escolha do mar. Castelo Branco como presidente da República. Para Reale, a forma como Costa e Silva liderou a reunião e tomou a frente do processo significava que, para o general, havia um fato revolucionário:

Ao ouvir essas palavras [de Adhemar de Barros], compreendi que para Costa e Silva havia um fato revolucionário que se legitimava por si mesmo, ainda que fosse pouco provável o seu conhecimento da tese decisionista. Foi, porém, essa posição teórica, inspirada nos ensinamentos de Carl Schmitt, que guiou os primeiros passos da Revolução, primeiro quando Costa e Silva se autonomeou Ministro da Guerra à testa do Comando Revolucionário, conjuntamente com o Vice-Almirante Tenente Brigadeiro Augusto Rademaker e o Brigadeiro Correa de Mello, dispensando o decreto com que o Presidente Ranieri Mazzilli pretendia investi-lo no Ministério; e, mais tarde, ao ser baixado um Ato Institucional que, em tese, não deveria ter número, visto destinar-se a uma fase de transição, à margem dos imperativos constitucionais (Reale, 1987b:126).

Em suas memórias, ao tratar da tomada de poder pelos militares – mais de 20 anos depois do ocorrido –, o jurista paulista afirmava, corretamente, que o decisionismo de Carl Schmitt estava todo no preâmbulo do Ato Institucional de 10 de abril de 1964, redigido por Francisco Campos. Para Reale, foi esse documento que legitimou a tomada de poder pelos militares e que a caracterizou como uma revolução e não como mais um golpe de Estado.

É desnecessário, para os propósitos deste artigo, examinar o pensamento de Carl Schmitt em seu conjunto. O jurista alemão é certamente um dos autores do século XX mais controvertidos, lidos e estudados, e seus conceitos foram apropriados por intelectuais e militantes das mais diversas colorações políticas, da extrema direita à extrema esquerda6 6 . Especificamente sobre o “trabalho da obra” de Carl Schmitt, ver MÜLLER (2007) e KERVÉGAN (2011) . . É imprescindível, contudo, revisitar especificamente dois conceitos chaves trabalhados pelo jurista alemão, para em seguida analisar de que forma eles foram apropriados por Reale.

O primeiro desses conceitos é o de decisão, que figura em um dos livros mais conhecidos de Schmitt, Teologia Política (1988 [1922]). É nesse trabalho que ele inicia seu combate contra o normativismo jurídico, atacando tanto a escola neokantiana, de forma geral, como Hans Kelsen, em particular. Schmitt vai opor a decisão política pessoal às normas abstratas que Kelsen identifica com o Estado. Schmitt refuta a ideia deste último, segundo a qual a ordem legal é um sistema de referências ligado a uma referência última e a uma norma fundamental última ( Müller, 2003MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press.: 22). Segundo o autor de Teologia Política , a ordem legal se funda numa decisão e não numa norma e, consequentemente, nenhuma norma enquanto tal pode ser soberana. Além do mais, o Estado pode ser confrontado a situações estranhas à norma7 7 . Como está claro no artigo, tanto Hans Kelsen quanto Carl Schmitt tiveram uma grande importância no pensamento de Reale. Como se sabe, os juristas austríaco e alemão travaram uma das maiores polêmicas jurídicas e intelectuais do século XX em torno da guarda da Constituição. Kelsen afirmou, em A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional ), que a anulação do ato inconstitucional é a principal e mais eficaz garantia da Constituição. Para isso, só um órgão diferente e independente do Parlamento ou de qualquer outra autoridade estatal – um Tribunal Constitucional – devia ser encarregado de anular seus atos institucionais. Carl Schmitt respondeu em 1931 com O guardião da Constituição , defendendo a ideia segundo a qual cabia ao chefe do Estado ser o guardião da Constituição. Não é possível aprofundar esse tema nos limites desse artigo. Sobre a polêmica entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, ver, entre outros, Herrera (1994) , Pinto (2015) e, sobre a sua importância para os dias de hoje, Costa Matos; Herrera; Pinto (2015). .

É importante destacar que, para Schmitt, a exceção não está subordinada a conceitos jurídicos, uma vez que toda ordem é fundada numa decisão e as normas só se aplicam numa situação normal (Schmitt, 1988:17). No limite, é a autoridade capaz de fazer frente à exceção que está no cerne da ordem legal. Nesse sentido, a exceção pode ser mais importante que a regra e ela pode ser mais interessante que o caso normal8 8 . Como ele afirma, “o caso normal não prova nada; a exceção prova tudo; ela não apenas confirma a regra: na realidade a regra vive apenas graças à exceção. Com a exceção, a força da vida real quebra a carapaça de uma mecânica presa na repetição” (apud Müller, 2007:597 de 7920). . Como Schmitt, Reale usará o conceito de decisão para legitimar a constituição de um Estado autoritário. Tanto para o jurista alemão quanto para o brasileiro, como veremos, é menos importante saber como as decisões são tomadas, e por quem, do que o fato delas serem tomadas. Em suma, o Estado não precisa estar submetido ao direito para criar o direito ( Müller, 2003MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press.: 23).

O segundo conceito é o de poder constituinte, tal como Schmitt elabora em sua Teoria da Constituição , publicada em 1928. Müller oferece uma boa síntese da teoria constitucionalista schmittiana. Em A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought (2003), ele afirma, a ambição de Schmitt é reconstituir uma teoria unificada do Estado num momento em que este parecer haver perdido suas funções de integração e participação. Schmitt faz uma distinção entre uma parte propriamente política da Constituição de Weimar e outra que releva do Estado de Direito ( Rechtsstaat ), liberal e apolítico. O componente político contém e formula a decisão em favor da constituição fundamental, ou seja, uma “decisão global” em favor da “forma de existência política” que o povo escolheu. O segmento apolítico tem por objeto a separação dos poderes e dos direitos individuais e contém disposições visando a proteger os cidadãos contra a potência política e não pode por si só constituir um Estado.

No que se refere à dimensão política da constituição, Schmitt a concebe essencialmente em termos de decisão livre da nação, sem fundamentação normativa. A nação não se confunde com o Estado, definido por Schmitt como o “ status de unidade política” (Schmitt apud Müller, 2003MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press.: 29). O Estado precede o “despertar nacional”, constituindo uma de suas condições, da mesma forma que os soberanos absolutos fizeram de seus países uma unidade política, e é nesse contexto que a nação “toma consciência de si”. Entretanto, a nação, além de dar ao Estado um novo conteúdo e uma nova “substância”, reforça a potência deste ao mobilizar o povo de forma constante e deliberada. A influência dos escritos de Sieyès (2009)SIEYÈS, Emmanuel Joseph. (2009), A Constituinte burguesa. Rio de Janeiro, Lumen Juris. em Schmitt sobre a soberania popular do Terceiro Estado é conhecida. O jurista alemão retoma as ideias do abade francês para afirmar que o poder constituinte supõe “a vontade consciente de existir politicamente, portanto uma nação”. O caso paradigmático é a Revolução Francesa, quando “um povo tomava seu destino em mãos com plena consciência e decidia livremente o gênero e a forma de sua existência política” ( Müller, 2003MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press.: 30).

A potência da nação é ilimitada por essência, precisamente porque ela não é constituída e que a vontade nacional permanece presente ao lado e acima da Constituição. Para mudar a Constituição, basta que a “substância” do Estado, ou seja, a nação, se reafirme no imediatismo da sua potência absoluta. A potência constituída, ou seja, o Estado, por mais poderosa que possa parecer exteriormente, depende sempre da vontade de uma nação substancial enquanto poder constituinte e de sua capacidade a interromper cada dia essa potência política tal qual ela é constituída.

Resumindo, Schmitt (2008)SCHMITT, Carl. (2008), Constitutional Theory. Durham and London, Duke University Press. afirma que o Estado se funda em dois princípios, o da identidade do Volk presente enquanto unidade política quando ele está em medida de distinguir amigo e inimigo em virtude de sua própria consciência política e da sua vontade nacional, e o da representação em razão da qual a unidade política é encarnada pelo governo. Segundo a interpretação da obra de Schmitt por Müller (2003)MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press. , há por trás de uma aparente interpretação do constitucionalismo democrático liberal uma oposição ao liberalismo e à democracia. Essa oposição, como veremos, também é observada nos escritos de Reale. Para Schmitt, como para o jurista brasileiro, a noção de democracia não tem muito a ver com nenhuma forma de autodeterminação coletiva. A democracia é afirmada em aparência, mas impedida e tornada compatível com o autoritarismo ( Müller, 2003MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press.: 31).

Os conceitos de experiência, cultura e decisão tendo sido examinados em suas dimensões jurídicas e filosóficas, podemos agora analisar como fundamentaram o pensamento político de Reale.

O AUTORITARISMO REALEANO: DECISIONISMO, EXPERIÊNCIA E CULTURA

Sublinhamos na introdução o caráter mutável e multifacetado do pensamento de Reale. Sua trajetória tampouco foi linear. Suas redes políticas e intelectuais não se limitavam, naturalmente, a personalidades autoritárias, tendo ele se aproximado, em determinados períodos, tanto de atores políticos liberais quanto populistas. Uma análise rigorosa do seu pensamento exige levar em conta essa complexidade e a heterogeneidade de ideias que o compõe. Isso implica se situar no contrapé de uma parte da historiografia que o categorizou como um autor “integralista” ou como mais um “autoritário” entre outros tantos. Nesse sentido, o período da sua vida que vai da ruptura com o movimento integralista até o golpe de 1964 é particularmente significativo.

Durante esses anos, Reale expandiu consideravelmente seu campo de atuação. Politicamente, ele não aderiu nem ao “clientelismo” do Partido Social Democrático (PSD) nem às “abstrações jurídico-formais” da União Democrática Nacional (UDN), segundo suas palavras, e fundou o Partido Popular Sindicalista (Reale, 1987b, p. 194). Nota-se, no Manifesto desse partido, em parte transcrito em suas memórias, resquícios de alguns dos seus ideais dos anos 1930 como a defesa de um Estado centralizado organizador da sociedade através dos sindicatos (Reale, 1987b, p. 195). Tendo o partido fracassado nas eleições de 1946, Reale resolveu reunir pequenas forças políticas, entre elas o Partido Republicano Progressista (PRP) de Adhemar de Barros. Foi dessa fusão que saiu o Partido Social Progressista (PSP) e que teve início uma longa e complicada parceria entre o jurista e aquele que é considerado uma das grandes figuras do populismo no Brasil. Como consta em suas memórias, Reale buscou “valer-se do prestígio pessoal de um líder para a realização de uma série de ideias que me pareciam necessárias ao País”; entretanto, ainda segundo ele, “o adhemarismo acabou engolindo o social-progressismo ” (Reale, 1987a, p. 198)9 9 . Sobre o integralismo no pós-guerra, além de Gonçalves (2016) , discutido com mais detalhes ao longo desse artigo, ver Calil (2001) , que estudou a formação do PRP de Plínio Salgado; Gonçalves (2017) , que abordou o tema a partir da trajetória de Plínio Salgado; e Gonçalves e Caldeira Neto (2020) , que publicaram recentemente uma história do integralismo, da sua formação nos anos 1930 até o neointegralismo dos dias atuais. Especificamente sobre Adhemar de Barros e o PSP, ver Sampaio (1982) . .

Com relação a sua atuação no campo intelectual, além da sua primeira e curta gestão como reitor da Universidade de São Paulo (USP) entre 1949 e 1950, ele criou o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) em outubro de 1949. O objetivo do IBF era, segundo seu fundador, ajudar os filósofos brasileiros a “participar do diálogo universal das ideias” e não apenas “assimilar o que vinha do exterior”. Esse objetivo devia ser atingido por meio da publicação de autores brasileiros, do auxílio para participação do Brasil em colóquios internacionais de filosofia e da organização de colóquios no país (Reale, 1987a, p. 220). Ele também criou a Revista Brasileira de Filosofia (RBF) em 1950.

Há poucos estudos sobre o Reale especificamente político do período pós-integralista, entre os quais se destacam os de autoria de Ronaldo Poletti (1981), de Celso Lafer (1981)LAFER, Celso. (1981), “Direito e Poder na reflexão de Miguel Reale”, in Miguel Reale na UNB. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, Coleção Itinerários, pp. 57-89. e de Rodrigo Jucerê Mattos Gonçalves (2016)GONÇALVES, Rodrigo Jucerê Mattos. (2016), A restauração conservadora da filosofia: o instituto brasileiro de filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1969). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Goiás, Goiás. . Enquanto o texto de Poletti é bastante panorâmico e esquemático, o de Lafer buscou realçar a combinação do pensamento e da ação em Reale. Este segundo se propõe a examinar a relação entre direito e poder na obra do jurista e, para tal, destaca notadamente a sua obra jurídica e sua Teoria Tridimensional do Direito, passando ao largo da sua obra propriamente política da maturidade. Assim, para este autor, o poder em Reale deve ser compreendido na perspectiva tridimensional como um dado externo e independente à norma, mas também como um meio para alcançá-la (Lafer, 1981:219). Nosso exame do pensamento do jurista não se contrapõe às conclusões de Lafer, embora, como demonstraremos adiante, tenhamos buscado dar mais consistência à análise integrando nela suas obras políticas.

É com o estudo de Gonçalves que acreditamos poder travar um diálogo mais fecundo. Numa tese de doutorado intitulada A restauração conservadora da filosofia: o Instituto Brasileiro de Filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1968) (2016), Gonçalves resgatou o conceito de aparelho de hegemonia filosófico para analisar precisamente o papel da USP, do IBF e da RBF como instrumentos de formulação de uma ideologia autocrática que deveria servir, em última instância, ao rearranjo das estruturas de poder da classe dominante. Na visão do autor, esse esforço da classe dominante foi bem-sucedido uma vez que ela foi vitoriosa com o golpe de 1964. Ainda com relação a esse processo de rearranjo das estruturas de poder, no qual essas três instituições e especialmente Reale exerceram um papel de primeiro plano, uma etapa importante se deu com a publicação de duas obras políticas do jurista, Parlamentarismo brasileiro (1962) e Pluralismo e liberdade (1963).

Para Gonçalves, no primeiro trabalho, “o autor faz uma profissão de fé parlamentarista”, enquanto no segundo, “ele busca o desenvolvimento da política a partir do autoritarismo jurídico (da fase do fascismo pós-integralista) e, como sugere o título, um diálogo com o liberalismo” (Gonçalves, 2016, p. 207). Mais adiante, Gonçalves examina essas duas obras de forma aprofundada. Com relação a Parlamentarismo brasileiro , ele afirma que o jurista paulista via no parlamentarismo uma solução para a crise política que o Brasil atravessava nos primeiros anos da década de 1960 ( Gonçalves, 2016GONÇALVES, Rodrigo Jucerê Mattos. (2016), A restauração conservadora da filosofia: o instituto brasileiro de filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1969). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Goiás, Goiás. , p. 208). Concordamos com a afirmação de que, apesar de uma defesa do parlamentarismo, o pensamento de Reale permanece fundamentalmente antidemocrático ( Gonçalves, 2016GONÇALVES, Rodrigo Jucerê Mattos. (2016), A restauração conservadora da filosofia: o instituto brasileiro de filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1969). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Goiás, Goiás. , p. 209). Já com relação a Pluralismo e liberdade , o autor afirma que ele “promove um diálogo entre o fascismo e o liberalismo, buscando uma unidade orgânica” (2016, p. 212). Ainda segundo Gonçalves, “há uma adesão a uma concepção tecnocrática do poder, de acordo com o liberalismo autocrático em sua versão mais conservadora” e “uma proposta renovada de conciliação de classes” (2016, p. 213).

O estudo de Gonçalves é uma relevante contribuição para a compreensão das forças políticas e intelectuais conservadoras atuantes entre as décadas de 1950 e 1960, particularmente sobre o papel de Reale. Embora não compartilhemos os mesmos referenciais teóricos e categorias de análise, concordamos com o autor em grande parte da sua avaliação desses dois trabalhos do jurista paulista da primeira metade da década de 1960. Com relação à problemática do parlamentarismo em Reale, como mencionamos, ele já é defendido desde o Manifesto do Partido Popular Sindicalista , sendo em seguida sistematizado em Parlamentarismo brasileiro . Pensamos que o jurista o via mais como um instrumento para a autoritarização e, no momento de sua publicação, de combate contra João Goulart, do que como um regime ideal para o país.

No que se refere à Pluralismo e liberdade , vemos menos uma adesão de Reale ao liberalismo, do que uma acomodação do jurista a esse ideário político no contexto da experiência semidemocrática de 1945-1964. De fato, o autor faz concessões ao liberalismo, expressas notadamente em passagens como a que descreve o “legado” do liberalismo afirmando que dele “sobrevive um feixe de conquistas ideais [...] que é o valor singular do indivíduo no seio da comunidade política, o seu direito de exercer a ‘livre crítica’ [...]; a sua firme consciência dos limites do poder soberano” (Reale, 1963, p. 293). Entretanto, o livro reúne um conjunto de ensaios que versam mais sobre o que o jurista chama o “ser do homem” e sua liberdade ontológica do que propriamente sobre o liberalismo político. Como veremos a seguir, a crítica contundente que Reale faz ao liberalismo, já presente em sua obra integralista, é retomada após a publicação dessas duas produções, especialmente após o golpe de 1964. Esse acontecimento, uma revolução em sua visão, deveria abrir um novo ciclo na vida jurídica do país, sendo o “formalismo abstrato” do liberalismo considerado inclusive, nesse contexto, uma das grandes ameaças ao “processo revolucionário”.

É imprescindível trazer para a análise a proximidade do jurista com o populismo adhemarista, por um lado, e sua acomodação com o liberalismo, por outro, para apreendermos o caráter cambiante e multifacetado da trajetória e do pensamento realeano. Contudo, não podemos perder de vista que sua versatilidade – assim como a própria possibilidade de acomodação entre o liberalismo, o populismo e o fascismo – se dá sob um pano de fundo profundamente autoritário cujos pilares são em última instância o anticomunismo e a demofobia. O primeiro é entendido aqui segundo a definição de Becker e Bernstein (1987, p. 10), como referindo-se a grupos e indivíduos dedicados à luta contra o comunismo, pela palavra e pela ação; já o segundo, como o receio por parte das elites sociais de que a ampliação da participação cívica para além do seu círculo, numa perspectiva de democratização da vida social, desencadearia a desordem, a subversão e afinal a decadência do mundo político e civilizado ( Lynch, 2014LYNCH, Christian Edward Cyril. (2014), Da monarquia à oligarquia. História institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930), São Paulo, Alameda. , p. 249).

Após a vitória do movimento de 1964, Reale foi demitido da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, cargo para o qual fora nomeado pela segunda vez por Adhemar de Barros em 1962. Em suas memórias, ele não entra nos detalhes desta demissão, limitando-se a dizer que o governador de São Paulo, depois de ter usado seus serviços em momentos perigosos, lhe licenciara. Ele acrescenta ainda que não podia reclamar, pois aceitara o cargo consciente dos “riscos que as circunstâncias o levaram a assumir” (Reale, 1987b:112). Apenas poucos meses depois, em outubro de 1964, ele publicou Imperativos da Revolução de Março , um livro cujo objetivo era fornecer legitimidade histórica e jurídica ao novo regime.

Nesse trabalho, Reale refuta a crítica segundo a qual o movimento que levou os militares ao poder era desprovido de programa e se propõe a mostrar os rumos que a “revolução” devia tomar. Para o jurista brasileiro, a “revolução de 31 de março” era desprovida de programa só em “aparência”, pois ela era, na verdade, a fase final de um “processo de afirmação nacional iniciado em 1922” ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 9-10). Imperativos da Revolução de Março foi a primeira tentativa de uma explicação coerente da tomada de poder pelos militares sob ângulo da direita autoritária. Podemos separar os ensaios publicados nessa coletânea em três blocos distintos: um primeiro, que consiste em uma tentativa de fornecer uma base histórica para o evento que acabara de ocorrer, inscrevendo-o um processo revolucionário de média duração cujo início seria 1922; um segundo, que versa sobre os problemas político-institucionais que precederam a intervenção dos militares; um terceiro, enfim, em que o jurista se propõe a listar as medidas mais urgentes a serem adotadas pelo novo regime. Além dos ensaios, encontramos uma palestra, proferida em 17 de abril de 1964; uma entrevista para o jornal A Gazeta , publicada em 7 de maio de 1964; e, finalmente, uma proclamação radiofônica lida na noite de 1 de abril de 1964, algumas horas após a vitória dos militares.

O capítulo intitulado “O Ato Institucional e a revolução da opinião pública” oferece uma perspectiva interessante para examinarmos o uso que Reale faz de Carl Schmitt para legitimar a tomada do poder pelos militares. Segundo ele, a ruptura de 1964 foi o resultado de uma crise institucional. Essa crise teria sido provocada pela classe política pois, em sua origem, estava a ausência de autoridade tanto do poder Executivo quanto do poder Legislativo. De acordo com a interpretação do jurista brasileiro, feita no calor dos acontecimentos, a unidade do país – ou “ideia federal”, termo também utilizado por ele – esteve sob grave ameaça nos primeiros meses de 1964. Frente a esse risco de fragmentação e guerra civil, logo de ameaça da própria existência da comunidade nacional, três estados da federação conseguiram manter a unidade do país graças a atuação dos seus governadores: São Paulo, governado por Adhemar de Barros; Minas Gerais, governado por Magalhães Pinto; e a Guanabara, governada por Carlos Lacerda. Seguindo a interpretação de Reale, o país teria começado a se “desviar” da democracia com Jânio Quadros em 1961, desvio que foi acentuado quando João Goulart assumiu o poder naquele mesmo ano. É nesse sentido que o jurista considerava a “revolução” de 1964 como um ato de “resistência” ao “desvio da linha democrática” iniciado três anos antes. A ideia de um “Brasil autêntico”, tão presente no pensamento autoritário dos anos 1930, volta à tona nos escritos políticos de Reale nos anos 1960. Ele escreve:

Nada de extraordinário, por conseguinte, que em determinado momento os governadores dos Estados tenham denunciado os repetidos atentados às autonomias estaduais e à ordem pública, bem como greves políticas dirigidas que arrasavam a produção nacional — passando, assim, a representar o Brasil autêntico, fiel ao sentido de sua continuidade histórica. O governo da República é que se punha, pois, em estado de conspiração subversiva, legitimando a reação das forças democráticas ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 96).

Ele então completa seu argumento:

Quando o governo central falta à fidelidade federativa, o ‘direito à revolução’ surge de maneira natural como um imperativo da sobrevivência nacional. A revolução de março não foi, porém, uma revolução de governadores, mas sim uma revolução do povo brasileiro que, no momento crítico, teve como seus intérpretes os governadores dos Estados, convertidos em depositários do compromisso comum ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 96).

Há um termo que Reale utiliza que merece um exame mais aprofundado: “direito à revolução”. Entra-se aqui num debate político-jurídico de grande complexidade, e é nessa discussão que ele recorre ao decisionismo de Carl Schmitt. Em que circunstâncias uma ruptura institucional é justificável? Para Reale, ela é justificável, em primeiro lugar, por uma questão de sobrevivência da nação: a “revolução” foi a única maneira salvar a nação. Mas ele vai mais além nessa questão propriamente jurídica sobre a legitimidade de certas rupturas institucionais por meio de uma discussão sobre o primeiro Ato Institucional, promulgado em 10 de abril de 1964. Não é à toa que esse documento recebe tratamento especial, pois, para o autor, ele vai legitimar juridicamente a tomada de poder pelos militares. É para fundamentar esse argumento que ele se apropria das teses de Carl Schmitt discutidas acima.

O jurista brasileiro sustenta que o “ato revolucionário” implicou automaticamente a ruptura da ordem jurídica existente, sobretudo porque a Constituição de 1946 se revelara incapaz de proibir os planos do “comunismo internacional” ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 100). Frente a essa situação, os líderes da “Revolução” viam, a princípio, apenas dois caminhos possíveis a seguir: ou o fechamento do Congresso Nacional, o que implicaria a instauração de uma ditadura; ou a sua manutenção, o que implicaria a conservação das “antigas estruturas”. O problema é que, para Reale, nenhuma das duas opções eram aceitáveis “do ponto de vista democrático”. Buscou-se, então, uma “terceira via”: tratava-se do Ato Institucional (1965:102).

Embora amplamente conhecido, vale reproduzir um trecho do seu preâmbulo, redigido por Francisco Campos. Depois de afirmar que a tomada do poder pelos militares havia sido uma “autêntica revolução”, o célebre jurista da Constituição de 1937 e profundo conhecedor da obra de Carl Schmitt escrevia10 10 . Sobre a Francisco Campos leitor de Carl Schmitt, ver notadamente SANTOS (2007 ; 2009). :

A revolução vitoriosa se investe no exercício do poder constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do poder constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como poder constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir um novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao poder constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da nação, representam o povo e em seu nome exercem o poder constituinte, de que o povo é o único titular (apud Fico, 2014FICO, Carlos. (2014), O golpe de 1964: Momentos decisivos. Rio de Janeiro, FGV.: 99).

No preâmbulo do Ato Institucional estavam os conceitos schmittianos discutidos anteriormente, decisão e poder constituinte, como vontade consciente de existir politicamente como nação. Reale reforça essa linha interpretativa em Imperativos da Revolução de Março (1965). Se o povo como poder constituinte, por meio das Forças Armadas e de alguns governadores, havia decidido interromper uma determinada ordem política para criar outra, não era mais importante saber se a crise que precedeu a ruptura de 1964 poderia ter sido resolvida de outra forma: uma revolução, ele reforça, se legitima por si mesma, implantando um novo ciclo na vida jurídica mesmo se ela foi desencadeada com vistas à “preservação do sistema jurídico precedente” ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 101). Estamos aqui no cerne das teses da Teoria da Constituição de Carl Schmitt: o Estado é a potência constituída e, por mais que possa parecer poderosa do exterior, ela sempre depende da vontade de uma nação substancial em termos de poder constituinte e de sua capacidade de interromper essa potência política tal qual ela é constituída ( Müller, 2003MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press.: 30).

Se seguimos o raciocínio do jurista brasileiro, é forçoso constatar que a “revolução” estaria num impasse. Ela fora feita para preservar a ordem jurídica existente, mas esta última não conseguira preservar a nação contra os perigos aos quais fora exposta, nem realizar as reformas julgadas necessárias. Segundo ele, seria insensato “consolidar o trabalho revolucionário” dentro de um sistema julgado pelo povo “incapaz de preservar a Nação contra o comunismo e a corrupção” ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 99). Seria imperativo, portanto, superar esse impasse e estabelecer um novo sistema. Ele assumia abertamente uma posição minoritária no campo conservador naquele momento, ao menos em termos retóricos: autoritária, antiliberal e, poderíamos dizer “schmittiana”, que fazia um contraponto aos liberais que haviam apoiado o golpe. Reale julgava estes últimos excessivamente presos às “formalidades jurídicas”:

É bem possível que alguns prefiram diagnosticar uma simples ‘crise no sistema’, e não ‘do sistema’, operando-se apenas uma substituição nas cúpulas governamentais, volvendo-se calmamente às regras do primitivo jogo. Na realidade, porém, as correntes de opinião que vieram a prevalecer, determinando a queda do governo anterior, não cuidaram explicitamente dêste ou daquele quadro jurídico-normativo, mas atuaram em função de uma legalidade substancial, correspondente a um conjunto de valores éticos e cívicos, cuja expressão jurídico-formal cabe ser revelada pelos que assumiram a responsabilidade da insurreição armada, momento decisivo, mas não último, nem definitivo, do processo revolucionário [...] É inegável que assistimos, como reação às ameaças nacional-comunistas, à formação espontânea de uma ‘consciência comum de querer’ e, se no dizer de Gerber, o Estado é a expressão dessa consciência, cabe às elites, sobretudo, aos teóricos da Política e do Direito, trazê-la à plenitude expressional dos sistemas normativos, para que ela valha como ‘praxis‘ revolucionária. Foi o que se começou a fazer com o Ato Institucional ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 102).

Reale volta, então, a defender alguns aspectos polêmicos do Ato Institucional como os expurgos ocorridos após o golpe de Estado e o artigo nº 3, que fortaleceu o poder do Executivo. Quanto aos expurgos, eles teriam sido a consequência da ação revolucionária que implicava em si mesma a purga dos “elementos que traíram as funções que lhes foram confiadas, colocando em perigo iminente a comunidade nacional, salva pelo recurso extremo às armas” (Reale, 1965:103). O governo não podia, portanto, renunciar a esses poderes excepcionais para afastar esses inimigos do sistema político.

Mas os expurgos não eram suficientes para a imensa tarefa que se apresentava aos responsáveis ​​pela “revolução”, a saber, a reconstrução nacional. Reale examina, portanto, outro aspecto do Ato Institucional que está no centro de suas preocupações, o artigo no 3, que permitiu ao Executivo alterar a Constituição. Tratava-se de facilitar e acelerar o processo de reconstrução nacional em detrimento da perda de poder de uma parte do Legislativo. Ele argumenta que toda revolução sinaliza uma nova fase da vida do Direito, possuindo valores que justificam a instituição de normas de caráter excepcional, não apenas como uma defesa legítima do Direito que foi violado, mas também para se prevenir de outros ataques contra a ordem que se devia preservar e aperfeiçoar. Assim, quando se proclama que o poder revolucionário aloja o “poder constituinte”, reconhece-se, de fato, que a “revolução” está a serviço de uma “ideia do Direito” ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 106) que deve produzir resultados em breve. Nesse sentido, institucionalizar o processo revolucionário equivaleria a elevar “raiz ideológica” de onde ele provém, à “fonte ética” que impulsionou o uso da força, a saber, a preservação da unidade nacional e a luta contra o comunismo e a corrupção. Ele assumia assim uma posição claramente antiliberal e antiparlamentar:

Desejo desde logo declarar que, se o Artigo 3º for convertido em letra morta, sob o impacto de um liberalismo formalista e anacrônico, volveremos imperceptivelmente às regras do antigo e malfadado jogo, sem se realizarem as esperanças da nação. Ninguém mais divorciado da realidade do que os que, nesta hora, se apegam ao ‘purismo presidencialista’, deixando perder esta oportunidade magnífica de introduzir na Constituição de 1946 reformas que a técnica democrática de nossa época está a exigir, máxime à luz da amarga experiência dêstes últimos 18 anos ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 106-107).

No mesmo momento em que Reale se lançava nesse exercício de explicação dos mecanismos jurídicos implementados pelos militares e de defesa da instauração de uma nova ordem jurídica, ele colocava no banco dos réus o regime democrático anterior, insistindo particularmente no que ele considerava suas fraquezas. Nos capítulos “A crise do Legislativo, ponto vital da reforma do Estado” e “Na dança das Legendas”, seu alvo eram os partidos políticos pela sua falta de ideologia e de representatividade dos diferentes setores da sociedade civil. Mais uma vez, os ecos schmittianos, especificamente no que diz respeito à crítica ao parlamento, são indiscutíveis. A partir de 1923, o jurista alemão iniciou uma crítica sistemática ao parlamentarismo liberal, publicando notadamente um tratado intitulado Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus (1988 [1923])11 11 . Utilizamos aqui a edição francesa desse livro que foi intitulada Parlementarisme et Démocratie . Desconhecemos se há uma tradução para o português. . Nesse trabalho, como colocou Müller (2003)MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press. , Schmitt apresenta uma visão ideal do parlamentarismo tal qual ele teria existido no século XIX, quando uma elite burguesa representava o conjunto da população e discutia de forma aberta e racional para se chegar a escolhas políticas. No século XX, os partidos políticos teriam se tornado altamente disciplinados e com interesses particulares, passando a dominar debates em que negociatas haviam substituído as discussões abertas. Logo, se o Parlamento ainda existia, o parlamentarismo liberal tinha perdido, aos olhos de Schmitt, toda a legitimidade ( Müller, 2003MÜLLER, Jan-Werner. (2003), A Dangerous Mind: Carl Schmitt in Post-War European Thought. New Haven and London, Yale University Press.: 29).

Finalmente, ainda uma preocupação de Reale no imediato pós-golpe, como foi mencionado, era com a aparente ausência de uma ideia que deveria ter sido encarnada pelos “líderes revolucionários”. Assim, ele trabalha no sentido de dar à ruptura institucional e ao novo regime um fundamento histórico, inscrevendo-os em um processo que remonta aos movimentos políticos e culturais de 1922. A criação de uma legitimidade histórica permitiria identificar as transformações que a “Revolução” devia “imperativamente” iniciar, pois elas eram “legitimamente” pedidas por aqueles que, desde os anos 1920, estavam à procura da “alma nacional” ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 112). Essa ideia de que a origem da “revolução de 1964” estaria em 1922 é reforçada na entrevista que Reale deu ao jornal A Gazeta apenas um mês após o golpe, e que foi reproduzida no último capítulo de Imperativos da Revolução de março . A “revolução” de 1964 foi a última fase de um longo processo iniciado em 1922, um “esforço de nacionalidade à procura do nosso ser autêntico” ( Reale, 1965REALE, Miguel. (1965), Imperativos da Revolução de Março. São Paulo, Livraria Martins Editôra.: 112). O jurista coloca todas as revoluções, crises e tentativas de golpe do século XX brasileiro em uma linha de continuidade. A última, em 1964, seria aquela em que se revelaria o “estado de espírito” do povo cujo objetivo é sua própria afirmação. De acordo com Reale, os breves intervalos que separam cada um desses sobressaltos políticos mostram que o “ímpeto” revolucionário do povo sempre foi mantido vivo. Assim, a “revolução de 1964” seria a revelação da “maturidade cívica” do povo que teria permitido a sua vitória sobre o caudilhismo. Ele argumentava, nesse momento, que a urgência era encontrar um sistema que correspondesse às características brasileiras e que a última coisa a fazer era ficar bloqueado em noções abstratas de parlamentarismo e presidencialismo.

Na segunda metade da década de 1970, Reale publicou mais dois livros importantes: Da Revolução à Democracia (1977) e Política de ontem e de hoje (1978)12 12 . Trecho apresentado no Congresso do Brazilian Studies Association (Brasa XII), realizado entre os dias 20 e 23 de agosto de 2014 no King’s College (Londres, Reino Unido). . Os textos de Da revolução à democracia , em sua edição expandida de 1977 – a primeira edição foi publicada em 1969 –, foram escritos em momentos diferentes. Apesar da dificuldade de datar cada um com precisão, é possível distinguir aqueles que foram escritos na segunda metade dos anos 1960 dos que foram escritos cerca de dez anos depois. Entretanto, pensamos que eles se complementam e dão coerência ao conjunto do livro. Os primeiros três capítulos – “A Revolução de Março no contexto da nossa história política”, “Revolução e normalidade constitucional” e “Revolução e processo revolucionário” – foram provavelmente escritos entre 1966 e 1969 e defendem a legitimidade do movimento de 1964. A partir desse argumento central o autor faz uma conexão com o sexto capítulo – “Problemas de conjuntura política” – escrito em torno de 1977, no qual ele propõe uma “saída” da ditadura através de um modelo de democracia “adaptado ao Brasil”. Em outras palavras, houve uma revolução, ela foi legítima e agora se deveria sair dela. Nesses escritos, encontramos às noções de experiência e cultura, examinados anteriormente, fundamentando sua argumentação.

Para Reale, ocorreu uma revolução em 1964 e ela foi legítima, apesar de alguns “erros” terem sido cometidos durante seus os primeiros anos. Duas novas questões essenciais decorrem dessa convicção: como “institucionalizar o processo revolucionário” e passar para uma democracia “de fato”? E de que democracia se está falando? Segundo o jurista, o ponto de partida é resolver o que seria uma falsa oposição entre “revolução” e “ordem jurídica”. Trata-se, portanto, de uma reflexão sobre a relação entre Direito e revolução. Para o autor, ao contrário de um golpe de Estado, cujo objetivo é apenas a substituição ou a manutenção de um homem ou de um grupo no poder, uma revolução dá origem a uma nova ordem jurídica. Assim, a condição de existência de uma “revolução autêntica” é a instituição de um novo sistema na vida jurídica e política da Nação ( Reale, 1977REALE, Miguel. (1977), Experiência e cultura: para uma fundação de uma Teoria Geral da Experiência. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Editorial Grijalbo Ltda.: 37).

Este argumento sobre a legitimidade da “revolução”, desenvolvido desde 1964, é completado nesse momento por um exame de uma outra noção, a de “normalidade constitucional”. Segundo Reale, elas se opõem “apenas em aparência” (Reale, 1977:40). Ele argumenta que a ideia de “normalidade constitucional” não pode fazer referência a um retorno à Constituição de 1946, pois isso seria reconhecer a ilegitimidade da “Revolução”. Para o jurista, a noção de “normalidade constitucional” deve ser considerada de forma abstrata. Analisemos essa afirmação de forma mais circunstanciada. Reale afirma que insistir na ordem jurídica precedente teria implicado a rejeição da correlação entre o Direito e eventos como guerras, revoluções ou, de forma mais geral, movimentos armados. Ele defende, como Schmitt, que os eventos que rompem com as normas jurídicas impõem inevitavelmente soluções que não poderiam ser fixadas antecipadamente e que estão necessariamente em conflito com as disposições existentes.

Neste ponto do seu raciocínio, a relação entre seu pensamento político e jurídico emerge com força. Em O Direito como Experiência (1968b), particularmente no capítulo intitulado “Gênese e vida dos modelos jurídicos (a crise do normativismo jurídico e a exigência de uma normatividade concreta)”, Reale chama a atenção para a importância do surgimento e da constituição da ordem jurídica, processo que ele chamou de nomogênese . Como vimos quando abordamos sua Teoria Tridimensional do Direito (1968a), há para Reale três dimensões do fenômeno jurídico que se correlacionam de forma complementar: o fato, o valor e a norma, esta última integrando as duas primeiras. Esses elementos são igualmente indispensáveis na criação de uma nova ordem jurídica.

Se aplicamos seu pensamento jurídico ao momento do golpe de 1964, podemos enumerar, a partir das leituras dos seus escritos, quais eram os fatos que ele considerava relevantes naquele momento: a crise política e econômica que se acentuou ao longo do governo Goulart; ameaças de várias ordens, como o comunismo, a ascensão da classe trabalhadora que ele associava à anarquia e os riscos de desintegração do país. Mas os fatos isoladamente não criam uma ordem jurídica nova; é necessário “um complexo de exigências axiológicas” que podemos também identificar a partir dos seus escritos: a unidade nacional, a ordem, o anticomunismo, o antiliberalismo, o “caráter democrático do Exército”, entre outros. Finalmente, cabe assinalar a decisão para a nomogênese jurídica dada a incompatibilidade do direito com a incerteza ou carência de uma diretriz (Reale, 1968b:193). Em resumo, para Reale, toda norma jurídica

  1. Assinala um momento conclusivo , mas em um dado campo, visto achar-se inserida em um processus sempre aberto à superveniência de novos fatos e novas valorações;

  2. Não tem significação em si mesma, como uma expressão matemática, ou seja, abstraída da experiência ( normativismo abstrato ), mas vale na funcionalidade dos momentos que condicionam a sua eficácia ( normativismo concreto );

  3. Envolve uma prévia tomada de posição opcional, ou seja, uma decisão por parte do poder, quer se trate de um órgão constitucionalmente predisposto à emanação das regras de direito, quer se trate do poder difuso do corpo social, como acontece na hipótese das normas jurídicas consuetudinárias (Reale, 1968b:210).

O essencial, para o jurista, é levar em consideração os documentos sobre os quais os responsáveis da “revolução” fundaram sua legitimidade. Com relação a 1964, voltava a citar o primeiro Ato Institucional que não deixou dúvidas sobre a legitimidade do movimento porque, por meio dele, o “Comando Supremo da Revolução” teria estabelecido os alicerces do seu “poder constituinte” ( Cunha, 2014CUNHA, Diogo. (2014), Os intelectuais e a ‘revolução’: trajetória, escritos políticos e memórias de Miguel Reale (1961 - 1979). (Paper apresentado no Congresso do Brazilian Studies Association (Brasa XII), realizado entre os dias 20 e 23 de agosto de 2014 no King’s College). Londres, Reino Unido.: 10). Mas a reflexão explica igualmente a crítica que Reale fazia ao “formalismo” e à “abstração” dos liberais. Assim, a Constituição promulgada em 1946 não deve ser considerada um “arquétipo da ordem jurídica ideal” ( Reale, 1977REALE, Miguel. (1977), Experiência e cultura: para uma fundação de uma Teoria Geral da Experiência. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Editorial Grijalbo Ltda.: 41) apenas porque foi promulgada por uma Assembleia Constituinte eleita democraticamente. Pelo contrário:

A ‘normalidade constitucional’ deve ser entendida como a organização jurídica do Estado correspondente às exigências atuais da sociedade brasileira, desde o momento em que o surto do fenômeno revolucionário, como fato histórico inamovível, vale como negação da ordem jurídica anterior, que não pode deixar de ser havida como superada ( Reale, 1977REALE, Miguel. (1977), Experiência e cultura: para uma fundação de uma Teoria Geral da Experiência. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Editorial Grijalbo Ltda.: 42).

Na segunda metade da década de 1970, quando Reale escrevia essas linhas, a verdadeira questão era saber

como se deverá atingir a ‘normalidade constitucional’ na concretude das circunstâncias presentes, com largueza de compreensão quanto às perspectivas do futuro de uma Nação que, desde 1922, tem vivido em intermitente processo revolucionário, na busca incessante de sua própria imagem, a qual somente será encontrada pela auto-afirmação de nossos valores próprios, enriquecendo o cenário dos valores universais e nestes nos inserindo com consciência plena de nossa autonomia cultural ( Reale, 1977REALE, Miguel. (1977), Experiência e cultura: para uma fundação de uma Teoria Geral da Experiência. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Editorial Grijalbo Ltda.: 43).

EM BUSCA DE UM MODELO POLÍTICO PARA O BRASIL: “DEMOCRACIA SOCIAL” OU “ESTADO DE CULTURA”

Como vimos, para Reale, o caráter “abstrato” de certas noções não deviam ser aplicadas à realidade brasileira enquanto “arquétipos ideais”, entre elas, a de democracia. Segundo o jurista, não existe um modelo de democracia “pura” que deve ser alcançada por todas as sociedades. Pelo contrário, todos os regimes políticos devem ser concebidos levando-se em conta a experiência histórica de cada povo e suas “condições e circunstâncias culturais” (Reale, 1977:136). A questão democrática devia ser considerada em sua relação com a realidade e haveria vários caminhos para sua realização. Segundo esta visão, o Brasil não se adaptaria nem ao “liberalismo abstrato”, onde a política democrática é “condenada por demagogos e oportunistas”, nem a “solução totalitária”, que impõe uma “mudança radical, anestesiando o indivíduo pelo impacto de uma propaganda astuta” ( Reale, 1977REALE, Miguel. (1977), Experiência e cultura: para uma fundação de uma Teoria Geral da Experiência. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Editorial Grijalbo Ltda.: 138). O ideal defendido por ele seria um terceiro caminho: uma “democracia social” – que também chama de “Estado da Cultura” – onde se poderia conciliar as exigências de um governo forte com a responsabilidade de traduzir as expectativas das pessoas em suas ações. Em suas palavras, “um povo livre [...] graças a um sistema de representação que assegura a legitimidade das opções escolhidas, e permite a liberdade de comunicação e de informação” ( Reale, 1977REALE, Miguel. (1977), Experiência e cultura: para uma fundação de uma Teoria Geral da Experiência. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Editorial Grijalbo Ltda.: 139).

A “Revolução de Março” teria respondido aos “imperativos da afirmação nacional” e as diretrizes de sua institucionalização deveriam ser o estabelecimento de estruturas jurídicas e políticas capazes de assegurar a continuidade da política do desenvolvimento, em ordem e segurança. Para fazer isso, Reale insistia na necessidade de combinar a manutenção dos “imperativos da Revolução de 1964” com a diminuição do “quantum despótico” até alcançar a existência exclusiva de preceitos constitucionais ( Cunha, 2014CUNHA, Diogo. (2014), Os intelectuais e a ‘revolução’: trajetória, escritos políticos e memórias de Miguel Reale (1961 - 1979). (Paper apresentado no Congresso do Brazilian Studies Association (Brasa XII), realizado entre os dias 20 e 23 de agosto de 2014 no King’s College). Londres, Reino Unido.: 17).

Reale expôs em vários escritos, entrevistas e conferências em que consistia uma “democracia social”, modelo político que ele desejava ver institucionalizado no Brasil a partir de meados dos anos 1970. Por esse termo, o jurista entendia:

uma fase do Estado de direito desvinculado da “democracia liberal” de feitio jurídico-formal para superá-la no sentido de uma ordem institucional que possibilite os processos de ação indispensáveis a um Estado que deve interferir, constantemente, na vida econômica, quer supervisionando as atividades privadas, quer suprindo-lhes as deficiências, quer atuando ele mesmo como empresário, posta, como já disse, a ideia de planejamento no centro da ação política e administrativa” ( Reale, 1974REALE, Miguel. (1974), A experiência jurídica brasileira. Ciclo de estudos – problemas do campo psicossocial. Apresentação em 27 de agosto de 1974 na Escola Superior de Guerra.: 23).

Reale destaca, ainda, a necessidade de uma “socialização do progresso” que deveria substituir o que considerava “debates doutrinários e ideológicos estéreis” sobre se devia ou não haver “socialização da produção”. Ele não detalha, contudo, como se daria o processo de redistribuição, a qual é remetida a ideia de “socialização do progresso”. Apenas esclarece, com relação a esse ponto, que não há apenas a opção entre “o caminho da estatização” e o da “livre iniciativa” (Reale, 1974:23). Segundo ele, os dois são válidos, a opção da estatização impondo-se quando a da livre iniciativa for insuficiente.

A democracia social também devia garantir “as liberdades civis e políticas”. Segundo ele, o regime militar havia aperfeiçoado o sistema de garantia dos direitos de ordem privada. O que houve foram “restrições” impostas na área das prerrogativas políticas “pela necessidade de fazer frente às forças que ameaçavam subverter ‘ ab imis fundamentis ’ as vigas mestras da sociedade” ( Reale, 1974REALE, Miguel. (1974), A experiência jurídica brasileira. Ciclo de estudos – problemas do campo psicossocial. Apresentação em 27 de agosto de 1974 na Escola Superior de Guerra.: 24). Seguindo seu raciocínio, essas restrições não foram feitas para implantar uma ditadura, mas para preservar o que ele considerava como os “valores fundamentais” da democracia social: ordem, liberdade e desenvolvimento.

Esse era o “modelo político brasileiro” adequado para o Brasil, segundo Reale. Como lembrou Marcos Napolitano (2014NAPOLITANO, Marcos. (2014), 1964, História do regime militar brasileiro. São Paulo, Contexto.: 237), o termo “modelo político brasileiro” era “um eufemismo para designar a vontade da ditadura em se institucionalizar”. O que o jurista propunha estava em fina sintonia com o que se pensava nos círculos mais restritos do poder. Ou seja, a percepção da necessidade de uma retirada estratégica dos militares do coração do Estado, sem ameaçar os ‘princípios da Revolução’: segurança e desenvolvimento” (Ibid: 237). Ainda segundo Napolitano, (2014NAPOLITANO, Marcos. (2014), 1964, História do regime militar brasileiro. São Paulo, Contexto.: 238), “os militares sonhavam com um regime de um partido oficial hegemônico, chancelado pelo voto, majoritariamente civil, e um Estado blindado de ‘crises’, fosse elas oriundas da extrema direita militar, fossem advindas das pressões da esquerda e dos movimentos sociais”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A democracia “em novas bases” – “democracia social” ou “Estado de cultura” – que Reale deseja ver instaurada no Brasil era, segundo ele, o compromisso inicial da “Revolução”. Mas ela acabou não se concretizando. Nesse aspecto, ele e a “revolução” acabaram derrotados. Isso ocorreu, segundo o autor, porque os militares se desviaram de suas aspirações iniciais ao colocar uma ênfase excessiva nos problemas econômicos e financeiros que levaram à perda de valores ideológicos e políticos e ao declínio da classe política. Os grandes responsáveis por esse “desvio” foram o mar. Castelo Branco e seu ministro da Justiça, Milton Campos, “muito preso aos velhos modelos liberais” (Reale, 1987b:130). Essa visão unilateral do problema político levou a uma ruptura entre o Estado e a sociedade civil que, em vez de ser um agente ativo do processo político, se tornou um mero destinatário das decisões tomadas pelos militares.

Como se sabe, a década de 1970, momento em que Reale desenvolvia essas reflexões, e ainda acreditava na possibilidade de instauração de um modelo político próximo do que hoje chamaríamos de uma democracia iliberal, marcou uma ruptura histórica importante. Era chegada a hora, no dizer de Tony Judt (2011JUDT, Tony. (2011), O mal ronda a terra: Um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro, Objetiva.: 97), da “vingança dos austríacos”: o fim do consenso keynesiano, que vigorava na Europa desde 1945, destronado pela retórica do livre mercado. Era também o início do que Samuel Huntington (1994)HUNTINGTON, Samuel P. (1994), A Terceira Onda: A democratização no final do século XX. São Paulo, Editora Ática. chamou da “terceira onda” de democratização, cujo pontapé fora dado pela Revolução dos Cravos em Portugal em 1974, e que se espalhou notadamente pela América Latina.

O Brasil tampouco atravessou essa década sem mudanças importantes, tanto políticas quanto nas formas de pensar. Era o início do longo processo de abertura política que iria culminar com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988; intelectualmente, esses anos marcaram a retomada da reflexão sobre a democracia, não mais a “autêntica”, “real”, “social”, “forte” ou “possível”, que vinha sendo elaborada e defendida pelos pensadores autoritários desde a década de 1930, mas sobre democracia tout court , sem adjetivos13 13 . Foi uma ruptura importante no pensamento político brasileiro que pode ser ilustrada pelo título de alguns trabalhos publicados no período como Autoritarismo e democratização (1975), de Fernando Henrique Cardoso; A democracia como valor universal (1980), de Carlos Nelson Coutinho; Direito, cidadania e participação (1981), organizado por Bolívar Lamounier, Francisco Weffort e Maria Victoria Benevides; Cultura e democracia (1981), de Marilena Chauí; Por que democracia? (1984), de Francisco Weffort; ou ainda Como renascem as democracias (1985), organizado por Alain Rouquié, Bolívar Lamounier e Jorge Schvarzer. . Os novos tempos não eram mais, portanto, propensos a soluções autoritárias, o que explica em partes a derrota de Reale em seu combate pela instauração de sua “democracia social” no Brasil. O fim do regime militar, o início da construção de uma memória negativa desse período e o entusiasmo de amplos setores da sociedade com a democratização nos anos 1980 parecia ter colocado fim a uma longa linhagem autoritária-conservadora do pensamento político brasileiro. Esta remonta ao século XIX e tem em Reale um dos seus últimos grandes representantes. Isso não passou de uma quimera, como mostrou a ascensão de forças autoritárias conservadoras e reacionárias em meados dos anos 2010, consolidada com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. Mais do que nunca, o retorno às fontes autoritárias-conservadoras do nosso pensamento político parece incontornável para a compreensão do presente.

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  • WEFFORT, Francisco. (1984), Por que democracia? São Paulo, Brasiliense.

NOTAS

  • 1
    . Este artigo é resultado de uma pesquisa de pós-doutorado que realizei entre 2016 e 2019 no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCP-UFPE) com financiamento do Programa Nacional de Pós-Doutorado da Capes (PNPD-Capes) e sob a supervisão do professor Ernani Carvalho. Uma versão preliminar foi apresentada no 43º Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, 21 a 25 de outubro de 2019). O autor agradece à debatedora da sessão, professora Maria Arminda Nascimento Arruda, assim como aos coordenadores do ST 28 “Pensamento Social no Brasil: Limites e Possibilidades do Conservadorismo” Bernardo Ricupero e Simone Meucci. O autor agradece também aos pareceristas da revista Dados pelas valiosas sugestões.
  • 2
    . Levando-se em conta que se trata de uma publicação de vinte anos atrás, esse número deve ter aumentado consideravelmente, sobretudo após o seu falecimento em 2006.
  • 3
    . Dito isso, estamos cientes que a utilização de Pierre Rosanvallon e Reinhart Koselleck traz algumas limitações para o tipo de análise que estamos fazendo nesse trabalho. Tanto Rosanvallon como Koselleck empreenderam em seus trabalhos análises de longa duração, seja sobre as distintas concepções da democracia no caso do primeiro, seja sobre conceitos analisados em sua historicidade e em suas disputas também na longa duração, particularmente durante o período que ele denomina de Sattelzeit (1750 a 1850), no caso do segundo. Nesse sentido, são autores que oferecem insights, mas cujos métodos não podem ser replicados tais quais para o estudo que nos propomos a fazer nesse artigo.
  • 4
    . Esses livros foram reunidos em três volumes republicados pela editora da UNB em 1983.
  • 5
    . Texto do filósofo português Antonio Braz Teixeira, intitulado “O criticismo histórico-axiológico de Miguel Reale”. O texto encontra-se na internet em PDF, mas sem a referência do local de publicação. Disponível em: http://cdpb.org.br/antigo/criticismo_historico_axiologico_de_miguel_reale.pdf . Acesso em: 26/12/2019.
  • 6
    . Especificamente sobre o “trabalho da obra” de Carl Schmitt, ver MÜLLER (2007) e KERVÉGAN (2011)KERVÉGAN, Jean-François. (2011), Que faire de Carl Schmitt? Paris, Gallimard. .
  • 7
    . Como está claro no artigo, tanto Hans Kelsen quanto Carl Schmitt tiveram uma grande importância no pensamento de Reale. Como se sabe, os juristas austríaco e alemão travaram uma das maiores polêmicas jurídicas e intelectuais do século XX em torno da guarda da Constituição. Kelsen afirmou, em A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional ), que a anulação do ato inconstitucional é a principal e mais eficaz garantia da Constituição. Para isso, só um órgão diferente e independente do Parlamento ou de qualquer outra autoridade estatal – um Tribunal Constitucional – devia ser encarregado de anular seus atos institucionais. Carl Schmitt respondeu em 1931 com O guardião da Constituição , defendendo a ideia segundo a qual cabia ao chefe do Estado ser o guardião da Constituição. Não é possível aprofundar esse tema nos limites desse artigo. Sobre a polêmica entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, ver, entre outros, Herrera (1994)HERRERA, Carlos Miguel. (1994), “La polémica Schmitt-Kelsen sobre el guardián de la Constitución”. Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), n. 86, Octubre/Diciembre, pp. 195-227. , Pinto (2015) e, sobre a sua importância para os dias de hoje, Costa Matos; Herrera; Pinto (2015).
  • 8
    . Como ele afirma, “o caso normal não prova nada; a exceção prova tudo; ela não apenas confirma a regra: na realidade a regra vive apenas graças à exceção. Com a exceção, a força da vida real quebra a carapaça de uma mecânica presa na repetição” (apud Müller, 2007:597 de 7920).
  • 9
    . Sobre o integralismo no pós-guerra, além de Gonçalves (2016)GONÇALVES, Rodrigo Jucerê Mattos. (2016), A restauração conservadora da filosofia: o instituto brasileiro de filosofia e a autocracia burguesa no Brasil (1949-1969). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Goiás, Goiás. , discutido com mais detalhes ao longo desse artigo, ver Calil (2001)CALIL, Gilberto Grassi. (2001), O Integralismo no Pós-Guerra: a formação do PRP (1945-1950). Porto Alegre, Edipurcs. , que estudou a formação do PRP de Plínio Salgado; Gonçalves (2017)GONÇALVES, Leandro Pereira. (2017), Plínio Salgado. Um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975). Lisboa, Instituto de Ciências Sociais. , que abordou o tema a partir da trajetória de Plínio Salgado; e Gonçalves e Caldeira Neto (2020)GONÇALVES, Leandro Pereira; CALDEIRA NETO, Odilon. (2020), O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro, FGV. , que publicaram recentemente uma história do integralismo, da sua formação nos anos 1930 até o neointegralismo dos dias atuais. Especificamente sobre Adhemar de Barros e o PSP, ver Sampaio (1982)SAMPAIO, Regina. (1982), Adhemar de Barros e o PSP. São Paulo, Global Editora. .
  • 10
    . Sobre a Francisco Campos leitor de Carl Schmitt, ver notadamente SANTOS (2007SANTOS, Rogério Dultra dos. “Francisco Campos e os Fundamentos do Constitucionalismo Antiliberal no Brasil”. Dados [online]. 2007, vol. 50, n. 2, [27-12-2019], pp. 281-323. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dados/v50n2/a03v50n2.pdf. ISSN 0011-5258.
    http://www.scielo.br/pdf/dados/v50n2/a03...
    ; 2009).
  • 11
    . Utilizamos aqui a edição francesa desse livro que foi intitulada Parlementarisme et Démocratie . Desconhecemos se há uma tradução para o português.
  • 12
    . Trecho apresentado no Congresso do Brazilian Studies Association (Brasa XII), realizado entre os dias 20 e 23 de agosto de 2014 no King’s College (Londres, Reino Unido).
  • 13
    . Foi uma ruptura importante no pensamento político brasileiro que pode ser ilustrada pelo título de alguns trabalhos publicados no período como Autoritarismo e democratização (1975), de Fernando Henrique Cardoso; A democracia como valor universal (1980), de Carlos Nelson Coutinho; Direito, cidadania e participação (1981), organizado por Bolívar Lamounier, Francisco Weffort e Maria Victoria Benevides; Cultura e democracia (1981), de Marilena Chauí; Por que democracia? (1984), de Francisco Weffort; ou ainda Como renascem as democracias (1985), organizado por Alain Rouquié, Bolívar Lamounier e Jorge Schvarzer.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2019
  • Revisado
    25 Set 2020
  • Aceito
    23 Dez 2020
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