Open-access Mario Henrique Simonsen e Antonio Delfim Netto: Socializações Desiguais, Carreiras Análogas, Modalidades Díspares de Exercício do Poder

Mario Henrique Simonsen and Antonio Delfim Netto: different composition of capitals, similar professional performance, different styles of leadership

Mario Henrique Simonsen et Antonio Delfim Netto: différentes compositions de capitales, performances professionnelles analogues, différents modes d'exercice du pouvoir

Mario Henrique Simonsen y Antonio Delfim Netto: distintas composiciones de capitales; actuación profesional análoga; modalidades díspares de ejercicio del poder

RESUMO

Este artigo apresenta e analisa duas modalidades contrastantes de acesso à elite dirigente e de exercício do poder, a partir da comparação das origens sociais e das atuações na academia e na política de Mario Henrique Simonsen e Antonio Delfim Netto. Tal abordagem permite observar uma transição entre um modelo de acesso ao poder calcado na combinação entre origem social privilegiada, trunfos culturais, cosmopolitismo e laços de família; e um modelo no qual a especialização técnica e os laços tecidos no universo profissional ganham destaque. Simonsen e Delfim desempenharam funções análogas na consolidação da ciência econômica no Brasil, sendo centrais na moldagem da pós-graduação em economia e na incorporação de perspectivas matematizadas no ensino e na pesquisa. Em seguida, transitam para o Governo Federal, carregando consigo seus alunos e a capacidade de legitimar tecnicamente suas decisões políticas. O artigo sustenta que, malgrado a homologia profissional, os dois agem em suas escolas e exercem o poder de formas díspares, correlacionáveis às suas origens sociais e vias de acesso à elite dirigente.

elites; economistas; matematização; Antonio Delfim Netto; Mario Henrique Simonsen

ABSTRACT

This article examines two contrasting access paths of access to the ruling elite, by Mario Henrique Simonsen and Antonio Delfim Netto, by comparing their social origins and performances in academia and politics. This approach allows us to observe a transition between a model of access to power based on the combination of privileged social origin, cultural assets, cosmopolitanism and family ties; and a model in which technical specialization and professional ties are the key factors. Simonsen and Delfim performed similar functions in the consolidation of science of economics in Brazil, both were central in shaping graduate education in economics and in the incorporation of mathematical tools to teaching and research. They then moved to the Federal Government, carrying with them their students and the ability to use technical arguents to legitimize their political decisions. The article argues that, despite the similarity in their professional achievements, they exercised power in disparate ways, a fact that can be explained by their different social origins and paths of access to the ruling elite.

elites; economics; mathematical methods; Antonio Delfim Netto; Mario Henrique Simonsen

RÉSUMÉ

Cet article présente et analyse deux modalités contrastées d'accès à l'élite dirigeante et à l'exercice du pouvoir d'après la comparaison des origines sociales et des performances académique et politique des economistes Mario Henrique Simonsen et Antonio Delfim Netto. Cette approche nous permet d'observer une transition entre un modèle d'accès au pouvoir fondé sur la combinaison de l'origine sociale privilégiée, de biens culturels, de cosmopolitanisme et de liens familiaux ; et un modèle dans lequel la spécialisation technique et les liens tissés dans l'univers professionnel sont valorisées. Simonsen et Delfim ont assumé des fonctions similaires dans la consolidation des sciences économiques au Brésil, jouant un rôle central dans la formation des étudiants de troisième cycle en économie et dans l'intégration des perspectives mathématiques dans l'enseignement et la recherche. Ils passent ensuite au gouvernement fédéral avec leurs étudiants et leur capacité à légitimer techniquement leurs décisions politiques. L'article affirme que, malgré l'homologie professionnelle, les deux agissent dans leurs écoles et exercent le pouvoir de manière disparate, en corrélation avec leurs origines sociales et leur accès à l'élite dirigeante.

élites; économistes; mathématiques; Antonio Delfim Netto; Mario Henrique Simonsen

RESUMEN

Este artículo analiza dos modalidades de acceso a la elite dirigente y de ejercicio del poder, a partir de la comparación de los orígenes sociales y de las actuaciones en la academia y en la política de Mario Henrique Simonsen y Antonio Delfim Netto. Este enfoque permite observar una transición entre un modelo de acceso al poder calcado en la combinación de origen social privilegiado, bazas culturales, cosmopolitismo y lazos familiares; y otro modelo, en el que la especialización técnica y los lazos tejidos en el universo profesional ganan destaque. Simonsen y Delfim han desempeñado funciones análogas en la consolidación de las Ciencias Económicas en Brasil, siendo centrales en el moldeado del postgrado en Economía y en la incorporación de perspectivas matematizadas en la enseñanza y la investigación. A continuación, transitan al Gobierno Federal, llevando consigo a sus alumnos y la capacidad de legitimar técnicamente sus decisiones políticas. El artículo sostiene que, a pesar de la homología profesional, los dos actúan en sus escuelas y ejercen el poder de formas distintas, ligadas a sus orígenes sociales y vías de acceso a la élite dirigente.

élites; economistas; matematización; A. Delfim Netto; M. Henrique Simonsen

INTRODUÇÃO

Antonio Delfim Netto (1928) e Mario Henrique Simonsen (1935-1997) foram figuras de destaque na produção acadêmica em ciência econômica e na condução da economia no Brasil na segunda metade do século XX. Há semelhanças em suas trajetórias profissionais e no papel desempenhado por eles na academia e na administração econômica governamental. Nos anos 1960, Mario Henrique e Delfim eram as figuras de maior proeminência em suas faculdades de economia, a Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ) e a Universidade de São Paulo (USP), respectivamente. Eles puderam exercer decisiva influência sobre a conformação do ensino de ciência econômica no Brasil, tendo responsabilidade pela introdução do tratamento matemático da economia que se tornara internacionalmente hegemônico no pós-guerra e que ajudara a legitimar publicamente a atuação dos economistas ao revesti-la de racionalidade técnica e suposta neutralidade científica1. Na sequência, ocuparam a direção dos ministérios da Fazenda e do Planejamento em governos militares, tendo amplos poderes sobre a definição da política econômica nacional. Os dois diferiam radicalmente, entretanto, no que concerne à trajetória social anterior à profissionalização e quanto ao estilo adotado na condução das suas escolas e à forma de exercício da autoridade.

Neste artigo, as trajetórias de Simonsen e Delfim serão aproximadas e contrastadas sociologicamente2 com o propósito de avaliar como, de acordo com a dotação de capitais, diferentes estratégias são empregadas para entrada e permanência no campo do poder ( BOURDIEU, 2011: 126-127; BOURDIEU, 1989: 216). Tal procedimento permite delinear duas modalidades de legitimação da ascensão aos grupos dirigentes que passaram a coexistir e a se sobrepor na segunda metade do século XX.

A primeira modalidade é própria às elites tradicionais, alçadas a cargos de prestígio com apoio de laços sociais nas camadas dominantes e calcadas em maneiras e modos percebidos como cosmopolitas e refinados, provenientes da socialização primária em escolas e famílias de elite. Neste caso, o bacharelado figurava antes como um elemento de legitimação do caráter ilustrado de seu detentor do que como uma garantia da aptidão para a gestão do Estado. A segunda modalidade, própria aos Estados engajados em uma modernização de caráter tecnoburocrático, legitima o exercício do poder daqueles que possuem qualificações especializadas requeridas para uma gestão da máquina governamental entendida como racional, favorecendo, no caso brasileiro3, a consagração de administradores e economistas. Ainda que as origens sociais privilegiadas e a posse de diplomas coincidam frequentemente, a segunda modalidade é permeável a alguma ascensão de forasteiros às elites, caso dos detentores de vastos trunfos especializados e laços costurados na universidade e na atuação profissional ( MARTINS, 1987: 10,15; PINÇON E PINÇON-CHARLOT, 1989: 141-146; GOMES, 1994 ; LOUREIRO, 1997 ; MICELI, 2001: 77-79,197-199; WEBER, 2004: 212-213; CARVALHO, 2013: 65-79).

A comparação das trajetórias permite também lidar com os mitos que se constituíram ao redor das duas figuras: o da genialidade, no caso de Simonsen, e o da ascensão meritocrática, no caso de Delfim. Tais narrativas expressam o jogo simbólico em curso no processo de transição/sobreposição dos dois modelos de socialização e legitimação das elites do campo do poder.

No artigo, as trajetórias são reconstruídas com base em entrevistas, depoimentos concedidos por Simonsen e Delfim e por pessoas que os circundavam a pesquisadores e jornalistas, frequentemente com finalidades celebratórias4, e em produção acadêmica preexistente sobre o tema. No caso da trajetória de Antonio Delfim Netto, conta-se também com entrevista inédita, realizada pela autora nos dias 25 de setembro e 2 de outubro de 2017. Emprega-se, igualmente, literatura referente à montagem das pós-graduações em economia da FGV-RJ e da USP, com o objetivo de ressaltar o papel que desempenharam no processo de profissionalização da economia em curso no período e observar as vias de entrada da matemática na ciência econômica brasileira5.

O texto é divido em três partes relativas, respectivamente, à socialização familiar e escolar, à formação acadêmica e à carreira como especialistas em economia e, finalmente, às modalidades de exercício do poder. Cada parte é, por sua vez, dividida em dois trechos: um dedicado a cada economista. Ao final, são tecidas considerações relativas ao entrelaçamento das posições sociais com as trajetórias e as estratégias no poder e ao caráter da transição de configuração em curso no momento em que as personagens atuaram, considerando as mudanças tanto nas formas de ascensão ao poder quanto na ciência econômica em voga.

SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR E ESCOLAR

Mario Henrique Simonsen

No livro Mario Henrique Simonsen: um homem e seu tempo (2002)6, que reúne depoimentos em sua homenagem e reconstrói sua trajetória, a figura de Simonsen é recoberta por uma salva de adjetivações com sentidos que remetem à inteligência. São utilizadas as caracterizações: “Aluno excepcional”; “Nunca deixou de tirar o primeiro lugar”; “Se tornou um mito no Santo Inácio por saber, antes do ano começar, tudo que seria ensinado”; “Ganhou vários prêmios de excelência acadêmica”; “O melhor aluno que eu tive”; “Ele era la jeunesse dorée , o garoto prodígio, tinha uma cabeça muito bem arrumada, um talento quantitativo, uma facilidade de trabalhar com matemática”; “Matemático nato”; “Memória, raciocínio lógico límpido e excepcional”; “De longe o melhor projetista”; “Rapidez fantástica [de raciocínio]”; “Estrela absoluta”; “Intelectual formidável”; “Aristocrata do pensamento”; “Sabidamente brilhantíssimo”; “Talvez o único verdadeiro gênio que eu conheci”; “O mais brilhante de todos”; “Cabeça privilegiada”; “Cérebro privilegiado”; “Tinha memória absoluta”; “Pessoa realmente superdotada”; “Genialmente inteligente”; “Nunca convivi com uma pessoa mais inteligente”; “Muito arguto”; “Ele era fulminante” ( ALBERTI et al., 2002 ).

Sobre seu estilo de vida, dizem que “era guloso, almoçava de maneira exagerada, fumava de maneira exagerada, bebia de maneira exagerada” (Lindolpho de Carvalho Dias in7: ALBERTI et al., 2002: 39). “Trabalhar, era trabalhar muito. Na hora de sentar numa mesa para jogar qualquer coisa, lá na casa dele, jogava muito. Ficavam até de madrugada, ele e a Iluska [esposa de Simonsen] jogando. Tudo ele fazia em excesso” (Arlindo Lopes Corrêa in: ALBERTI et al., 2002: 76). “Mario fumava muito, punha fumaça pelo nariz, se agitava muito, conclusão: era o Dragão.” (Luiz Fernando da Silva Pinto in: ALBERTI et al., 2002: 76). “Fumava que nem um condenado, tinha alguns ataques de nervos para botar as equações no quadro e às vezes escrevia com o cigarro e fumava o giz” (Maria da Conceição Tavares in: FARO e GATTO, 1994: 64). É atribuído aos cigarros o tumor que o matou aos 61 anos.

Ao descrevê-lo, Delfim Netto também ressalta a dita genialidade do colega e suas singularidades, entre as quais certa inaptidão para elementos da vida prática:

O Mario era um gênio. O Mario tinha umas pintas de genialidade. A prova disso é que a natureza não dá tudo para todo mundo. O Mario era um gênio, mas não conseguia dirigir automóvel. Isso é uma prova muito importante. Nenhum gênio consegue dirigir um automóvel [risos], mas era absolutamente brilhante, cordial e festivo (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017).

Em Mozart, sociologia de um gênio , Norbert Elias descreve um caso no qual presumida genialidade, inaptidão para a vida prática, exageros no trabalho e na boêmia caminhavam lado a lado com desajustes de saúde e baixa adaptabilidade decorrentes de uma personalidade extremada. Ao esboçar uma explicação para o lugar social singular ocupado por Mozart e para sua dita genialidade, Elias faz notar que realizações narradas como notáveis estão frequentemente situadas em momentos de conflitos entre “os cânones de classes antigas, em decadência, e aqueles das novas classes, em ascensão” (ELIAS, 1993:10, tradução minha ). Tais transições entre configurações sociais podem adquirir expressão em indivíduos posicionados na interface dos dois modos de viver e pensar, caso de Mozart.

Cabe indagar se o mito acerca da suposta genialidade de Mario Henrique poderia ser localizado em um destes momentos de transição entre configurações e investigar quais conflitos e tensões estariam nele expressos. O olhar sociológico sobre a trajetória de Simonsen, em perspectiva eliasiana, requer, portanto, uma apresentação das estruturas sociais nas quais transcorrem tanto sua socialização quanto sua prática como especialista em economia e figura de autoridade no campo do poder, com ênfase nas transformações em curso e na conexão destas com a biografia em questão.

Uma reconstrução da trajetória de Simonsen pode principiar justamente pelo seu amor precoce dedicado ao precoce Mozart. Mario conta ter se apaixonado por peças de Amadeus aos 4 anos. Depois passou às canções francesas e italianas, valsas e balés. Aos 11 anos descobriu as óperas (Mario Henrique Simonsen in: FARO e GATTO, 1994: 15). Seus amigos contam que ele vivia no municipal e decorava óperas em línguas que dominava, como o alemão, o inglês e o francês, e até mesmo em línguas que não conhecia, como o russo (Lindolpho de Carvalho Dias in: ALBERTI et al., 2002: 39). A paixão o levaria a ocupar a presidência da Orquestra Sinfônica Brasileira de 1988 a 1997, sucedendo no cargo o especialista em economia Octavio Bulhões que, por sua vez, sucedera a Eugênio Gudin, duas figuras influentes na montagem do espaço dos economistas no Brasil e centrais na trajetória de Simonsen, como se discutirá adiante. A socialização de Mario Henrique foi similar a dos professores que o antecederam na Orquestra. Os três descendiam de famílias com profundas raízes na elite brasileira, receberam uma educação cosmopolita de elite em casa e na escola, nutrindo gosto pelo cultivo cultural, com destaque para a música clássica ( KLÜGER, 2017: 104-125).

No caso de Mario, a predileção pela música foi decisivamente cultivada no seio familiar. Ele conta que seu pai tinha cerca de 200 horas de música clássica em LPs, o que à época era uma coleção bastante considerável. Simonsen confidencia que, ao lado da escola, seu pai teria sido a força mais influente em sua formação e o descreve nos seguintes termos:

[...] um advogado com uma bela cultura humanística, que falava seis línguas e que escrevia estupendamente em francês e em português. Além disso adorava música clássica. Na juventude escrevera peças de teatro, contos e crítica musical. Para ganhar a vida tornou-se comerciante e executivo de empresas, ganhando suficiente dinheiro para comprar uma bela casa, sustentar um bom padrão de vida para a família e ainda acumular imóveis (Mario Henrique Simonsen in: FARO e GATTO, 1994: 14).

Segundo Carlos Ivan Simonsen Leal8, o pai de Mario Henrique, Mario Simonsen, fora o primeiro membro da família a estudar no Brasil. Até então, todos haviam sido educados na Europa e diz-se que teriam sido poliglotas. O avô paterno, Adolpho Simonsen, atuava como corretor de fundos públicos, tendo sido presidente da câmara sindical de sua categoria por mais de uma década9. O avô materno de Simonsen, Henrique Roxo, era médico com doutorado em Paris. Foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros, estudou com Sigmund Freud e tornou-se professor catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, além de atuar como clínico particular de membros das elites cariocas. A mãe, Carmem Roxo, viveu boa parte da infância na Europa, adquirindo educação cosmopolita. Diz-se de Mario Henrique que teria crescido em uma casa grande no bairro da Urca, cercado por médicos e engenheiros, pelos literatos amigos de seu pai e por uma excelente biblioteca (Carlos Ivan Simonsen Leal in: ALBERTI et al., 2002: 22-25; Luiz Henrique Migliora in: FARO e GATTO, 1994: 21). Como seu pai, Mario Henrique percorreria toda sua trajetória de formação no espaço nacional, incorporando, não obstante, a forte influência cosmopolita do meio no qual cresceu.

Quanto a sua socialização primária, Simonsen comenta ter tido uma infância normal:

Não fui um menino mimado, mas nada me faltava, salvo, talvez, um pouco mais de carinho. Gostava de meus pais, mas eles dispunham de pouco tempo para mim. Minhas irmãs eram 8 a 10 anos mais velhas do que eu, o que não abria muito espaço de comunicação. Em compensação tinha uma babá exclusiva, a Isaura. Aos quatro anos aprendi a ler com a Isaura, e logo depois a datilografar com dois dedos na máquina de escrever de meu pai (Mario Henrique Simonsen in: FARO e GATTO, 1994: 14).

Ao analisar a trajetória de Mozart, Elias ressalta que a posição de Amadeus no núcleo familiar é um elemento chave para compreender sua intensa dedicação à música desde a primeira infância. Relata que ele era o irmão mais novo e que a entrega compulsiva ao piano funcionava como forma de disputar com a irmã o amor paterno, que fluía a cada vez que exibiam destreza musical (ELIAS, 1993: 74-78). Mario ocupa posição similar na estrutura familiar e relata a dificuldade para obter carinho paterno. O desempenho intelectual era esperado e valorizado na família Simonsen, convertendo-se em artifício para obter o desejado reconhecimento e a atenção paterna (Mario Henrique Simonsen in: FARO e GATTO, 1994: 16).

Pode-se esboçar, pois, uma interpretação segundo a qual a suposta excepcionalidade escolar poderia estar associada à claudicante busca por afeto. A vinculação entre estudo e prazer gestada na infância estreita-se cada vez mais. Sobre sua educação infantil, Mario Henrique conta ter tido problemas para se habituar à convivência com outras crianças, razão pela qual teria sido promovido antecipadamente à primeira série: “onde eu precisaria estudar, e não apenas brincar. E aí tudo mudou: eu passei a adorar o colégio, tornei-me um dos melhores alunos da turma” (Mario Henrique Simonsen in: FARO e GATTO, 1994: 13). Contam que o bom desempenho na escola primária Cristo Redentor teria feito com que ele obtivesse uma vaga para o ginásio no Colégio Santo Inácio, instituição privada localizada em Botafogo, local de estudo dos “filhos de ministros, de senadores, de deputados” e berço de personalidades de destaque10 (Dom Aloysio José Leal Penna, in: ALBERTI et al., 2002: 25).

Apesar de inúmeros depoimentos ressaltarem a influência que o Santo Inácio desempenhou na formação de Simonsen, os relatos sempre colocam essa importância em termos da formação moral, das amizades cultivadas no colegial – até então ele diz não ter tido amigos –, da primeira expressão do gosto pela matemática e da autopercepção e reconhecimento de sua excepcionalidade como estudante. O colégio nunca é apresentado como um espaço do qual Simonsen teria efetivamente extraído aprendizados, já que o consideravam sempre à frente do ensino, quase como se dele prescindisse. Em uma situação de abundância de recursos que dispensava precoce dedicação ao trabalho, o foco nos estudos não conflitava com o desenvolvimento do interesse por outras atividades sociais e culturais. Contam os amigos que iam à praia, jogavam bola, cartas e bebiam: “tomamos grandes porres, mas ninguém ficava bêbado a ponto de cair no chão. Bebíamos de cachaças a batidas. Nossa turma era muito boêmia” (Luiz Henrique Migliora in: FARO e GATTO, 1994: 20).

Em suma, Mario Henrique Simonsen provinha de um meio de alta elite econômica e cultural carioca, desfrutando do prestígio genealógico decorrente da descendência de homens reconhecidos por suas posições de destaque na economia e no fazer intelectual. Foi exposto, em casa e no colégio, a uma educação erudita e cosmopolita, incluindo o cultivo de diversos idiomas estrangeiros e de um pulsante gosto pela música clássica, e costurou uma rede de amizades com descendentes das elites. Pôde, pois, acumular toda sorte de capital, mantendo, em paralelo à performance de destaque nos estudos, lazeres eruditos e populares. Como se comentará adiante, do berço vieram também laços estratégicos que configuram um largo capital social de origem com ampla influência em sua trajetória.

Assim sendo, é plausível sustentar que Simonsen possuía todas as condições de pertencimento às elites tradicionais, a saber: vasto capital econômico, que dá acesso às instituições escolares de elite e permite o não condicionamento das práticas às necessidades materiais; cosmopolitismo e domínio dos códigos culturais, maneiras e modos socialmente valorizados; além de uma rede sólida de vínculos com membros das camadas dominantes. A aptidão social para ocupar posições públicas de destaque, decorrente da multiplicidade de capitais, será reforçada quando da aquisição do título de bacharel, que denota capacidade técnica e confere legitimidade simbólica em um contexto marcado pela modernização técnica do Estado ( MARTINS, 1987 ; MICELI, 2001 ).

Antonio Delfim Netto

Ao contrário do mito que qualifica Simonsen como um gênio inato, Delfim encarnaria o milagre da ascensão social daquele que teria vencido em decorrência de um enorme engajamento escolar e grande carisma. Ele provém de uma família de imigrantes recentes e foi criado em meio social modesto, sendo o arquétipo do descendente de imigrante que se reinventou pela escola e que por ela foi inventado ( CARIELLO, 2014 ; SAFATLE, 2012 ). De office boy, neto de imigrantes que exerciam ofícios manuais socialmente desvalorizados, a “Czar” da economia, ele representa a quebra da tendência à reprodução das posições de classe, oferecendo aos Giuseppes e Macabéas que chegavam a São Paulo a promessa de ascensão pelo dito mérito. Os milagrosos “Delfims” seriam prova de que o sucesso estaria ao alcance de todos, crença fundadora da illusio11 que mantém os sujeitos engajados no jogo escolar, independentemente das possibilidades objetivas de sucesso ( BOURDIEU, 2005: 312).

Delfim conta que seus quatro avós eram imigrantes italianos “que chegaram [ao Brasil] logo depois da libertação dos escravos e nunca trabalharam nas lavouras. As mulheres obviamente não trabalhavam. [Os homens] foram trabalhadores urbanos” (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017)12. O avô paterno deixou a Calábria no final do século XIX, com menos de vinte anos, e permaneceu na capital do Estado de São Paulo, onde começou trabalhando como calceteiro de vias públicas a serviço da prefeitura e terminou como dono de uma das minas de pedras que forneciam os paralelepípedos com os quais a prefeitura fazia o calçamento. O avô materno, que chegou ao Brasil em período próximo, também se enraizou na cidade de São Paulo, trabalhando como marceneiro na região da Consolação. Seu pai fora escriturário na Companhia Municipal de Transportes Coletivos e a mãe costurava para fora. Os dois estudaram apenas até o primário. Quando se casaram, os pais de Delfim decidiram permanecer na residência do avô, que abrigava parte do clã familiar e ficava localizada em um dos bairros operários e italianos de São Paulo, o Cambuci. A situação familiar melhorou aos poucos. Primeiro deixaram a casa dos avós para viver independentemente, depois conseguiram comprar um sítio na Vila Carrão, bairro da Zona Leste à época também ocupado por imigrantes ( CARIELLO, 2014 ; SAFATLE, 2012 ; YOKOTA, 2009:2-4; Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017).

A educação de Delfim deu-se exclusivamente em colégios públicos. Durante a infância estudou no grupo escolar Oscar Thompson e na adolescência no Instituto Liceu Siqueira Campos, ambos no Cambuci. Depois frequentou a Escola Técnica de Contabilidade Carlos de Carvalho, no bairro da Liberdade. Diz ter cursado contabilidade porque “não tinha recursos” e era uma “forma de sair razoavelmente armado para ganhar a vida”. Idiomas nunca estudou formalmente, tendo sido autodidata em inglês e francês. Ele completa: “hoje eu leio italiano, espanhol, português, francês e inglês e falo muito mal todas elas”. Quanto ao lazer, menciona um pouco de remo “quando o [rio] Tietê era o Tietê” – ou seja, antes de ser afetado pela poluição. Sobre suas atividades culturais, conta que consistiam “simplesmente [em] estudar” e em ir ao cinema ou dançar, “o que toda gente fazia”; e acrescenta ainda: “eu sempre fui um cidadão mediano, nos estudos e na vida” (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017), – frase que colabora para a construção de uma narrativa de suposta modéstia. A boêmia dos Simonsens e os lazeres considerados eruditos não estão presentes na narrativa de Delfim. Ao ser indagado sobre férias, Antonio responde: “graças a Deus eu nunca tirei férias. Não preciso tirar férias porque eu me divirto o tempo todo” exercendo atividades profissionais. Assim, afirma privilegiar o prazer ascético do engajamento profissional em relação aos deleites mundanos.

Quanto à música, Delfim comenta: “não [frequento concertos], mas ouvi muita música clássica. Continuo ouvindo”. Indagado sobre influências na formação de seu gosto, indica que era, “na verdade, da Radio Gazeta que tinha um programa muito interessante. Do meio dia a uma, que era hora de almoço de trabalhador, eles transmitiam um concerto” (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017). Neste ponto, se expressa o quanto a distinção social não se restringe, por exemplo, ao fato de escutar ou não música clássica, mas decorre das modalidades da prática, ou seja, das maneiras de ser e fazer que carregam informações sobre as formas de aquisição cultural, separando “o aprendizado total, precoce e insensível, efetuado desde a pequena infância no seio da família e prolongado pela aprendizagem escolar” e o “aprendizado tardio, metódico e acelerado” ( BOURDIEU, 2007: 65).

As modalidades do cultivo musical dos dois economistas são qualitativamente distintas e dizem a respeito do processo de socialização e dos capitais à disposição dos praticantes. A relação com a música, no caso de Simonsen, é precoce, provém do ambiente doméstico e resulta em um engajamento ativo no aprendizado, apreciação e reprodução de peças clássicas. Já Delfim forma o gosto pela música tardiamente e pela via popular, do rádio “na hora do almoço do trabalhador”, não selecionando diretamente o repertório e não se convertendo em um intérprete de música. As modalidades da prática condizem com o tipo de socialização, os capitais e bens ao alcance de cada um, inclusive com a disponibilidade de um recurso essencial: o tempo livre.

Delfim começou sua vida de trabalhador aos dez anos, entregando os vestidos que a mãe costurava para ganhar uns trocados. A necessidade de colaborar com o orçamento da casa fez com que, aos 14 anos, começasse a trabalhar fora, como também fizeram suas irmãs. Acostumado às entregas, foi labutar como office boy na companhia de produtos de higiene pessoal Gessy, por recomendação de um tio que conhecia um diretor da empresa (Entrevista de Delfim Netto à autora, 2017). Conta ele: “levava papéis de uma mesa para outra. Depois aprendi datilografia, sozinho, e respondia a cartas de clientes” (Delfim Netto apudCARIELLO, 2014 , [online]). Novamente há um contraste de modalidades: Simonsen conta ter começado a datilografar em casa, na primeira infância, diletantemente e somente com apoio de sua babá exclusiva – evidência da disponibilidade de capital econômico familiar e do investimento intensivo em sua formação. Delfim, por sua vez, aprende sozinho, por necessidade laboral, aos 14 anos, em busca de ascensão no universo profissional.

Delfim conta ter trabalhado na Gessy até obter uma posição concursada no Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Na época, sonhava em cursar a sólida e estabelecida engenharia, mas não tinha “as condições econômicas para cursar a faculdade de engenharia: um claro problema de escolha com escassez”, explica usando o jargão de economista ( DELFIM NETTO, 1997: 736). Narra ele, sobre a engenharia, que:

[...] era muito difícil porque nós não tínhamos renda para isso. De qualquer forma, para ser engenheiro eu fiz o concurso público, entrei no DER. Naquele tempo você trabalhava só um período, então a minha esperança era poder, se tivesse sucesso, acomodar meus horários. Mas aí é que entra o destino... Em 1946 se funda a Faculdade de Economia [da USP] e uma das coisas interessantes era que o diploma de contador que eu tinha [...] dava acesso a universidade, então eu fui para lá (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017).

A socialização primária de Delfim, ao contrário da de Simonsen, ocorreu em um meio não privilegiado, marcado por escassez de capitais econômicos, culturais e cosmopolitas. Estudou em colégios públicos, em bairros de imigrantes, não aprendeu formalmente idiomas estrangeiros e tampouco foi exposto a um vasto cultivo cultural no espaço doméstico. Seus lazeres eram raros e democráticos, e mesmo o apreço pela música valorizada clássica foi incutido posteriormente e fora do meio familiar. Seus encaminhamentos profissionais foram limitados pela dependência do trabalho no período diurno. Tornou-se contador por necessidade e a contabilidade permitiu que fosse o primeiro dos seus a ingressar no ensino superior, em economia, e não na sonhada engenharia.

O contraste revela a decalagem entre as duas trajetórias no que concerne ao meio primário de inserção social. Se Simonsen era o candidato típico a herdeiro das elites tradicionais, Delfim não se assemelhava àqueles que só necessitavam de diplomas para legitimar posições conquistadas via adequação social e fluidez da vivência nos meios dominantes. Se Antonio chegou a ser “Czar” da economia foi por estarem abertos novos caminhos de ascensão social, não fundamentalmente calcados na origem social, e sim na especialização e na formação de alianças estratégicas, como será discutido adiante.

FORMAÇÃO ACADÊMICA E CARREIRAS COMO ESPECIALISTAS EM ECONOMIA

Mario Henrique Simonsen

Mario Henrique, ao contrário de Delfim, não encontrara impedimentos de nenhuma ordem para ingressar na então mais valorizada engenharia13. Possuía recursos econômicos que o desobrigavam de trabalhar, permitindo cursar uma faculdade integral e obteve a primeira posição no exame de seleção para a Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil. A opção pela engenharia, explica Simonsen, derivou do gosto pela matemática. Em paralelo, frequentou o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e mantinha grupos de estudos avançados com os professores da matemática ( SIMONSEN, 1996: 190).

O interesse pela matemática foi influenciado por professores do Colégio Santo Inácio; já a engenharia estava longe de ser uma novidade em sua família. Seu bisavô obteve diploma da École des Ponts et Chaussées e se tornou conhecido engenheiro. Um dos tios-avós foi catedrático da área de Resistência dos Materiais da Escola Politécnica. Havia também um primo de seu pai que frequentou a Politécnica do Rio de Janeiro, obtendo, com menos de 20 anos, o diploma de engenheiro e a medalha de melhor aluno. Depois de formado, trabalhou como engenheiro em companhias estrangeiras antes de tornar-se conhecido economista – fundador de duas importantes escolas de economia do Rio de Janeiro, a FGV-RJ e a Faculdade Nacional de Ciências Econômicas (FNCE) – e homem de Estado, chegando a ser Ministro da Fazenda. Este, que tanta influência teve sobre a formação de Mario Henrique Simonsen, era Eugênio Gudin ( GUDIN, 1980 ; DHBB verbete Eugênio Gudin ).

Como Gudin, Simonsen converteu-se de engenheiro à economista e logo se tornou professor da FGV, escola tida como a “casa de Gudin”. Trabalharia em consultorias com homens próximos a Eugênio e ao núcleo do poder, com destaque para Roberto Campos, e acabaria, como eles, sendo ministro da área econômica ( ALBERTI et al., 2002 ). Um colega de Mario comenta sobre Gudin:

[...] foi ele um dos grandes responsáveis pelo seu encaminhamento para a economia. É claro que a influência intelectual de Gudin foi relevante na formação do Mario. Mas, o motivo que levou o venerando professor a interferir no percurso profissional do sobrinho foi absolutamente pragmático. Quando Mario ainda não havia entrado na Escola de Engenharia, mas já era um aficionado pelo estudo de matemática, o velho Gudin, [...] chegou um dia para o pai do Mario [...] e lhe disse: “Esse menino é um perigo. Ou você faz ele estudar economia ou ele vai derivar para a matemática pura e não vai ganhar um vintém na vida (Sergio Figueiredo in: FARO e GATTO, 1994: 76-77).

Influentes na conversão de Simonsen para a área econômica também foram dois professores da Escola de Engenharia: Jorge Kafuri e seu cunhado Antonio Dias Leite, que integraram o grupo recrutado por Gudin para compor o corpo de professores da FGV e da FNCE. Os dois introduziram o treinamento em economia na formação dos estudantes de engenharia, para formar politécnicos capazes de fazer business plans , ou seja, de lidar com orçamentos, estatísticas, obras públicas, planejamento, etc. Para tanto, organizaram uma especialização em engenharia econômica, com duração de quatro horas por noite, cinco noites por semana, trinta e duas semanas. Mario Henrique ingressou na especialização e logo foi convidado por Dias Leite para trabalhar em sua consultoria: a Engenharia Econômica ECOTEC (Antonio Dias Leite in: ALBERTI et al., 2002: 46; Augusto Jefferson Lemos in: ALBERTI et al., 2002: 59; Carlos Ivan Simonsen Leal in: ALBERTI et al., 2002: 41; Luiz Fernando da Silva Pinto in: ALBERTI et al., 2002: 53).

Depois de desentender-se com os sócios da ECOTEC, Simonsen procurou Lindolpho de Carvalho Dias, amigo e colega de estudos, e pediu que ele o recomendasse para trabalhar com seu cunhado, Mario da Silva Pinto, sócio de outra das poucas consultorias econômicas da época: a CONSULTEC (Luiz Fernando da Silva Pinto in: ALBERTI et al., 2002: 54). A CONSULTEC havia sido criada por especialistas em economia que deixaram o governo, entre o final do mandato de Juscelino Kubitschek e a ascensão de João Goulart, e que discordavam dos rumos da política econômica à esquerda, feita com larga intervenção estatal. Eram sócios da CONSULTEC, à época, Mario da Silva Pinto, Roberto Campos e Lucas Lopes, homens que promoveram a entrada de Simonsen no governo na ditadura militar ( CAMPOS, 1994: 379).

Além de trabalhar na consultoria, Mario Henrique formou, em sociedade com Julio Bozano, a administradora financeira Bozano, Simonsen & Cia, uma das primeiras do gênero no país, multiplicando seu capital econômico (Luiz Fernando da Silva Pinto in ALBERTI et al., 2002: 78; Julio Bozano in: ALBERTI et al., 2002: 79). Ao mesmo tempo, lecionava em quatro lugares: no curso de engenharia econômica da Nacional de Engenharia, no IMPA, no curso de especialização em economia do Conselho Nacional de Economia e no Centro de Aperfeiçoamento de Economistas (CAE) da FGV. O propósito deste último era preparar alunos para obter bolsas de estudos nos Estados Unidos e para adequar-se ao nível de inglês e de teoria econômica exigidos no exterior (Julian Chacel in: ALBERTI et al., 2002: 84-85).

Simonsen juntou-se ao CAE em 1961. Segundo Julian Chacel, Mario teria chegado por indicação de Roberto Campos e não diretamente de Gudin – que teria incluso indagado se a nomeação não soaria a nepotismo (Julian Chacel in: ALBERTI et al., 2002: 81). Na prática, os laços estiveram na raiz de tantas destas indicações. A trajetória do próprio Chacel compõe a trama, já que os vínculos de sua família com Gudin precediam o convite que recebeu dele para ser estagiário na FGV. Eugênio era amigo da avó de Chacel e de sua tia, além de frequentar jantares na casa de seus pais. Julian tinha laços também com os Simonsens, pois seu avô era colega do avô de Mario na Medicina e seu pai era amigo de Hermano Simonsen, irmão de Mario Simonsen. Ao falar sobre os laços entre os Gudin, os Chacel e os Simonsen, Julian declara: “o Rio de Janeiro era pequeno, e as famílias se conheciam. No fundo eram todos um bando de aristocratas, de uns tempos que não voltam mais” (Julian Chacel in: ALBERTI et al., 2002: 82-83).

Mario Henrique tornou-se rapidamente o principal professor do CAE. Contam seus alunos que ele lecionava tudo: microeconomia, macroeconomia, matemática, economia internacional, finanças públicas, etc. (José Luiz de Carvalho in: D’ARAÚJO, 1999: 195). Em 1966, o embrionário CAE foi transformado na Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE). O curso passou de um para dois anos de duração e os candidatos começaram a ser selecionados por meio de exames de matemática, estatística e teoria econômica ( SIMONSEN, 1966: 26). Mesmo no período em que a EPGE contou com professores visitantes americanos – em função de acordo estabelecido com a Universidade de Vanderbilt – Mario Henrique seguia ministrando teoria econômica e matemática. Ocupava-se, além disso, de tudo mais que fosse necessário e ensinava o que mais aventasse – a ponto de ter lecionado teoria da relatividade e física quântica para alunos interessados ( Entrevista de André Lara Resende à autora, 2012 ). Na grade horária, a matemática, a econometria e a estatística ocupavam juntas quase um terço do programa, a exata parcela representada pela soma de todas as disciplinas que formam a base do curso de economia: microeconomia, macroeconomia e teoria econômica geral ( KLÜGER, 2017: 379-380).

Ainda que se devesse muito à iniciativa de Simonsen, o peso que a matemática assumiu na EPGE não era reflexo exclusivo de seu interesse pessoal. Ele expressava o fortalecimento do estilo matematizado que se difundia no Brasil naquele momento14, acompanhando a tendência internacional contemporânea em ciência econômica ( FOURCADE, 2009 ). Seus alunos, ao doutorarem-se no exterior, iam ao encontro da mesma matematização com a qual tiveram contato nas suas preleções, preparando-se para consolidar o modelo que ele lutara para propagar. Simonsen encarnava, portanto, a nova economia e divulgava no Brasil padrões em ascensão no espaço global – sem sequer ter estudado ou lecionado fora do país (João Paulo dos Reis Velloso in: ALBERTI et al., 2002: 70). Neste ponto, é possível argumentar que a promoção ativa15 da linguagem matemática por parte de Simonsen convergia com as tendências mais valorizadas no campo científico do período, consistindo em trunfo que o consagrava e validava seu domínio sobre o jogo.

A ideia de validação é central para compreensão das narrativas acerca de Simonsen. Ele era um engenheiro atuando como economista. Tinha uma especialização em engenharia econômica, mas não possuía mestrado ou doutorado, títulos já requeridos em modernas instituições acadêmicas. Toda sua carreira foi mediada por laços pessoais: ele não ingressou na universidade por concurso e nunca fez livre-docência ou exame para cátedra. Não é casual, pois, a insistência dos relatos laudatórios em dizer que era um gênio da cada vez mais valorizada matemática. Seria sua “excepcionalidade” precisamente o marcador que justificava a posição por ele ocupada, configurando caso no qual “diferenças de origem [social] são então consagradas como diferenças de ‘aptidões’, de ‘dons’ percebidas como naturais”, funcionando como elemento de dissimulação do peso da transmissão hereditária dos capitais na reprodução de sua posição social ( BOURDIEU, 1989: 211, tradução minha ).

Antonio Delfim Netto

Ao falar sobre Simonsen, Delfim Netto destaca o papel da matemática na aproximação entre os dois. Ele explica: “Ah, o Mario, nós fomos muito bons amigos inclusive. Nós nos conhecemos..., eu acho que nós convidamos o Mario para uma palestra aqui em São Paulo e daí para frente a amizade foi crescendo, com grande respeito mútuo”. E acrescenta: “na verdade todos nós tínhamos a mesma admiração pela teoria quantitativa, que era o que nos unia realmente” ( Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017 ).

Delfim descreve sua própria relação com a temática nos seguintes termos: “quando eu comecei a me preparar para a engenharia eu desenvolvi um gosto pela matemática” (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017). Ainda que Delfim tivesse gosto pela matéria, ele não é descrito como um gênio da matemática e tampouco a matematização no curso de economia na USP é associada a sua paixão individual. Neste ponto há, novamente, uma oposição entre aquilo percebido como inato, distinto e excepcional, pois decorrente do aprendizado precoce e insensível, e o conhecimento derivado do aprendizado tardio e escolar, apresentado como uma forma menos autêntica de relação com a cultura e o conhecimento ( BOURDIEU, 2007: 65). A entrada da matemática na vida de Delfim, bem como na própria USP, ocorreu pela via escolar, resultando de um esforço coletivo para modernização dos parâmetros curriculares e da pesquisa em ciência econômica.

Delfim, ao falar de sua formação na Faculdade de Economia, entre 1948 e 1951, conta que o professor Luiz Freitas Bueno foi quem “empurrou a econometria” para a sua vida (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017). Antonio, que foi seu assistente a partir de 1952, declara que a maior contribuição de Bueno teria sido “certamente, a formação de um grupo de estudantes interessados no desenvolvimento da economia quantitativa insistindo sempre na modelagem de séries de tempo” ( DELFIM NETTO, 2006 , [online]). Bueno também lutou para obter as condições materiais para o ensino na área. Ele mesmo explica – em texto sintomaticamente intitulado “Métodos quantitativos na FEA-USP, minha realização profissional” – que ao se instalar na cadeira de “estatística metodológica e estatística econômica” da FCEA requereu “à reitoria um laboratório de cálculo. Tínhamos máquinas Facit manuais e elétricas, havia duas máquinas de somar Vitor e inúmeras réguas de cálculo” ( BUENO, 1997: 335-336).

O cultivo da matemática na USP, ainda que tenha como patronos os professores Bueno e depois Delfim, não era uma atividade individual ou um conhecimento transmitido verticalmente de um detentor legítimo para seus seguidores. Na FEA, a formação dos jovens professores passava por trabalho conjunto com os catedráticos e, no referido grupo, incluía a participação em seminários voltados à formação complementar. Segundo Delfim, esses seminários começaram em 1954, pouco depois de ter-se tornado assistente, quando já estavam adquirindo certo domínio da matéria. Ele conta: “um dos seminários era das sete da manhã às nove, o seminário de matemática, e depois tinha o seminário da sexta-feira, em que se tentava estudar os artigos mais recentes, que estavam na fronteira ou no que supúnhamos ser a fronteira do conhecimento” ( DELFIM NETTO, 1996: 95).

Raul Eckerman, aluno à época, detalha a rotina do grupo:

[...] no ano de 1964, em que participei do grupo de estudos, o programa era intenso: diariamente das 7h30min às 8h30min se estudava o texto de [Roy Douglas] Allen, Mathematical analysis for economists; das 14h às 15h, alternadamente, os textos que na época eram denier-cri: [James] Henderson e [Richard] Quandt, Microeconomic theory e [Gardner] Ackley, Macroeconomic theory; das 18h às 19h, textos de periódicos internacionais, também os últimos lançamentos da estação. Ao fim da tarde de sexta-feira, o grupo de estudos fazia “vaquinha” para comprar uísque Drurys ao sabor do qual se discutia o livro de Paul Sweezy, Teoria do desenvolvimento capitalista, texto famoso de economia marxista. A impressão que fiquei era de que os textos de teoria econômica eram para ser levados a sério, o texto de Sweezy para ser levado a uísque ( ECKERMAN, 1989: 123-124).

Indagado sobre a escolha dos textos, Delfim comenta que decidiam o que leriam “olhando o que os outros estavam fazendo, o que estava sendo feito nos outros países, aquilo que parecia que era moda”, mas explica que “na verdade era uma coisa muito autóctone. As revistas chegavam [do exterior...] com um atraso de 6, 7, 8 meses”. Comenta ainda: “não tínhamos nenhum programa estabelecido. Ele foi sendo feito à medida que se vai caminhando, mas uma coisa é segura: o fio condutor, [a partir] do qual depois você foi expandindo foi o livro do Allen”, “que nós fizemos várias vezes inteirinho, com turmas sucessivas” (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017), o que ressalta a importância que atribuíam ao treinamento matemático na formação dos economistas.

O seminário foi também um espaço privilegiado de socialização do grupo que orbitava ao redor de Delfim e Bueno16. O fechamento da semana era marcado pelo uísque ou pelas “noitadas de pizza num restaurante chamado Camelo, na Rua Pamplona, que de tanto servir a esse grupo acabou por incluir no seu cardápio uma pizza chamada ‘Lufrebu’ em homenagem ao professor Luiz de Freitas Bueno” ( MACEDO, 1984: 326). Delfim explica que essa convivência é importante, pois “gera uma solidariedade tribal que é absolutamente fundamental” (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017), tendo sido essencial na construção do núcleo alcunhado de Delfim Boys, os leais apoiadores que o acompanhariam em sua trajetória acadêmica e governamental.

Em paralelo às atividades do seminário, Delfim Netto defendeu uma tese de livre-docência intitulada O problema do café no Brasil , redigida “no melhor e mais moderno ‘economês’, [... seguindo] o padrão que, após os anos 50, nos Estados Unidos, passou a ser o sine qua non da boa tese: formulação de hipóteses, preferencialmente em termos matemáticos, e teste delas, pelo uso de técnicas econométricas” (ECKERMAN, 1989:123-124). Em 1963, Delfim tornou-se o primeiro ex-aluno a assumir uma cátedra na FEA. Apresentou, quando do concurso de cátedra, o livro Alguns problemas do planejamento para o desenvolvimento econômico , assumindo a cadeira “Economia brasileira, planejamento governamental e desenvolvimento econômico” . Se havia na carreira de Delfim uma adesão à matematização, ela não era descolada de uma pretensão política de intervenção econômica, expressa no nome de sua cadeira. Ele escreveu sobre os problemas econômicos de seu tempo, começando pela agricultura e pelo café e avançando para a política econômica e financeira do governo e para a relação entre inflação, planejamento e desenvolvimento ( CANABRAVA, 1984: 93-94).

O interesse de Delfim por tais temáticas extravasou cedo o ambiente acadêmico. Ainda que não estivesse formalmente ligado a uma consultoria, como no caso de Simonsen, Delfim começou, em paralelo à docência, a oferecer assessorias a agentes do setor privado. Ele explica: “a vida inteira, depois que eu me formei, todo fim de dia eu tinha contato com o comércio ou com a indústria”. Em 1952, começou a participar do conselho da Associação Comercial, onde diz ter aprendido muito sobre o funcionamento da economia. Depois sua atividade se estendeu à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Logo começou a ser convocado também para atividades voltadas ao planejamento governamental (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017).

Delfim notabilizou-se inicialmente em nível estadual. No começo dos anos 1960, recebeu um convite do governador Adhemar de Barros para participar da Comissão Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai. Na sequência, atuou na formulação da estratégia econômica do Plano de Ação do governador Carlos Alberto Carvalho Pinto juntamente com o politécnico Ruy Leme – a quem posteriormente convidaria para a presidência do Banco Central. Já os Delfim Boys dividiram-se entre o trabalho na Comissão da Bacia e a participação na Associação Nacional de Programação Econômica e Social (ANPES). Criada em 1964, a ANPES reunia diversos empresários paulistas com os quais Delfim havia estabelecido boas relações e funcionava como uma interface com a elite da administração econômica estabelecida no Rio de Janeiro, dada a participação, ao menos no início, de figuras como Roberto Campos, Luís Simões Lopes, Lucas Lopes e do próprio Mario Henrique Simonsen. Destarte, a posição de direção que Delfim Netto exerceu na ANPES foi importante para que seu nome e suas ideias ecoassem nacionalmente.

O prestígio de Delfim e de seu grupo junto aos governadores Carvalho Pinto e Adhemar de Barros gerou externalidades positivas também para sua Faculdade. Quando decidiram fundar um Instituto de Pesquisas Econômicas e o curso de pós-graduação, o fato de terem sido agraciados pelo governo com uma verba inclusive superior àquela que solicitaram para o empreendimento foi fundamental para que a universidade aprovasse o projeto ( CANABRAVA, 1984: 378; ROCCA et al., 1984: 228-229). No ano em que a pós-graduação começou a funcionar, 1966, Delfim deixou a USP pela primeira vez para ser secretário da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo na gestão de Laudo Natel. Consequentemente, esteve pouco presente durante a instalação da pós-graduação que ajudara a viabilizar.

Mesmo que Delfim Netto tivesse adquirido destaque entre os membros da FEA e que seu seminário seja frequentemente mencionado como essencial na formação dos alunos da época, sua saída não desestruturou o funcionamento interno da faculdade. Isso pois o ensino não se concentrava em suas mãos, já que nunca se propôs, como Simonsen, a ministrar todos os principais cursos. A própria estrutura da USP impedia a concentração de poder, já que a FEA dispunha de um corpo docente maior, contava com uma preocupação com a formação interna das novas gerações e com uma estrutura administrativa na qual o poder era rotativo e as decisões eram colegiadas. Quanto à estrutura administrativa, a FGV tinha baixa institucionalização, grande centralização do poder e falta de integração do corpo docente, características que engendraram problemas sucessórios no período em que Simonsen atuou no governo.

A USP e a FGV divergiam também no que concerne ao público das escolas de economia. A USP resultara de uma aposta das elites paulistas na institucionalização da formação cultural e no preparo científico para o exercício de funções de prestígio e poder, com o objetivo de reconquistar o controle do Estado, perdido para as oligarquias de outras regiões com o advento da era Vargas ( MICELI, 2001: 101-102; CARLOTTO, 2014: 113-114). Tal projeto contemplava a inclusão de diversificadas parcelas de sua população, abrangendo dos filhos de imigrantes e moças do interior aos rebentos da elite local. Deste modo, criava permeabilidade a distorções da estrutura de reprodução social, oferecendo credenciais acadêmicas a agentes não favorecidos pela transmissão familiar de recursos econômicos e culturais. Trata-se de notável contraste com a EPGE que, via de regra, se restringia à formação das circunscritas camadas dominantes, colaborando antes para dissimular, com base no credenciamento escolar, a reprodução da transmissão desigual de inúmeros trunfos previamente adquiridos ( BOURDIEU, 1989: 410).

MODALIDADES DE EXERCÍCIO DO PODER

Mario Henrique Simonsen

Simonsen começou a atuar na esfera pública na mesma época em que Antonio Delfim Netto, a saber, nos primeiros anos da ditadura militar. De início, sua participação não era de natureza oficial visto que, como membro da CONSULTEC, colaborava informalmente com os sócios convocados para trabalhar no governo. Octávio Bulhões, muito próximo a Gudin, assumira a Fazenda e Roberto Campos tornara-se Ministro do Planejamento de Humberto Castelo Branco. Nesta função, Campos promoveu a elaboração do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), cujo principal redator fora o próprio Simonsen (Jefferson de Oliveira Lemos in: ALBERTI et al., 2002: 62).

Nesse sentido, a CONSULTEC foi mais do que uma rota para a pantouflage de quadros de elite do setor público – ou seja, para a transferência para o setor privado do renome e dos contatos adquiridos nas instâncias estatais ( BOURDIEU e SAINT-MARTIN, 1976: 52; CHARLE, 1987: 1115). Ela permitiu a conservação e a reprodução de um grupo de tecnocratas que poderia ter se desfeito com a chegada da oposição ao poder, favoreceu a transmissão de seus conhecimentos e a preparação de novos quadros para um almejado retorno ao Estado. Além de Simonsen, figuravam entre os jovens da CONSULTEC aqueles que seriam seus apoiadores quando no governo. Eram eles o filho de Mario da Silva Pinto, Luiz Fernando da Silva Pinto, Arlindo Correa, colega de Carlos Eduardo da Silva Pinto – o outro filho de Mario da Silva Pinto –, Augusto Jefferson de Oliveira Lemos, sobrinho de Roberto Campos, e Francisco Lopes, filho do ex-ministro Lucas Lopes, que seria aluno de Mario Henrique na FGV. Havia, pois, laços de sangue e vínculos resultantes de antiga amizade costuradas em meios abastados que precediam as colaborações na consultoria e na assessoria de Simonsen.

Ao deixar a FGV para ir para o Ministério da Fazenda, Simonsen convidou para sua equipe seus estagiários da CONSULTEC, Augusto Jefferson de Oliveira Lemos e Arlindo Lopes Correa, e alguns alunos da Fundação, como Alfredo Luís Baumgarten, Chico Lopes e Dionísio Dias Carneiro. Diferentemente de Antonio, Mario Henrique não foi capaz de criar ao seu redor um núcleo com forte amálgama, ou usando os termos de Delfim, “um grupo com solidariedade tribal”, que pudesse espalhar pela administração para manter o controle sobre os recônditos do Estado. Dionísio Carneiro menciona o quanto Simonsen não era adepto do trabalho coletivo ao afirmar que Mario “virou o seu próprio assessor. Aliás, era o seu melhor assessor, o seu melhor datilógrafo, provavelmente o seu melhor engraxate, o seu melhor tudo...” (Dionísio Dias Carneiro in: ALBERTI et al., 2002: 150). Seus colegas contam que Mario interessava-se tão pouco pela composição da equipe que entregou a Jefferson a escolha dos assessores. Além disso, aceitaram indicações externas, mantiveram pessoas da gestão anterior e, em alguns casos, simplesmente designaram quadros burocráticos para posições de confiança (Jefferson Lemos in ALBERTI et al., 2002: 152).

Como ressaltam alguns depoimentos, Simonsen era um formador de escola no sentido intelectual, mas, ao contrário de Delfim, não tinha habilidades de gestão institucional e de pessoas. Tal característica convertia-se em um obstáculo quando se tratava da gestão da escola e da atuação no governo, atividades que implicavam coordenação e motivação de equipes. Claudio de Moura Castro, por exemplo, argumenta:

[...] o Mario não tinha respeito pela lógica interna de funcionamento de nenhuma organização, qualquer que fosse ela. Sempre foi um displicente total no que se refere à maneira pela qual as pessoas se relacionavam umas com as outras. “Olha, fulano não se dá com fulano” – ele ouvia isso como se alguém estivesse lhe falando em sânscrito. Era ruído analítico, ele passava por cima. Como consequência, sempre fez muita barbeiragem na alocação de pessoas para os lugares [...]. Como o Mario não sabia construir time, de uma forma ou de outra, ele lhe dava a impressão de que você estava ali como podia não estar, não fazia falta [...]. Se você tomar uma pessoa como o Delfim, vai descobrir que ele tinha os “amarra-cachorro” que carregavam a mala dele, mas tinha também os “sócios honorários”, pessoas do mesmo naipe intelectual, que ele respeitava, com quem convivia num plano intelectualmente muito elevado, e que compunham um exército absolutamente leal e confiável. Todos os que trabalhavam com o Delfim trabalhavam confiantes [...]. Em outras palavras, sempre teve time (Claudio de Moura Castro in: ALBERTI et al., 2002: 91-93).

À tal inabilidade e à centralização da EPGE na pessoa de Simonsen é correntemente atribuída a crise sucessória instaurada quando ele trocou a Escola pelo governo. A transferência de Delfim Netto para o Ministério da Fazenda, em 1967, não provocou uma crise semelhante na FEA, já que o grupo organicamente vinculado a ele era grande e conseguia manter controle simultâneo das posições administrativas da Faculdade e dos diversos órgãos econômicos do Estado. Mario Henrique, ao se afastar da FGV, não tinha herdeiros consolidados com os quais deixar a Escola, posto que toda estrutura fora construída em torno da sua pessoa. Os professores mais antigos eram colaboradores que lecionavam um curso ou outro e que, via de regra, não participavam das decisões administrativas, definição de currículo, seleção de alunos, etc. Tais atribuições cabiam quase exclusivamente a Simonsen. O que fazer, então, em sua ausência? Quem deveria herdar a responsabilidade pela Escola?

No início dos anos 1970, a EPGE até havia incorporado alguns dos ex-alunos do CAE que regressavam do exterior. Edmar Bacha, Claudio de Moura Castro e Hamilton Tolosa foram dos primeiros professores da casa a lecionar disciplinas centrais da pós-graduação, antes reservadas a Simonsen. Eles chegaram à EPGE exatamente na época em que Mario Henrique fora convidado para dirigir o MOBRAL17, razão pela qual se ausentava mais e mais. Nessas ocasiões, reclama Bacha, deixava “a administração do curso a cargo de burocratas”; entenda-se, do diretor administrativo da EPGE, Ney Coe de Oliveira, alcunhado “bedel” da escola do Mario Henrique (Edmar Bacha in: ALBERTI et al., 2002: 95).

Na sequência, em vez de passar diretamente as funções de direção aos jovens professores da casa, Simonsen convidou para ser diretor de ensino o sênior da cadeira de Estatística da USP, Luiz de Freitas Bueno – escolha que poucos entenderam e que deixou indignados os discípulos de Mario, que aspiravam a um maior controle sobre a EPGE. Dionísio Carneiro argumenta que o conflito que opôs Simonsen a Bacha era mais profundo que a simples rejeição do exercício da coordenação por Luiz Bueno ou Ney Coe. Girava também em torno do modelo de pós-graduação que os jovens doutores desejavam implantar na Escola. De acordo com ele, Edmar queria que a EPGE adotasse o padrão de um departamento americano, sem uma liderança unitária e voltado fundamentalmente para a pesquisa. Ou seja, que não fosse mais “a escola do Mario Henrique”.

O conflito que levou Bacha, Tolosa e Moura Castro a deixarem a FGV-RJ no início dos anos 1970 repetiu-se quando Simonsen tornou-se Ministro da Fazenda de Ernesto Geisel, em 1974. Então, a FGV já incorporara vários dos doutores que regressaram ao país, alterando o padrão de centralização reinante nos tempos de Simonsen. Passaram a coexistir diversos aspirantes à estrela, cada uma tentando ofuscar as outras, mas não havia regras institucionais desenhadas para fazer circular o comando, como na USP. A divisão de poderes ainda cabia a Mario Henrique que – segundo seus alunos, novamente por falta de sensibilidade para as tensões mundanas –, posicionou na direção geral e na diretoria de ensino pessoas de grupos diferentes, com visões diferentes de teoria e ideais distintos. A tensão resultante foi tal que a Escola rompeu novamente e quase metade dos doutores deixou a casa.

Mario Henrique ficou na Fazenda de 1974 a 1979. Com o início do governo de João Figueiredo transferiu-se para o Ministério do Planejamento. A experiência durou pouco. Sem conseguir fechar o orçamento de 1979, desprovido de apoio para seu programa de estabilização e com a ameaça da elevação de juros por parte do Federal Reserve americano, Simonsen deixou o governo em agosto do mesmo ano. Na ocasião, o Planejamento passou para Delfim Netto, até então alocado no Ministério da Agricultura. Ao contrário de Mario, Antonio estava disposto a enfrentar o período de desgaste e a crise que se sucederia. Ademais, Delfim era conhecido por suas políticas econômicas menos austeras, coadunando com as intenções de projeção de Figueiredo. Ao deixar a esfera federal, Simonsen retorna à academia e lá permanece; Delfim, ao final de suas gestões, migraria diretamente para a política eleitoral.

Em suma, no que concerne às formas de exercício do poder, cabe mencionar que o entorno de Simonsen era permeado por laços de família e por vínculos de amizade travados no espaço mundano, aos quais se somaram laços costurados na consultoria e na FGV. Nesse sentido, mistura-se o padrão de recrutamento via capital social das velhas elites com a legitimação por meio da qualificação técnica para a administração econômica. Os depoimentos de seus colegas indicam que a relação de Mario Henrique com os apoiadores era prejudicada pela pouca habilidade emocional para compreender os conflitos e as dinâmicas sociais, por um lado. Por outro lado, sua ampla autonomia podia soar como autossuficiência, desestimulando os que o cercavam, já que não se sentiam recompensados por orbitar ao seu redor. Nesse sentido, a dita genialidade convertia-se em deficiência, ao obstar o cultivo de um núcleo estável de apoiadores e a gestão cotidiana estável na Escola e no governo.

Antonio Delfim Netto

A chegada de Delfim ao Governo Federal não decorre, como no caso de Simonsen, da soma do prestígio acadêmico com a mobilização de laços de seu círculo familiar e de sociabilidade próximo. Ela resulta da combinação da posição de destaque conquistada na universidade com laços profissionais costurados com as elites econômicas paulistas, nas associações comerciais e industriais, e com representantes políticos do governo local. É, pois, um desdobramento da inclusão social resultante do sucesso escolar em um momento de valorização da qualificação técnica, progressivamente entendida como trunfo necessário ao planejamento e à administração da política econômica – ainda que nem o saber técnico bastasse para alcançar postos no Estado nem os atores técnicos fossem dissociados de suas posições e preferências políticas ( REIS e GRILL, 2015: 348).

Delfim tende a imputar sua nomeação para a secretaria estadual a relações tecidas na Associação Comercial, reconhecendo possível influência de Roberto Campos para confirmar a indicação dos paulistas (Delfim Netto apudCARIELLO, 2014 ). Já a entrada no governo federal, ele atribuiu ao “acaso”; um acaso ratificado por seus contatos com as elites paulistas e por suas ideias econômicas. Narra ele:

Eu, no fundo, provavelmente fui escolhido para ser Ministro da Fazenda por um acaso. Porque o Presidente Costa e Silva queria alguém de São Paulo que fizesse uma exposição para ele sobre economia. E eu era assessor [...] e muito amigo do Ruy Gomes de Almeida18, que era amigo do Presidente, e ele me indicou [...]. O que eu expus para ele era exatamente que o Brasil não podia continuar dependendo do café [...]. Na verdade, depois que terminou isso eu nunca mais conversei com ele. Seis meses depois eu era Secretário da Fazenda em São Paulo, do Sodré que tinha substituído o Laudo [Natel], mas me conservou na Secretaria. O [Mario] Andreazza entrou na minha sala com uma carta me convidando para ser Ministro (Entrevista de Antonio Delfim Netto à autora, 2017).

Em 1967, Delfim, o imigrante de origem social modesta, aos 39 anos, confronta-se com a tarefa de operar o Ministério da Fazenda, no qual permanece até 1974. Diz ele que a elite carioca pensava: “chegou esse gordo, italiano e vesgo. Nós vamos matá-lo em seis meses, tá certo? E além de tudo tem uns animais estranhos com ele, uns japoneses” e acreditava que “aquele paulista caipira não aguentaria até o fim do ano” (Delfim Netto apudSAFATLE, 2012 ). A maior parte dos Delfim Boys descendia de imigrantes, não só japoneses, mas também italianos e judeus, dentre outros. Muitos deles tinham trajetórias similares à do chefe, ou seja, provinham de famílias de imigração recente, eram egressos de escolas técnicas e trabalharam concomitantemente aos estudos, devendo a ascensão social e política aos conhecimentos e laços adquiridos na Faculdade ( SAFATLE, 2012 ; CARIELLO, 2014 ). Tal característica ecoava, precisamente, a mencionada heterogeneidade social da USP que, nas primeiras décadas de atividade, permitiu a inclusão e a ascensão social de larga parcela de descendentes de imigrantes e de membros de classes médias baixas, da capital e do interior.

Delfim e a maior parte de seus assessores eram, pois, outsiders , não tendo capital social de origem que pudesse influenciar sua ascensão social. Chegaram ao poder por lograr combinar trunfos e vínculos universitários, laços derivados da inserção profissional próxima ao universo político e o amparo recíproco dos membros da tribo. Os Delfim Boys mantinham uma relação de mutualismo com o chefe: ajudavam a sustentá-lo no poder e partilhavam do prestígio que dele emanava ao serem indicados para cobiçados cargos de confiança no topo do Estado e das estatais. O vasto controle de Delfim sobre a economia é atribuído precisamente a sua capacidade de manejar um grupo de fiéis seguidores, pois ao espalhar leais apoiadores por todo governo, ele passava a controlar as filigranas do Estado ( SCHNEIDER, 1991: 91).

Diz o próprio Delfim que “é uma questão de lealdade [...]. Você tem que ter gente que soma com você, com o projeto, e que é leal” (Delfim Netto apudCARIELLO, 2014 ). Um dos Delfim Boys, Luís Paulo Rosenberg, comenta que eles eram obrigados a almoçar com o chefe todos os dias, sendo esta a estratégia que ele utilizava para conseguir reunir informações que vinham de todos os lados, o que era central para manter o controle sobre a máquina de Estado (Luís Paulo Rosenberg apudCARIELLO, 2014 ). Outro de seus colaboradores, Eduardo Pereira de Carvalho, declara que “o poder de fazer as coisas acontecerem era multiplicado pelas centenas de pessoas que o Delfim tinha em tudo quanto é lugar. O poder de ação que a gente tinha, o poder de informação, era infernal”. Os dois ressaltam que ser membro da turma e ter uma lealdade cega para com o chefe eram os requisitos para ocupar aquelas posições (Eduardo Pereira de Carvalho apudCARIELLO, 2014 ). O papel da rede de apoiadores era, para Delfim, trunfo mais do que essencial para o controle e manutenção do poder. Não possuindo laços de berço com as elites, seus sustentáculos residiam na capacidade de obter a colaboração daqueles que o cercavam, o que demandava habilidade para valorizar e recompensar o trabalho e a lealdade dos discípulos.

Neste ponto, propõe-se um retorno ao Mozart , desta vez para pensar sobre a posição de Delfim na transição de cânones em questão. Amadeus, relata Elias, era um homem altamente empenhado que trabalhou incansavelmente ao longo de sua vida e nunca deixou de ocupar na corte a posição de um servidor, de um burguês, ainda que seu talento lhe rendesse um pouco mais de prestígio e convites para que frequentasse o cotidiano da corte. Por mais que circulasse naquele ambiente, nunca seria tomado como um cortesão, já que lhe faltavam o domínio dos modos dos aristocratas e as credencias de origem (ELIAS, 1993:4-18). O reconhecimento das credenciais acadêmicas faz com que Delfim possa ser admitido no campo do poder, mesmo sem possuir os capitais culturais, econômicos e sociais dos “aristocratas de uns tempos que não voltam mais” – para usar as palavras de Chacel. O fato do tempo não mais voltar diz precisamente sobre a transição de configurações que possibilitou ampliação do recrutamento para além dos originais círculos da elite, resultante da permeabilidade do governo e das universidades aos caipiras e imigrantes e da valorização das competências especializadas.

Ao deixar a administração econômica do Estado, Delfim adentra ainda outra esfera dos círculos do poder, aquela da política partidária. Foi eleito deputado 5 vezes, retraduzindo o carisma e a experiência administrativa previamente adquiridos. Posteriormente, abriu a consultoria onde até hoje trabalha ao lado de alguns de seus Delfim Boys. Tantos outros seguem próximos e continuam sendo beneficiados por ele em suas carreiras. A extrema valorização da rede de apoio formada por seus discípulos é condizente com a importância por ela desempenhada na proteção mútua daqueles que adentravam um espaço hostil a incumbentes sem renome social, que não partilhavam do habitus e não dominavam os códigos da elite tradicional. Como no caso de Mozart, a admissão no campo do poder de outsiders intelectualmente credenciados não implicou uma inclusão mundana paritária em círculos das tradicionais elites. As marcas de origem seguem distinguindo aqueles que ascenderam sobretudo pela via escolar dos que somam mérito escolar e científico com atributos de nascença, cultura erudita, títulos de propriedade, princípios que se combinam e fortalecem a posição dessas elites ( BOURDIEU, 1989: 480); e nem todas as frestas e festas estão abertas aos que adquiriam seus capitais tardia e parcialmente.

CONCLUSÃO

Ao fazer uma análise das trajetórias de Simonsen e Delfim inspirada pelas sociologias de Pierre Bourdieu e de Norbert Elias, torna-se possível contextualizar as estratégias na academia e no poder com base na demarcação das posições sociais e denotar os descompassos nas trajetórias dos economistas, afastando interpretações calcadas nas idiossincrasias das personagens. Assim, sugere-se ser possível situar tanto o mito da genialidade de Mario Henrique Simonsen quanto o mito do mérito de Delfim em um contexto social de transição entre configurações no que concerne às formas de ingresso e permanência no campo do poder.

A transição na dinâmica do poder narrada no texto conecta-se a uma transformação em curso no âmbito da ciência econômica que resultaria da introdução no Brasil das versões matematizadas que começavam a ecoar internacionalmente. Neste particular, o desenvolvimento do amor pela matemática de Mario Henrique, visto como inato, poderia ser interpretado como genialidade por ter sido creditada a ele, sem esforços aparentes, uma precocidade na introdução de um trunfo progressivamente valorizado. Delfim também expressa uma afinidade com a matemática que se traduz tanto em seus escritos quanto nos temas privilegiados no seminário que dirigia. Tal cultivo da matematização não é, entretanto, descrito como prodigioso, posto considerarem haver um esforço visível, coletivo, escolar, e não precoce, nesta direção. Ou seja, ainda que o domínio da matemática colaborasse para a modernização de sua escola e para a legitimação da administração econômica exercida por ele e seu grupo, a posse de tal recurso não era reputada em si como distintiva ou como fruto de uma genialidade, precisamente por carregar marcas de aquisição.

A oposição entre o escolar e o inato marca de forma mais ampla a relação dos dois economistas com as instituições de ensino às quais estiveram vinculados. Delfim é visto e vê-se como alguém que muito deve à Faculdade de Economia. Foi com sua preciosa biblioteca, composta por volumes escolhidos a dedo nas livrarias que frequentava mundo afora, que Delfim presenteou a Universidade de São Paulo, via primordial de seu improvável ingresso no campo do poder. Ao falar de Mario Henrique Simonsen, costumeiramente diz-se que a EPGE era a sua escola, local no qual ele decidia o que iria lecionar e terminava por lecionar quase tudo. Simbolicamente a escola pertencia a ele, tinha uma dívida em relação a sua figura, e não o contrário. Seu triunfo acadêmico e profissional não é atribuído a nenhuma das instituições pelas quais passou: nem à Faculdade de Engenharia, nem à FGV, nem à CONSULTEC. Aqueles que conviveram com ele sempre ressaltam a tal precoce e inata genialidade do moço que reunia todos os capitais: tivera berço de ouro, laços preciosos, fora educado em colégio de elite, tinha tempo livre para jogar xadrez, cantar ópera e viver de excessos, além de obter o credenciamento acadêmico e profissional esperado.

A possibilidade de ascensão ligada à escola, em oposição à ascensão calcada na fórmula capital cultural, cosmopolita, econômico e laços mundanos com a elite nacional, é outro dos elementos que caracterizam o período narrado como uma época de transição. Os especialistas em economia em altas posições governamentais antes de Delfim e Simonsen eram, raras exceções19, herdeiros com socializações cosmopolitas, largo capital cultural, econômico e laços abundantes no universo das elites ( KLÜGER, 2017 ). Ainda que certa especialização lhes fosse cobrada, ela não bastava para içar o indivíduo ao poder, devendo ser amparada pelos múltiplos trunfos associados a origens sociais privilegiadas.

Simonsen encarnava ainda este modelo; Delfim representava a novidade, expressa na possibilidade de ascender via capital cultural especializado adquirido via engajamento ascético na escola e laços costurados na vida profissional. A falta de interesse de Simonsen por aqueles que o rodeavam pode ser atribuída justamente à baixa dependência que seu status e prestígio tinham da capacidade de manter uma equipe eficiente e articulada. Sua posição de origem e conexões prévias abriram caminhos que percorreu legitimado por sua dita excepcionalidade e por seus conhecimentos fortemente matematizados. Em contraponto, não pertencendo originariamente à elite e não dispondo previamente dos trunfos econômicos, cosmopolitas e de laços de família com as camadas dominantes, o “paulista caipira, [...] gordo, italiano e vesgo” (Delfim Netto apudSAFATLE, 2012 , [online]) precisava mais do que de um diploma para conquistar e manter posições dirigentes em um Estado até então dominado por elites tradicionais socialmente amalgamadas. Ele dependia, pois, fortemente da extensão e coesão de sua leal equipe, cuidadosamente espalhada pela administração, de modo a favorecer um comando centralizado sobre o Estado.

Quanto aos desajustes, no caso de Simonsen, os exageros, individualismo e presumida inabilidade social dizem a respeito daquele que tem uma posição social tão firmemente estabelecida que sente poder prescindir de sustentáculos para galgar o poder. No caso de Delfim, a inserção ambígua nos espaços do poder – dada a disparidade entre sua origem, seus modos e as regras sociais do locus no qual se insere – decorre da luta por fincar-se em um meio hostil a forasteiros, no qual é recebido como um especialista em economia, sem figurar como um igual.

Com base na comparação dos perfis, trajetórias e atuações de Simonsen e Delfim indica-se, portanto, que, ainda que igualmente legitimados pelo prestígio acadêmico e pelo conhecimento matemático, as estratégias no poder dos dois especialistas variaram em função da dotação e composição dos trunfos disponíveis. De um lado observa-se dominação própria às elites tradicionais, calcada em vastos e múltiplos capitais provenientes do núcleo familiar e da socialização primária que privilegia os atributos individuais em relação à sistematicidade da atuação coletiva. De outro, destaca-se a legitimação acadêmica e profissional, aliada a estratégias de ação coletiva adotadas por agentes não oriundos da elite para compensar trunfos ausentes. Os dois caminhos coexistem em um momento marcado por uma inflexão na configuração do campo do poder, decorrente da progressiva tendência à legitimação técnica da ação política e do ingresso no poder de especialistas fundamentalmente consagrados por suas credenciais especializadas.

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  • 1
    . A generalização da crença no caráter racional, neutro e universal das decisões tomadas com base na razão formal, abstrata, metódica e sistemática que se estabelece progressivamente como a forma predominante de racionalidade na ciência e na burocracia científico-especializada coloca ao alcance dos economistas o poder de fazer recomendações cientificamente legitimadas e assim performar a vida e a estrutura econômica. Isso pois as escolhas feitas por eles passam a ser apresentadas como simples aplicação da ciência para a melhora do bem-estar geral, sem grande discussão pública acerca das finalidades e prioridades da otimização econômica ( MARCUSE, 1998: 116-117; CALLON, 1998 ; LEBARON, 2000: 99).
  • 2
    . Servem de inspiração para a comparação sociológica de trajetórias de intelectuais brasileiros o contraste entre as vidas de Florestan Fernandes e de Antônio Cândido feito por Sylvia Gemignani Garcia no livro Destino Ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes ; a contraposição de Florestan com os membros do grupo Clima presente no livro Destinos Mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo 1940-1968 , de Heloisa Pontes; e a comparação das trajetórias parlamentares de Delfim Netto e Afonso Arinos, por Eliana Reis e Igor Grill, publicada na revista Dados em 2015. Nos três casos, fazem-se contrapontos entre perfis ascéticos de personagens com origens sociais modestas e perfis com raízes nas elites nacionais, marcados pela vasta e precoce aquisição de toda sorte de capitais.
  • 3
    .Conforme ressalta Maria Rita Loureiro, em cada país as burocracias são treinadas e selecionadas de modo distinto, mantendo convergências com as estruturas locais de poder. No caso brasileiro, argumenta, a combinação de um Estado fortemente imbuído de funções econômicas com um sistema político caracterizado por um executivo poderoso e partidos fracos favorece a busca por mecanismos de legitimação da ação política associados à qualificação técnica e profissional ( LOUREIRO, 1995: 70-71).
  • 4
    . Cabe destacar que parte significativa das fontes sobre os economistas no Brasil foi produzida pelos próprios economistas, por escolas de economia ou por instituições econômicas governamentais, em esforço de produção da história e da memória dos economistas. Assim sendo, é necessário consagrar especial atenção à função de celebração das fontes utilizadas para a construção das trajetórias e ao papel que elas desempenham na construção dos mitos analisados.
  • 5
    . O texto tem origem em considerações suscitadas pela tese de doutorado da autora: Meritocracia de laços: gênese e reconfigurações do espaço dos economistas no Brasil (2017), financiada pela CAPES-PDSE e pelo CNPQ, e teve versão inicial discutida no 41º Encontro Anual da ANPOCS, em Caxambu, no ano de 2017. A autora conta atualmente com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processos 2017/13937-1 e 2018/09487-7. Agradeço a disposição de Antonio Delfim Netto para conceder duas longas entrevistas, os comentários de Eliana Reis e Roberto Grün, as discussões com Sylvia Garcia Gemignani, as sugestões de Camila Gui Rosatti e Rafael do Nascimento Cesar e a ajuda de Eduardo Brenner para entrar em contato com Delfim Netto. Possíveis erros, evidentemente, são de minha inteira responsabilidade.
  • 6
    . É essencial situar criticamente o livro Mario Henrique Simonsen: um homem e seu tempo (2002), principal fonte relativa à trajetória de Simonsen. Primeiramente, cabe dizer que os depoimentos que compõe o volume foram escritos por familiares, amigos e colaboradores próximos, carregando uma visão tanto íntima quanto saudosista, mesmo quando irônica ou queixosa. Em segundo lugar, o livro foi editado pela FGV-RJ que, conforme será discutido adiante, foi a instituição na qual Mario Henrique desempenhou papel absolutamente proeminente, tendo-se beneficiado da liderança de um economista que alcançou largo prestígio nacional. Finalmente, a edição foi patrocinada pela Cia Bozano, financeira que Simonsen fundou junto a Julio Bozano, e lançada em conjunto com uma coletânea dos principais textos de Mario Henrique, também organizada pela FGV-RJ. O material desempenha, pois, papel quádruplo de consagração: de Simonsen, da Fundação, da Cia Bozano e daqueles que a ele estiveram associados, que são os responsáveis por reconstruir a figura de Mario em seus depoimentos. Isto posto, ressalta-se que os depoimentos não são tomados como verdades sobre o autor, mas sim utilizados para pensar a própria construção do mito que as narrativas celebratórias promovem e discutir o sentido sociológico dos aspectos por eles enfatizados.
  • 7
    . Para indicar o entrevistado e o autor da coletânea na qual consta a entrevista utilizo o marcador in .
  • 8
    . Sobrinho de Mario Henrique Simonsen e presidente da FGV desde 2000.
  • 9
    . Inclusive, no dia de seu falecimento, a Bolsa de Títulos do Rio de Janeiro não funcionou em sua homenagem. Ver: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_03&pesq=adolpho%20simonsen . Consultado em 6/10/2017.
  • 10
    . As escolas católicas de grande prestígio, juntamente com as famílias, tiveram importante papel em incutir a crença na excelência e excepcionalidade de seus alunos, naturalizando o caminho para os postos de direção da sociedade. Ajudavam, ademais, a criar as afinidades culturais, sociais e políticas a partir das quais se teciam os laços de amizade que uniriam os futuros dirigentes nacionais ( CHAVES, 2008: 3).
  • 11
    . “A illusio é o fato de estar engajado no jogo, de ser tomado pelo jogo, de levar o jogo a sério, de crer que o jogo vale a pena, ou, para dizer simplesmente, que vale a pena jogar” ( BOURDIEU, 1994: 151).
  • 12
    . No caso de Delfim Netto, a principal fonte de informação utilizada na reconstrução da trajetória foi uma entrevista feita pela própria autora. O fato de não ser uma fonte dirigida à consagração do entrevistado, como é o caso do livro relativo à vida de Simonsen, não dispensa a reflexão crítica acerca da narrativa oferecida. Agentes com larga trajetória pública frequentemente lapidaram o discurso sobre sua trajetória nas múltiplas ocasiões em que ofereceram relatos sobre suas carreiras, estreitando o domínio sobre a autoimagem recriada. Visto tratar-se de uma reconstrução a posteriori , dirigida para a confecção de uma narrativa controlada sobre a própria personagem e seu papel na história brasileira, é preciso situar socialmente o relato ao analisar seu conteúdo.
  • 13
    . De acordo com Loureiro, “é bom lembrar que, só a partir dos anos 70, jovens de extração social mais elevada começam a cursar graduação em economia. Isso se deveu a mudanças que reforçaram a identidade social do economista e, consequentemente, deram maior prestígio à profissão. [...] As primeiras gerações de economistas eram formadas predominantemente por engenheiros ou advogados, que, interessados em assuntos econômicos por força de sua prática profissional, estudaram ciência econômica, seja como autodidatas (Eugênio Gudin e Roberto Simonsen), seja em cursos de especialização ou pós-graduação no exterior (Bulhões, Roberto Campos e Celso Furtado). Os jovens de origem social mais modesta, que no passado seguiam cursos em escolas de economia e contabilidade, eram identificados como contadores e não gozavam do mesmo prestígio que os “técnicos governamentais” de alto nível que acabariam a posteriori definidos como economistas” ( LOUREIRO, 1997: 63).
  • 14
    . Corrobora tal argumento o fato de Mario Henrique ter defendido publicamente que as principais fontes de debilidade do ensino de economia eram: “ a) falta de conhecimento básico de matemática e estatística; b) dificuldade de raciocínio lógico e incompreensão do método científico: a maioria dos economistas recém-saídos das faculdades não sabe o que é e o que pretende ser um modêlo; isso lhes torna bastante difícil manipular a análise econômica (ou qualquer ciência); c) conhecimento desintegrado de análise econômica: a maioria das faculdades dá aos alunos idéias mais ou menos vagas sôbre economia, que talvez consigam familiarizar os economistas com o jargão da profissão, mas que raramente são apresentadas como um sistema integrado; como conseqüência, os economistas ficam quase sem possibilidade de usar êsses conceitos em problemas práticos; d) falta de informação institucional: a maioria dos economistas sai das escolas sem conhecer o funcionamento dos instrumentos de política econômica adotados no Brasil – sistema fiscal, sistema financeiro, sistema cambial, órgãos de fomento, etc.” ( SIMONSEN, 1966: 20).
  • 15
    . A aproximação com a genialidade de Mozart passa aqui pela adequação a um movimento em curso em seu tempo, no caso de Amadeus, a própria ideia do gênio individual e da primazia do talento que se fincariam no romantismo burguês ( ELIAS, 1993: 19).
  • 16
    . Participavam do seminário, dentre outros, Affonso Celso Pastore, Eduardo Pereira de Carvalho, Carlos Antonio Rocca, Gianpaolo Marcelo Falco, Carlos Viacava, Paulo Yokota, Pedro Cipollari, Miguel Colassuono, Heraldo Barbuy, José Kirsten, Akihiro Ikeda, Betty Mindlin, Raul Ekerman e José Roberto Mendonça de Barros (ECKERMAN, 1989:123-124; PINHO, 1984:83).
  • 17
    . O MOBRAL, programa fundado em 1968, apropriou-se do adiantamento de 1% do imposto de renda das pessoas jurídicas e dos recursos da loteria esportiva para implantar um programa de alfabetização em massa (Claudio de Moura Castro e Arlindo Lopes Correa in: ALBERTI et al., 2002: 133-139).
  • 18
    . Ruy Gomes de Almeida exerceu a presidência da Associação Comercial do Rio de Janeiro, da Federação das Associações Comerciais do Brasil e da Federação das Câmaras de Comércio Exterior (DHBB, Ruy Gomes de Almeida).
  • 19
    . Uma exceção digna de nota é Roberto Campos, vide: KLÜGER, 2017: 125-140.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2018
  • Revisado
    9 Nov 2018
  • Aceito
    11 Dez 2018
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