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O discurso jornalístico sobre privatizações e protestos nas ruas

Media discourse on privatization and street protest

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar o discurso jornalístico sobre privatizações e manifestações de protesto. Serão examinados editoriais e reportagens sobre a venda de três grandes estatais brasileiras: a Usiminas, a Vale do Rio Doce e a Telebrás. Foram selecionados textos dos seguintes jornais: Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, Jornal de Brasília, publicados no dia seguinte às privatizações. A pesquisa se orienta, entre outros, pelos trabalhos de Fairclough sobre discurso e sobre mídia; de Thompson sobre ideologia; de Fowler sobre o discurso da mídia. A metodologia de exame do corpus é a da análise de discurso crítica (Fairclough e Chouliaraki). Para concluir, mostrarei como, por meio da legitimação das vendas e da fragmentação dos manifestantes, o discurso jornalístico procura construir um senso comum favorável à privatização e de repúdio ao protesto popular nas ruas.

Discurso; Mídia; Ideologia; Senso Comum


The aim of this paper is to analyse journalistic discourse concerning privatisation and protest. I will examine editorials and news reports on the sale of three major Brazilian state-owned enterprises: Usiminas, Vale do Rio Doce and Telebrás. Texts published the day after the privatisation auctions have been selected from the following Brazilian dailies: Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense and Jornal de Brasília. This research is based, among others, on Fairclough's work on discourse and on the media, Thompson's work on ideology, Fowler's work on discourse in the media. The methodology employed for examining the corpus is critical discourse analysis (Fairclough, Chouliaraki). In conclusion, it will be shown how discourse in the press - by legitimising the sales and differentiating the protesters - endeavours to forge a feeling of common sense favouring privatisation and repudiating popular protest in the streets.

Discourse; Media; Ideology; Common Sense


ARTIGOS

O discurso jornalístico sobre privatizações e protestos nas ruas

Media discourse on privatization and street protest

Maria Christina Diniz Leal

Universidade de Brasília

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar o discurso jornalístico sobre privatizações e manifestações de protesto. Serão examinados editoriais e reportagens sobre a venda de três grandes estatais brasileiras: a Usiminas, a Vale do Rio Doce e a Telebrás. Foram selecionados textos dos seguintes jornais: Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, Jornal de Brasília, publicados no dia seguinte às privatizações. A pesquisa se orienta, entre outros, pelos trabalhos de Fairclough sobre discurso e sobre mídia; de Thompson sobre ideologia; de Fowler sobre o discurso da mídia. A metodologia de exame do corpus é a da análise de discurso crítica (Fairclough e Chouliaraki). Para concluir, mostrarei como, por meio da legitimação das vendas e da fragmentação dos manifestantes, o discurso jornalístico procura construir um senso comum favorável à privatização e de repúdio ao protesto popular nas ruas.

Palavras-chave: Discurso; Mídia; Ideologia; Senso Comum.

ABSTRACT

The aim of this paper is to analyse journalistic discourse concerning privatisation and protest. I will examine editorials and news reports on the sale of three major Brazilian state-owned enterprises: Usiminas, Vale do Rio Doce and Telebrás. Texts published the day after the privatisation auctions have been selected from the following Brazilian dailies: Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense and Jornal de Brasília. This research is based, among others, on Fairclough's work on discourse and on the media, Thompson's work on ideology, Fowler's work on discourse in the media. The methodology employed for examining the corpus is critical discourse analysis (Fairclough, Chouliaraki). In conclusion, it will be shown how discourse in the press - by legitimising the sales and differentiating the protesters - endeavours to forge a feeling of common sense favouring privatisation and repudiating popular protest in the streets.

Key-words: Discourse; Media; Ideology; Common Sense.

Introdução

Desde 1991, as estatais brasileiras vêm sendo privatizadas. A primeira foi a Usiminas, depois a Vale do Rio Doce e finalmente o sistema Telebrás.O governo apresentou as vendas como a solução para os problemas econômicos e sociais do país. Mas as privatizações foram criticadas pelos sindicatos, partidos de oposição, e os leilões foram acompanhados por manifestações de protesto na Praça XV de Novembro, em frente à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, local de realização dos leilões, e que acabaram em confronto com as forças policiais.

Ampla cobertura a esses acontecimentos foi dada pela imprensa que dedicou editoriais e inúmeras páginas com reportagens e fotos. Este artigo tem por objetivo mostrar os resultados de uma pesquisa que investigou como o discurso da imprensa brasileira tem tratado a questão da privatização e os protesto. Apresentarei uma análise de discurso crítica do discurso de alguns jornais, focalizando particularmente os aspectos ideológicos.

1. A Ciência Social Crítica e o Discurso

A pesquisa de que trata este artigo teve como base teórica a obra de Chouliaraki e Fairclough (1999) que propõem um repensar sobre a análise de discurso crítica, na perspectiva da modernidade tardia. Os autores situam a Análise de Discurso Crítica (de agora em diante ADC) no âmbito de uma versão da Ciência Social Crítica e destacam a contribuição que a ADC pode dar para pesquisas críticas sobre mudança social.

Segundo essa perspectiva, a vida social é feita de práticas e o discurso é entendido como um dos elementos da prática social. As práticas são modos habituais de ação social, em um espaço e tempo particular. As práticas englobam diversos elementos da vida: atividade material; relações sociais e processos; fenômenos mentais e discurso, que são articulados entre si. Quando esses diversos elementos da vida são reunidos em uma prática, são considerados momentos dessa prática.

O conceito de articulação permite descrever não só como esses momentos de uma prática se juntam, se combinam e se relacionam, mas também a relação de internalização entre eles. A articulação significa não só que há relações mutáveis entre os elementos, como também que elas podem ser mais ou menos estáveis e que podem ser transformadas. Assim, os momentos de uma prática se articulam dialeticamente, um momento pode internalizar os outros, mas sem ser redutível a eles.

O conceito de articulação pode também ser aplicado à estrutura interna de um momento. Portanto, o momento de discurso de uma prática articula os recursos discursivos e simbólicos, isto é, os gêneros, discursos, vozes.1 1 Chouliaraki e Fairclough (1999:63) entendem os termos gênero discurso e voz, respectivamente como: tipo de linguagem ligado a uma atividade particular, como a entrevista; o tipo de linguagem usado para construir algum aspecto da realidade sob uma perspectiva particular, como o discurso liberal da política; o tipo de linguagem usado por uma categoria particular de pessoa e ligada à identidade, como a voz médica.

A rede de práticas é sustentada por relações de poder, e as articulações mutáveis entre as práticas se ligam também às relações mutáveis de poder.O poder no sentido de dominação também pode figurar no nível de uma prática particular para reduzir a agência.

Outro aspecto das práticas é o elemento reflexivo. A reflexividade significa que, em toda prática, há um aspecto discursivo. Isto porque toda prática envolve, em diferentes graus, o uso da linguagem e também porque a construção discursiva das práticas é também parte da prática. As pessoas produzem representações do que fazem como parte da ação. As práticas podem depender da reflexividade para sustentar relações de dominação. E, nesse sentido, a reflexividade funciona ideologicamente. A questão da ideologia integra a relação do discurso com outros momentos das práticas sociais.

Nas sociedades da modernidade tardia, a reflexividade tornou-se um traço relevante da prática social, isto é, o conhecimento que se tem sobre a prática tornou-se uma parte importante do engajamento com essa prática.

Para dar conta dessas propriedades do discurso, é adotada a concepção funcional da linguagem proposta pela lingüística sistêmica funcional/LSF (Chouliaraki e Fairclough 1999:50), segundo a qual há três tipos de processos simultâneos que se desenvolvem na linguagem: a construção da realidade, a representação e negociação das relações sociais e identidades e a construção do texto, o que corresponde às funções ideacional, interpessoal e textual da linguagem. Outra contribuição da LSF é destacar a relação dialética entre o semiótico, incluindo-se o lingüístico/discursivo, e o social; e também a dialética entre estrutura e ação.

2. O Discurso da Imprensa

Na prática social de produção da mídia, o momento discursivo é fundamental. E, para o estudo do discurso da mídia, é de crucial importância a análise da articulação entre o discurso e os outros momentos da prática de produção do texto. Para Fairclough (1995:5) a análise da linguagem dos textos da mídia orais ou escritos deve focalizar como o mundo e os eventos são representados; que identidades são construídas para as pessoas envolvidas - repórteres, público, entrevistados; que relações são estabelecidas.

A análise do processo de representação em um texto levanta a questão sobre que escolhas são feitas, isto é, o que é incluído ou excluído, o que é explicitado ou apresentado implicitamente, o que é destacado e o que é deixado em segundo plano (Fairclough 1995:4). Segundo Fowler (1993: 11-13), nos textos de jornais, da televisão, os eventos reais estão sujeitos a processos de seleção; nem todos os eventos são "dignos de se tornarem notícia". Os eventos são selecionados de acordo com um complexo conjunto de critérios quanto àquilo que vale a pena ser tornado notícia.

Os textos da mídia, portanto, constituem versões da realidade que dependem de posições sociais, interesses e objetivos daqueles que os produzem. Nessas escolhas, é importante que se leve em consideração as motivações sociais e aspectos ideológicos.A publicação de um jornal é uma indústria e um negócio, com um lugar definido no mundo da economia (Fowler 1991:20). Assim toda a estrutura comercial e industrial da imprensa e suas relações têm um efeito no que é publicado como notícia e em como a informação é apresentada.

Desse modo (Fowler 1991:120-122) o discurso da imprensa, como qualquer outro discurso, está ligado à sua posição institucional e econômica. Assim os aspectos culturais e econômicos da imprensa se combinam para conferir uma grande importância na produção e reprodução da ideologia. Dois fatores dão à imprensa papel relevante na mediação da ideologia para o indivíduo. O primeiro é de caráter quantitativo, pois a escala da publicação e o esquema de distribuição permitem que a leitura do jornal faça parte do quotidiano de milhões de pessoas. O segundo é qualitativo, as circunstâncias econômicas e políticas da indústria da imprensa faz com que ela seja mediadora de idéias, de pontos de vista de uma perspectiva particular, que atendem a esses interesses.

Além disso, a análise da construção das relações e identidades nos textos da mídia levanta importantes questões socioculturais. Compreender como são construídas na mídia as relações entre o público e aqueles que dominam a economia, a política e a cultura é importante para compreender as relações de poder e dominação na sociedade contemporânea (Fairclough 1995:126).

3. Ideologia e Hegemonia

Fairclough (1992:87) analisa o discurso em relação ao poder e à ideologia e situa o discurso numa perspectiva de poder como hegemonia, em que se entende as relações de poder como lutas hegemônicas. Para Thompson (1995:79), a análise da ideologia interessa-se pelas maneiras como as formas simbólicas se entrecruzam com as relações de poder. Assim, ele conceitua a ideologia "em termos das maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação". O sentido aqui é o das formas simbólicas (ações, falas, imagens, textos, formas simbólicas não lingüísticas, como imagens visuais) inseridas nos contextos sociais e que circulam no mundo social. Os diferentes graus de poder conferidos aos indivíduos dependem da localização social das pessoas e das qualificações associadas a essas posições.

Thompson propõe cinco modos de operação da ideologia que podem estar ligados, em circunstâncias particulares, com estratégias de construção simbólica. Focalizarei a seguir os dois modos analisados no discurso do corpus.

As relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas por serem representadas como justas e dignas de apoio, isto é, como legítimas. Uma das estratégias de construção simbólica da legitimação é a racionalização, por meio da qual é construída uma cadeia de raciocínio, que objetiva defender ou justificar relações e/ou instituições sociais e persuadir que isto é digno de apoio; outra estratégia é a universalização, que apresenta acordos institucionais que atendem aos interesses de alguns como se servissem aos interesses de todos.

Também as relações de dominação podem ser mantidas pela fragmentação, que segmenta os indivíduos e grupos que podem ser capazes de se transformar num desafio real aos grupos dominantes.Ou pode também dirigir forças de oposição para um alvo que é apresentado como perigoso, ameaçador. Uma estratégia típica de construção simbólica da fragmentação é a diferenciação, que dá ênfase às diferenças e divisões entre pessoas e grupos. Outra estratégia é o expurgo do outro, que envolve a construção de um inimigo, apresentado como mau, perigoso e ameaçador, ao qual os indivíduos devem resistir coletivamente ou expurgar.

Segundo Fairclough, o conceito de hegemonia de Gramsci destaca a importância da ideologia para construir e manter relações de dominação e permite aprofundar a questão de poder como dominação (Chouliaraki e Fairclough 1999:24). A hegemonia entende as relações de dominação baseadas no consentimento e não na coerção e implica a naturalização e a construção do senso comum. A hegemonia é o poder de uma classe ou grupo sobre a sociedade, mas esse poder não é permanente, mas instável. A hegemonia depende da construção de alianças e é foco de luta permanente para construir, romper ou manter relações de dominação (Fairclough 1992:92).

4. A Análise do Discurso sobre a Privatização e as Manifestações de Protesto

4.1. O corpus

O corpus analisado constitui-se de reportagens e editoriais sobre três leilões para a privatização de companhias estatais brasileiras e sobre os protestos. As estatais eram de grande porte, peso econômico e prestígio. O primeiro leilão foi o da primeira privatização de uma estatal brasileira, a Usiminas, ocorrido em 1991. Os dois últimos são o da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997 e o do Sistema Telebrás, em 1998.

Selecionei dois jornais de prestígio nacional, por serem editados nos centros urbanos formadores de opinião do país: Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) e Folha de São Paulo (São Paulo). O critério de seleção dos outros dois jornais foi o de serem editados em Brasília, capital da república e sede dos três poderes do país: Correio Braziliense e Jornal de Brasília. Nos exemplos que serão apresentados adiante, esses jornais serão designados respectivamente por: JB, FSP, CB e J de Br.

4.2. A Análise de Discurso Crítica dos Textos

Para a análise dos dados, adotei o arcabouço de análise de discurso crítica proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999:60) para dar conta da complexidade dessas questões e da relação entre o discurso e o processo social. A seguir darei uma breve informação sobre cada etapa desse arcabouço e logo depois apresentarei os dados correspondentes analisados na pesquisa.

Antes cabem alguns esclarecimentos. Observo inicialmente que a ADC se desenvolveu num ir e vir do discurso dos textos para a reflexão sobre os outros momentos da prática, para as questões ideológicas. Por esta razão, apresento a análise de discurso, logo após a análise da conjuntura.

Os dados analisados dizem respeito aos dois grandes eixos de informação encontrados nos textos examinados: a privatização/o leilão e as manifestações/manifestantes. Os grifos nos exemplos foram colocados por mim, para destacar o que me pareceu relevante. Cada um dos exemplos apresentados é seguido de uma indicação do jornal, da data de publicação. Os editoriais são indicados por "ed".

Para quase todos os aspectos apresentados a seguir, há exemplos referentes aos 3 leilões, mas, devido às limitações de espaço, serão mostrados apenas alguns.

Os textos sobre o leilão da Vale têm duas datas, a primeira é a do dia seguinte à primeira tentativa de leilão, que foi suspenso por liminar na Justiça; na segunda, vêm os textos sobre a realização do leilão.

I. Um problema

A ADC se inicia pela percepção de um problema relacionado ao discurso em alguma parte da vida social. Os problemas podem dizer respeito a atividades da vida social, ou à construção reflexiva da prática social.

Penso que uma primeira leitura dos jornais examinados na pesquisa deixa claro, mesmo para o leitor comum, mas que seja minimamente observador e crítico, a diferença entre as informações sobre os leilões/ privatizações e as manifestações de protesto na rua. Quanto ao leilão, são informações que dão uma visão ampla do leilão - horários, lances, elevadas somas de dinheiro, satisfação dos participantes - e que apresentam a privatização como algo positivo. Quanto aos protestos, as informações são exclusivamente sobre a violência, à qual é dado destaque, por meio não só de informações, mas também de grandes fotos. Esta constatação levanta o problema da falta de imparcialidade da imprensa na apresentação das notícias, que, muitas vezes, são selecionadas e apresentadas sob a ótica dos que detêm o poder, isto é, numa visão unilateral. O que por sua vez levanta um outro problema: o discurso da imprensa não estimula no leitor uma consciência crítica a respeito de questões de interesse para o país.

II. Obstáculos a serem enfrentados

São propostos três tipos de análise que conjuntamente podem especificar os obstáculos para enfrentar o problema: análise da conjuntura, análise da prática da qual o discurso é um momento e análise do discurso.

a) Análise da conjuntura

Conjunturas reunem pessoas, materiais, tecnologias e práticas em torno de projetos sociais específicos e podem reunir diferentes instituições. A análise se volta para a configuração das práticas em que o discurso em foco se situa. O objetivo é ter uma visão do quadro da prática social em que o discurso se localiza. As conjunturas podem ser mais ou menos complexas quanto ao número e tipo de práticas que unem, podem ser mais ou menos extensas em relação a tempo e espaço. Na análise da conjuntura mais imediata em que o discurso se dá, o foco está em relacionar o discurso aos processos de produção e consumo.

Embora os três leilões tenham ocorrido em diferentes anos (1991, 1997 e 1998), o que implica variações no contexto econômico, social e cultural do país, pode-se considerar que existe um traço comum na conjuntura desses três momentos: o interesse explícito de poderes institucionais do país - o executivo, parte do judiciário, os bancos, setores da indústria - na defesa das privatizações. A longa duração dessa conjuntura no tempo resulta do poder dessas instituições e grupos.

Como será mostrado adiante, essa conjuntura exerceu forte pressão na produção do discurso sobre a privatização e as manifestações de protesto.

b) Análise do discurso

A análise de discurso se volta simultaneamente para a estrutura e para a interação. Quanto à estrutura, ela procura localizar o discurso em relação à rede de ordens de discurso, especificando como o discurso analisado trabalha com o potencial da ordem de discurso: a que gêneros, discursos e vozes recorre, de que ordens de discurso estes são. Quanto à interação, a análise se orienta para como o discurso articula os recursos, isto é, como os gêneros e discursos são trabalhados e articulados no texto, volta-se para o interdiscurso. São examinados aqui os elementos lingüísticos e outros elementos semióticos do texto.

O discurso dos textos examinados se situa na ordem de discurso da imprensa, cujos principais gêneros são o jornalismo informativo e o opinativo.2 2 Segundo Melo (1994:62), os principais gêneros de texto na imprensa são: o jornalismo informativo (nota, notícia, reportagem, entrevista) e o jornalismo opinativo (editoria, comentário, artigo, resenha e coluna). As notícias e reportagens que apresentam informações sobre os leilões e as manifestações de protesto constituem o gênero informativo. Por sua vez, o gênero opinativo está presente nos editoriais, em que ficam claras as posições dos jornais em defesa da privatização e ataque às manifestações dos opositores.

Além disto, chama a atenção, em muitos dos textos examinados, um discurso que vai além da simples opinião, da expressão de um ponto de vista, e que apresenta uma orientação fortemente argumentativa, típica do gênero da persuasão que é um dos gêneros que constitui a ordem de discurso político.

Esse gênero da persuasão é mais evidente nos editoriais, tanto nos que defendem a privatização, quanto nos que atacam as manifestações, mas também pode ser encontrado nos textos aparentemente só informativos, conforme mostrarei adiante.

Para a defesa da privatização, os editoriais apresentam vários argumentos que apontam o progresso que o país terá e os benefícios para a economia, para a área social e a moralização do estado. Apresentarei a seguir alguns argumentos e comentarei os recursos lingüísticos que me pareceram relevantes.

I. A privatização representa mudança, o progresso, um futuro melhor

(1) Pregão que seguramente se constituirá num divisor de tempos na economia brasileira. (CB-ed-25/10/91)

(2) A privatização da Companhia Vale do Rio Doce é um marco antes de tudo simbólico de que esse processo está em marcha. (FSP-ed-7/5/97)

Para esse sentido, de mudança, foram usadas imagens que indicam movimento, início de algo novo: divisor de tempos, marco, processo em marcha.

II. A privatização trará benefícios para a economia do país e para a área social:

(3) (...) o Brasil ingressará na era do capitalismo participativo, que assegura o aumento real da renda e do mercado interno através da redistribuição dos lucros. (JB-ed-25/10/91)

(4) Só a partir de novos investimentos, para gerar mais produção, mais empregos, mais lucros e mais impostos para o governo aplicar na educação e na área social, a soberania nacional será realmente reforçada. (JB-ed-30/4/97)

Destaca-se nesses exemplos, a construção da frase com verbo + complemento, indicando a ação + benefício, isto é, as vantagens da privatização: assegura o aumento, gerar mais produção.

Além disto, no exemplo 4, a enumeração dos itens lexicais produção, empregos, lucros, impostos, precedidos do pronome indefinido mais intensifica as vantagens da privatização.

III. Necessidade de reforma do Estado, que é incompetente e gerador de corrupção

Esta idéia é construída por meio de imagens do Estado como um elefante e como um pai moribundo.O "elefante" dá a idéia de algo lento, pouco funcional e a imagem de "pai" a de alguém que dá, sem nada receber. A associação "pai-patrão" evoca proteção, pouca eficiência. Enfim, é tudo o que não cabe na idéia de "modernidade" que os defensores da privatização trazem como argumento.

(5) O Brasil ingressou no rol das nações que buscam se modernizar e atualizar seus sistemas produtivos libertando-os das pesadíssimas patas do Estado. (CB-ed-25/10/91)

(6) No fundo do debate estava o doloroso luto pelo moribundo Estado-pai-patrão que setores da economia brasileira se recusam a aceitar. (JB-ed-7/5/97)

A propósito do exemplo 5, cabe lembrar que foi apresentada, na televisão, na época da privatização da Usiminas, uma propaganda em que o Estado era representado pela imagem de um pesadíssimo e desajeitado elefante.

IV. O Brasil deve imitar outros países quanto à privatização

(7) A privatização é hoje um fenômeno mundial. Países ricos da Europa e pequenas nações sul-americanas, todos vendem suas empresas. Na América Latina, Chile e México foram os pioneiros e hoje já recebem os primeiros benefícios desta atitude (...) O Brasil tem de seguir estes exemplos. (J de Br-ed-25/10/91)

Neste exemplo, os sintagmas constituídos de substantivos e adjetivos - fenômeno mundial, países ricos, e o pronome todos criam um frame de progresso e necessidade de inclusão do Brasil nesse conjunto. A modalização de obrigatoriedade em tem de seguir reforça a idéia de que a privatização é a única saída possível para os problemas do país.

Contrariamente ao que se deu com a privatização, quando os editoriais tratam das manifestações, a argumentação constrói uma imagem negativa das manifestações, o que se pode observar nos seguintes recursos:

I. Avaliação negativa das manifestações por meio de escolhas lexicais de substantivos e adjetivos (veemente e enégica condenação, tristes episódios ) que expressam desaprovação

(8) (...) é impossível não registrar a mais veemente e enérgica condenação diante dos distúrbios que voltaram a acontecer nas cercanias da Bolsa carioca. (FSP-ed-25/10/91)

(9) Esses tristes episódios encobrem, na verdade, uma questão ideológica que vem sendo escamoteada. (FSP-ed-30/4/97)

II. Construção de identidade negativa dos manifestantes por meio de

a) Adjetivos (histéricas, xenófobo) que avaliam negativamente os manifestantes e suas idéias:

(10) Reações histéricas dos setores mais radicais (JB-ed-25/10/91)

(11) nacionalismo xenófobo (JB-ed-25/10/91)

b) Imagens que ridicularizam e desqualificam os diferentes tipos de manifestantes

- Os políticos mais velhos (velhos personagens e canastrões)

(12) Apesar de a primeira versão do leilão ter sido encenada fora do palco em que se apresentam velhos personagens e canastrões da política, sempre dispostos a roubar uma cena de História - (...) (JB-ed-30/4/97)

- Os líderes sindicais (camelôs)

(13) Camelôs do atraso (JB-ed-30/7/98)

A imagem de palco representa as manifestações como encenação, como algo falso. A representação dos manifestantes como velhos personagens acentua o sentido de que são ultrapassados e sugere que já são conhecidos, contumazes. E canastrões traz o sentido de mau desempenho, incompetência.

Por sua vez, o emprego de camelôs (Esta é a manchete de um editorial, que também se refere aos manifestantes como "Os camelôs do marxismo pesado") transmite a idéia de alguém que vende "produtos" de baixa qualidade, não confiáveis.

Nos textos de notícias e reportagens, como já foi dito, há também elementos do gênero da persuasão. E, quando se trata das manifestações e dos manifestantes, a orientação argumentativa é mais explícita e mais veemente, por meio dos seguintes recursos:

Quanto às manifestações

a) Itens lexicais destacam a desordem e a violência (conflitos, anarquia, confusão, pânico, correria)

(14) Ao auge do entrechoque jurídico corresponderiam, lamentavelmente conflitos de rua provocados (...). A anarquia nas ruas do Rio, sede do leilão, é emblemática: representa o desprezo pela justiça (...) (FSP-30/4/97)

(15) Foram cinco horas e meia de confusão, pânico e correria em várias ruas do centro do Rio. (CB- 30/7/98)

b) Seqüência de substantivos (fraturas, cabeças cortadas, bombas de gás, pedradas, policiais, cachorros, fotógrafos, jornalistas) que enumeram pormenores da violência:

(16) Fraturas, cabeças cortadas, bombas de gás, pedradas e cassetetes: de um lado a PM, de outro, os contrários à venda da Vale. (CB-30/4/97)

(17) Bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral, pedradas, policiais se atracando com civis, cachorros avançando contra manifestantes, fotógrafos e jornalistas. (JB-25/10/91)

Essas longas enumerações sem verbo constróem a cena em que se deram os enfrentamentos entre manifestantes e PM, conferem um tom dramático aos fatos ocorridos, também transmitem a idéia da rapidez com que tudo se passou. Estes dois exemplos, e outros que não foram analisados agora, se inscrevem no que Chouliaraki e Fairclough (1999:56) consideram gênero de contar história, que tem uma qualidade próxima à literatura.

c) Imagens de guerra:

(18) A Praça XV (...) transformou-se num campo de batalha (...) (J.de Br-25/10/91)

(19) (...) as ruas do Centro do Rio se transformaram em praça de guerra. (JB-30/7/98)

As imagens bélicas (campo de batalha, praça de guerra) intensificam a idéia de perigo, dor e morte associada às manifestações.

Quanto aos manifestantes

Para a construção de uma identidade negativa dos manifestantes, os recursos: foram os seguintes:

I. Enumeração de itens lexicais que identificam os manifestantes

(20) Estudantes, punks, anarquistas, "carecas", militantes de partidos políticos, de sindicatos, dos Movimentos Sem Terra e Sem Teto e até mendigos formaram uma milícia mascarada. (FSP-30/7/98)

A enumeração de substantivos que representam pessoas/grupos que costumam ser marginalizados socialmente e que foram usados para identificar os manifestantes funciona como um recurso para desqualificá-los e, portanto, desqualificar também a manifestação. Essa heterogeneidade parece conferir ao grupo a idéia de falta de unidade, falta de uma razão consistente para as pessoas estarem no local. O discurso se reveste de um tom de ironia.

II. Associação dos manifestantes com a idéia de transgressão/punição/dor por meio da ênfase às seguintes informações:

a) As ações de violência e agressão

Destaca-se o padrão oracional sujeito + verbo + objeto, tanto para a ação dos manifestantes (estudantes, sindicalistas e integrantes do Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra + tentavam enfrentar + a Polícia Militar) quanto para a da PM (os policiais + lançavam + bombas) que é mais um recurso para representar a dramaticidade, os movimentos da ação e o enfrentamento.

(21) Em meio a muita confusão e correria, estudantes, sindicalistas e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tentavam, com paus e pedras, enfrentar a Polícia Militar. Atrás de seus escudos, os policiais lançavam bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo contra os manifestantes. (JB-30/7/98)

b) Número de feridos e o local do ferimento

Uma das informações mais recorrentes foi o número de feridos, o local do ferimento e grau de gravidade.

(22) Houve 80 feridos entre manifestantes e policiais (FSP -25/10/91)

(23) Anderson Guimarães da Silva, de 31 anos, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) de Belo Horizonte, teve fratura exposta na mão direita e foi submetido a uma cirurgia (Jornal de Brasília-30/7/98)

c) Indicação dos nomes das pessoas presas e número de presos

A nomeação dos presos parece que funciona como um recurso de intimidação, pois torna pública a transgressão e a punição. A indicação numérica também intimida.

(24) A Polícia Militar prendeu 13 pessoas durante os tumultos no protesto (...). Os outros três presos são o previdenciário Darthagnan Marques da Cruz, (...) do Sindicato Nacional dos Funcionários da Casa da Moeda. (...) A primeira pessoa a ser presa na Praça 15 foi (JB-25/10/91)

Mas a orientação argumentativa se inscreve ainda não só na seleção das informações que constróem a representação das identidades dos manifestantes, mas também no silenciamento de suas vozes. Observa-se nos textos examinados que, por um lado, o leitor fica bem informado a respeito da privatização e suas vantagens. Por outro lado, os textos só informam sobre os enfrentamentos entre manifestantes e polícia, e sobre a violência. A ênfase nessas informações pode ser interpretada como uma advertência de perigo à vista, do qual convém se afastar.

Além disto, os jornais não trazem a público informações sobre os motivos que levaram centenas de pessoas a se concentrarem na Praça 15. Não são informados os argumentos dos que organizaram as manifestações, que não são convidados a falar. Os manifestantes não são entrevistados, não expõem as razões de estarem no local dos enfrentamentos. Mas diferentemente desse silêncio das vozes dos manifestantes, foram apresentadas falas das autoridades e de compradores que expressam alegria, entusiasmo com os resultados dos leilões. Sobre esta questão, Fowler (1991:22) observa que há "vozes que têm acesso" à mídia; são os políticos, pessoas do governo, empresários, especialistas de tipos diversos. Por outro lado, o espaço público da imprensa não é aberto às classes mais pobres, exceto em casos de tragédias (Silva 2002:54). Desse modo, o ponto de vista é o dos poderosos, do governo e dos ricos, usado para legitimar o status quo.

Assim, por meio da seleção das informações e do silenciamento das vozes dos organizadores e manifestantes, a representação que se tem é de que estes são um bando de desordeiros e irresponsáveis. Não estou com isto querendo dizer que, no meio dos manifestantes, não poderia haver ou não haveria provocadores ou baderneiros. Mas é difícil acreditar que todos os milhares de manifestantes em cada leilão estivessem no local só para agredir ou ser ferido. Entretanto é isto que é sugerido, com certa ironia na informação saiu para levar bordoada em:

(25) Sidnei Marciano Martins, de 28 anos, militante de um movimento marxista-leninista, saiu de Minas Gerais para levar bordoada de cassetete na orelha. (JB-30/4/97)

A análise de discurso crítica dos textos deixa claro que, por meio da articulação entre os gêneros informativo e opinativo, típicos da ordem de discurso jornalístico; o gênero da persuasão, usual na ordem de discurso da política e o gênero de contar histórias, da ordem de discurso literária, o discurso examinado desempenhou, sutilmente talvez, muito mais uma função interpessoal, de persuadir o leitor em favor das privatizações, do que a função informativa sobre a realidade dos fatos, que é o que se espera de um jornal.

c) Análise da prática de que o discurso é um momento

Nesta fase é analisada a prática social da qual o discurso é um momento e são analisadas as relações dialéticas entre o discurso e os outros momentos da prática social. São propostos quatro momentos: atividade material (por exemplo, voz ou marcas no papel); relações sociais e processos (relações sociais, poder, instituições); fenômenos mentais (crenças, valores, desejos) e discurso. O foco é investigar que papel o discurso desempenha na prática, o quanto da prática é discurso, quais relações de internalização existem entre o discurso e os outros momentos.

Na prática de produção do jornal, o discurso é parte fundamental. Nos textos examinados, o momento de discurso internaliza outros momentos dessa prática, como o momento dos fenômenos mentais-crenças, idéias dos que defendem a privatização e desqualificam os opositores. Além disto, o momento desse discurso internaliza as relações de poder e aspectos ideológicos das relações sociais de que tratarei a seguir.

A relação entre discurso, poder e ideologia

Evidencia-se que os jornais dão tratamento diferenciado à privatização e às manifestações de protesto, estabelecendo uma polarização junto à opinião pública. O sentido desta polarização pode ser apreendido pela análise dos aspectos ideológicos presentes nos textos examinados, em que se destacaram dois modos de operação da ideologia: a legitimação e a fragmentação. Pela legitimação, a privatização é mostrada como algo que é bom para o país, pois resolverá problemas econômicos e sociais e que, portanto, deve receber todo o apoio da sociedade. Para isto, por meio da racionalização, são apresentados argumentos que visam a defender e justificar os leilões e as privatizações. O processo de legitimação também se dá pela a universalização, isto é, a idéia de que a privatização já ocorreu em vários países desenvolvidos e da América Latina, portanto deve também acontecer no Brasil. Observa-se que o discurso constrói uma visão idealizada da privatização, que só trará vantagens e soluções para problemas do país.

No discurso sobre as manifestações, o modo de operação da ideologia é a fragmentação, que procura apresentar os manifestantes e suas ações como algo mau e perigoso que a sociedade não deve aceitar. Para isto, constrói-se uma estratégia de diferenciação dos manifestantes, mostrados como transgressores da ordem (vão presos); como associados ao perigo/à dor (são feridos/machucam-se e são machucados); irracionais (seus argumentos, voz e justificativas não são apresentados). Eles são, portanto, diferentes de nós (as pessoas ordeiras que estão quietas em casa, assistindo a tudo pela TV e que não se metem em confusão na rua). Uma conseqüência dessa diferenciação é a estratégia de expurgo do outro, por meio da qual a sociedade é chamada a resistir, a se opor a uma tal ameaça. Mais evidente se torna a estratégia de expurgo, quando os manifestantes/sindicalistas são chamados de inimigos da privatização e adversários do processo de desestatização:

(26) Precisamos ter em mente que os inimigos da privatização-parceiros do atraso - são numerosos e dispõem de muita força. (...) São três os adversários do processo de desestatização: as corporações, setores do empresariado e os partidos políticos e entidades sindicais que professam ideologias ultrapassadas. (J de Br-ed-25/10/91)

Como se vê, são itens lexicais com uma forte carga apelativa, mobilizadora de uma posição de resistência e ataque aos manifestantes. Por que inimigos e não opositores? O forte poder apelativo é construído também por meio do nós inclusivo em precisamos; da modalização de obrigatoriedade em precisamos ter e por meio da afirmação categórica em São três os adversários.

Por meio das três análises desenvolvidas, evidenciam-se as dificuldades para que a imprensa se torne realmente imparcial e democrática, assumindo a função pública que lhe compete. Na conjuntura dos três leilões, pode-se perceber a atuação dos grandes grupos econômicos que se mantiveram coesos e fortes por meio de alianças. Ficou bem claro que o discurso da imprensa sobre as privatizações e as manifestações de protesto internalizou outros momentos da prática de produção - as crenças dos grupos hegemônicos nas vantagens da privatização; o poder desses grupos exercido por meio de mecanismos ideológicos de legitimação e marginalização dos opositores. E isto se deu pela construção de um interdiscurso, em que as ordens de discurso da imprensa, da política, da literatura se articulam por meio da articulação dos gêneros informativo, persuasivo e literário, em que predomina a força argumentativa. Cria-se desse modo, junto à opinião pública, a idéia da necessidade premente da privatização e uma identidade altamente negativa dos manifestantes, principalmente sindicalistas. Além disto, constroi-se também uma relação negativa entre o público leitor e esses manifestantes.

Esse tratamento dado pela imprensa ao movimento sindical é compreendido quando se leva em consideração os interesses econômicos presentes na produção de um jornal. A esse respeito, vale lembrar Fowler (1991:20):

A imprensa tem o dever de ser preocupada com os ogres do socialismo e sindicalistas, e de condená-los, porque eles, por causa dos interesses do socialismo e do trabalho organizado, são entendidos como antagônicos ao negócio de fazer dinheiro.

III. Reflexões sobre a análise e possíveis modos de resolver o problema

Neste item, agrupei dois estágios do arcabouço original: um é intitulado "Possíveis modos de vencer os obstáculos", que tem por objetivo discernir possíveis recursos para mudar as coisas do modo como são. O outro estágio, denominado "Reflexão sobre a análise", considera que a pesquisa social crítica deveria ser reflexiva e qualquer parte da análise deveria ser uma reflexão sobre a posição da qual é desenvolvida. Neste estágio, faz-se uma análise crítica sobre a análise realizada, suas condições e limitações.

O problema em foco, como foi visto, diz respeito à produção do texto no discurso jornalístico e, além disso, diz respeito á leitura, à compreensão dos sentidos do texto. Quanto à produção, existe a pressão dos que detêm o poder, que se mobilizam e se articulam em luta para a hegemonia de suas idéias e posições no poder. A transformação dessa conjuntura depende de profundas e amplas mudanças estruturais. Mas quanto à leitura, já existe uma orientação de ênfase à leitura crítica, à reflexão sobre questões de discriminação e preconceito presentes na linguagem. Sobre este assunto, cabe mencionar que, nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, entre os objetivos gerais para o Ensino Fundamental, destacam-se: compreender a cidadania como participação social e política, adotando, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças; questionar a realidade, utilizando para isso a capacidade de análise crítica.

Mas entre os professores de português há dúvida e insegurança quanto a como desenvolver práticas que possam tornar esses objetivos uma realidade. E penso que é aí que fica muito clara a contribuição que a ADC oferece, por reunir uma teoria e uma metodologia de leitura e análise que não só visam a explicitar o que é velado, desvendar as relações de poder presentes nos diferentes tipos de discursos, entre eles os discriminatórios, mas também apontam para a transformação. As seguintes considerações de Chouliaraki e Fairclough (1999:4) assinalam esse tipo de contribuição da ADC:

Há uma necessidade compelidora para a teorização crítica e a análise da modernidade tardia que pode não só iluminar o novo mundo que está emergindo, mas também mostrar que existem direções alternativas ainda não realizadas - como aspectos desse mundo que aumentam a vida humana podem ser acentuados, como aspectos que são prejudiciais a ela podem ser mudados ou mitigados.

Considero que este trabalho, apesar de suas limitações, pode oferecer uma contribuição para a ADC e para o processo de conscientização na leitura. A consciência da existência das relações de poder, da ideologia é um primeiro passo, cabe às pessoas decidirem sobre ações transformadoras.

5. Considerações finais

Os efeitos de sentido apontados criam junto à opinião pública um consenso quanto à necessidade da privatização e quanto a uma identidade negativa dos sindicalistas, apresentados como pessoas violentas, desordeiras, o que para alguns, até justifica o tratamento repressivo dado pelo aparato policial.

Mas isto não é o pior, creio que o aspecto mais preocupante é o poder de intimidação que as notícias sobre pessoas feridas e presas exercem sobre a opinião pública, tendo como resultado o desestímulo à manifestação, à mobilização, isto é, um estímulo à passividade.

Outro aspecto a ser destacado é afalsidade dos argumentos apresentados. O argumento de que a privatização foi boa para outros países, como o México, logo será boa para o Brasil caiu por terra, quando a própria imprensa posteriormente divulgou os sérios problemas econômicos pelos quais o México passou, mesmo depois das privatizações. O outro argumento-chave, o de que as privatizações resolveriam os problemas econômicos e sociais do Brasil, vem sendo desmentido até hoje pela própria imprensa também. São reiteradas as notícias sobre a falta de investimentos na área social e sobre os problemas econômicos. Quanto à melhor qualidade dos serviços, houve muita reclamação sobre a queda da qualidade, depois das privatizações, particularmente dos serviços de telefonia.

A imprensa contribui assim para construir um senso comum favorável aos interesses hegemônicos que são mantidos na medida em que os que se opõem, ou poderiam se opor, isto é, setores da sociedade civil organizada e partidos políticos de oposição, são mantidos sob controle, silenciados e merecendo a desconfiança e o repúdio e da opinião pública.

Assim, o discurso jornalístico sobre a privatização se mostrou distante de um jornalismo de interesse coletivo, de um jornalismo público (Silva, 2002:56) e se constituiu em um elemento desmobilizador que contribuiu para a manutenção dos interesses das forças hegemônicas.

E-mail: chris@zaz.com.br

  • CHOULIARAKI, Lilie e FAIRCLOUGH, Norman. 1999. Discourse in Late Modernity. Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburg: Edinburg University Press.
  • FOWLER, Roger. 1993. Language in the News.Discourse and Ideology in the Press London/ New York: Routledge.
  • FAIRCLOUGH, Norman. 1992. Discourse and Social Change Cambridge: Polity Press.
  • _____. 1995. Midia Discourse London/New York: Edward Arnold.
  • MELO, José Marques de. 1994. A opinião no jornalismo brasileiro Petrópolis: Vozes.
  • SILVA, Luiz Martins da. 2002. Imprensa e cidadania: possibilidades e contradições. In: Motta, Luiz Gonzaga da (org.) Imprensa e poder Brasília: Editora da Universidade de Brasília.
  • THOMPSON, John B. 1995. Ideologia e Cultura Moderna Petrópolis: Vozes.
  • 1
    Chouliaraki e Fairclough (1999:63) entendem os termos
    gênero discurso e voz, respectivamente como: tipo de linguagem ligado a uma atividade particular, como a entrevista; o tipo de linguagem usado para construir algum aspecto da realidade sob uma perspectiva particular, como o discurso liberal da política; o tipo de linguagem usado por uma categoria particular de pessoa e ligada à identidade, como a voz médica.
  • 2
    Segundo Melo (1994:62), os principais gêneros de texto na imprensa são: o jornalismo informativo (nota, notícia, reportagem, entrevista) e o jornalismo opinativo (editoria, comentário, artigo, resenha e coluna).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      2005
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