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Ainda construção e já ruína: Para uma antropologia dos urbanismos globais* * Este texto é uma versão brasileira de “Still Construction and Already Ruin”, originalmente publicado na coletânea Global Urbanism: Knowledge, Power and the City, editada por Michele Lancione e Colin McFarlane e publicada pela Routledge em 2021. Entendemos o texto como uma “versão brasileira” do texto original porque não se trata apenas de uma tradução. O texto que segue foi adaptado e traduzido pela própria autora, com a colaboração de Ana Clara Chequetti, e, nesta versão, perdeu passagens de contextualização originalmente concebidas para situar um público externo. Também ganhou novas passagens etnográficas, incluídas com o objetivo de aprofundar discussões que interessam mais diretamente aos leitores da língua portuguesa.

“Still construction and already ruin”: For an anthropology of global urbanisms

Resumos

O texto segue uma imagem recorrente na descrição das cidades brasileiras - a de “ainda construção e já ruína” - através de lugares de enunciação distintos ao longo do tempo, e sugere que esse percurso permite pensar caminhos para uma agenda de pesquisas etnográficas sobre urbanização e infraestrutura, ou uma antropologia do urbanismo das e nas cidades do sul global.

Palavras-chave:
etnografia; antropologia; urbanismo; infraestruturas; sul global


This article follows a recurring image in the description of Brazilian cities - that of “still construction and already ruin” - from different enunciation positions over time and suggests that this trajectory allows one to think pathways for an ethnographic research agenda on urbanization and infrastructure, or an anthropology of urbanism of an in the cities of the Global South.

Keywords:
ethnography; anthropology; urbanism; infrastructures; Global South


Introdução

Este texto se inspira em uma série de pesquisas etnográficas que realizei na cidade do Rio de Janeiro entre o final dos anos 2000 e o início da quarentena provocada pela pandemia da covid-19 em 2020. Trata-se mais de um texto focado em apresentar uma problemática possível de pesquisas do que de uma narrativa etnográfica, uma vez que seu propósito é apresentar uma agenda de pesquisas centrada no que chamo de antropologia do urbanismo. Para tanto, tento construir uma perspectiva de análise que combina e justapõe elementos de campos bastante consolidados nas ciências sociais no Brasil e no mundo - a antropologia urbana, a antropologia do Estado e a antropologia da política -, mas que circunscreve uma série de questões teóricas e empíricas particulares, derivadas de seu objeto, a produção das cidades. Esse deslocamento de perspectiva se ancora no diálogo com dois outros campos de pesquisa em ascensão: os estudos etnográficos sobre infraestruturas (ANAND; GUPTA; APPEL, 2018ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah. The Promise of Infrastructure. Durham, NC: Duke University Press, 2018.; HOWE, LOCKREM; APPEL, 2015HOWE, Cymene; LOCKREM, Jessica; APPEL, Hannah et al. “Paradoxical Infrastructures: Ruins, Retrofit and Risk”. Science Technology and Human Values, vol. 41, n. 3, 2015.; LARKIN, 2013LARKIN, Brian. “The Politics and Poetics of Infrastructure”. Annual Review of Anthropology, San Mateo, CA, vol. 42, pp. 327-343, 2013.) e os debates em torno das cidades e dos urbanismos do sul global (LANCIONE; MCFARLANE, 2021LANCIONE, Michele; MCFARLANE, Colin. Global Urbanism: Knowledge, Power and the City. London: Routledge, 2021.; ROBINSON; ROY, 2016ROBINSON, Jennifer; ROY, Ananya. “Global Urbanisms and the Nature of Urban Theory”. International Journal of Urban and Regional Research, Hoboken, NJ, v. 40, n. 1, pp.181-186, 2016.; SIMONE, 2020SIMONE, AbdouMaliq. “Cities of the Global South”. Annual Review of Sociology, San Mateo, CA, vol. 46, pp. 603-622, 2020.).

O texto tem ainda uma dimensão ensaística, com referências quase literárias. Isso porque um de seus temas é a transformação nas condições de possibilidade dos referentes e das audiências implícitas na construção e circulação de narrativas sobre as cidades, bem como das formas de classificá-las em diferentes lugares - sejam eles tempos históricos, espaços sociais ou geográficos. Uma última observação, ou advertência, acerca das condições de produção deste texto diz respeito ao fato de sua primeira versão ter sido redigida como resposta a uma interpelação bastante específica. A pergunta foi lançada por Michele Lancione e Colin McFarlane por ocasião do convite para contribuir para uma coletânea sobre urbanismos globais. “A questão a guiar a sua escrita deverá ser relacionada aos desafios e às oportunidades que o urbanismo global impõe desde o seu contexto e ponto de vista. O que significa pensar o urbanismo global de seu lugar e posição?” Redigi minha resposta inicial em inglês, tendo em vista um público internacional. Este ensaio é uma tradução bastante alterada, do texto original, feita por mim e por Ana Clara Chequetti. Acrescentamos novas passagens, inserimos esclarecimentos e omitimos trechos de contextualização, de modo a deixar espaço para a rearticulação e aprofundamento de algumas questões que julgamos mais pertinentes para leitores brasileiros.

Urbanismo global, urbanismos do sul

Desde meados dos anos 2000, os estudos urbanos vêm sendo marcados pelo desafio de interpretar e compreender as múltiplas implicações analíticas da transição para um mundo predominantemente urbano. Não são menores os efeitos desse marco para um campo de pesquisas que surgiu para dar conta da singularidade das aglomerações de escala inédita erigidas como parte do processo de industrialização. Todo o esforço por compreender o urbanismo como modo de vida e da busca por linguagens para se narrar a vida urbana, desde ao menos Friedrich Engels e Georg Simmel, consolidado pela Escola de Chicago, se dava no sentido de contrastar a novidade do urbano com relação a um mundo anterior - não urbano, não moderno - no qual as cidades industriais se destacavam no território nacional e, portanto, demandavam um trabalho conceitual que veio a constituir o próprio surgimento da sociologia urbana, a partir de uma reelaboração das técnicas e métodos da antropologia. Tudo isso, entretanto, supunha as cidades industriais como unidades territorialmente destacadas e delimitadas do resto do mundo.

O advento da sociedade urbana, preconizada por Henri Lefebvre ainda no final dos anos 1960 - época em que a transição urbana no Brasil já despontava no horizonte -, trouxe novas questões analíticas para os estudos sobre as cidades, derivadas principalmente do fato dessa urbanização massiva se dar a partir das cidades do sul global. Esse dado não figurava nas preocupações de Lefebvre, mas traz consequências teóricas para o estudo da economia política das cidades, das lógicas de acumulação do capitalismo, das estruturas dos diferentes mercados que produzem a urbanização e a partir dela se constituem em escala planetária (BRENNER, 2014BRENNER, Neil. Implosions/Explosions: Towards a Study of Planetary Urbanization. Berlin: Jovis, 2014.). A ideia de urbanismo global surge dessa problemática e, em grande medida, em resposta à vulgarização do debate em torno de um planeta favela, formulação de Mike Davis (2006)DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006. já amplamente criticada e, de certa forma, superada pelo simples fato de acabar rearticulando, em escala global, as estruturas duais implícitas no mito da marginalidade e na cultura da pobreza, que, desde o final dos anos 1960 na América Latina, tentamos desconstruir (FISCHER, 2014FISCHER, Brodwyn. “A Century in the Present Tense: Crisis, Politics, and the Intellectual History of Brazil’s Informal Cities” In: FISCHER, Brodwyn; Mccann, Bryan; AUYERO, Javier (ed.). Cities from Scratch. London: Duke University Press, 2014. pp. 9-67.; LEEDS; LEEDS, 2015LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.; LOBO, 1982LOBO, Susan. A House of My Own: Social Organization in the Squatter Settlements of Lima, Peru. Tucson, AZ: University of Arizona Press, 1982.; LOMNITZ, 1977LOMNITZ, Larissa. Networks and Marginality: Life in a Mexican Shantytown. New York: Academic, 1977.; PERLMAN, 1976PERLMAN, Janice. The Myth of Marginality, Urban Poverty and Politics. Berkeley, CA: University of California Press, 1976.; MACHADO DA SILVA, 1967MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “A vida política na favela”. Cadernos de Estudos Brasileiros, vol. 9, n. 41, 1967.).

A ideia dos urbanismos globais, conjugados quase sempre no plural, parte do mesmo princípio da transição para um planeta predominantemente urbano, mas seu ponto de chegada não é um “planeta favela” povoado por massas fundamentalistas vivendo vidas precárias. A noção se desdobra como tentativa de se pensar a produção do espaço urbano fragmentado produzido por forças que ultrapassam os determinismos de Estados-nação mais ou menos desenvolvidos, ou de planejamentos urbanos e regionais, que esculpem o espaço construído a partir de grandes projetos de infraestrutura e da abertura de novos mercados que hoje são produzidos a partir da lógica da financeirização. Nessa nova construção da problemática, a preocupação analítica com as conexões e comparações entre processos e lógicas da produção da cidade se constitui também como questão epistemológica, uma vez que a maior parte da população do planeta vive em cidades em que a vida cotidiana se desdobra em espacialidades e temporalidades bastante distintas da vida prescrita pelos conceitos e práticas do planejamento urbano, desafiando a ideia normativa de cidade. Como a transição urbana se ancora em processos em curso no sul global, a teoria urbana (hegemônica, importada do norte) passa a ser desafiada de modo empírico e provincializada como uma dentre muitas perspectivas, ou leituras, possíveis do que a vida nas cidades pode e deve ser (ROBINSON; ROY, 2016ROBINSON, Jennifer; ROY, Ananya. “Global Urbanisms and the Nature of Urban Theory”. International Journal of Urban and Regional Research, Hoboken, NJ, v. 40, n. 1, pp.181-186, 2016.; ROY, 2009ROY, Ananya. “The 21st-Century Metropolis: New Geographies of Theory”. Regional Studies, London, vol. 43, n. 6, pp. 819-830, 2009.; SHEPPARD; LEITNER; MARINGANTI, 2013SHEPPARD, E.; LEITNER, H.; MARINGANTI, A. “Provincializing Global Urbanism: A Manifesto”. Urban Geography, London, vol. 34, n. 7, pp.893-900, 2013.; VARLEY, 2013VARLEY, Ann. “Postcolonialising Informality?”. Environment and Planning D, Thousand Oaks, CA, vol. 31, n. 1, pp. 4-22, 2013.).

Contudo, a questão não se esgota aí. Isso porque as normativas da vida urbana universalmente desejável estão emaranhadas nas ideias e nos projetos de vida no cotidiano dos habitantes das próprias cidades desafiam essa mesma universalidade no plano teórico. Assim, as normatividades do planejamento urbano adquirem um tipo particular de realidade, “nativa” (ou tão múltiplas quanto são os “nativos”), uma vez que constituem a linguagem pela qual a vida e as materialidades urbanas são pensadas, construídas e disputadas para os próprios atores que dia a dia fazem as cidades. É necessária, portanto, uma leitura etnográfica não só do espaço vivido, mas da produção do espaço, de inspiração lefebvriana, que inclua as projeções nas pranchetas dos arquitetos e planejadores, nos mapas dos cartógrafos, e também as imaginações de futuro e processos presentes que dão sentido e inauguram disputas em torno das transformações constantes do espaço das cidades.

Neste ensaio, debruço-me sobre essa questão por meio de um experimento de leitura etnográfica de uma imagem recorrente em descrições de cidades brasileiras: a da ruína prematura, ou “ainda construção e já ruína”, na versão de Caetano Veloso (FORA…, 1991FORA da ordem. Intérprete: Caetano Veloso. Compositor: Caetano Veloso. Vocais adicionais: Gilberto Gil, Bebel Gilberto, Audrey Martells, Laurie Andriamampianina, Kazu Makino e Billy Carrion. In: CIRCULADÔ. Intérprete: Caetano Veloso. Direção: Mayrton Bahia. Produção: Arto Lindsay. Rio de Janeiro: PolyGram; Philips, 1991. 1 LP; 1 CD, faixa 1 (5 min 54 s).). Sigo essa imagem recorrente para descrever as grandes cidades brasileiras através de lugares de enunciação distintos ao longo do tempo. Metáfora para descrever a especificidade do Novo Mundo por um antropólogo belga no contexto desenvolvimentista dos anos 1930 e 1940, no final dos anos 1980 a imagem é reapropriada pelo compositor baiano radicado no Rio de Janeiro para construir uma alegoria da versão brasileira das desigualdades sociais próprias do que era então lido como uma “nova ordem global” no início da redemocratização. No contexto do Rio de Janeiro pré e pós-olímpico, a imagem se torna um motivo etnográfico que acaba por se dissolver em manchetes de jornais. Entretanto, esse percurso permite pensar alguns caminhos para uma agenda de pesquisa sobre urbanismo e infraestrutura, sobretudo na metrópole fluminense, que, espero, possa contribuir para estudos de outras cidades do sul global.

Metáfora de um futuro monumental

Assim como narrativas de ficção científica são particularmente férteis para se ler as ansiedades e projeções de futuro dos presentes e lugares em que são escritas, as narrativas de viagem, em uma leitura contemporânea, talvez revelem mais sobre os mundos vividos de seus autores do que sobre os lugares que pretendem, ou pretenderam, narrar. Isso pode ocorrer mesmo quando esses autores estejam cientes dos problemas teóricos da ambição universalista do Ocidente, baseada em ideias evolucionistas de civilização.

Tristes trópicos é o relato da viagem de Claude Lévi-Strauss ao Brasil dos anos 1930. Publicado na França em 1955 após uma temporada forçada nos Estados Unidos por conta da Segunda Guerra Mundial, o antropólogo tece comentários quase incidentais sobre as cidades brasileiras (MAGNANI, 1999MAGNANI, José G. C. “As cidades de Tristes trópicos”. Revista de Antropologia, São Paulo, vol. 42, n. 1/2, pp. 97-111, 1999.). Lévi-Strauss situa as cidades brasileiras como um caso particular das cidades do Novo Mundo. Ao aportar na América do Sul, foi a escala das paisagens americanas que o capturou: “Essas ruas são ruas, essas montanhas são montanhas, esses rios são rios: de onde vem essa sensação de terra estrangeira?” (LÉVI-STRAUSS, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 73). Essa enormidade, ele escreve, “penetra e deforma nossos julgamentos” (estéticos? europeus?): “Os que declaram Nova York feia são simplesmente vítimas de uma ilusão de percepção. Não tendo ainda aprendido a mudar de registro, […] a beleza de Nova York não se deve a sua natureza de cidade, mas da sua transposição, […] de cidade para o nível de paisagem artificial, onde os princípios do urbanismo não mandam mais” (LÉVI-STRAUSS, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 78).

À época, São Paulo também era tida como “feia”. Lévi-Strauss (1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 91) preferia chamá-la de “selvagem”. “Ao contrário desses turistas europeus que torcem o nariz porque não podem acrescentar a seus troféus de caça mais uma catedral do século XIII”, o antropólogo belga estava alegre em se “adaptar a um sistema sem dimensão temporal, para interpretar uma forma diferente de civilização”.

Uma forma diferente de civilização sem dimensão de tempo. Um novo tipo de cidade em que os princípios [europeus] do urbanismo já não mais vigoram. Nesses e em muitos outros trechos do livro, Lévi-Strauss se vê sem parâmetros para descrever o que vê. Ideias de beleza se misturam com ideais da boa vida urbana, convergindo para formas adequadas ou familiares a um olhar do Velho Mundo. Tratava-se, todavia, de uma incompreensão de mão dupla; o capítulo intitulado “São Paulo” começa com a história de uma das alunas brasileiras que retornou em prantos de sua primeira visita à França: “a brancura e a limpeza” eram os únicos critérios pelos quais julgava uma cidade e Paris, com seus edifícios escurecidos, havia lhe parecido “suja” (LÉVI-STRAUSS, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 91). Essa incomensurabilidade de ideias de beleza urbana no Velho e Novo Mundo, para Lévi-Strauss, se articula a diferentes experiências de produzir espaço e habitar o tempo.

As cidades do Velho Mundo proporcionariam uma experiência monumental particular, de uma temporalidade construída pelo acúmulo e voltada para o passado. Já as paisagens infinitas do Novo Mundo portavam uma experiência singular do espaço e sua futura conformação como território nacional. Assim, o monumental emerge, em Tristes trópicos, como uma diferença estruturante entre as cidades do Velho e do Novo Mundo - nas primeiras, como experiência temporal, nas últimas como dimensão espacial: as cidades americanas nunca chegam a oferecer “essas férias fora do tempo a que convida o gênero monumental, essa vida sem idade que caracteriza as mais belas cidades, transformadas em objeto de contemplação e de reflexão, e não mais em simples instrumentos da função urbana” (LÉVI-STRAUSS, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 91). É como se tudo já tivesse se passado nas cidades europeias, enquanto as cidades do Novo Mundo não sossegassem a ponto de estabilizar as imagens das “civilizações” das quais eram vistas por ele como indícios materiais.

Isso teria efeitos concretos sobre as ruínas que cada uma dessas “civilizações” produz. Enquanto o Velho Mundo incorporou a história na forma urbana como resultado de uma sedimentação temporal, preservando e cultuando suas ruínas pela aura a elas atribuídas por noções como patrimônio, conservação e civilização, o Novo Mundo, “sem dimensão prévia no tempo”, introduziria um novo ritmo ao processo urbano, desacralizando ruínas (e passados) pela constante renovação urbana. Desse modo, suas ruínas eram, paradoxalmente, “novas”. Essa seria uma característica fundamental do espaço e da vida urbana no Novo Mundo.

Para as cidades europeias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a [passagem] dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal. No momento em que surgem, os novos bairros nem sequer são elementos urbanos: são brilhantes demais, novos demais, alegres demais para tanto. Mais se pensaria numa feira, numa exposição internacional construída para poucos meses. Após esse prazo, a festa termina e esses grandes bibelôs fenecem: as fachadas descascam, a chuva e a fuligem traçam seus sulcos, o estilo sai de moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições exigidas, ao lado, por outra impaciência (LÉVI-STRAUSS, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., pp. 91-92).

Lévi-Strauss racionaliza seu desconforto ao definir uma distinção entre os “ciclos de evolução” das cidades do Velho e do Novo Mundo: “Não são cidades novas contrastando com cidades velhas; mas cidades com ciclo de evolução curtíssimo, comparadas com cidades de ciclo lento. Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica; eternamente jovens, jamais são saudáveis”, “elas vão do viço à decrepitude sem parar na idade avançada” (LÉVI-STRAUSS, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., pp. 91-92).

Décadas antes de Lévi-Strauss, Euclides da Cunha já havia articulado a produção de ruínas como um modo particular de se produzir o espaço e habitar o tempo no Brasil, sendo a figura da ruína uma constante em seus escritos (HARDMAN, 1996HARDMAN, Francisco. “Brutalidade antiga: Sobre história e ruína em Euclides”. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 10, n. 26, pp. 293-310, 1996.). Tanto em suas descrições das paisagens do interior de São Paulo quanto em seus textos sobre as cidades abandonadas na Amazônia pelos “construtores de ruínas” que falharam em domesticar a natureza, a imagem persiste. Entretanto, esse foco nos sujeitos que produzem as ruínas foi perdido por narradores europeus, como Lévi-Strauss e Stefan Zweig, o qual, seduzido pelo processo urbano no Brasil, escreveu que “não são o passado e o presente de São Paulo que a tornam tão fascinante, mas sim o seu crescimento, desenvolvimento e velocidade de transformação […] vistos numa película cinematográfica feita em câmera lenta” (ZWEIG, 1941ZWEIG, Stefan. Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1941., p. 307).

Tanto Lévi-Strauss quanto Zweig narravam o processo de urbanização sob o desenvolvimentismo e se encontravam emaranhados nos processos e discursos de construção nacional da época, que também incluíam a colonização do espaço nacional (MAIA, 2008MAIA, João Marcelo E. A terra como invenção: O espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.). Quando Tristes trópicos foi publicado em 1955, o Brasil ainda tinha um grande futuro pela frente. Era uma nação prestes a executar o plano de construção de uma capital no meio do cerrado do Planalto Central, parte do projeto político de desenvolvimento no ritmo de cinquenta anos em cinco. Nesse projeto, a arquitetura modernista, o planejamento racional, a construção de estradas e o industrialismo figuravam como forças a reverter o subdesenvolvimento (HOLSTON, 1989HOLSTON, James. The Modernist City: An Anthropological Critique of Brasília. Chicago: The University of Chicago Press, 1989.; RIBEIRO, 2006RIBEIRO, Gustavo Lins. O capital da esperança: A experiência dos trabalhadores na construção de Brasília. Brasília, DF: Editora UnB, 2006.). O futuro era monumental e as ruínas no presente constituíam evidência concreta de seu vir a ser.

Se narrativas de viagem revelam algo dos mundos da vida de seus narradores, elas são também endereçadas a um centro imaginário, cuja periferia narram. Esse centro se deslocou no pós-Guerra na medida em que o crescimento das cidades norte-americanas se tornou um espetáculo em si mesmo e o seu planejamento urbano produziu e colonizou uma imagem global da boa vida urbana. Do ponto de vista das descrições da vida citadina, o que passaria a importar não seria mais a distinção entre as cidades do Velho Mundo e aquelas do Novo Mundo, mas entre as cidades que viriam mais tarde a ser identificadas como do norte e as cidades do sul.

Uma alegoria do sul global em construção

No final dos anos 1970, a visão de Manhattan do último andar do já desaparecido World Trade Center inspirou em um outro observador europeu uma série de reflexões acerca da temporalidade da produção das cidades americanas. Michel de Certeau (1998CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998., p. 169) vislumbrou Manhattan como uma “onda de verticais”. “Diferente neste ponto de Roma”, escreveu, “Nova York nunca soube a arte de envelhecer curtindo todos os passados. Seu presente se inventa, de hora em hora, no ato de lançar o que adquiriu e de desafiar o futuro. Cidade feita de lugares paroxísticos em relevos monumentais” (CERTEAU, 1998CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998., p. 169). A beleza artificial de Nova York para Lévi-Strauss se converte, na visão de Certeau, em uma perspectiva privilegiada para se apreender os dispositivos de poder incorporados na prática do urbanismo sob o capitalismo que lhe era contemporâneo.

A leitura de Certeau do urbanismo e da urbanização, tal como enunciada do alto do World Trade Center, é bastante problemática para quem pensa a urbanização desde a perspectiva do sul global: ela pressupõe uma cidade em constante transformação, porém “domesticada”, para manter os termos de Lévi-Strauss. A figura da ruína, da decadência, ou do desenvolvimento dessincronizado entre terrenos baldios, os quais, para Lévi-Strauss, definiam a São Paulo dos anos 1940, em Nova York não encontra referente. Construções e ruínas são distintas. Do alto do World Trade Center não há tempo ou espaço para o abandono ou a decadência. O projeto disciplinar está efetivado, institucionalizado, naturalizado e capilarizado: os pedestres escapam a uma estrutura de uma cidade ordenada e planejada, ainda que seu mapa impresso permaneça sempre desatualizado. Escapam, sim, ao mapeado e vigiado, mas o mapa e as estratégias do alto estão lá para assegurar a ordem e tornar visível o que lhe escapa. Estamos diante de uma cidade mapeável e continuamente mapeada, em que o planejamento urbano figura como norma, regulação e materialidade. A imagem da cidade condiz com o que se espera de uma cidade - espaço provido de infraestrutura, moradia, transporte e espaços de lazer, distribuídos de modo desigual, porém, coincidindo com o território oficial.

Da perspectiva de qualquer pedestre que se aventure pelas cidades do sul global, essas distinções ideais-típicas entre planejadores e pedestres não se sustentam. Ou melhor, não bastam. A cidade é feita dos espaços dos planejadores e dos itinerários pedestres, mas também das calçadas irregulares e múltiplas gambiarras, das pequenas territorialidades de soberanias fragmentadas, dos mediadores, lideranças, despachantes, gatos e gatilhos nas infraestruturas dos serviços públicos, pelos esquemas de troca de mercadorias políticas que se territorializam e institucionalizam ALVES, 2019ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.; MISSE, 2007MISSE, Michel. “Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro”. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 21, pp. 139-157, 2007.; RODRIGUES, 2021RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. “Necropolítica: Uma pequena ressalva crítica à luz das lógicas do ‘arrego’”. Dilemas, Rio de Janeiro, vol. 14, pp. 189-218, 2021.) e das “pessoas como infraestrutura” (SIMONE, 2004SIMONE, AbdouMaliq. For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities. Durham, NC: Duke University Press, 2004.), os múltiplos atravessadores de esquemas oficiais e informais, ilegais e consolidados, que vão desde guardadores de carros até os grandes esquemas das milícias contemporâneas.

Entretanto, a proposta de Certeau de pensar a cidade a partir de suas práticas ainda tem muito a render, inclusive para se pensar a problemática dos urbanismos globais - que questionam a hegemonia das teorias do norte a partir dessas mesmas práticas. Vistas daqui, as cidades não guardam a mesma relação com as infraestruturas formais ou com os territórios mapeados e consolidados que norteiam suas políticas públicas. Isso não torna o planejamento e as políticas públicas irrelevantes, muito pelo contrário. Do ponto de vista da produção de infraestrutura, há sempre um grau de incerteza com relação às construções - sejam elas grandes projetos de empreiteiras, reformas urbanas, políticas públicas de infraestrutura, ou puxadinhos informais. Edifícios, infraestruturas, ruas, estradas e bairros permanecem ou se transformam pelas lógicas da informalidade urbana, protagonizadas não só pelos planejadores, mas também por sucessivos encontros de intermediadores, mediadores, usurpadores, instituições e institucionalidades cujo poder é tão disperso quanto fragmentado em arranjos locais. A prática do urbanismo, do fazer cidade nas margens do Estado tornam a vida cotidiana uma negociação constante entre diferentes ordens, poderes e contextos. Se, como Ananya Roy (2009)ROY, Ananya. “The 21st-Century Metropolis: New Geographies of Theory”. Regional Studies, London, vol. 43, n. 6, pp. 819-830, 2009. propõe, pensarmos a informalidade urbana como uma lógica organizadora que conecta diferentes espaços, economias e mercados, nossas descrições da vida urbana e da produção das cidades do sul têm que atentar para outras forças e atores do urbanismo, além dos planejadores e usuários. Há muito a se desvendar entre o que sai das pranchetas dos planejadores dotados da visão do olho solar e as pequenas transgressões dos pedestres míopes das ruas “domesticadas” das cidades do norte.

Em 1991, Caetano Veloso retoma Tristes trópicos em versos que narram a vida urbana sob a “nova ordem mundial”. “Vapor barato/ Um mero serviçal/ Do narcotráfico/ Foi encontrado na ruína/ De uma escola em construção […]”. Partindo dessa explícita referência a Lévi-Strauss, o olhar do compositor baiano passa, panoramicamente, pelo lixo baiano, pelas rampas de Brasília e pelo esgoto do Leblon sem revelar onde foi que o jovem morreu, pois trata-se de uma alegoria da vida nas grandes cidades brasileiras no final do século XX. Sua morte em uma “escola em construção” poderia ter ocorrido em qualquer grande cidade brasileira, de onde “Aqui tudo parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína”.

Se em Lévi-Strauss a imagem de “ainda construção e já ruína” era uma metáfora descritiva das paisagens construídas pela “febre” do fazer cidade no Novo Mundo, que enfatizava as potencialidades futuras sobre o presente, Caetano a transforma em uma alegoria de um mundo em transformação sob a globalização e o neoliberalismo, tal como percebida e experimentada nas metrópoles de um terceiro mundo que já se reconfigurava analiticamente como sul global. Do desenvolvimentismo ao neoliberalismo, do terceiro mundo ao sul global, seja como for narrada a passagem - o que se esvai é a história evolucionista de progresso, e com ela a imaginação de um futuro grande, como inscrito e prescrito no sentido e nas temporalidades do desenvolvimentismo: racional, planejado, inclusivo, democrático.

“Fora da ordem” narra o encerramento da temporalidade do “país do futuro”. Seus versos produzem imagens vívidas e concretas sobre a crise urbana, que expressa também a falência prematura das promessas da democracia, depois de quase três décadas de Regime Militar. A perspectiva do olho solar é aqui contraposta não a um pedestre que desafia a cidade planejada, mas a um pequeno detalhe: o menor foi morto não na rua, ou na favela - como milhares de jovens negros morrem todos os anos nas cidades brasileiras -, mas em uma escola (pública, provavelmente) em construção. Tanto a morte violenta de uma criança negra quanto seu pano de fundo são banais e generalizáveis o suficiente para produzir uma alegoria das condições de vida em um mundo profundamente, primordialmente e irremediavelmente desigual. A materialização das instituições democráticas (a escola não acabada) não acompanha a vida urbana. Nessa visão distópica das cidades brasileiras no final do século XX, o futuro estava abreviado. Pessoas, infraestruturas e o futuro encontram o mesmo destino: “Tudo é menino, menina/ No olho da rua/ O asfalto, a ponte, o viaduto/ Ganindo prá lua/ Nada continua…”.

A alegoria de Caetano se desvencilha da referência das cidades do norte, mas não abdica - por ser alegoria e pelo que se configuraria mais tarde como a problemática do lugar de fala - de aderir a uma perspectiva de desvelar de uma verdade, por meio de uma síntese totalizante sobre a cidade: “E o cano da pistola/ Que as crianças mordem/ Reflete todas as cores/ Da paisagem da cidade / Que é muito mais bonita/ E muito mais intensa/ Do que no cartão postal”.

Vida e morte de um motivo etnográfico

Em 2 de outubro de 2009, o Rio de Janeiro foi confirmado como sede das Olimpíadas de 2016. Em 12 de novembro, o The Economist lançava sua capa histórica, com o Cristo Redentor decolando como um foguete, que se tornaria marco da promessa de uma nova futuridade: o Rio Olímpico como vitrine do Brasil global, que, por sua vez, representaria “o maior caso de sucesso da América Latina” e um modelo de desenvolvimento econômico a ser seguido (BRAZIL…, 2009“BRAZIL Takes Off”. The Economist, London, 12 Nov. 2009. Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2009/11/12/brazil-takes-off. Acesso em: 18 out. 2023.
https://www.economist.com/leaders/2009/1...
, tradução nossa).

Sediar as Olimpíadas era um projeto antigo na cidade, originado nas constantes visitas de consultores de Barcelona à Prefeitura do Rio nos anos 1990, no auge da suposta panaceia do planejamento estratégico e do marketing urbano vendida pelas agências multilaterais como a única solução para os problemas urbanos na virada do século. A candidatura vencedora da cidade intensificou um processo de grandes transformações urbanas já em curso em toda a região metropolitana, em parte em função das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) iniciadas em 2007, as obras do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ),1 1 A promessa do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ), financiado pela Petrobras, traria milhares de vagas de emprego e despontaria o desenvolvimento industrial na região metropolitana, ancorando-a na “economia real”. e também como consequência da realização de outros grandes eventos na cidade, como a Jornada Mundial da Juventude, a Rio+20, os Jogos Militares e a Copa do Mundo de 2014.

Nesse passado tão recente e tão distante, financiamentos pareciam não faltar, em parte em função da alta das receitas do Estado por conta dos royalties do petróleo, mas também pela facilitação de acordos e parcerias entre as três esferas de governo, possibilitados pelo alinhamento entre os governos municipais, estaduais e federal. As agências multilaterais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) concediam empréstimos, financiavam pesquisas e apostavam na produtividade de experimentar novas políticas públicas no Rio Olímpico. Parte dessas políticas públicas eram construídas na inspiração do experimento que as próprias agências multilaterais vendiam como o urbanismo social colombiano, ou como “milagre de Medellín”, que, por sua vez, consistia em uma aplicação do modelo Barcelona2 2 O modelo Barcelona se refere a práticas e projetos implementados nessa cidade durante seu remodelamento para as Olimpíadas de 1992. Fundamentado na formulação de projetos urbanos em detrimento de planos diretores, enfatizava a importância do espaço público e uma divisão mais igualitária de instituições públicas como modo de promover a qualidade de vida, uma sensação de inclusão e pertencimento que se estendesse às áreas mais pobres da cidade (BRAND, 2013). Para tanto, se valia de práticas de marketing urbano, por meio da construção de equipamentos com o potencial de se tornarem cartões-postais das cidades, ou de grandes eventos para atrair turistas, refazendo sua imagem em um cenário de competição global por recursos e investimentos. a regiões pobres de cidades da América Latina.

Aqui no sul, esse modelo de desenvolvimento urbano, gestado em meio à consolidação do neoliberalismo, passou a ser ancorado no discurso de integração - simbólica e infraestrutural - das áreas informais à cidade formal. Entre o marketing urbano e a entrada de empreiteiras em obras de grande visibilidade realizadas em favelas, houve um trabalho simbólico de tentar construir novos cartões postais cariocas, como os teleféricos do Alemão e da Providência, o parque Madureira e o Porto Maravilha - todos às custas de demolições consideráveis - no momento mesmo em que a paisagem do Rio de Janeiro pleiteava reconhecimento como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

Discursivamente, o urbanismo social se justificava como uma reparação histórica das desigualdades duradouras na sociedade colombiana. A metáfora da acupuntura urbana previa a abertura de pontos de circulação e de fluxo por meio da provisão de infraestruturas e serviços urbanos nas regiões mais pobres da cidade. Havia um investimento considerável nos aspectos simbólicos das intervenções no sentido de promover uma ressignificação dos espaços periféricos por meio de uma performance estética de sua incorporação à cidade. A cada uma dessas funções coube um monumento: para o transporte, o teleférico, articulado ao metrô da cidade formal; para a provisão de infraestruturas públicas e novas centralidades urbanas criadas por meio da ativação de espaços públicos ergueram-se cinco bibliotecas-parques, cujo projeto era assinado por arquitetos renomados, selecionados por concursos públicos internacionais.

Essa ideia de “integração”, norteada pelo planejamento urbano e justificada como política de segurança pública, desde os anos 1990 no Rio de Janeiro, passava pela justaposição de políticas de urbanização de favelas e breves rupturas da política de violentas incursões policiais a partir de experimentos de policiamento comunitário. Desde fins de 2008, o governo estadual do Rio de Janeiro, por iniciativa da Secretaria de Segurança Pública chefiada por José Mariano Beltrame, havia iniciado um programa de ocupação permanente de certas favelas do Rio de Janeiro, cujo sucesso inicial se refletiu na queda das taxas de homicídios nas áreas em que o programa foi implementado. A ocupação militar foi acompanhada por monumentais obras de infraestrutura que incluíram a construção de dois enormes sistemas de teleférico, construído seguindo o modelo de Medellín para atender aos moradores das favelas da cidade. As grandes obras do PAC nas favelas ampliaram a escala de programas de urbanização com obras de grande complexidade e contavam com a participação de grandes empreiteiras - elevação da linha férrea em Manguinhos, a construção dos teleféricos do Alemão e da Providência, do elevador do Cantagalo e de passarela e abertura de vias na Rocinha. Grandes investimentos em transporte público incluíram a construção de quatro vias expressas equipadas com faixas de bus rapid transit (BRT) e uma nova linha de metrô. Por um breve momento, parecia que o “gigante acordaria” e o futuro glorioso das imaginações do passado parecia mais uma vez viável - ou, pelo menos, comercializável.

Em 2010, a Prefeitura lançou o programa Morar Carioca, então anunciado como o maior legado Olímpico, que previa a urbanização de todas as favelas da cidade até 2020. Para tanto, foi lançado um grande concurso de ideias, contratadas firmas de arquitetura para realizar estudos dos “agrupamentos” que comporiam o programa (CAVALCANTI, 2017CAVALCANTI, Mariana. “Vida e morte do ‘agrupamento 26’”. Revista de Antropologia, São Paulo, vol. 60, n. 3, pp. 211-235, 2017.). Além das favelas incluídas por meio do concurso, obras de infraestrutura já em andamento em algumas favelas foram incorporadas em seu bojo. A mais visível dessas obras foi a urbanização do Morro da Providência, que incluiu a construção de um teleférico, ao custo de 76 milhões de reais, conectando a estação Central de trens e metrô, ancorado numa gigantesca estação no topo do morro, até o bairro portuário da Gamboa, incorporado também a “revitalização” do Porto Maravilha. A urbanização e “pacificação” da favela mais antiga do Brasil, no coração da cidade, era peça central para a operação consorciada de requalificação da Zona Portuária, que propunha a renovação de 5 milhões de metros quadrados e a atração de investidores internacionais para os milhares de imóveis abandonados da região, no que foi considerada a maior parceria público-privada (PPP) da América Latina.

Em termos de obras de urbanização, é possível argumentar que a cidade marchou para o oeste, em duas frentes gerais de expansão. A primeira, pela priorização estratégica da Zona Oeste como foco da expansão do mercado imobiliário formal. A segunda, visível sobretudo em condomínios do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV). O programa federal de habitação pública construiu grandes empreendimentos nas periferias, que acabaram fazendo parte de uma máquina de despejo que deslocou mais de 70 mil pessoas. Mais do que isso, é possível argumentar que se desenvolveu um mecanismo de remoção a partir da configuração das políticas de habitação popular. Se houve contingência e não planejamento, mais uma vez, importa menos do que as relações e os espaços efetivamente produzidos no processo.

Em meio a tantas transformações urbanas, ainda houve as chuvas de 2010 e 2011, que também contribuíram para a configuração atual da cidade ao serem instrumentalizadas para fundamentar a categoria de área de risco e corroborar os deslocamentos em favelas. Em 5 de abril de 2010, o programa MCMV baixa a Portaria nº 140, que redefine os critérios de priorização de seus beneficiários para agregar grupos de famílias de “assentamentos irregulares” deslocados por estarem em “área de risco” ou retiradas pela regularização fundiária. O governo do estado comprou alguns condomínios do MCMV para redistribuir para as famílias impactadas, majoritariamente longe do centro. A prefeitura construiu ainda o Bairro Carioca, empreendimento ligado ao MCMV na Zona Norte, realocando as famílias removidas de dezenas de favelas e redesenhando parte do antigo subúrbio industrial e o entorno do complexo do Alemão. Lucas Faulhaber representou o processo em um mapa,3 3 Mapa aponta locais de origem e de destino em MCMV maciçamente localizados na Zona Oeste (FAULHABER, 2012). que circulou nas redes sociais e passou a ser usado pelos ativistas, pelo Comitê Popular da Copa e por organizações não governamentais (ONG) de defesa dos direitos humanos.

Apenas quatro anos se passaram entre o “Brasil que decola” do The Economist e a sua reprodução de setembro de 2013, onde o periódico perguntava: “O Brasil arruinou tudo”? (HAS BRAZIL…, 2013“HAS BRAZIL Blown It?”. The Economist, London, 27 Sept. 2013. Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2013/09/27/has-brazil-blown-it. Acesso em: 18 out. 2023.
https://www.economist.com/leaders/2013/0...
, tradução nossa) Depois dos protestos tomarem todo o país, a investigação Lava Jato da Polícia Federal, iniciada em 2014, trouxe à luz uma série de esquema de corrupção que envolviam a Petrobras, mas também empreiteiras e políticos envolvidos na construção da Vila Olímpica, paralisando e atrasando muitas obras e projetos em andamento. Isso precipitou e justificou o golpe de Estado de 2016, que retirou a presidente Dilma Rousseff do poder e acabou levando à condenação de dois ex-governadores do Rio de Janeiro envolvidos em esquemas de corrupção.

A cidade se tornou uma constelação de canteiros de obras sobrepostos. À medida que o prazo de agosto de 2016 se aproximava, no entanto, vários megaprojetos foram abreviados, adiados, suspensos ou apenas abandonados, revelando que sua construção “já é ruína” mesmo antes da abertura dos Jogos. No começo de 2016, diversas infraestruturas olímpicas começaram a sucumbir: uma ciclovia recém-inaugurada - que conectava a elite da Zona Sul à Zona Oeste, região em expansão e onde a maioria dos eventos olímpicos ocorreram - desabou, matando duas pessoas. Duas semanas depois, uma passarela de uma via expressa, que nem havia sido inaugurada, apresentou rachaduras, colocando em risco a solidez de toda a estrutura. Dias após serem inaugurados, elevados, ruas, plataformas e vigas de sustentação já tinham que passar por reparos. A abertura da Vila Olímpica foi um fracasso monumental, uma vez que os atletas foram recebidos com acomodações inacabadas com canos vazando, banheiros entupidos e fiações elétricas expostas. Nas manchetes, dizia-se que a Vila, já entregue, estava “em permanente construção” (EM PERMANENTE…, 2016“EM PERMANENTE construção”. O Globo, Rio de Janeiro, 27 jul. 2016.).

Nos meses que antecederam as Olimpíadas, “ainda construção e já ruína” se tornou uma manchete constante de jornais. Seu apelo nada tinha a ver com essa trajetória menos intuitiva da imagem como metáfora, ou alegoria, e sim com o seu potencial de reverberar a sensação dos moradores da cidade - de todas as classes sociais. “Ainda construção e já ruína” é uma imagem que captura a temporalidade habitada da vida cotidiana que sedimenta repetidas e frustradas promessas de “desenvolvimento”, “modernidade”, democracia… “nada continua”, como já dizia Caetano.

Talvez não tão óbvio seja o fato de que a experiência vivida produz um presente que carrega sua própria futuridade - por mais mutáveis que sejam os conteúdos desse futuro: se tudo está “ainda em construção e já é ruína”, então o futuro permanece, de certa forma, em aberto e a agência pode estar em jogo. Não é o futuro apresentado pelo Estado, pelas PPP, promessas do planejamento urbano neoliberal ou das agências multilaterais. Tampouco é ditado pelos chefes do tráfico, líderes comunitários, grupos de milícias, ativistas de base ou pastores evangélicos. Na prática, esses agentes estão cientes disso e vivem o dia a dia com um olho nas mudanças nas estruturas da vida cotidiana e no espaço que abrem para agência. “Construção” ou “ruína” se tornam sistemas de classificação alheios quando ou se a cidade está “em construção e já em ruína” no cotidiano. Os projetos do Estado, dos arquitetos e a temporalidade do planejamento que incorporam é marginal ou apenas mais um elemento no horizonte de possibilidades.

Talvez as mais “emblemáticas “ruínas Olímpicas” do Rio de Janeiro sejam seus teleféricos abandonados. O teleférico do Alemão, um gigantesco sistema de gôndolas instalado nos antigos subúrbios industriais ao norte da cidade, foi um empreendimento orçado em mais de 250 milhões de reais. Visível da pista do aeroporto internacional, o teleférico foi alardeado na mídia como o novo cartão-postal da “Cidade Pacificada”. Concluído com o custo adicional do despejo de 2 mil famílias, o prefeito do Rio de Janeiro, em cerimônia de inauguração, referiu-se ao teleférico como a “fantástica obra da paz”, alcançada pelo que foi apresentado como a ocupação policial “permanente” do Complexo pelo programa de pacificação. Inaugurado em 2011, no auge do boom carioca, as operações do teleférico foram suspensas apenas dois meses após as Olimpíadas, o mesmo destino de seu homônimo no Morro da Providência e do elevador na favela do Cantagalo. Sua estrutura maciça e decadente tornou-se aquilo que os ativistas da favela e as organizações de base temiam desde o início: um “elefante branco olímpico” (CAVALCANTI; CAMPOS, 2022CAVALCANTI, Mariana; CAMPOS, Marcos. “O teleférico do Alemão e a produção de infraestrutura no Rio de Janeiro”. Dados, Rio de Janeiro, 2022. No prelo.).

O “elefante branco” desativado se espraia pelo topo de cinco morros do complexo de favelas e é conectado por 3,5 quilômetros de cabos que agora pendem perigosamente com os ventos e as tempestades. Por meio desses cabos, uma vez deslizaram 152 cabines, cada uma com capacidade para oito a dez passageiros. As estações, segundo o projeto original do teleférico, deveriam abrigar centros comunitários, salas de aula, repartições governamentais e muitas outras promessas que nunca foram cumpridas. Depois do fechamento do sistema do teleférico, eles foram assumidos pelos restos (ou ruínas) do extinto programa Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Muitas vezes, denunciam os moradores do Alemão, os policiais os usam para seus próprios fins particulares. Sua ocupação continua sendo motivo de controvérsia.

Em 1º de junho de 2020, enquanto a pandemia da covid-19 se alastrava no Alemão, o ativista de direitos humanos, jornalista e documentarista Raull Santiago, então com 28 anos, que amadureceu com a construção desse massivo sistema teleférico, twittou: “TELEFÉRICOS DE ALEMÃO: Estruturas enormes com muitos cômodos, que poderiam ser utilizadas para projetos sociais ou mesmo agora em face de uma pandemia global de saúde, paralisado desde as Olimpíadas, agora o elefante branco serve de base policial”.

Nascido e criado no Alemão, Raull Santiago olha para a cidade das ruínas de uma das estações do teleférico desativado e não vê nem construção nem ruína, mas um elefante branco apto a ser reapropriado e reincorporado como parte da infraestrutura da cidade. Quando muitos outros (estrangeiros ao Alemão) se alongariam em narrativas trágicas denunciando o inevitável fracasso de uma nação incorrigivelmente corrupta, que na verdade passaria por uma ideia idiota, como construir um sistema tão grande e de manutenção complexa em uma das áreas mais conflituosas da cidade, Santiago esquece o passado recente porque se preocupa em desfazer o presente cotidiano (a apropriação policial do espaço) e, em sintonia com as últimas mudanças na constelação sócio-histórica (a pandemia), traça uma agenda política para o futuro imediato.

Ou seja, as ruínas estão nos olhos de quem as vê. As obras do teleférico do Alemão produziram ruínas além do elefante branco. Para que os componentes da construção do teleférico pudessem chegar ao alto do morro, foi necessário alargar a avenida central do Morro do Alemão. Diversas casas foram demolidas, com as ruínas expondo os azulejos que decoravam as casas construídas ao longo de anos, senão décadas, de investimentos materiais e subjetivos de seus moradores e moradoras. Em meio aos escombros e entulhos, uma escada ficara para trás, ligando nada a lugar nenhum, sendo apelidada por moradores de “símbolo do descaso” (FACINA, 2020FACINA, Adriana. “A escada da memória: arte e resistência no Complexo do Alemão”. Iluminuras, Porto Alegre, vol. 21, n. 54, pp. 428-446, set. 2020., p. 432). Em 2013, dois anos após a inauguração do teleférico, durante um evento promovido pelo Instituto Raízes em Movimento, a escada foi grafitada pelo artista plástico Mario Bonds, sendo incorporada como arte à paisagem do Morro do Alemão. Passou a atrair visitantes. Se como ruína era invisível e abandonada, como arte e como crítica social tornou-se objeto de remoção: em menos de um mês depois de sua ressignificação pelos moradores, foi prontamente demolida pela prefeitura. A trajetória da escada - como nota de rodapé na história do teleférico - revela algo da arbitrariedade e da performatividade dos entendimentos cotidianos sobre o que é construção e o que é ruína nas cidades do sul global.

Em alguns parágrafos atrás, sugeri que construção e ruína talvez fossem classificações externas aos nativos das cidades do sul, cujas vidas gravitam em torno do fazer cidade e das políticas do cotidiano. Isso é precisamente porque a temporalidade do “ainda em construção e já ruína” é uma compreensão nativa das periferias do fazer cidade como uma prática cotidiana incorporada e conflituosa. Ela encapsula a temporalidade incorporada na experiência vivida de fazer/esperar por uma cidade “ainda por vir”.

Essa temporalidade é reconhecível em muitas cidades do sul e já foi incorporada epistemologicamente na pesquisa urbana - como os debates emergentes sobre o urbanismo global e as chamadas contemporâneas para a construção de agendas de pesquisa baseadas nos urbanismos do sul tornam evidentes. Por pelo menos duas décadas, urbanistas e estudiosos da cidade vêm se dedicando a explorar os interstícios da divisão formal/informal, enfatizando a urgência em compreender os fundamentos positivos, produtivos e teóricos da informalidade urbana (FISCHER, 2014FISCHER, Brodwyn. “A Century in the Present Tense: Crisis, Politics, and the Intellectual History of Brazil’s Informal Cities” In: FISCHER, Brodwyn; Mccann, Bryan; AUYERO, Javier (ed.). Cities from Scratch. London: Duke University Press, 2014. pp. 9-67.; ROY; ALSAYYAD, 2004ROY, Ananya; ALSAYYAD, Nezar (ed.). Urban Informality: Transnational Perspectives from the Middle East, Latin America and South Asia. New York: Lexington, 2004.; VARLEY, 2013VARLEY, Ann. “Postcolonialising Informality?”. Environment and Planning D, Thousand Oaks, CA, vol. 31, n. 1, pp. 4-22, 2013.) e conceituar a vida daqueles que vivem às margens do Estado ou das metrópoles (DAS; POOLE, 2004DAS, Veena; POOLE, Deborah. Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.; LANCIONE, 2016LANCIONE, Michele (ed.). Rethinking Life at the Margins: The Assemblage of Contexts, Subjects, and Politics. London: Routledge, 2016.), compondo as vidas improvisadas (SIMONE; PIETERSE, 2018SIMONE, AbdouMaliq; PIETERSE, Edgar. New Urban Worlds: Inhabiting Dissonant Times. Hoboken, NJ: Wiley, 2018.) dos residentes de cidades ainda por vir (SIMONE, 2004SIMONE, AbdouMaliq. For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities. Durham, NC: Duke University Press, 2004.). Hoje sabemos bastante sobre as infraestruturas materiais e políticas que constituem as necropolíticas da teoria pós-colonial (MBEMBE, 2003MBEMBE, J-A. “Necropolitics”. Trad. Libby Meintjes. Public Culture, vol. 15, n. 1, pp. 11-40, 2003.), e até mesmo os “pequenos mundos” daqueles que tentam promover o “desenvolvimento” e instilar ordem nas cidades indisciplinadas do sul (ROY, 2012ROY, Ananya. “Ethnographic Circulations: Space-Time Relations in the Worlds of Poverty Management”. Environment and Planning A: Economy and Space, Thousand Oaks, CA, vol. 44, n. 1, pp. 31-41, 2012.). Sabemos que a própria figura da ruína é produtiva de novas possibilidades analíticas quando vista como parte dos processos de construção do Estado e do fazer cidade no sul global (GUPTA, 2018GUPTA, Akhil. “The Future in Ruins: Thoughts on the Temporality of Infrastructure”. In: ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (ed.). The Promise of Infrastructure. London: Duke University Press, 2018. pp. 62-79.).

Todos esses temas já são familiares aos estudiosos do urbano. No entanto, desafiar o discurso do planejamento urbano formal não resolve a questão do que fazer com ele como um enunciado “nativo” (enunciado por muitos “tipos” diferentes de “nativos”) que opera nas cidades reais que observamos. Neste ensaio, tentei contribuir para esses debates por meio de um recuo no tempo a fim de captar uma dimensão da urbanização que me permitiu transitar por diferentes lugares de enunciação, que também destacam a historicidade de quem lê e narra a cidade, e para qual público. Acredito que essas narrativas sejam reveladoras da dimensão histórica da construção da vida cotidiana nas cidades do sul. Nesse processo, e por meio do tweet de Raull Santiago, a imagem/metáfora/alegoria/descrição etnográfica acaba por se dissolver em sua própria duração, na justaposição dos escombros de projetos do passado e das expectativas futuras dos moradores da cidade.

Um dos desafios de se pensar os urbanismos globais tem a ver com o fato de que somos todos nativos neste e deste mundo predominantemente urbano que nos dedicamos a etnografar. Tentar pensar o urbanismo a partir da temporalidade de “ainda construção e já ruína” é um esforço de distanciamento das narrativas de “fracasso” ou de “ausência” (de Estado, de infraestrutura, de democracia, civilidade ou de planejamento urbano). Ela se orienta também para o futuro e para a concretização de projetos que constituem a temporalidade da modernidade europeia e do planejamento urbano - que, todavia, opera como uma dentre outras dimensões da produção da cidade na vida cotidiana. O esforço para incorporar essa temporalidade à teoria urbana como experiência cotidiana para os moradores das cidades do sul global implica também um deslocamento de uma antropologia da cidade para uma antropologia da produção da cidade, ou de uma antropologia urbana para uma antropologia do urbanismo, ou, para ser ainda mais precisa, para uma antropologia dos muitos urbanismos que fazem a vida cotidiana das e nas cidades. Esse deslocamento tem uma dimensão epistemológica: se na discussão sobre antropologias da ou na cidade, a ideia ou imagem de cidade permanecia não disputada, a questão agora é saber de que cidade, de que urbanismo, ou de que experiência urbana estamos falando. Quando focamos na produção da cidade atentamos para o fato de que a cidade não é um objeto dado ou um objetivo, mas sempre em construção, e trazer esse fazer como objeto privilegiado de investigação. Esse deslocamento sutil ajuda a reformular as ideias normativas da construção da cidade como uma entre muitas enunciações nativas sobre cidades e futuros urbanos.

Notas

  • *
    Este texto é uma versão brasileira de “Still Construction and Already Ruin”, originalmente publicado na coletânea Global Urbanism: Knowledge, Power and the City, editada por Michele Lancione e Colin McFarlane e publicada pela Routledge em 2021. Entendemos o texto como uma “versão brasileira” do texto original porque não se trata apenas de uma tradução. O texto que segue foi adaptado e traduzido pela própria autora, com a colaboração de Ana Clara Chequetti, e, nesta versão, perdeu passagens de contextualização originalmente concebidas para situar um público externo. Também ganhou novas passagens etnográficas, incluídas com o objetivo de aprofundar discussões que interessam mais diretamente aos leitores da língua portuguesa.
  • 1
    A promessa do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ), financiado pela Petrobras, traria milhares de vagas de emprego e despontaria o desenvolvimento industrial na região metropolitana, ancorando-a na “economia real”.
  • 2
    O modelo Barcelona se refere a práticas e projetos implementados nessa cidade durante seu remodelamento para as Olimpíadas de 1992. Fundamentado na formulação de projetos urbanos em detrimento de planos diretores, enfatizava a importância do espaço público e uma divisão mais igualitária de instituições públicas como modo de promover a qualidade de vida, uma sensação de inclusão e pertencimento que se estendesse às áreas mais pobres da cidade (BRAND, 2013BRAND, Peter. “Governing Inequality in the South Through the Barcelona Model: ‘Social Urbanism’ in Medellin, Colombia”. Interrogating Urban Crisis: Governance, Contestation, Critique, pp. 9-11, 2013.). Para tanto, se valia de práticas de marketing urbano, por meio da construção de equipamentos com o potencial de se tornarem cartões-postais das cidades, ou de grandes eventos para atrair turistas, refazendo sua imagem em um cenário de competição global por recursos e investimentos.
  • 3
    Mapa aponta locais de origem e de destino em MCMV maciçamente localizados na Zona Oeste (FAULHABER, 2012FAULHABER, Lucas. “Mapa de remoções: remoções, reassentamento e o planejamento urbano”. In: FAULHABER, Lucas. Rio Maravilha: práticas, projetos políticos e intervenção no território no início do século XXI. 2012. Monografia (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2012. p. 59.).

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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2023
  • Aceito
    08 Out 2023
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