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Controle e vigilância empresarial sobre os trabalhadores de empresas estatais durante o Regime Civil-Militar: Petrobras, CSN e Itaipu

Corporate control and surveillance over workers of state companies, during the period of the civil-military regime: Petrobras, CSN, and Itaipu

Resumos

O artigo aborda a cooperação entre as estruturas de vigilância e controle internas de empresas estatais e órgãos de inteligência da Ditadura Civil-Militar de 1964. São abordados os casos particulares de três estatais: Petrobras, CSN e Itaipu Binacional. A partir do conjunto de informações disponíveis, em várias fontes bibliográficas, é feito um exercício comparativo. O artigo conclui que tais estruturas de vigilância, sob supervisão do Serviço Nacional de Informações (SNI), constituíram-se como importantes dispositivos de controle e vigilância, com capacidade de monitorar movimentos sindicais, políticos, sociais e indivíduos em amplas áreas do território nacional.

Palavras chave:
Ditadura Civil-Militar; empresas estatais e Ditadura; sindicalismo; controle e vigilância; doutrina de segurança nacional


The article addresses cooperation between the internal surveillance and control structures of state-owned companies, and intelligence bodies of the Civil-Military Dictatorship of 1964. Particular cases of three state-owned companies are discussed: Petrobras, CSN, and Itaipu Binacional. Based on the set of information available, in various bibliographic sources, a comparative exercise is carried out. The article concludes that such surveillance structures, under the supervision of the National Information Service (SNI), constituted important control and surveillance devices, with the capacity to monitor union, political, social movements, and individuals in wide areas of the national territory.

Keywords:
Civil-Military Dictatorship; state companies and dictatorship; unionism; control and surveillance; national security doctrine


Introdução

O presente artigo discorre acerca da cooperação entre as estruturas de vigilância e controle de empresas estatais, as quais, entre outras atividades, dedicavam-se ao controle e à vigilância de seus trabalhadores, e os órgãos de inteligência da Ditadura Civil-Militar brasileira de 1964-1985.

Para tanto, reuniu-se informações disponíveis em artigos, relatórios de pesquisa, teses e dissertações sobre esse aspecto específico1 1 “No total foram treze grupos, focados nos seguintes temas: Ditadura e Gênero; Araguaia; Contextualização, Fundamentos e Razões do Golpe Civil-Militar de 1964; Ditadura e Sistema de Justiça; Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical; Estrutura de Repressão; Mortos e Desaparecidos Políticos; Graves Violações de Direitos Humanos no Campo ou Contra Indígenas; Operação Condor; Papel das Igrejas durante a Ditadura; Perseguições a Militares; Violações de Direitos Humanos de Brasileiros no Exterior e de Estrangeiros no Brasil; e O Estado Ditatorial-Militar” (PRAUN; COSTA, 2016, p.2). da colaboração entre as empresas e os órgãos da Ditadura, temática abrangente e que tem diversas dimensões específicas. Trataremos aqui do caso das empresas estatais e da relação entre suas estruturas internas de controle e vigilância com os órgãos de informação e repressão da Ditadura de 1964.

Abordamos os casos particulares de três empresas estatais: Petrobras, Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e Itaipu Binacional, estratégicas para o projeto desenvolvimentista da Ditadura Civil-Militar brasileira. As três dispunham de muitos trabalhadores, grande importância econômica e simbólica para aquele governo. A Petrobras, de presença nacional, consolidou-se durante os anos 1960 e 1970. A CSN, além de ser, no período analisado, empresa de importância decisiva para a industrialização do país, constituía-se como empresa nuclear para o desenvolvimento da economia da região Sul Fluminense. Itaipu Binacional foi o maior projeto de infraestrutura daquele período. Além de ser estratégica para o desenvolvimento nacional, a hidroelétrica reunia importância geopolítica, dado que seu surgimento e a construção envolveram tensões diplomáticas entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai.

O caso de Itaipu, devido à sua localização geográfica, sugere que, entre as violações de direitos humanos desenvolvidas pela direção, a qual tinha conhecimento e consciência sobre suas estruturas internas de vigilância e controle, a empresa pode ter contribuído para o terrorismo de Estado transfronteiriço por meio da colaboração e troca de informações,com as ditaduras argentina e paraguaia.

Petrobras, CSN e Itaipu Binacional são empresas que, ao colaborar com a Ditadura Civil-Militar, contribuíram para a constituição de um importante dispositivo de controle, vigilância e repressão dos trabalhadores e dos sindicatos, bem como das populações presentes em sua área de abrangência, movimentos sociais e de qualquer indivíduo “suspeito” de ameaçar a “segurança nacional”.

Acerca da estrutura do artigo, apresentamos na primeira parte a problemática abrangente da colaboração entre empresas e a Ditadura Civil-Militar brasileira. Trata-se de um campo de pesquisa inaugurado com trabalhos pioneiros ainda nos anos 1980, como veremos adiante, e que ganhou impulso, desde 2013, a partir dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A partir de então, organizaram-se comissões da verdade estaduais, publicaram-se artigos e realizaram-se teses e dissertações. O esforço de muitos pesquisadores e de segmentos da sociedade civil fornecem significativo lastro empírico para a compreensão deste tema.

Na segunda parte do artigo, apresentamos os casos particulares da Petrobras, CSN e Itaipu Binacional, objetos de estudo deste artigo, fornecendo informações sobre o funcionamento de suas estruturas internas de vigilância e controle na repressão aos trabalhadores, mas também no conjunto de violações aos direitos humanos dos trabalhadores e seus familiares, dos movimentos sociais, das populações-alvo e de indivíduos “suspeitos”, estabelecendo as bases para um breve exercício comparativo.

Na conclusão do artigo, assinalamos os resultados desse exercício comparativo, destacando os aspectos que possam contribuir para o desenvolvimento de um campo de investigações dedicado à compreensão do “dispositivo” de controle e vigilância dos trabalhadores e de amplos segmentos da população brasileira feito em colaboração entre as empresas estatais e a estrutura de repressão e inteligência da Ditadura.

Usamos a metodologia da revisão bibliográfica de artigos, livros, teses e dissertações sobre o tema. Convém notar que, em boa parte da bibliografia sobre as empresas, o tema da estrutura interna de vigilância das empresas estatais está presente, mas não é central. Reunimos, refletimos e comparamos os casos de cada uma das três estatais a partir do que existe de conhecimento disperso sobre a estrutura de vigilância e controle dessas empresas. Mais do que um “estado da arte”, procuramos contribuir para a reflexão e para o desenvolvimento de pesquisas, de um campo em construção e de grande relevância. Os dispositivos de controle, vigilância e repressão das empresas estatais durante a Ditadura e o papel que cumpriram durante aquele período como parte do aparato de inteligência e repressão daquele regime.

Problemática: Marco teórico e analítico

O Golpe de Estado de 1964 instaurou a Ditadura Civil-Militar no Brasil, alterando as relações sociais, os vetores de desenvolvimento econômico e a participação das diversas classes sociais na distribuição do produto total da atividade econômica. Ademais, a Ditadura favoreceu um novo ciclo de acumulação do capital no país, marcado pela alta lucratividade do grande capital nacional e associado e pela redução da renda do trabalho, possibilitada através da política de arrocho salarial, instaurada já nos primeiros anos do regime, e pela redução, via repressão, de direitos trabalhistas e desarticulação de qualquer capacidade associativa que possibilitasse a reação dos trabalhadores diante dos múltiplos ataques dos quais eram alvo naquele novo quadro de relações sociais.

A historiografia precedente aos trabalhos da CNV, o vasto levantamento realizado pela Comissão, além de pesquisas desenvolvidas e estimuladas por ela, fornecem fartas indicações de que a ruptura política instaurada em 1964 contou, desde sua fase preparatória, com a cooperação entre agentes civis e militares. Entre os setores civis que cooperam para o sucesso do Golpe Civil-Militar, destacam-se grandes empresários, muitos dos quais auferiram benefícios econômicos durante a vigência do novo regime político - além da atuação do complexo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IPES-IBAD), que preparou as condições teóricas e ideológicas de unificação e coesão entre agentes civis e militares para a ativação da conquista do Estado; a atuação de entidades empresariais, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP); a participação ativa do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso na deposição de João Goulart, considerando que chancelaram o Golpe de 1964 (MELO, 2014MELO, Demian Bezerra de. “Civis que colaboraram com a ditadura”. In: COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (org.). Relatório. Brasília, DF: CNV, 2014. vol. 2, p. 313-328., p. 316), são alguns dos fatos mais relevantes para análise do período e que indicam uma articulação civil-militar com o propósito de instalar um regime político de exceção, caracterizado por forte repressão ao conjunto da classe trabalhadora. A repressão se voltou aos dirigentes e membros dos sindicatos e militantes políticos de esquerda por meio de prisões, torturas e assassinatos, entre outros métodos de terrorismo de Estado. A cooperação e articulação organizada entre setores civis e militares possibilitou a construção da ruptura institucional, tendo setores civis exercido protagonismo nessa fase através de potente campanha de desestabilização do governo Goulart, e depois para a consolidação daquela ditadura (MELO, 2016MELO, Wanderson Fabio de. “Processualidades do Golpe de Estado de 1964”. História Revista, Goiânia, vol. 20, n. 1, pp. 92-118, 2016.). “Entendemos, assim, que a ditadura não foi um fenômeno exclusivamente militar, embora as Forças Armadas tenham assumido posição frontal naquele regime” (MELO, 2014MELO, Demian Bezerra de. “Civis que colaboraram com a ditadura”. In: COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (org.). Relatório. Brasília, DF: CNV, 2014. vol. 2, p. 313-328., p. 314).

A repressão aos trabalhadores durante a Ditadura Civil-Militar

É importante contextualizar a dimensão decisiva da repressão aos trabalhadores na configuração do regime político instaurado com o Golpe de Estado de 1964. A aliança empresarial-militar buscou, desde a fase inicial do Golpe, neutralizar qualquer resistência praticada pelo movimento sindical. Vale notar que, embora os mecanismos corporativistas de controle do movimento sindical fossem ainda vigentes durante o período democrático de 1946 a 1964, o movimento sindical vivia um crescente de suas atividades, potencializado pela criação, em 1962, da Central Geral dos Trabalhadores CGT) (CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014., p. 3).

O objetivo de eliminar a resistência ao regime se evidencia quando se constata que, desde o primeiro dia do Golpe de Estado, os sindicatos foram alvo de repressão sistemática e implacável. A repressão veio a se sustentar em nova Lei de Greve, que, na prática, impossibilitava a realização delas (CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014., p. 16). Também é importante destacar que a repressão estatal ao movimento sindical se fez em cooperação com a repressão empresarial, e assumiu formas de terrorismo de Estado e civil - fatos que serão tratados no desenvolvimento deste artigo. De modo gradual, o Regime Civil-Militar estruturou um sistema de inteligência e espionagem, centralizado a partir do Serviço Nacional de Informações (SNI), articulado com os sistemas de informações das empresas públicas, como a Petrobras, e também com iniciativas organizadas por empresários, consorciados em articulações de âmbito local para a estruturação e cooperação no processo de repressão no interior das empresas. Muitas vezes, essas iniciativas se desenvolviam em cooperação com agentes da repressão estatal. A SNI também teve como objetivo a repressão e a neutralização da resistência da classe trabalhadora ao governo, especificamente na atividade sindical.

Para delimitar a dimensão da repressão militar ao movimento sindical, instaurada logo em seguida ao Golpe de Estado, vale registrar que, entre março e abril de 1964, iniciou-se um amplo movimento repressivo, caracterizado por intervenções em direções sindicais, depredações de sedes de sindicatos, cassação de dirigentes sindicais, prisões etc. Essas ações determinaram a prisão ou fuga de líderes sindicais.

Vale ainda acrescentar que, entre 1964 e 1970, cerca de 70% dos sindicatos com 5 mil ou mais filiados, 536 entidades sindicais, sofreram intervenção. O que indica o objetivo do Regime em desarticular a resistência dos trabalhadores nos segmentos mais fortes e organizados do sindicalismo (CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014., p. 6).

Como mencionado, a Ditadura de 1964 centralizou um sistema de informações articulado às estruturas repressivas organizadas no interior de empresas públicas. Paulatinamente estruturou-se uma rede de organismos repressivos no interior daquelas empresas, as quais promoveram a repressão preventiva ou reativa contra qualquer atividade de resistência, seja por interesses econômicos ou políticos. Foram reprimidas as greves, a participação em assembleias ou panfletagens, a organização de chapas de oposição nos sindicatos, sempre com o intuito de impedir que os sindicatos fossem controlados por segmentos de esquerda ou de oposição ao governo (BEDÊ, 2014BEDÊ, Edgard; TONOLLI, D. A. Relatório Final: Comissão Municipal da Verdade D. Waldyr Calheiro. Volta Redonda: [s. n.], 2014.; CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014.; MELO, 2014MELO, Demian Bezerra de.; HOEVELER, R. C. “Muito além da conspiração: Uma reavaliação crítica da obra de René Dreifuss”. Tempos Históricos, Cascavel, PR, vol. 18, pp. 13-43, 2014.).

Há registro de que na Zona Sul de São Paulo, empresários organizaram a Associação dos Departamentos de Recursos Humanos, através da qual eles cooperavam elaborando “listas sujas” de trabalhadores.

Também há registro de que ação empresarial semelhante foi organizada no no Vale do Paraíba, São Paulo, em 1983. Empresários da região organizaram o Centro Comunitário de Segurança (CECOSE), que compartilhava informações, especialmente sobre a atividade de dirigentes sindicais.

Além desses exemplos de estruturas empresariais de repressão da atividade sindical e de disciplinamento da mão de obra fabril, convém destacar o caso da Volkswagen, sobre o qual existe farta comprovação sobre a cooperação da empresa com o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) através do fornecimento de informações ao órgão repressivo.

Nas empresas públicas, formaram-se as Agências de Segurança Interna (ASI), que procediam a investigação, desde o processo seletivo e durante a vida funcional, do conjunto dos trabalhadores das empresas - isso será examinado a seguir, nos casos específicos das três empresas que conformam o objeto deste artigo. É importante notar que as ASI estavam relacionadas e articuladas com o SNI.

Na Petrobras é possível constatar a organização de um complexo sistema nacional de informações. A Divisão de Informações (DSI) da Petrobras foi responsável por um vasto processo de repressão fabril, cuja amplitude se exemplifica pela confecção, em 1964, de 131.277 fichas de controle político-social, cerca de 1,5 mil processos e 516 demissões.

Em 8 de abril de 1964 passou a funcionar, na Petrobras, uma Comissão Geral de Investigação (CGI), “organismo semelhante ao que seria instituído pelo Decreto nº 53.897/1964, visando centralizar investigações e demissões de servidores públicos [no âmbito] nacional” (CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014. p. 14).

Vale também destacar, para salientar a amplitude da repressão desencadeada no interior da Petrobras, desde o dia seguinte ao Golpe de Estado, que, até outubro de 1964, todos os sindicatos de trabalhadores da empresa sofreram intervenção. Sabe-se também que o Regime Civil-Militar infiltrou agentes nas unidades da empresa com o propósito de espionar os trabalhadores visados pelo Serviço Federal de Informação e Contra Informações (SFCI) (CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014., p. 15).

Convém observar que a Operação Bandeirantes (Oban), desenvolvida no estado de São Paulo, sob o comando do II Exército e com farto financiamento empresarial, adotou métodos de terrorismo de Estado, institui formas atrozes de tortura e toda uma logística, com feições paramilitares, para a repressão específica aos grupos de guerrilha urbana. Contudo, a Oban serviu como preâmbulo para a formação das estruturas do Departamento de Operações de Informação, Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), que também foi instrumento para a repressão à classe trabalhadora.

Trabalhadores brasileiros sofreram perseguições profissionais, demissões, prisões ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, assassinatos, ocultações de cadáveres, violações sexuais de trabalhadoras, espancamentos, foram arrastados de suas casas, detidos nos pátios de fábricas, vigiados, entre inúmeras formas de repressão e de terror estatal.

As prisões ilegais, sem nenhum respeito a formalidades legais, sem a expedição de mandados de prisão, sem comunicação ao judiciário, ocorriam nas próprias residências dos trabalhadores, em locais de trabalho ou durante manifestações políticas. Durante as greves, ocorreram prisões em massa. Quando detidos, trabalhadores sofreram espancamentos, eram enviados à cárceres insalubres, permaneciam muitas vezes incomunicáveis, sem poder buscar auxílio jurídico ou familiar.

Prisões em massa de trabalhadores ocorreram durante a Greve de Osasco, em 1968, quando centenas de trabalhadores foram presos. Também ocorreram prisões durante a Greve dos Metalúrgicos de Contagem, em 1968. Em 1975, o presidente do Sindicato dos Condutores de São Paulo “foi preso com quinze dirigentes do sindicato e quarenta membros da categoria, sendo torturado durante catorze dias no DOI- CODI”. Em 1979, a Greve dos Metalúrgicos de São Paulo sofreu severa repressão, com a invasão por agentes públicos das subsedes do sindicato, acarretando na prisão de centenas de trabalhadores - há registro de prisão de 334 trabalhadores. Em 1983, duzentos trabalhadores foram detidos durante a preparação da Greve dos Bancários de São Paulo (CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014.).

É relevante destacar que a prática de tortura era coetânea às prisões, tanto prisões individuais, como prisões em massa, com razoável regularidade.

No caso de prisões em massa, exemplifica a afirmação anterior, o caso específico da prisão de alguns membros da coordenação da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, sendo seus integrantes torturados em seguida pela equipe do delegado Paranhos Fleury. Também exemplifica, entre outros casos conhecidos, que não serão estudados nesse texto, o caso da prisão do presidente do Sindicato dos Condutores de São Paulo, detido com quarenta trabalhadores de sua base sindical, todos torturados no DOI-CODI (CUNHA, 2014CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. A luta dos trabalhadores por verdade, justiça e reparação: Relatório do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical (GT-13) da CNV. [S. l.: s. n.], 2014.).

Os casos de Petrobras, CSN e Itaipu

O caso da Petrobras

O Regime Civil-Militar brasileiro, e seu sistema de informações, vigilância e controle, contou com a colaboração de empresas privadas e com a organização de sistemas de controle em empresas públicas, como a Petrobras, conforme mencionado em partes anteriores deste artigo. Entre 2013 e 2014, a CNV investigou graves violações aos direitos humanos ocorridas durante a Ditadura. A Comissão levantou informações que comprovam variadas formas de cooperação entre empresas privadas com o governo militar, além das empresas públicas, como a Petrobras, o CSN, a Itaipu e a Embraer.

Vale notar que os dados sobre violações de direitos humanos de trabalhadores durante o Regime Civil-Militar foram pesquisados por treze grupos de trabalho, integrantes da CVM, com cada um desses grupos se dedicando a algum caso específico. O caso da Petrobras foi investigado pelo grupo Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e Movimento Sindical, composto por representantes de centrais sindicais brasileiras e coordenado pela advogada e professora Rosa Maria Cardoso Cunha.

Considerando-se a complexa estrutura de monitoramento, vigilância e repressão instituída no interior da Petrobras, vinculada aos órgãos repressivos nacionais - e também que esta estrutura provavelmente serviu de modelo para a organização de estruturas similares em empresas públicas -, é possível ressaltar a relevância do aprofundamento do conhecimento sobre a máquina repressiva instalada nessa empresa. Além da importância do conhecimento histórico e do resgate da memória sobre a repressão instaurada na empresa, a compreensão desse processo pode contribuir para futuras pesquisas históricas sobre a repressão aos trabalhadores em empresas públicas durante o Regime Civil-Militar, campo ainda pouco pesquisado e de grande importância.

Lucia Praun e Claudia Costa (2016) realizaram pesquisa sobre a estrutura de repressão instituída no interior da Petrobras durante a Ditadura, continuando às investigações iniciadas pelo grupo Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e Movimento Sindical, o qual pesquisou sobre a cooperação da empresa com aquele governo. A pesquisa foi realizada em 2016 e em cooperação com o Fórum de Trabalhadores pela Reparação. Praun e Costa realizaram, em 2013, pesquisa de material documental contido no acervo da Petrobras, disponibilizado por solicitação da CNV. Esse material foi digitalizado pelo Arquivo Nacional e está disponível para consulta desde 2013.

A pesquisa mencionada apresenta dados selecionados do referido acervo, e analisa algumas características fundamentais da estrutura de repressão instituída no interior da Petrobras. O Regime Civil-Militar, tão logo teve êxito o Golpe de Estado, iniciou as ações que buscavam assegurar o controle da empresa, neutralizando comportamentos, práticas ou ações coletivas reivindicativas ou de protesto que questionassem ou entabulassem resistência diante da nova ordem política instaurada. Antes de tudo, indicam as autoras, o esforço para impedir a atividade sindical e a influência política proeminente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) entre os trabalhadores da empresa.

Segundo a pesquisa, durante os dez primeiros anos, formou-se uma potente estrutura de repressão no interior da empresa, que, com o passar do tempo, complexificou-se, desenvolvendo articulações internas e externas com os órgãos de repressão do Estado. Essa estrutura começou a ser organizada já nos primeiros dias do Golpe e ganhou amplitude ao longo dos anos, atuando em cooperação com os diversos órgãos de informação do Regime e sob a coordenação do SNI.

Em 8 de abril de 1964 criou-se a Comissão Geral de Investigação (CGI), “com a missão de promover, de forma sumária, a limpeza da Petrobras” (PRAUN; COSTA, 2016PRAUN, Luci; COSTA, Claudia. “Pistas sobre a estrutura e as ações de repressão do Estado brasileiro no pós-1964 e sua configuração no interior da Petrobras”. Revista do Arquivo, São Paulo, n. 2, 2016.). A CGI realizou o levantamento de informações sobre 3 mil suspeitos, 1,5 mil processos de investigação. Como resultado de sua atividade, 516 trabalhadores da Petrobras foram demitidos em consequência da instauração de Inquéritos Policiais Militares (IPM).

A violenta repressão instaurada na Petrobras, desde de o início do Regime Civil-Militar, marcada pela investigação, intimidação e demissão de centenas de trabalhadores, não se restringe apenas às retaliações profissionais, que impediam a progressão profissional. Segundo Praun e Costa (2017, p. 6),

para desvendar as diferentes facetas do sistema montado pela ditadura no interior da empresa. Por trás dos nomes que compõem as listas, escondem-se, em diferentes graus, histórias de intimidações, perseguições, prisões, inclusive torturas.

Vale notar que as prisões, praticadas com certa regularidade, constituíam-se como parte dos procedimentos que compunham o processo de investigação.

Além das prisões, todos os sindicatos representativos de trabalhadores petroleiros sofreram intervenções. Dirigentes sindicais com mandatos cassados perderam a estabilidade e, em muitos casos, sofreram demissões sumárias.

A CGI encerrou suas atividades oficialmente em outubro de 1964, após realizar a limpeza inicial na empresa - centenas de demissões, intervenção em sindicatos e outras medidas repressivas. A estrutura repressiva, entretanto, continuou atuante durante os anos seguintes. Entre 1967 e 1968 ocorre uma nova onda repressiva, marcada por demissões, quando então já surgia a Divisão de Segurança e Informações (DIVIN). Registra-se que, desde 1965, já havia um diretor de segurança e informações da Petrobras.

Desde 1974 tem-se notícia de um organograma de segurança da Petrobras, no qual constavam as chamadas “SEREG” e chefias de segurança das unidades da empresa. As autoras afirmam que, em relação a 1974, já havia evidências de um sistema nacional de informações no interior da Petrobras, articulado interna e externamente com órgãos repressivos, como DOPS, e sob a coordenação do SNI, peça-chave da estrutura repressiva do Regime Civil-Militar. As SEREG e todo o sistema nacional de informação no interior da Petrobras estavam subordinados ao SNI (PRAUN; COSTA, 2017).

É possível notar, portanto, que a repressão iniciada na Petrobras, no dia seguinte ao Golpe, se desenvolveu ao longo dos anos, com o surgimento de um complexo sistema nacional de informações dentro da empresa, e que ele próprio se desenvolvia de maneira articulada ao desenvolvimento das próprias estruturas repressivas centrais da Ditadura.

As autoras também registram a presença, desde o Golpe de Estado de 1964, de infiltrados no interior da Petrobras. Eles eram provenientes de diferentes órgãos civis ou militares e desempenharam papel crucial para o funcionamento do aparato repressivo estruturado no interior da empresa. Os infiltrados também estiveram presentes nas entidades sindicais dos trabalhadores petroleiros.

Outra atividade repressiva desenvolvida na Petrobras foi a produção das “listas sujas”, como em outras empresas públicas e privadas.

Caso da CSN

Assim como o da Petrobras, o caso da CSN revela práticas que são comuns em muitos dos casos de violações de direitos humanos de trabalhadores. As direções das empresas colaboraram de diversas formas com as torturas, os desaparecimentos e as prisões de sindicalistas, entre outras práticas de controle, vigilância e repressão dos trabalhadores durante a Ditadura de 1964.

Abordaremos a seguir a estrutura de vigilância e controle atuante na CSN com base nas informações facultadas pela bibliografia consultada.

Considerada empresa estratégica na área de segurança nacional - de grande importância econômica no desenvolvimento regional e pelo grande contingente de trabalhadores -, suas atividades impactavam não apenas a cidade de Volta Redonda, Rio de Janeiro, sede da usina siderúrgica, mas em toda a região do Médio Paraíba, no Sul Fluminense.

As atividades da ASI da CSN controlaram e vigiaram tanto os trabalhadores da empresa quanto os familiares deles e a população da região do Médio Paraíba. A ASI da CSN era ela também um braço do SNI no interior da empresa2 2 A partir de 1977, o Serviço Nacional de Informações (SNI) passou a ter um de seus “braços” operando continuamente no interior da usina Presidente Vargas, pelo menos até 1991. Tratava-se da Assessoria de Segurança e Informações da Companhia Siderúrgica Nacional (ASI-CSN), vinculada ao Departamento de Segurança e Informação (DSI) do Ministério da Indústria e Comércio. A ASI-CSN atuou em estreita proximidade com o braço armado do Estado na repressão às mobilizações e greves protagonizadas pelos operários da CSN ao longo das três décadas em que perdurou a Ditadura (CAAF-UNIFESP, 2023, p. 87-88). (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 87).

Antes de tratar da especificidade do caso da vigilância, controle e repressão operária desenvolvida pela direção da CSN, em colaboração com os órgãos de informação e repressão da ditadura, podemos afirmar que, assim como no caso da Petrobras, a CSN colaborou com a ditadura a partir de troca de informações para a produção de “listas sujas”, para a intervenção dos órgãos estatais no sindicato que representava os trabalhadores da empresa, para IPM, os quais determinavam a demissão, ou prisão, de trabalhadores, entre outras práticas.

Entre as fontes consultadas para esta seção, está o relatório da Comissão Municipal da Verdade (CMV) de Volta Redonda, concluído em 2013.

É importante notar que, em Volta Redonda, não houve atuação de grupos guerrilheiros, isto é, não houve luta armada (ASSIS, 2021ASSIS, Lúcia Maria de. “O trabalho da memória pela Comissão da Verdade em Volta Redonda: Entrevista com o historiador Edgar Bedê”. Revista Entreletras, Araguaína, TO, vol. 12, n. 1, jan./abr. 2021., p. 229). Toda a resistência ao Regime Civil-Militar na cidade se caracterizou pela forma pacífica de atuação. Trabalhadores da empresa, foram alvo de incriminação dentro da esfera da doutrina de segurança nacional.

A pesquisa desenvolvida pela CMV de Volta Redonda levantou dados que comprovam prisões, torturas, sequestros, demissões e perseguições. O Regime e a empresa, em cooperação, reprimiram atividades da oposição sindical, atividades culturais, manifestações políticas, imprensa crítica ao regime etc. A repressão ao sindicalismo constitui um aspecto relevante no caso da CSN uma vez que os trabalhadores da empresa já desenvolviam fortes atividades sindicais antes do Golpe de 1964, e também porque desenvolveram greves ao longo da Ditadura, incluindo uma sequência de greves com ocupação operária da usina, tanto na fase final do governo dos militares quanto na transição à democracia.

Consultando o relatório da CVM de Volta Redonda, temos a informação de que centenas de trabalhadores foram demitidos, dezenas deles presos. No quartel do batalhão do Exército em Barra Mansa, em 1969, construíram uma instalação afastada, para a prática de tortura, local conhecido como “Arquivo”. Também havia uma prisão solitária, sem luz.

Ali, dezenas de jovens foram covardemente torturados por equipes treinadas de militares do serviço secreto do Exército. As sessões de tortura eram tapas na cara, choques elétricos, pau de arara, [entre] outros. Em casos mais perversos ainda, houve chicoteamento, palmatórias, espancamentos mortais e esmagamento de crânio em torno mecânico, além de ocultação de cadáveres com esquartejamento de cabeça e incêndio de corpo (ASSIS, 2021ASSIS, Lúcia Maria de. “O trabalho da memória pela Comissão da Verdade em Volta Redonda: Entrevista com o historiador Edgar Bedê”. Revista Entreletras, Araguaína, TO, vol. 12, n. 1, jan./abr. 2021., p. 230).

Centenas de sindicalistas condenados como subversivos e demitidos sem nenhum direito trabalhista caíram no desamparo, pois, por terem seus nomes nas “listas sujas”, não conseguiam novos empregos.

Além de que muitos foram presos pela polícia privada da CSN, apelidada de “Gestapo”, e entregues ao Exército. Essa “Gestapo” elaborou fichas secretas dos ativistas sindicais vigiados dentro e fora da usina, formando um dossiê chamado Arquivo sujo, que serviu de base para identificar, localizar e efetivar as prisões dos ativistas no [Ato Institucional nº 1] AI-1 (1964) e AI-5 (1968). Por fim, a Usina Siderúrgica, na greve operária de 1988, foi local dos assassinatos covardes de três operários por tropas do Exército, armadas de tanques de guerra, canhões, metralhadoras antiaéreas, fuzis, granadas, que haviam invadido a usina numa verdadeira operação de guerra para tentar acabar com a greve (ASSIS, 2021ASSIS, Lúcia Maria de. “O trabalho da memória pela Comissão da Verdade em Volta Redonda: Entrevista com o historiador Edgar Bedê”. Revista Entreletras, Araguaína, TO, vol. 12, n. 1, jan./abr. 2021., p. 230).

A estrutura repressiva da CSN

Antes de abordar as informações específicas sobre a estrutura de controle e vigilância da CSN, é necessário trazer algumas informações sobre a história da empresa, que surgiu algumas décadas antes do Golpe de 1964, para que seja possível, a observação sobre a evolução dessa estrutura e sua consolidação, além das características que assumiu durante o período da Ditadura.

A CSN foi fundada em 1941, como parte estratégica do projeto nacional desenvolvimentista de Getúlio Vargas. A grande usina siderúrgica teve sua concepção inspirada no modelo de company town [cidade/vila operária]. A empresa construiu e concedeu moradias aos operários, suprimindo a necessidade de mão de obra da usina em uma região de perfil rural e que receberia trabalhadores migrantes para trabalhar na usina. Esse modelo foi acompanhado de um dispositivo de controle e disciplinamento dos trabalhadores e seus familiares. O controle e a vigilância dos trabalhadores era responsabilidade do Departamento de Segurança da Usina (DSU), em cooperação com o Exército brasileiro, primeiro por meio do I Batalhão de Infantaria Blindada (I BIB), entre 1950 e 1973, e, depois, do XXII Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército (XXII BIMtz), entre 1973 e 1999 (GRACIOLLI, 1997GRACIOLLI, Edílson José. Um caldeirão chamado CSN: Resistência operária e violência militar na greve de 1988. 1997. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 1997.; MOREL, 1989MOREL, Regina L. M. A ferro e fogo: Construção e crise da “Família Siderúrgica”: o caso de Volta Redonda (1941-1988). 1989. Tese (Doutorado em Sociologia) -Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.).

É possível notar que os trabalhadores da usina e seus familiares, e a própria cidade de Volta Redonda - a qual surge e se torna uma cidade emancipada em decorrência da instalação da usina - já eram objeto de vigilância de estrutura especializada da empresa, em colaboração com o Exército brasileiro. Existia uma dinâmica de vigilância aos trabalhadores que precedeu o Golpe de 1964. No entanto, o controle e a vigilância dos trabalhadores se amplifica e ganha novas características a partir do Golpe, quando surgem práticas explícitas de violações aos direitos humanos dos trabalhadores, seus familiares e a qualquer indivíduo considerado “suspeito” pela Ditadura.

Em 2023 foi publicado o informe público do projeto A responsabilidade de empresas por violações aos direitos durante a ditadura, coordenado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp). Há nele um capítulo sobre o caso da CSN. Trata-se de extenso levantamento de dados sobre a violação de direitos humanos, que envolve a atuação da CSN no período da Ditadura de 1964. Tanto no projeto quanto no Relatório da Comissão da Verdade de Volta Redonda, de 2013, encontramos indicações sobre a relação do Exército brasileiro, com a estrutura de vigilância, controle e disciplinamento da CSN, desde antes do Golpe de 1964, assim como em outras fontes bibliográficas que não tratam especificamente da violação de direitos humanos dos trabalhadores durante aquele período.

A ligação entre CSN e Forças Armadas pode ser comprovada por meio de diversos documentos identificados pela pesquisa. A relação orgânica entre ambas se estabeleceu desde a formulação e a implementação do primeiro Plano Siderúrgico Nacional, ainda sob o Estado Novo, e da formação de um complexo militar estatal nas décadas de 1950 e 1960 (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 86).

A repressão aos trabalhadores no Golpe de 1964

A informação sobre a estrutura de controle e vigilância, que existia antes do Golpe de 1964, sugere um dos fatores que possivelmente permitiram a direção da empresa se preparar com antecedência para reprimir qualquer reação sindical organizada dos trabalhadores da CSN ao Golpe.

As investigações dão notícias do posicionamento favorável ao Golpe de 1964 por parte da direção da empresa, que garantiu as condições necessárias para que ele fosse bem-sucedido na região Sul Fluminense. Coordenado com o Comando Militar da região, foi estabelecido com antecedência o Plano de Segurança da Usina, ainda em março de 1964, como veremos adiante. O Plano evidencia a organização de empresas estatais estratégicas, como a CSN, na contenção de uma eventual reação às forças golpistas, oferecendo claras instruções aos supervisores e chefes de departamentos em caso de “perturbação da ordem” (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 87).

A repressão aos trabalhadores da usina teve início no dia seguinte ao Golpe, quando, em 1º de abril de 1964, a direção do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda foi para a entrada da usina realizar piquete, buscando adesão para um movimento grevista de resistência.

A resposta dos militares e dos empresários se deu através de repressão imediata, realizada pelo I BIB. Ainda assim, o sindicato conseguiu paralisar dois setores importantes da usina, “a Fábrica de Estruturas Metálicas (FEM) e o Departamento de Recuperação de Material (CRM), este último sendo o departamento que [tinha] alta concentração de mão de obra qualificada da usina. (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 91).

A CSN produziu uma lista de trabalhadores envolvidos na greve, subsidiando a futura demissão de 72 operários e a aposentadoria compulsória de doze deles. Ademais, “mesmo depois da Lei de Anistia (1979), não houve reintegração desses trabalhadores ao quadro de funcionários ativos” (CAAF-Unifesp, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 92). Volta Redonda foi cercada pelo I BIB, o sindicato foi invadido pelo Exército. Ainda em abril, abriu-se IPM, que levou à destituição da direção do sindicato e detenção de seus membros.

A repressão aos trabalhadores da CSN em 1968

Em 1968, em um contexto de retomadas de lutas sindicais no país, desatou-se uma nova onda de repressão em Volta Redonda contra o movimento sindical. Essa repressão culminou com a prisão dos membros da diretoria, democraticamente eleita, do sindicato dos metalúrgicos daquela cidade. A história da Chapa Azul, que teve uma primeira vitória eleitoral cassada pelos órgãos de regulação estatal da Ditadura, e venceu novamente em uma segunda eleição, é exemplar da implacável perseguição da Ditadura ao sindicalismo independente em Volta Redonda. O informe público do projeto Violação dos direitos humanos por empresas durante a Ditadura pode ser consultado para maior conhecimento (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

Vale notar, que,

no contexto do AI-5, em 1968, teve lugar nova onda de perseguições políticas a lideranças sindicais. Por ocasião das eleições do Sindicato dos Metalúrgicos[, em] 1968, temos notícias do monitoramento sistemático realizado pela direção da Usina, em conjunto com o I BIB, dos candidatos de uma das chapas que concorriam às eleições, a Chapa Azul (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 96).

Em 1968, houve, portanto, uma intensificação da perseguição política a lideranças sindicais. As pesquisas indicam uma intensificação das práticas de perseguição política, prisões massivas de ativistas sindicais e de “suspeitos” de práticas subversivas. Naquele ano foi instaurado o AI-5, contexto em que houve maior investimento de recursos na estrutura repressiva do I BIB, que atuava em colaboração com a estrutura de controle e vigilância da CSN. As práticas repressivas e de violação dos direitos humanos aumentaram durante aquele período.

No contexto do AI-5, podemos comprovar um maior investimento na estrutura repressiva do I BIB, o que culminou na prática sistemática de torturas de trabalhadores e outras lideranças da região Sul Fluminense. Uma série de outras prisões tiveram lugar no contexto do [AI-5]. O ano de 1968 havia sido, como vimos, um ano de fortes mobilizações operárias, que culminou com a vitória da Chapa Azul nas eleições para o Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, sob intervenção desde 1964 (CAAF-Unifesp, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 8).

A repressão aos trabalhadores da CSN durante as greves dos anos 1980

Depois de mais de uma década, os trabalhadores da CSN retomaram as lutas sindicais de maior escopo. Em 1979 ocorreu uma greve na CSN, de trabalhadores terceirizados, conhecida como Greve dos Peões. Em 1983, uma chapa sindical identificada com o Novo Sindicalismo é eleita para a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda. Verifica-se um crescimento das lutas sindicais no contexto da abertura política, período final da Ditadura. Ocorreram greves na CSN em 1984, 1986 (duas greves), 1987 e 1988 (ASSIS, 2021ASSIS, Lúcia Maria de. “O trabalho da memória pela Comissão da Verdade em Volta Redonda: Entrevista com o historiador Edgar Bedê”. Revista Entreletras, Araguaína, TO, vol. 12, n. 1, jan./abr. 2021.; CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

Todas elas, mesmo durante a redemocratização, foram vigiadas pela ASI da CSN. Aquelas mobilizações políticas dos sindicatos deram ensejo a intervenções militares, sendo o caso mais conhecido o da Greve de 1989, quando ocorreram os três assassinatos de trabalhadores no interior da usina em decorrência da ação do Exército. Como decorrência da Greve de 1987, 28 trabalhadores foram demitidos, 13 foram presos por ação do XXII BIMtz de Barra Mansa, Rio de Janeiro (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

A Greve de 1988 ocorreu em uma fase de inflação e arrocho salarial, quando, em todo Brasil, havia “mais de 1 milhão de trabalhadores de braços cruzados, em diferentes setores e cidades” (SANTANA, 2006-2007SANTANA, Marco Aurélio. “Da plenitude ao vazio na Cidade do Aço: Memórias dos movimentos sociais em Volta Redonda (1980-1990)”. In: Revista de História Oral, Rio de Janeiro, vol. 9, 2006-2007., pp. 97-98). A Greve ocorreu durante um governo civil, sob a presidência de José Sarney.

A Greve foi violentamente reprimida pelo Exército, que invadiu a usina para expulsar os operários que o ocupavam a planta industrial, causando o assassinato de três trabalhadores.

No dia 9 de novembro de 1988, tropas do Exército invadiram a CSN para expulsar os grevistas, recorrendo ao uso de munição letal. A ação terminou com o assassinato de três operários: Carlos Augusto Barroso, que teve o crânio esmagado a pancadas, Walmir Freitas Monteiro e William Fernandes Leite, atingidos por balas de fuzil (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 102).

Sobre a participação da ASI da CSN na repressão à Greve de 1988, pesquisadores colheram relatos de trabalhadores que apontam para o chefe da ASI da CSN como personagem central na direção das ações repressivas. Além disso, trabalhadores relatam que a direção da usina fazia uso da infiltração de agentes entre os operários para o levantamento de informações úteis para as ações repressivas. (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

A ação militar no interior da usina foi precedida por corte de abastecimento de água e corte de luz em recintos onde os trabalhadores poderiam buscar abrigo, o que sugere a colaboração da direção da empresa com o Exército para o êxito da invasão.

Os depoimentos dos trabalhadores envolvidos nas atividades de greve a partir de 1984 são enfáticos em apontar a figura do chefe da ASI da CSN como figura central nas perseguições sofridas. Além da forte vigilância e dos relatos a respeito dos infiltrados. O momento da prisão oferece provas contundentes das violações ocorridas no contexto das greves, em especial no interior da usina.

Como procuramos demonstrar nesta seção, a CSN dispunha de intrincada estrutura de controle e vigilância, que, durante o período da Ditadura, aprofundou a cooperação com as forças do exército na região Fluminense, cooperação que já existia desde a construção da usina, nos anos 1940, durante o Estado Novo. Essa estrutura interna de segurança cooperava também com órgãos de informação dos militares. A ASI da CSN, surgida em meados dos anos 1970, era como uma representação do SNI dentro da empresa.

A estrutura de segurança que existia antes, centralizada na DSU, foi preservada e cumpria uma “divisão de tarefas” com a ASI. De acordo com o relatório da Comissão da Verdade de Volta Redonda, houve “uma articulação e uma divisão social” da responsabilidade de ambos os organismos em violações: “A ASI era a Inteligência e o DSU a Operação de Campo” (VOLTA REDONDA, 2015, p. 444 apud CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

Ao longo de toda a Ditadura, a empresa colaborou com os órgãos de informação e repressão do Estado, sendo copartícipe de práticas de violações de direitos humanos de trabalhadores da empresa, além de familiares e moradores de Volta Redonda, bem como de toda a região Sul Fluminense. Ademais, contribui para a repressão de movimentos sociais da região, em especial de segmentos da Igreja católica, que, sob a liderança do bispo emérito da diocese de Barra do Piraí, Volta Redonda, eram solidários e contribuíam para a resistência dos trabalhadores da usina.

O caso de Itaipu

O estudo da bibliografia existente sobre o caso de Itaipu também indica a existência de uma importante e extensa estrutura interna de vigilância e controle dos trabalhadores que cooperavam com órgãos de inteligência e repressão da Ditadura. Assim como na Petrobras e CSN, verifica-se a existência de assessorias internas de informações, que constituíam o principal sustentáculo do sistema de controle e vigilância dos trabalhadores, submetido diretamente à direção da empresa. Essas assessorias se comunicavam e trocavam informações com órgãos repressivos da Ditadura, mas, no caso de Itaipu, sugere a bibliografia, poderiam estar vinculadas também ao terrorismo de Estado transfronteiriço (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.; CAMPOS, MOTTA BRANDÃO, 2023CAMPOS, Pedro Henrique; MOTTA BRANDÃO, Rafael Vaz da. “A construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a ditadura: Violações de direitos e favorecimento a grandes grupos econômicos”. Projeto História, São Paulo, vol. 77, pp. 7-34, maio/ago., 2023.; SILVA, 2010SILVA, J. da. A Usina de Itaipu e a Operação Condor: O outro lado das relações Brasil-Paraguai (1973-1987). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.), no qual se trocavam informações com os órgãos repressivos da Argentina e do Paraguai, possivelmente no âmbito da Operação Condor. Antes de apresentar informações relevantes sobre o controle e vigilância em Itaipu Binacional, apresentamos a seguir informações sobre a empresa, a dimensão do empreendimento e sua construção.

Processo de construção de Itaipu

Itaipu Binacional foi o maior empreendimento de infraestrutura da Ditadura, e, mesmo sendo fruto de acordo entre Brasil e Paraguai, baseado em princípios de equivalência, a construção da usina e o resultado final do acordo evidenciam a prevalência dos interesses brasileiros, como veremos a seguir.

A construção de Itaipu se desenvolve a partir do Tratado de Itaipu, celebrado entre a ditadura brasileira e a paraguaia, em 26 de abril de 1973. No entanto, esse tratado foi precedido de longo período de negociação, envolvendo tensões geopolíticas entre países da bacia hidrográfica do rio Paraná (Brasil, Paraguai e Argentina).

Quando entrou em funcionamento, a Usina ostentou o título de maior usina hidrelétrica do mundo. Com capacidade instalada de 14 mil mW, hoje é a segunda maior usina hidrelétrica do mundo, atrás da chinesa Três Gargantas.

A ideia de uma usina hidrelétrica no rio Paraná surgiu na década de 1950. Em 1953, a Comissão Interestadual da Bacia do Paraná-Uruguai (CIBPU), recém-formada, começou a desenvolver estudos sobre o potencial hidrelétrico da região. O governo de João Goulart encomendou a um escritório de engenharia estudos para a construção de uma usina hidrelétrica em território brasileiro, tendo inclusive recebido proposta de assessoria técnica da União Soviética. A usina brasileira, caso construída em Sete Quedas, produziria impactos a jusante no rio Paraná, afetando a navegabilidade e o potencial hidrelétrico nas partes do rio margeadas por Paraguai e Argentina. A ditadura paraguaia, liderada por Alfredo Stroessner, descontente com o projeto de uma usina brasileira em Sete Quedas, procurou o governo dos Estados Unidos, apresentando suas reclamações (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

Após o Golpe de 1964, o embaixador brasileiro no Paraguai, Mário Gibson Barbosa, designado pelo governo de Castelo Branco, foi recebido na embaixada em Assunção sob protestos populares e com a queima da bandeira brasileira. Gibson Barbosa relatou o clima de tensão na fronteira e a iminência de um conflito militar entre os dois países. Diante daquela situação, o Regime brasileiro aceitou a proposta da criação de uma usina binacional, brasileira e paraguaia, e assinou a Ata de Iguaçu, acordando a construção de uma usina binacional, cuja eletricidade gerada seria dividida igualmente entre as duas nações.

Em 1973 foi assinado o Tratado de Iguaçu e a obra da usina teve início em 1975, sendo inaugurada em 1984. A operação comercial da usina teve início em 1986.

Sobre as tensões geopolíticas geradas pela construção da usina envolvendo reclamações da Argentina, solicitou-se o Acordo Tripartite, de 1989. A altura da usina de Itaipu foi reduzida para atender os pleitos argentinos.

A construção da usina de Itaipu

A obra de Itaipu foi o maior empreendimento de infraestrutura da Ditadura brasileira. Além de violações aos direitos humanos de trabalhadores, produto das ações de controle e vigilância da empresa sobre os trabalhadores, objeto específico do presente artigo, também foram ocasionadas violações de direitos humanos das populações rurais e indígenas das áreas impactadas pela construção da usina e da inundação na formação do lago artificial. “Foram perdidos 100 milhões de hectares, ou 1,35 km2, em 8.919 propriedades, sendo 6.913 rurais e 1.600 urbanas” (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.)

Proprietários e posseiros viram a alteração drástica de suas condições de vida. Populações indígenas foram obrigadas a migrar, pescadores perderam a viabilidade de seu meio de vida. Todo o processo tenso de reassentamento de proprietários rurais e posseiros foi também vigiado pelas assessorias de segurança interna de Itaipu, as mesmas que faziam a vigilância e controle dos trabalhadores (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.; CAMPOS, MOTTA BRANDÃO, 2023CAMPOS, Pedro Henrique; MOTTA BRANDÃO, Rafael Vaz da. “A construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a ditadura: Violações de direitos e favorecimento a grandes grupos econômicos”. Projeto História, São Paulo, vol. 77, pp. 7-34, maio/ago., 2023.; SILVA, 2010SILVA, J. da. A Usina de Itaipu e a Operação Condor: O outro lado das relações Brasil-Paraguai (1973-1987). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.). Devido a dimensão da obra, a mão de obra mobilizada para a construção da usina, composta por trabalhadores brasileiros e paraguaios, foi vultosa. No auge da obra, cerca de 40 mil trabalhadores estavam dedicados à construção da usina.

Para abrigar esta mão de obra, 9 mil moradias provisórias foram construídas. Entre “1975 e 1979, um total de onze vilas habitacionais [foram construídas] no Brasil e no Paraguai, além do alojamento localizado no canteiro”. “As vilas foram locais onde ocorreram as primeiras assembleias e a formação dos sindicatos, em meio ao processo de redemocratização, nos anos 1980 (GERALDO, 2022 apud CAMPOS, MOTTA BRANDÃO, 2023CAMPOS, Pedro Henrique; MOTTA BRANDÃO, Rafael Vaz da. “A construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a ditadura: Violações de direitos e favorecimento a grandes grupos econômicos”. Projeto História, São Paulo, vol. 77, pp. 7-34, maio/ago., 2023.).

As pesquisas de Campos e Motta Brandão (2023)CAMPOS, Pedro Henrique; MOTTA BRANDÃO, Rafael Vaz da. “A construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a ditadura: Violações de direitos e favorecimento a grandes grupos econômicos”. Projeto História, São Paulo, vol. 77, pp. 7-34, maio/ago., 2023. indicam que um forte controle era exercido sobre todos os aspectos das vidas dos operários, não apenas o trabalho, mas todas as dimensões da vida cotidiana. O controle nas vilas operárias era exercido pelas assessorias internas de segurança (AESI) e por seguranças do consórcio Unicon, das empreiteiras que participaram da construção da usina.

A vigilância e o controle operário em Itaipu

Essas Assessorias [Especiais de Segurança e Informação (AESI) de Itaipu] constituíram-se como um braço da repressão no Brasil e no Paraguai, bem como da Operação Condor. Durante o período analisado, elas tiveram o papel de espionar e emitir relatórios sobre os trabalhadores de Itaipu, bem como de quaisquer pessoas que fossem consideradas suspeitas na região da Tríplice Fronteira.

Silva (2020, p. 9)

As fontes consultadas indicam a existência de uma estrutura de controle e vigilância sob o enorme contingente de trabalhadores durante a realização da obra. Essa estrutura tinha como centro de suas atividades as AESI, tanto no território brasileiro e paraguaio. As AESI eram centralizadas por uma coordenação geral de assessorias, sob o controle direto da direção de Itaipu, a qual era composta por dois diretores da empresa (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

Todo o monitoramento tinha a ciência, participação e conhecimento da direção da Itaipu e de órgãos superiores do Estado brasileiro. A sistematização destes dados era remetida às AESI, que verificavam se poderiam ou não continuar no trabalho. […] Há, portanto, indícios da produção das chamadas “listas sujas” (que impedem [a] reinserção [dos operários] no mercado de trabalho) (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 209).

Essa estrutura de segurança interna, assemelhada em seus aspectos gerais as existentes naquele período na Petrobras e CSN, mas, com atuação muito singular devido à história de cada empresa, ao caráter binacional de Itaipu, as singularidades do coletivo de trabalhadores em cada uma dessas empresas, entre outras razões que serão apresentadas a seguir, era concomitante à existência de uma estrutura de segurança do consórcio Unicon. O consórcio mantinha uma agência de segurança física, que atuava no canteiro de obras e nas vilas operárias. Existem evidências da prática de violência física contra trabalhadores por indivíduos da segurança das empreiteiras, sendo registrado ao menos um caso que culminou no assassinato de um trabalhador (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.; CAMPOS; MOTTA BRANDÃO, 2023CAMPOS, Pedro Henrique; MOTTA BRANDÃO, Rafael Vaz da. “A construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a ditadura: Violações de direitos e favorecimento a grandes grupos econômicos”. Projeto História, São Paulo, vol. 77, pp. 7-34, maio/ago., 2023.). Também se registrou, no cotidiano das atividades produtivas, que a gestão das atividades laborais contava com os “fiscais” e “feitores” de obra, funcionários dedicados ao controle de toda a disciplina do trabalho, dos horários, dos turnos, do uso de equipamentos etc. (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

Trataremos agora da função das AESI de Itaipu. A Ditadura brasileira entendia o controle dos trabalhadores como uma necessidade para a “segurança nacional”. Considerava ser necessário obliterar atividades associativas ou reivindicativas dos trabalhadores, limitar as possibilidades de organização sindical, controlar e levantar informações sobre cada indivíduo daquela vultosa massa de trabalhadores mobilizados para a construção da obra, enfim, impedir a “ameaça comunista”, em conformidade com a doutrina de segurança nacional.

No entanto, além da produção de informações para a vida pregressa dos trabalhadores e para a efetivação do controle e vigilância, as AESI atuavam como órgãos de espionagem, cuja atuação extrapolava o território da usina.

No escopo de suas atividades, as AESI realizavam a vigilância sobre a vida pregressa dos trabalhadores recrutados, reuniam enorme quantidade de fichas sobre os trabalhadores, com informações sobre o local de origem e a vida laboral anterior, alicerçavam um sistema de controle e vigilância fabril que englobava não apenas a vigilância da realização das atividades laborais, mas todas as dimensões da vida cotidiana dos trabalhadores de Itaipu, incluindo o lazer. Ela cooperavam com órgãos de informação da Ditadura por meio da troca de informações, como o SNI, o DOPS, o Centro de Inteligência do Exército (CiEx), entre outros. Também participavam da intrincada colaboração entre as ditaduras militares do Cone Sul, alguns autores concluem que teriam inclusive cooperado com a Operação Condor. Além disso, reuniam informações que contribuíam para a repressão sindical, como duas greves que se desenvolveram em Itaipu após o renascimento do sindicalismo brasileiro.

A seguir, apresentaremos algumas informações levantadas no material consultado que contribuem para a compreensão sobre como os trabalhadores de Itaipu foram controlados duplamente: com a mão de ferro do Estado e pelas próprias empreiteiras (SILVA, 2010SILVA, J. da. A Usina de Itaipu e a Operação Condor: O outro lado das relações Brasil-Paraguai (1973-1987). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.). Trataremos também acerca do papel das AESI na troca de informações entre os órgãos de informação e de repressão das ditaduras brasileira e paraguaia.

A produção de “listas sujas”, verificadas em Itaipu, foi prática comum durante a Ditadura, tanto por empresas estatais quanto privadas. Isso também foi realizado pelas assessorias de segurança da Petrobras e CSN.

Itaipu era considerada pelos militares brasileiros e paraguaios como possível alvo de sabotagens por organizações clandestinas de oposição. Em razão de sua importância estratégica e simbólica - era então a maior usina do mundo -, os governos militares consideravam a necessidade de uma vigilância extrema contra o risco de sabotagem. Deve-se considerar também a localização geográfica de Itaipu, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. A repressão da Ditadura paraguaia ocasionou um êxodo de paraguaios para a Argentina, o que preocupava a ditadura deste país. As informações coletadas pelas AESI de Itaipu, sediadas no Brasil e no Paraguai, contribuíram para o controle daqueles indivíduos por parte da Ditadura argentina.

As contratações em Itaipu eram diárias e as AESI não conseguiam produzir as fichas de todos trabalhadores imediatamente. Dada a diversidade de origem dos operários de Itaipu, no caso dos brasileiros, o maior contingente, oriundo de diversos estados do país, as AESI de Itaipu buscavam informações sobre a vida pregressa deles em órgãos públicos de seus estados de origem.

Dada a diversidade das origens, a obtenção das informações exigiu a construção de ramificações extensíssimas de órgãos de repressão, pois possivelmente eram enviados pedidos de informações sobre esse operário para cada local de origem do trabalhador (SILVA, 2010SILVA, J. da. A Usina de Itaipu e a Operação Condor: O outro lado das relações Brasil-Paraguai (1973-1987). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 137).

As “listas sujas” eram utilizadas para evitar recontratação de trabalhadores, pelas diversas empreiteiras responsáveis pela obra e pelas empresas terceirizadas que prestavam serviço em Itaipu.

Sobre o controle exercido na vida cotidiana, mencionamos a atuação policial de guardas das empreiteiras e do consórcio Unicon no interior das vilas operárias. Há relatos que as empresas e o consórcio realizaram esse tipo de controle. As fontes também indicam que os guardas do Unicon se tornaram donos de prostíbulos em Foz do Iguaçu, frequentados por operários da usina (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023.).

Outro exemplo sobre o controle cotidiano dos trabalhadores, que destacamos do conjunto da bibliografia pesquisada, trata-se do controle dos trabalhadores no momento de suas refeições.

Um ex-funcionário do consórcio Unicon explica que, na hora do almoço, quando os funcionários da obra iam ao refeitório, ao entrarem nos ônibus que os conduziriam a esse lugar, havia sempre guardas da Binacional para acompanharem as filas, de forma que não houvesse tumulto. […] Nestas entrevistas realizadas por Manarin, um dos trabalhadores, de nome Ademar, explica que os guardas não entravam nos ônibus, controlando as filas apenas do lado de fora, pois “se ‘pusesse um segurança aí dentro eles acabavam com ele. O coro comia’” (SILVA, 2010SILVA, J. da. A Usina de Itaipu e a Operação Condor: O outro lado das relações Brasil-Paraguai (1973-1987). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 137).

A repressão à luta sindical e ao associativismo se apresenta em todos os aspectos de controle e vigilância mencionados anteriormente. O controle e a repressão nas vilas, onde ocorrem as primeiras assembleias sindicais, a vigilância no processo de trabalho, na vida cotidiana, nos refeitórios, a busca de informações sobre supostos “agitadores”, que perdiam seus postos de trabalho, entre outras práticas, tudo isso contribuindo para coibir qualquer forma de organização independente dos trabalhadores.

Nesse aspecto específico, nota-se o papel das AESI, na repressão de duas greves, que ocorreram em Itaipu, a primeira em 1975 e a segunda em 1987. A Greve de 1975 ocorreu em um contexto inflacionário, de arrocho salarial, que mais à frente, impeliria os trabalhadores em todo o país a retomar as greves no final dos anos 1970. “Acompanhando tal movimento, ou mesmo alheio a ele e a partir de seus próprios problemas, a Greve de 1975 foi controlada principalmente pela AESI do Paraguai” (SILVA, 2010SILVA, J. da. A Usina de Itaipu e a Operação Condor: O outro lado das relações Brasil-Paraguai (1973-1987). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.).

Apesar desse movimento ter sido vasculhado e acompanhado pela AESI do Paraguai, os documentos consultados por Silva (2010)SILVA, J. da. A Usina de Itaipu e a Operação Condor: O outro lado das relações Brasil-Paraguai (1973-1987). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. indicam a presença regular de agentes brasileiros na AESI do Paraguai. A AESI do Paraguai se antecipou à greve, repassando informações sobre a movimentação para uma ação grevista, tanto para a Binacional quanto para empresas privadas envolvidas com a obra. A greve provocava temor na Ditadura, que a criminalizou e a tratou dentro dos parâmetros da doutrina de segurança nacional.

Em 1987, em plena retomada do movimento sindical brasileiro, a partir do Novo Sindicalismo, no final dos anos 1970, encontramos o registro de outra greve em Itaipu, também monitorada pela AESI, movimento reprimido pelo Exército brasileiro, com o deslocamento de tanques de guerra para o interior da usina (CAMPOS; MOTTA BRANDÃO, 2023CAMPOS, Pedro Henrique; MOTTA BRANDÃO, Rafael Vaz da. “A construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a ditadura: Violações de direitos e favorecimento a grandes grupos econômicos”. Projeto História, São Paulo, vol. 77, pp. 7-34, maio/ago., 2023.).

A Greve de 1987 contou com a adesão de 95% dos trabalhadores e ocorreu no dia em que os presidentes do Brasil e do Paraguai visitariam a usina para inaugurar as novas turbinas. A documentação investigada sobre a atuação da AESI de Itaipu fornece informações sobre a intensa cooperação dos órgãos de vigilância da usina com órgãos repressivos do Estado e o repasse de informações que contribuíram para a intervenção do exército no local.

Conclusão

O presente artigo se dedicou a reunir informações disponibilizadas em pesquisas, artigos, teses e dissertações, trabalhos da CNV e de CV estaduais acerca da colaboração de empresas estatais com a ditadura civil militar instaurada no Brasil em 1964.

O objetivo foi, tanto quanto possível, dado o estágio alcançado pelas pesquisas e levantamentos, encontrar elementos que contribuam para a compreensão sobre o papel que as estruturas de controle, vigilância e repressão das empresas estatais cumpriram como parte integrante do sistema de informações, controle, vigilância e repressão da Ditadura Civil-Militar brasileira. Dessa forma, contribuir para um campo de estudos emergente. Até o momento, não conhecemos trabalho específico, que busque uma generalização, sobre a estrutura de controle e vigilância interna das empresas estatais e sua relação com órgãos de informação e repressão da Ditadura. Como mencionamos na introdução, essas informações estão dispersas em diversos estudos.

As três empresas estatais que foram estudadas aqui tinham grande peso econômico, estratégico e simbólico para a Ditadura. Após a exposição realizada das informações relevantes sobre os três casos, e o breve exercício comparativo, podemos tecer alguns apontamentos a título de conclusão.

As direções da Petrobras e CSN contribuíram diretamente para o êxito do Golpe de Estado de 1964. Depois do Golpe, essas empresas realizaram grande repressão sob os trabalhadores, com a produção de listas sujas, colaboração da para a intervenção do Estado em todos os sindicatos representativos dos petroleiros, inquéritos IPM e investigação da vida pregressa de milhares de trabalhadores.

Na CSN, a DSU da empresa contribuiu fornecendo informações ao Estado para a repressão militar à Greve de 1964. Como na Petrobras, foram confeccionadas listas sujas e intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, o que sugere a correção da afirmação da existência de um plano prévio ao Golpe de Estado que visava neutralizar reações grevistas que tentassem resistir ao Golpe. Além disso, neutralizar por longo período a capacidade associativa dos trabalhadores, vista pelo regime como potencial risco para sua estabilidade.

Após a instauração da Ditadura, as estruturas de segurança interna da Petrobras e CSN realizaram sistemático controle sobre os trabalhadores, produzindo fichas de investigação, listas sujas, troca de informações com órgãos de repressão da Ditadura, e atuaram como órgãos de espionagem, colocando infiltrados entre os trabalhadores.

Fizeram também levantamento de informações para coibir e reprimir greves no final dos anos 1960, em especial em 1968 e no final dos anos 1970 depois do surgimento do Novo Sindicalismo.

Além de controlar e vigiar seus próprios trabalhadores, as empresas estatais cumpriram tarefas mais amplas para a repressão de atividades, movimentos sociais e grupos sociais que pudessem se constituir em ameaça para a estabilidade do Regime, o qual se orientava pela doutrina de segurança nacional.

Elas participaram dando suporte de diversos tipos, como na repressão aos grupos guerrilheiros. Há ao menos um registro do suporte da Petrobras para a ação do Exército de combate à guerrilha. Esse aspecto foi mais notável pelo que está documentado nas pesquisas em Itaipu, a qual contribuiu, em cooperação com as ditaduras do Paraguai e da Argentina, na perseguição de membros de grupos guerrilheiros no Cone Sul. As estruturas internas de vigilância e controle de Itaipu também contribuíram para a repressão sindical contra greves no final dos anos 1970 e nos anos 1980.

Tanto Itaipu quanto a CSN controlaram populações de áreas contíguas à empresa. A CSN, desde antes da ditadura, exerceu vigilância sobre toda a população de Volta Redonda. Isso se deve ao fato de que a CSN foi concebida através do modelo de company town [cidade/vila operária], cedendo as moradias para os trabalhadores migrantes que constituíram sua mão de obra da empresa em região anteriormente com perfil rural. Desde o surgimento da empresa, estratégica para o projeto desenvolvimentista de Getúlio Vargas, erigiu-se na usina um dispositivo de disciplinamento e controle da população local. Durante a Ditadura, a CSN vigiava os movimentos políticos e sociais da região, inclusive a Igreja católica, liderada por dom Waldyr Calheiros, bispo emérito de Barra do Piraí e Volta Redonda, o qual era solidário à luta dos operários da Companhia.

Itaipu produziu um mosaico de violações aos direitos humanos não só contra os trabalhadores da empresa, mas também contra populações rurais, que precisaram ser desalojadas para a construção do lago artificial da usina, indígenas, que também foram expulsos de suas terras devido a construção da usina. Além disso, Itaipu controlava a circulação de migrantes paraguaios, militantes políticos, concedendo informações para as ditaduras do Paraguai e da Argentina.

Verifica-se, em todos esses três casos, guardadas suas especificidades, que o controle e a vigilância de trabalhadores e seus familiares; a investigação da vida pregressa de trabalhadores e a produção de listas sujas; o fichamento dos trabalhadores, com investigação de suas vidas particulares; colaboração para a confecção de IPM; repressão da atividade sindical; prisão de sindicalistas e prisões coletivas de trabalhadores; a troca de informações com órgãos de repressão da Ditadura; no caso de Itaipu, a possível colaboração com o terrorismo de Estado transfronteiriço através da colaboração com os órgãos de informação das ditaduras visinhas do Paraguai e Uruguai e Argentina.

Podemos inferir que as estruturas internas das empresas estatais durante a Ditadura contribuíram para a repressão sindical; para o controle de populações que viviam na área de abrangência destas empresas; para a espionagem de movimentos políticos e sociais; foram copartícipes de práticas de violação de direitos humanos e, em alguns momentos, colaboraram em sessões de tortura.

As estruturas de segurança da Petrobras e CSN se mantiveram até o surgimento das ASI, as quais surgiram na década de 1970 - a da CSN foi criada em 1977 - e aprimoraram a relação entre as estruturas de vigilância e controle das estatais e a troca de informações com a Ditadura. Itaipu, a mais nova das três empresas, construída ao longo do final dos anos 1970, contou com uma AESI desde os primeiros trabalhos na construção da usina. Em síntese, é possível inferir que as estruturas de vigilância e controle dos trabalhadores, erigidas durante o Regime Civil-Militar, sob supervisão do SNI, constituíram-se como importantes dispositivos de controle e vigilância, não apenas para os trabalhadores e seus familiares, mas com abrangência capaz de efetuar controle sobre movimentos políticos, sociais e migratórios em amplas áreas do território nacional e sul-americano, contribuindo para repressão política e para as práticas de variadas formas de violação de direitos humanos em todo país.

No presente artigo, registramos a violação dos direitos sindicais, a prisão de sindicalistas, a tortura de trabalhadores, a produção de listas sujas, a repressão de greves, prisões massivas contra trabalhadores. Além dessas práticas, também verificamos a repressão a movimentos sociais, às populações rurais e indígenas, o terrorismo de Estado transfronteiriço, entre outras variadas formas de violação aos direitos humanos, praticadas pelas empresas estatais em colaboração com a Ditadura Civil-Militar.

Notas

  • 1
    “No total foram treze grupos, focados nos seguintes temas: Ditadura e Gênero; Araguaia; Contextualização, Fundamentos e Razões do Golpe Civil-Militar de 1964; Ditadura e Sistema de Justiça; Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical; Estrutura de Repressão; Mortos e Desaparecidos Políticos; Graves Violações de Direitos Humanos no Campo ou Contra Indígenas; Operação Condor; Papel das Igrejas durante a Ditadura; Perseguições a Militares; Violações de Direitos Humanos de Brasileiros no Exterior e de Estrangeiros no Brasil; e O Estado Ditatorial-Militar” (PRAUN; COSTA, 2016PRAUN, Luci; COSTA, Claudia. “Pistas sobre a estrutura e as ações de repressão do Estado brasileiro no pós-1964 e sua configuração no interior da Petrobras”. Revista do Arquivo, São Paulo, n. 2, 2016., p.2).
  • 2
    A partir de 1977, o Serviço Nacional de Informações (SNI) passou a ter um de seus “braços” operando continuamente no interior da usina Presidente Vargas, pelo menos até 1991. Tratava-se da Assessoria de Segurança e Informações da Companhia Siderúrgica Nacional (ASI-CSN), vinculada ao Departamento de Segurança e Informação (DSI) do Ministério da Indústria e Comércio. A ASI-CSN atuou em estreita proximidade com o braço armado do Estado na repressão às mobilizações e greves protagonizadas pelos operários da CSN ao longo das três décadas em que perdurou a Ditadura (CAAF-UNIFESP, 2023CAAF-UNIFESP ,- Centro de Antropologia e Arqueologia Forense-Universidade Federal de São Paulo. Projeto: A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura: Informe Público. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023., p. 87-88).

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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2023
  • Aceito
    09 Out 2023
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