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O fluxo de processamento do sistema de justiça criminal para o delito de estupro de vulneráveis: Um estudo de caso

The Processing Flow of the Criminal Justice System for the Crime of Rape of Vulnerable: A Case Study

Resumos

Este artigo trata do funcionamento do sistema de justiça criminal na sociedade brasileira. O objetivo é analisar a dinâmica de processamento do delito de estupro de vulneráveis em uma grande capital em termos de produção decisória por parte de cada ator da justiça criminal. Foi realizada a reconstituição do fluxo nos casos de estupro de vulneráveis em Belo Horizonte entre 2015 e 2020, desde a ocorrência registrada pela polícia até a decisão judicial. A principal evidência empírica obtida foi a frouxa articulação entre as organizações que compõem o aparato da justiça criminal como uma das causas da fragilidade e ineficiência do sistema.

Palavras-chave:
sistema de justiça criminal; segurança pública; estupro de vulneráveis; sistema frouxamente articulado; justiça linha de montagem


deals with the functioning of the criminal justice system in Brazilian society. The objective is to analyze the dynamics of processing the crime of rape of vulnerable people in a large capital in terms of decision-making by each actor of criminal justice. A reconstitution of the flow in cases of rape of vulnerable people in Belo Horizonte between 2015 to 2020 was carried out, from the occurrence registered by the Police to the court decision. The main empirical evidence obtained was the loose articulation between the organizations that make up the criminal justice apparatus as one of the causes of the fragility and inefficiency of the system.

Keywords:
criminal justice system; public security; rape of vulnerable; loosely coupled system; assembly line justice


Introdução

Osistema de justiça criminal (SJC) na sociedade brasileira é entendido como a articulação entre as organizações responsáveis por registrar, investigar e processar um crime, além de punir o eventual autor. Trata-se de um arranjo de instituições que engloba os subsistemas policial, judicial e de execução penal, cujas funções vão desde o policiamento, passando pela fase de apuração de responsabilidades, até a execução da pena (SAPORI e LIMA, 2017SAPORI, Luís Flávio; LIMA, Flora. O papel da prisão em flagrante na dinâmica do Sistema de Justiça Criminal em um município de pequeno porte na RMBH (MG). Trabalho apresentado no 41° Encontro Anual Anpocs, Caxambu, 23 a 27 out. 2017.).

No âmbito da teoria das organizações, tanto na literatura internacional (HAGAN, HEWIT e ALVIN, 1979HAGAN, John; HEWIT, John; ALWIN, Duane. “Ceremonial Justice: Crimes and Punishment in a Loosely Coupled System”. Social Forces, v. 58, n. 2, p. 506-527, 1979.; MEYER e ROWAN, 1977MEYER, John; ROWAN, Brian. “Institutionalized Organizations: Formal Structure as Myth and Ceremony”. American Journal of Sociology, v. 83, n. 2, p. 340-363, 1977.; BLUMBERG, 1988BLUMBERG, Abraham. “The Practice of Law as a Confidence Game”. In: CULBERTSON, Robert; WEISHEIT, Ralph (Orgs.). Order Under Law: Readings in Criminal Justice. Illinois: Waveland Press, 1988. p. 15-40.), quanto na literatura nacional (COELHO, 1986COELHO, Edmundo Campos. “A administração da justiça criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967”. Dados, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 61-81, 1986.; ADORNO, 1994ADORNO, Sérgio. “Cidadania e administração da Justiça Criminal”. In: DINIZ, Eli; LOPES, José Sérgio Leite; PRANDI, Reginaldo (Orgs.). O Brasil no rastro da crise: Partidos, sindicatos, movimentos sociais, Estado e cidadania no curso dos anos 90. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 304-327.; RUSCHEL, 2006RUSCHEL, Aírton José. Análise do tempo dos processos penais de homicídio no Fórum de Justiça de Florianópolis julgados em 2004. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.; ANDRADE, 2011ANDRADE, Rayane Maria de Lima. Da criminação à incriminação: O fluxo e o tempo do homicídio doloso no Sistema de Justiça Criminal de Pernambuco. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011.; ANTUNES, 2013ANTUNES, Gilson Macedo. O processo de construção da verdade no tribunal do júri de Recife (2009-2010). Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.; VARGAS, 2004VARGAS, Joana Domingues. Estupro: Que justiça? Fluxo do funcionamento e análise do tempo da justiça criminal para o crime de estupro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.), os autores observam que as organizações que compõem o SJC, premidas por diferentes realidades e contextos fáticos, criam rotinas e procedimentos internos próprios visando solucionar as questões práticas que lhes são apresentadas. Partindo da perspectiva de interação entre essas, sugerem que o SJC se caracteriza pela frouxa articulação e ajustes informais entre os atores que o integram.

Este artigo, nesse sentido, resulta de uma pesquisa1 1 Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). que teve como objetivo a reconstituição do fluxo de processamento dos casos de estupro de vulneráveis registrados no município de Belo Horizonte, no período de 2015 a 2020, analisando a sua evolução em cada fase. Utiliza como referência as abordagens teóricas da frouxa articulação e ajustes informais das organizações, transcurso do tempo, morosidade e eficiência do SJC.

Por meio de uma metodologia quantitativa, foi possível mensurar as taxas de esclarecimento, processamento e condenações e o tempo no SJC, analisando as diferenças para os casos iniciados com suspeitos presos em flagrante ou não. A estratégia utilizada para a reconstrução do fluxo foi a desenho longitudinal ortodoxo, que consistiu no acompanhamento de cada uma das ocorrências registradas pela polícia, em 2015, em Belo Horizonte, até a sentença em primeira instância.

A principal evidência empírica obtida foi que o SJC em Belo Horizonte para o delito de estupro de vulneráveis não opera sob o paradigma da “justiça em linha de montagem”, com ajustes informais entre os órgãos integrantes do sistema sob a máxima da eficiência. Por outro lado, ficou evidenciada a frouxa articulação entre as organizações que compõem o SJC. Constatou-se a falta de articulação entre o Ministério Público (MP) e a Polícia Civil (PC) quando da divergência sobre elementos jurídicos mínimos de autoria e materialidade que justificassem o oferecimento das denúncias. Observou-se também o efeito “pingue-pongue” do inquérito entre o MP, PC e Justiça, de modo que o vai e vem do inquérito ficou caracterizado nos prazos longos encontrados nas fases policial e ministerial.

É preciso destacar que este artigo não contemplou a análise das principais características de vítimas e autores de estupros de vulneráveis. A despeito da relevância, optou-se por apresentar tão somente a dinâmica do fluxo processual. A análise dos diversos aspectos sociais que conformam esse tipo de crime violento ficará para publicação posterior.

Principais abordagens sociológicas do fluxo do SJC

Segundo Vargas (2014)VARGAS, Joana Domingues. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal”. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON JUNIOR, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo (Orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 411-426., o SJC pode ser estudado de diferentes maneiras, dentre elas as práticas de construção social e institucional do crime e a sua representação, as quais podem ser expostas em números e taxas a partir dos processos decisórios do fluxo, com a sequência de movimentações na polícia, justiça e execução penal.

O estudo de fluxo do sistema de justiça se configura como a forma mais adequada de se investigar a incidência de crimes e o processamento dos seus autores. Dessa forma, possibilita a identificação das principais perdas ou rupturas do sistema, por meio do cálculo do percentual de casos que se encerram em cada uma das fases do fluxo (policial, ministerial ou judicial). Também permite a compreensão dos fatores que levam determinados casos à sentença e outros não (VARGAS, 2007VARGAS, Joana Domingues. “Análise comparada do fluxo do sistema de justiça para o crime de estupro”. Dados, Rio de Janeiro, v. 50, p. 671-697, 2007.).

Os primeiros estudos sobre a temática de fluxo do SJC no Brasil datam dos anos 1980 e se dedicavam a problematizar as relações que as organizações da justiça criminal estabeleciam entre si. Esses estudos, realizados a partir de uma abordagem organizacional, normalmente eram direcionados a um dos integrantes da administração da justiça, seja a fase policial, judicial ou prisional (SAPORI e LIMA, 2017SAPORI, Luís Flávio; LIMA, Flora. O papel da prisão em flagrante na dinâmica do Sistema de Justiça Criminal em um município de pequeno porte na RMBH (MG). Trabalho apresentado no 41° Encontro Anual Anpocs, Caxambu, 23 a 27 out. 2017.).

Sapori (1995)SAPORI, Luís Flávio. “A administração da justiça criminal numa área metropolitana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995., analisando o papel das instituições legais e organizacionais do SJC brasileiro, destaca que a provisão de ordem pública implica a realização de tarefas diversas por parte do Estado, que vão desde o patrulhamento da polícia em vias públicas, até a custódia de indivíduos condenados pela prática de crimes. Segundo o autor, essas atividades estão a cargo de organizações distintas, cujas posições estariam articuladas em um tipo de network organizacional, estabelecido pelo ordenamento legal dos códigos processuais. Utilizou-se da categoria loosely coupled system (sistema frouxamente articulado) como a que melhor descreve a dinâmica desse sistema, de modo que os elementos estruturais das organizações formais funcionam, não como coordenação e controle, mas quase sempre pautadas pelas disjunções, conflitos e competições.

Considerando a frouxa articulação entre as agências integrantes do SJC e o hiato existente entre as regras legais e a sua implementação prática entre os atores do sistema, Sapori (1995)SAPORI, Luís Flávio. “A administração da justiça criminal numa área metropolitana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995. adotou o conceito de “justiça linha de montagem”. O estudo realizado pelo autor na primeira metade da década de 1990 nas varas criminais da Comarca de Belo Horizonte revelou que elas institucionalizaram um certo modo de fazer justiça, caracterizado pelo processamento seriado dos crimes, marcada pelo tratamento padronizado dos processos, de modo que eram desconsideradas as especificidades e individualidades. Segundo o autor, os atores do sistema classificam os processos em categorias, definindo padrões de decisão e de ação (SAPORI, 1995SAPORI, Luís Flávio. “A administração da justiça criminal numa área metropolitana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995.).

O autor destaca que a lei é ritualisticamente aplicada, estrategicamente ignorada ou reinterpretada conforme as necessidades organizacionais. A concepção de uma justiça tipo linha de montagem traduz a ideia da existência de arranjos informais para viabilizar a manutenção de taxas elevadas de produção. Entretanto, ele adverte que, “muitos desses arranjos informais são inconsistentes com os formalismos legais que articulam os atores do sistema” (SAPORI, 2006SAPORI, Luís Flávio. “A Justiça Criminal Brasileira como um sistema frouxamente articulado”. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília: Artcor, 2006. p. 763-782., p. 773).

Diante dos estudos tratados verifica-se que as organizações que compõem o SJC, vivenciando diferentes realidades e situações fáticas, instituem rotinas e procedimentos internos próprios visando solucionar as questões práticas que lhes são apresentadas. Considerando a perspectiva de interação entre as organizações, parte da literatura sugere que o SJC se caracteriza pela frouxa articulação e ajustes informais entre os atores que o integram.

Importante destacar que os conceitos sistema frouxamente articulado e justiça linha de montagem foram incorporados por Sapori a partir das obras de Meyer e Rowan (1977)MEYER, John; ROWAN, Brian. “Institutionalized Organizations: Formal Structure as Myth and Ceremony”. American Journal of Sociology, v. 83, n. 2, p. 340-363, 1977. e Blumberg (1988)BLUMBERG, Abraham. “The Practice of Law as a Confidence Game”. In: CULBERTSON, Robert; WEISHEIT, Ralph (Orgs.). Order Under Law: Readings in Criminal Justice. Illinois: Waveland Press, 1988. p. 15-40.. Ele aplicou ambas as teorias à sua produção sobre a dinâmica da justiça criminal na sociedade brasileira.

Os estudos sobre o fluxo de processamento dos delitos pelo SJC, por sua vez, são importantes porque funcionam como um indicador da própria capacidade das organizações em implementar a ideia de justiça (RIBEIRO, 2009aRIBEIRO, Ludmila. “Impunidade no Sistema de Justiça Criminal Brasileiro: Uma revisão dos estudos produzidos sobre o tema”. Research Paper Series, n. 48, 2009a.). Nesse contexto, há uma dicotomia intrínseca ao trâmite processual dos delitos. De um lado, a sociedade espera que a Justiça seja rápida, tendo em vista que a demora processual provoca o perecimento de provas e consequências graves para a justa reparação do direito violado; de outro, espera que o processo tenha uma duração razoável, pois as “decisões sumárias” podem comprometer a segurança jurídica e violar direitos consagrados na Constituição. Assim surge a ideia da “morosidade necessária”, que corresponde a um intervalo de tempo necessário à conciliação da celeridade processual com os direitos e garantias dos cidadãos (ADORNO e IZUMINO, 1999ADORNO, Sérgio; IZUMINO, Wânia. “O tempo da justiça: A questão da morosidade processual”. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio et al. (Orgs.). Continuidade autoritária e construção da democracia. São Paulo: Fundação Ford; NEV-USP, 1999.; SANTOS, 1996SANTOS, Boaventura de Sousa. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Lisboa: Afrontamento, 1996.).

Em análise dos principais estudos que contemplam a categoria tempo-morosidade e sua perspectiva no processo penal, verifica-se que são levados em consideração os contrastes entre os conceitos de morosidade necessária e de morosidade legal (SANTOS, 1996SANTOS, Boaventura de Sousa. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Lisboa: Afrontamento, 1996.).

Segundo Ribeiro (2009b)RIBEIRO, Ludmila. “O tempo da justiça criminal brasileira”. Segurança com Cidadania, n. 3. Brasília: Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, 2009b., a morosidade legal seria estabelecida pelos códigos, pelas leis. Já a morosidade necessária corresponderia ao tempo ideal de duração de um processo no qual houvesse harmonia entre rapidez e eficiência, protegendo os direitos. Para a autora, quanto menor for a diferença entre o tempo legal e o tempo necessário, mais eficiente será o sistema de justiça.

Considerando uma perspectiva histórica dos estudos realizados no Brasil sobre o tempo de processamento dos crimes pelo sistema de justiça é possível afirmar que a primeira pesquisa a analisar as diferenças entre a morosidade legal e a morosidade necessária foi coordenada por Paulo Sérgio Pinheiro e recaiu sobre os processos que apuraram a prática de linchamento no estado de São Paulo entre 1980 e 1989 (RIBEIRO, 2009bRIBEIRO, Ludmila. “O tempo da justiça criminal brasileira”. Segurança com Cidadania, n. 3. Brasília: Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, 2009b.).

Um segundo estudo realizado nessa perspectiva analisou casos de violência contra a mulher que resultaram em morte ou lesões corporais, registrados nas delegacias de São Paulo em 1996. Nele, Izumino (apudRIBEIRO, 2009bRIBEIRO, Ludmila. “O tempo da justiça criminal brasileira”. Segurança com Cidadania, n. 3. Brasília: Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, 2009b.) constatou que, nos casos que apresentaram mortes das vítimas, 40,96% dos processos instaurados foram encerrados entre 12 e 24 meses. Já os processos que tiveram desfecho em menos de doze meses ou entre 24 e 36 meses ficaram no patamar de 21,6%. É bem menor a proporção de processos encerrados em 48 meses (8,43%), e menor ainda a proporção daqueles que consumiram tempo superior a 48 meses (1,20%) (RIBEIRO, 2009bRIBEIRO, Ludmila. “O tempo da justiça criminal brasileira”. Segurança com Cidadania, n. 3. Brasília: Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, 2009b.).

Adorno e Izumino (2007)ADORNO, Sérgio; IZUMINO, Wânia. “A justiça no tempo, o tempo da justiça”. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. 19, n. 2, p. 131-155, 2007. também trazem resultados de um estudo que avaliou 297 ocorrências de homicídios registrados entre 1984 e 1989 em São Paulo. O estudo apresenta resultado semelhante, constatando-se que 83,43% dos casos foram julgados em 24 meses, o que levou a conclusões de que nos delitos que envolvem violações de direito humanos a morosidade foi sensivelmente maior em relação à criminalidade tradicional.

A partir do trabalho de Vargas (2004)VARGAS, Joana Domingues. Estupro: Que justiça? Fluxo do funcionamento e análise do tempo da justiça criminal para o crime de estupro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004., o tema sobre o fluxo do SJC efetivamente se consolidou como campo relevante das ciências sociais brasileiras. Nesse estudo, a autora analisou 444 boletins de ocorrência do crime de estupro registrados na Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas, entre 1988 e 1992. Ela identificou que, para os crimes de estupro em Campinas, o fluxo assume a forma de um funil, começando com muitos casos registrados e diminuindo em cada fase processual, sendo o maior gargalo a passagem da fase policial para a judicial. Vargas concluiu, ainda, que determinantes como idade da vítima e condição do acusado durante o processo (preso ou em liberdade) influenciavam o tempo de processamento dos casos (VARGAS, 2004VARGAS, Joana Domingues. Estupro: Que justiça? Fluxo do funcionamento e análise do tempo da justiça criminal para o crime de estupro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.).

Em outra pesquisa realizada por Vargas (2006)VARGAS, Joana Domingues; MAGALHÃES, Ismênia Blavatsky de; RIBEIRO, Ludmila. Metodologia de tratamento do tempo e da morosidade processual na Justiça Criminal. Brasília: Ministério da Justiça, 2006., utilizando dados de processos de homicídios que tramitaram em São Paulo entre 1991 e 1998, a autora verificou um tempo médio de processamento de 983 dias (2 anos e 7 meses), constatando que a fase mais morosa do fluxo era entre a pronúncia e a sentença pelo tribunal do júri, cuja duração seria em torno de 518 dias. Em outra base trabalhada nesse estudo, foram analisados 93 processos de homicídios do Município de Campinas constatando-se que entre a abertura e o encerramento do inquérito transcorreram em média, respectivamente, 385 dias e 202 dias para o oferecimento da denúncia pelo MP.

Posteriormente, foram desenvolvidos os trabalhos de Tavares, Santos e Ferreira (2003)TAVARES, Vera; SANTOS, Rejane dos; FERREIRA, Ivete. “Impunidade: Uma realidade permanente”. In: FAOR (Org.). Observatório da Cidadania. Pará: Políticas Públicas e Controle Popular, 2003., na cidade de Marabá, estado do Pará; Rifiotis (2006)RIFIOTIS, Theofilos. Fluxo da justiça criminal em casos de homicídios dolosos na Região Metropolitana de Florianópolis entre os anos de 2000 e 2003. Relatório de Pesquisa. Florianópolis: Levis, 2006., na Região Metropolitana de Florianópolis; Cano (2006)CANO, Ignacio. “Mensurando a impunidade no Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro”. Anais da Alascip, Unicamp, Campinas, 4 a 6 set. 2006. na cidade do Rio de Janeiro e Ratton et al. (2006RATTON, José Luiz et al. “Violência endêmica: Relatório de pesquisa: Homicídios na cidade do Recife: Dinâmica e fluxo no Sistema de Justiça Criminal”. Revista do Ministério Público de Pernambuco, v. 1, n. 1, p. 17-157, 2006.) em Pernambuco, todos esses centrados no fluxo do processamento do crime de homicídios analisando tempo, morosidade e eficiência do sistema.

Em Minas Gerais, deve-se destacar a pesquisa coordenada por Batitucci (2006)BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. “O homicídio em Minas Gerais: Uma análise do fluxo de processamento dos crimes contra a vida na capital mineira”. Anais da Alascip, Unicamp, Campinas, 4 a 6 set. 2006., em que foi analisada uma amostra de processos de homicídios dolosos julgados pelos tribunais do júri das comarcas de Belo Horizonte, Coronel Fabriciano e Ipatinga entre 1985 e 2003. Esste estudo destacou que o maior tempo despendido no fluxo do sistema de justiça é durante a fase de investigação realizada pela PC por meio do inquérito policial. Segundo Ribeiro (2010)RIBEIRO, Ludmila; SILVA, Klarissa. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal brasileiro: Um balanço da literatura”. Cadernos de Segurança Pública, n. 1, p. 13-26, 2010., este resultado encontrado, na opinião dos autores evidenciava “a falência do modelo investigativo adotado pela Polícia Civil em Minas Gerais e sua incapacidade institucional de fazer frente às demandas dos casos de homicídio doloso” (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, Ludmila; SILVA, Klarissa. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal brasileiro: Um balanço da literatura”. Cadernos de Segurança Pública, n. 1, p. 13-26, 2010., p. 323).

Por fim deve-se destacar estudo realizado por Ribeiro (2017), em que a autora, analisando dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) referente às Varas Criminais de Tóxicos em Belo Horizonte entre 2008 e 2015, registrou os fatores determinantes do tempo de processamento do tráfico de drogas na capital mineira. Ao observar o fenômeno, Ribeiro verificou que esses processos tramitavam de maneira substantivamente rápida, mas com a supressão das garantias do acusado, já que as prisões em flagrante eram utilizadas como fatores preponderantes da condenação. Ela demonstrou um tempo médio de processamento nos casos de tráfico de drogas de 142 dias. Concluiu, por fim, que o processamento do tráfico de drogas em Belo Horizonte se enquadra na categoria de “justiça em linha de montagem”, produzindo uma massa de encarcerados por esse delito sem maiores questionamentos quando diante do peso da palavra da autoridade policial responsável por uma prisão em flagrante.

Sobre o formato do fluxo de processamento dos crimes no sistema de justiça, diferentemente da maioria das pesquisas que percebem o efeito funil, que se apresenta com muitas ocorrências registradas na polícia e poucas processadas e punidas na justiça, a pesquisa realizada por Ribeiro (2017) destaca que, no caso específico do tráfico de drogas em Belo Horizonte, o formato da justiça se caracteriza por um cilindro em que a maioria dos casos iniciados no fluxo segue até um resultado final com sentença, fator fortemente influenciado pela forma como se iniciam na sua maioria, prisões em flagrante. A autora destaca ainda sobre o enorme poder que a ação policial tem para distinguir entre traficantes e usuários.

Conforme se verifica, o SJC pode ter padrões diferenciados de funcionamento sendo a abordagem sobre a frouxa articulação e os ajustes informais e o paradigma da justiça linha de montagem úteis para compreender as suas características. Ademais, sob a perspectiva de tempo, morosidade e eficiência é possível inferir que o SJC revela certa fragilidade na sua capacidade para responder as demandas que chegam ao seu conhecimento.

Quanto às organizações que compõem o sistema, verificam-se gargalos na fase policial e processual, destacando a morosidade além da necessária. No que tange aos fatores determinantes do tempo de processamento, existem algumas conclusões sugerindo que a prisão provisória é um dos principais fatores de redução de tempo. Percebe-se, no entanto, que as premissas decisórias que orientam cada um dos atores envolvidos no fluxo do SJC ainda não foram suficientemente esclarecidas, revelando espaço para novas pesquisas que se concentrem nessas análises.

Fluxo de processamento do delito de estupro de vulneráveis

O estupro é considerado um dos atos mais brutais de violência, humilhação e controle sobre o corpo de outro indivíduo (FBSP, 2019FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2019.). Quando o fato tem como vítima pessoa menor de 14 anos, considerada juridicamente incapaz de consentir relações sexuais, ou pessoa incapaz de oferecer resistência, independentemente de sua idade, tem-se a classificação legal como estupro de vulneráveis, cuja definição encontra-se prevista no artigo 217-A do Código Penal brasileiro (CPB).

O delito de estupro de vulneráveis está sujeito a uma pena mínima de reclusão de oito anos e máxima de 30 anos, a depender das qualificadoras e causas de aumento de pena, que se revelam em circunstâncias que produzem resultados mais graves ou que acrescem à pena. Trata-se de delito de ação pública incondicionada, ou seja, não depende de representação da vítima ou de seu representante legal para o início da ação penal pelo Estado.

Cometido o delito de estupro de vulneráveis, sua porta de entrada no SJC se inicia pela Polícia Militar (PM) ou pela PC, que, ao tomar conhecimento do fato, registrará o boletim de ocorrência. No caso de Minas Gerais, o registro é realizado por meio de um sistema próprio, o Registro de Eventos de Defesa Social (Reds), que permite formalização de boletins de ocorrência de todos os órgãos de Segurança Pública e Defesa Social de Minas Gerais.

A PC, detentora da função investigativa, após o registro da ocorrência, instaurará o inquérito policial (IP), que visa coletar provas de autoria (quem praticou o crime) e prova de materialidade (elementos que confirmam a existência do crime).

Se o suspeito do crime de estupro de vulneráveis tiver sido detido em situação de flagrante, ou seja, logo após a prática do fato, a fase de investigação poderá ser iniciada por um auto de prisão em flagrante delito (APFD), em que o autor será conduzido, via de regra, pela PM, até a presença do delegado de polícia, que lavrará o auto, realizando a oitiva dos policiais condutores, testemunhas e vítima, além de providenciar a expedição de guias para exame de corpo delito e coleta de outras provas materiais relacionadas à situação de flagrância. No caso de ratificação da prisão em flagrante do suspeito pelo delegado, ela será imediatamente comunicada ao juiz, ao MP e à Defensoria Pública, caso o suspeito não tiver advogado particular constituído. A investigação, instrumentalizada no inquérito policial, iniciado por meio de APFD, seguirá com a coleta de todas as demais provas necessárias ao esclarecimento dos fatos, até a emissão de um relatório final conclusivo que será remetido à Justiça (Figura 1).

Quando o registro das ocorrências dos casos de estupro de vulneráveis não indica informações sobre a autoria do crime ou nos casos em que indicam, mas o suspeito já não está em situação de flagrante delito, a investigação policial, instrumentalizada no inquérito, será iniciada por meio de uma portaria. Nesse documento, expedido pelo delegado de polícia, serão listadas todas as diligências legais que, a critério da autoridade, serão cabíveis ao esclarecimento dos fatos, como oitiva da vítima, testemunhas e solicitações de exames periciais.

Nos casos das investigações policiais iniciadas com suspeito preso, por meio de APFD, ou em sendo eventualmente decretada outra prisão no inquérito policial, o prazo legal para a conclusão das investigações é de dez dias. Estando o suspeito solto, nos casos de investigações iniciadas por portaria ou havendo relaxamento da prisão decretada, o prazo legal para a conclusão será de 30 dias. Esses prazos poderão ser prorrogados mediante solicitação do delegado quando demonstrada a complexidade do caso, oportunidade em que, após manifestação do MP, será demarcado novo prazo pelo juiz para a conclusão do inquérito.

Encerradas as investigações dos casos de estupro de vulneráveis pela PC, o IP será relatado e remetido à Justiça. O relatório final de investigações tratará as informações de tudo o que foi apurado, podendo trazer o indiciamento do suspeito, se comprovada a autoria e materialidade delitiva, ou o não indiciamento, nos casos de não comprovação dos fatos.

Figura 1
Fluxo de processamento dos crimes de estupro de vulneráveis. Autor adulto.

O delegado de polícia não poderá mandar arquivar o inquérito, ainda que não sejam encontrados quaisquer elementos comprobatórios do crime, devendo remeter as suas conclusões, sejam com indiciamento ou sem indiciamento, à Justiça.

O IP concluído, após passar pela secretaria do juízo, será destinado ao MP com atribuição para atuação junto à vara, na linguagem jurídica será “dado vistas” do inquérito recebido ao promotor de justiça. Após receber o inquérito policial o promotor poderá adotar basicamente três medidas.

Na primeira, entendendo presentes elementos de autoria e materialidade delitiva, oferecerá denúncia, remetendo para análise do juiz. Acatada a denúncia feita pelo MP, formalmente se inicia o processo contra um determinado autor, o indiciado no inquérito passa então a ser réu no processo criminal. A partir da denúncia, a fase de instrução criminal se concentrará no Fórum e varas criminais, momento que entra em cena a Defensoria Pública ou advogado particular. Diferentemente do que ocorre no inquérito, a partir dessa fase, a presença da defesa é indispensável, pois há acusação formal, prevalecendo a lógica do contraditório. A instrução criminal seguirá dirigida e administrada pelo juiz até a sentença.

Como segunda opção, à vista do IP concluído, caso entenda não estarem presentes todos os elementos necessários para o oferecimento de denúncia, poderá o promotor de justiça solicitar a realização de outras diligências entendidas como imprescindíveis para a formação de sua convicção. Essas diligências serão lançadas em uma cota ministerial, encaminhada ao juiz, que por sua vez, despachará retornando o procedimento à Delegacia de Polícia (Depol) para realização das novas diligências requisitadas pelo MP.

Como terceira e última opção, à vista do inquérito concluído, poderá o MP, entendendo não estarem presentes indícios suficientes de autoria e prova da materialidade delitiva, sugerir à Justiça o arquivamento do procedimento investigativo, oportunidade em que o juiz, analisando a manifestação ministerial, decidirá pelo arquivamento ou não. Caso o juiz concorde com a manifestação do promotor, determinará o arquivamento do procedimento investigativo, sem que haja denúncia ou processo.

Conforme se verifica, o promotor de justiça tem liberdade e autonomia para avaliar o inquérito recebido. “Isto implica dizer que promotor e delegado podem divergir sobre os aspectos jurídicos dos casos apresentados. O mesmo acontece com o juiz criminal, que pode divergir sobre a interpretação do delegado e do promotor” (TRINDADE, SPAGNA e MACIEL, 2010TRINDADE, Arthur; SPAGNA, Laiza; MACIEL, Welliton Caixeta. “A discricionaridade no Sistema de Justiça Criminal: Uma análise policial no Distrito Federal”. In: MISSE, Michel (org.). O inquérito policial no Brasil: Uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Necvu/IFCS/UFRJ; Booklink, 2010. p. 191-225., p. 223).

O fluxo da justiça para os casos de estupro de vulneráveis, na fase processual, tendo em vista a pena cominada, segue, no caso dos autores maiores de 18 anos, o rito comum ordinário, que comporta, basicamente: o oferecimento da denúncia pelo MP; citação do réu; interrogatório; resposta à acusação (defesa preliminar); audiência de instrução com oitivas das testemunhas de acusação e da defesa; alegações finais; sentença.

Nessa fase processual, caberá ao juiz das varas especializadas ou criminais, após o recebimento da denúncia oferecida, tomar todas as decisões no fluxo processual criminal, além de conduzir a fase de instrução do processo, com interrogatório do réu, oitiva de testemunhas e aplicação de sentença, que pode condenar ou absolver o acusado.

No caso de sentença condenatória expedida pelo juiz, se não houver recursos, o autor é encaminhado ao sistema prisional, que é responsável pela administração dos presídios encarregados de prover condições mínimas para que o sentenciado cumpra sua pena privativa de liberdade. No caso de sentença absolutória, o processo criminal será arquivado, na linguagem jurídica “baixado”. Destaca-se que, em que pese o sistema prisional figure como porta de saída do SJC, esta pesquisa se limitou à sentença expedida pelo Judiciário em primeira instância.

Metodologia

A pesquisa realizada reconstruiu o fluxo de processamento dos delitos de estupro de vulneráveis na comarca de Belo Horizonte no período de 2015 a 2020. Foi utilizada a estratégia de desenho longitudinal ortodoxo, que consistiu no acompanhamento de cada uma das ocorrências registradas, verificando a sua passagem por todas as fases do fluxo, a fim de avaliar a capacidade do sistema de processar adequadamente os delitos que chegaram ao seu conhecimento, permitindo-se o estabelecimento de taxas e identificação de gargalos, além da mensuração do tempo de processamento, avaliando alguns fatores que poderiam o influenciar.

Primeiramente, buscou-se identificar todos os boletins de ocorrência registrados pela polícia, em 2015, com a natureza estupro de vulneráveis no município, reconstituindo-se o fluxo de processamento de cada caso, verificando os seus desdobramentos procedimentais até 2020. A delimitação do período em questão se justificou em função da possibilidade da reconstituição do fluxo e a averiguação das fases de atuação de todas as organizações envolvidas no sistema, desde o registro policial até a sentença judicial.

Por meio do Reds, sistema que permite o registro de boletins de ocorrência, foi feito um filtro por ano, localidade e natureza principal, encontrando-se 308 ocorrências classificadas com a natureza de estupro de vulneráveis, registradas em 2015 em Belo Horizonte. É importante destacar que esse número é resultado de uma primeira análise do estado, feita pelas polícias, representando a seletividade daquilo que chegou a ser registrado, resultado da representação destes atores (LIMA, 2017LIMA, Flora Moara. Cooperação e escassez: Análise da dinâmica do Sistema de Justiça Criminal no município de Esmeraldas (MG). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.). Essas ocorrências foram obtidas mediante acesso autorizado ao sistema Reds, compartilhado tanto pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) como pela Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG).

Na análise da produção do SJC, adotou-se um recorte metodológico concentrando o acompanhamento em 261 casos relacionados a autores maiores de 18 anos, diante da diferença no tratamento do delito pelo SJC, em razão da idade do autor. Conforme adverte a literatura especializada, a maneira singular de tratamento dos casos intervém de forma decisiva na configuração que o fluxo assume. Nesse sentido, foram excluídas da análise as ocorrências que envolviam crianças e adolescentes (menores de 18 anos) como autores. Para a descrição e análise do tempo, por sua vez, o estudo dedicou-se a 118 casos que conseguiram alcançar algum tipo de sentença no Judiciário.

Após a identificação dos casos no Reds, foi realizada a análise no Sistema de Informatização e Gerenciamento dos Atos de Polícia Judiciária (PCnet), utilizado pela PCMG, que registra toda a movimentação da fase policial investigativa, desde o aceite da ocorrência até a sua conclusão e envio para a justiça. Por meio de consulta ao sistema foi possível identificar as medidas adotadas pela PC nas fases subsequentes ao registro.

Nesta pesquisa, o SJC foi compreendido como a conexão entre a PM, PC, MP e Judiciário, sendo estas as organizações responsáveis por registrar, investigar, processar e julgar os crimes. Pretendeu-se acompanhar a apreensão dos crimes pela justiça criminal, desde a sua entrada no sistema, com o registro da ocorrência pela polícia até a sentença em primeira instância. Por último, com acesso Sistema de Informatização dos Serviços das Comarcas (Siscom), utilizado pelo TJMG, foi analisado o andamento processual de cada caso e a situação em que se encontravam até o mês de outubro de 2020.

No tratamento dos dados foram avaliadas quantas das ocorrências registradas tiveram procedimentos instaurados pela PC. Quantos procedimentos instaurados se iniciaram com o suspeito preso por Auto de Prisão em Flagrante Delito (APFD), quantos se iniciaram sem a prisão dos autores e, ainda, quantos foram concluídos e remetidos à Justiça. Dos concluídos, quantos foram com indiciamento e sem indiciamento. Posteriormente, foram verificadas quantas ocorrências foram denunciadas pelo MP. Das denúncias apresentadas, quantas eram correspondentes a procedimentos com indiciamento e quantas eram de procedimentos em que houve despacho pelo não indiciamento do autor por parte da PC.

Analisou-se do número de casos denunciados pelo MP, quantos receberam sentença pelo Judiciário e dentre as sentenças, quantas eram de mérito. Considerando as sentenças proferidas, também foram analisadas quantas se deram por arquivamento sem denúncia apresentada pelo MP.

Na variável tempo de processamento, verificou-se as datas dos registros de ocorrência, as datas em que a PC aceitou as ocorrências, as datas da conclusão dos inquéritos e as datas em que o IP foi recebido na justiça pela última vez; as datas em que MP recebeu os inquéritos concluídos, as datas em que foram oferecidas as denúncias; as datas em que as sentenças finais foram proferidas em primeira instância, mensurando o tempo médio de processamento do crime destacando o decurso temporal em cada uma das fases.

Para além da abordagem descritiva, foi observada a condição do acusado no início do procedimento, se preso em flagrante ou em liberdade, visando entender se essa condição seria fator relevante para a produtividade e tempo do SJC em Belo Horizonte.

Por meio dos sistemas internos das instituições pesquisadas foi construída uma base de dados contendo diferentes informações de interesse para o estudo, as quais foram alocadas em um software de análise estatística, o SPSS Statistics Base, tornando possível a análise e interpretação dos dados.

A produção no fluxo do SJC para o delito de estupro de vulneráveis

Pertinente à produção do SJC, realizou-se o acompanhamento de 261 ocorrências, conforme explicado na seção anterior. Da análise do fluxo de processamento do crime de estupro de vulneráveis em Belo Horizonte, seguindo a tendência apontada em outros estudos, verifica-se que o fluxo se inicia com grande volume de casos registrados e segue sofrendo sucessivas seleções e filtragens, terminando com um pequeno número de casos sentenciados, assumindo o formato de um verdadeiro funil (COELHO, 1986COELHO, Edmundo Campos. “A administração da justiça criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967”. Dados, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 61-81, 1986., 1988COELHO, Edmundo Campos. “A criminalidade urbana violenta”. Dados, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 145-183, 1988.; SAPORI, 1995SAPORI, Luís Flávio. “A administração da justiça criminal numa área metropolitana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995.; VARGAS, 2004VARGAS, Joana Domingues. Estupro: Que justiça? Fluxo do funcionamento e análise do tempo da justiça criminal para o crime de estupro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.; RIBEIRO, 2010RIBEIRO, Ludmila; SILVA, Klarissa. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal brasileiro: Um balanço da literatura”. Cadernos de Segurança Pública, n. 1, p. 13-26, 2010.).

Gráfico 1
Fluxo de processamento do estupro de vulneráveis em Belo Horizonte (MG) entre 2015 e 2020

O primeiro processo de seleção e filtragem ocorre na decisão da PC em instaurar ou não o inquérito, verificando-se que, do total de 261 registros, 205 (79%) das ocorrências têm procedimentos investigativos instaurados.

Entre as 205 ocorrências formalmente aceitas e instauradas pela PC, 21 foram formalizadas como APFD, 179 como inquéritos por portaria e cinco como termo circunstanciado de ocorrência (TCO). A Tabela 1 apresenta os casos instaurados e o tipo de instauração na PCMG.

Tabela 1
Tipo de instauração do inquérito

A maioria absoluta dos casos, cerca de 87,3%, foram instaurados como inquéritos por portaria - quando não se sabe quem é o suspeito ou quando não há situação de flagrante -, em comparação com 10,2% em que os suspeitos foram autuados em flagrante delito - sendo lavrado o APFD. Por fim, 2,4% dos casos foram instaurados em TCO, situação em que o delegado de polícia, após a análise, considerou que a ocorrência se tratava delito de menor potencial ofensivo, previsto na lei no 9.099/95, artigo 61.

Conforme se infere, a situação de prisão flagrante delito nos casos de estupro de vulneráveis são menos comuns, em razão da natureza do crime que, via de regra, ocorre às escuras, em locais reservados envolvendo apenas a vítima e o autor, longe da presença de testemunhas e em ambiente intrafamiliar. Ademais, vale o registro no sentido de que, embora o estupro de vulneráveis seja um delito com elevado indicativo de autoria já no momento do registro, a demora da vítima em denunciar os fatos a polícia interfere nas possibilidades de autuação em flagrante delito dos suspeitos.

Ainda na fase policial, ocorre um segundo processo de seleção em que, das ocorrências registradas (261), apenas 54% (141) têm as investigações concluídas com emissão de um relatório final.

Considerando por sua vez os 205 casos instaurados como procedimentos investigativos pela PC, cerca de 141 foram concluídos com emissão do relatório final de investigação encontrado no sistema interno e em 64 não foram encontrados no sistema a peça relatório final, indicando a provável não conclusão das investigações.2 2 A metodologia de coleta de dados se limitou à consulta ao sistema, não tendo sido possível consultar os autos de inquéritos físicos. Algumas investigações podem ter sido concluídas com a emissão de um relatório final que não foi inserido no sistema, constando apenas como peça física e não sendo possível, portanto, sua contabilização. Sobre a questão tem-se a Tabela 2, sumarizando os dados relacionados aos casos em que foram localizadas a peça relatório final de investigação no sistema PCNET.

Tabela 2
Relatório finais de inquéritos policiais

Dos 141 procedimentos finalizados com relatórios, 124 tinham algum tipo de despacho, sendo 63 despachos finais com indiciamento dos autores e 61 despachos foram sem indiciamento, categoria interna utilizada para explicitar os casos nos quais, após a investigação, o delegado de polícia entendeu pelo não indiciamento face a ausência de elemento suficientes de autoria e/ou materialidade. Em 17 casos não foram localizadas as informações sobre os despachos finais, impossibilitando concluir qual foi a decisão do delegado quanto ao indiciamento.

Dos 63 casos em que houve despacho de indiciamento dos autores, ou seja, segundo análise jurídica do delegado havia elementos mínimos de autoria e materialidade, 14 foram iniciados por meio de APFD e 49 são originários de inquéritos policiais iniciados por meio de portaria, quando não se sabia quem era o suspeito ou quando não havia situação de flagrante.

Dando sequência ao fluxo do SJC, na próxima etapa, relacionada a fase processual, verificam-se novas perdas e apenas 28% dos casos inicialmente registrados têm denúncia oferecida pelo MP.

Dos 141 casos finalizados pela PC, houve apresentação de 73 denúncias pelo MP. Entre os 63 casos em que o delegado de polícia manifestou pelo indiciamento do autor, o MP ofereceu 47 denúncias; em 14 casos, o promotor não denunciou, discordando do delegado quanto aos elementos mínimos. Em dois desses casos não foi possível obtenção de informação. Dos 61 casos em que o delegado de polícia optou pelo não indiciamento do autor, houve discordância do promotor com oferecimento de dez denúncias, nos outros 50 casos o MP não apresentou as denúncias, e em um dos casos não foi possível a obtenção de informação. Conforme se verifica, o promotor de justiça e o delegado de polícia divergiram sobre aspectos jurídicos em pelo menos 24 casos apresentados. São divergências resultantes de interpretações distintas acerca da autoria e materialidade do delito eventualmente relatado no inquérito policial.

Entre os 73 casos denunciados pelo MP, 14 eram referentes a procedimentos investigativos iniciados como APFD, 58 eram de casos de inquérito instaurados por portaria e um caso denunciado pelo promotor era referente a instauração por meio de TCO, situação em que o delegado de polícia entendeu tratar-se de delito de menor potencial ofensivo, mais uma vez caracterizando a divergência entre promotor e delegado.

Os resultados alcançados na presente pesquisa apontando as divergências entre as decisões do MP e PC caracterizam rotinas organizacionais em que a depender do caso concreto, as instituições se articulam e concordam com o indiciamento e denúncia para mostrar como estão comprometidas com a política de controle do crime ou se desarticulam discordando em critério jurídicos aparentemente para evitar a responsabilização por sua ineficiência.

Se sucedem as filtragens na fase processual e apenas 45 (17%) dos casos registrados conseguem alcançar uma decisão de mérito do Judiciário (análise de absolvição e ou condenação do acusado). Por fim, do volume total de registros iniciais, apenas 13% culminam em condenações.

Entre os 45 casos que chegaram até a fase final do fluxo e receberam uma sentença de mérito, qual seja, de condenação ou absolvição, 22,2% (dez casos) são referentes a casos que foram iniciados como autor preso por meio de APFD e 77,8% (35 casos) são casos originários de procedimentos investigativos que se iniciaram sem indicação de autoria ou que o suspeito não estava em situação de flagrante sendo instaurado o inquérito por meio de portaria.

Por meio dos dados organizados verifica-se que em 73,3% (33 casos) as decisões de mérito são de condenações em comparação com 26,7% (12 casos) nas quais as decisões são de absolvições. Tem-se que entre os casos de estupro de vulneráveis que conseguem alcançar decisão de mérito no fluxo do SJC em Belo Horizonte a maioria é pela condenação.

Além das sentenças de mérito (45), foram localizados 73 casos com outros tipos de sentença ocorridas ao longo do fluxo, destacando-se 58 sentenças que tratam de arquivamento sem denúncia e processo, provavelmente situações em que os inquéritos, após análise e solicitação do MP, foram arquivados pelo juiz tratando de casos como, por exemplo, autores desconhecidos, provas insuficientes e fatos que não constituíam crimes. Também pode ocorrer a sugestão pelo arquivamento do inquérito, sem oferecimento da denúncia, nos casos em que o suspeito falece na fase policial, configurando uma das causas de extinção da punibilidade prevista no artigo 107, I do CPB.

A Tabela 3 identifica os 118 casos que tiveram algum tipo de sentença na fase processual. Verifica-se que entre os tipos de decisões judiciais encontrados nesta fase a maior concentração está entre as sentenças que determinaram o arquivamento dos procedimentos sem oferecimento de denúncias (49,2%) em comparação com as sentenças que analisaram o mérito dos processos (38, 2 %), sendo 33 de condenações e 12 de absolvições dos autores.

Tabela 3
Tipos de decisões judiciais

Visando verificar se a condição da prisão em flagrante delito poderia ter alguma influência sobre os casos que alcançaram sentenças de mérito com condenações e/ou absolvições dos acusados, foi feita uma tabulação cruzada entre o tipo de sentença e a condição de prisão em flagrante, apresentada na Tabela 4.

Tabela 4
Prisão em flagrante e sentença de mérito

Por meio dos dados sumarizados verifica-se que entre os 45 casos que receberam algum tipo de sentença de mérito, para os 33 casos em que houve condenação, 80% começaram a investigação com o suspeito preso em flagrante e 71,4% em liberdade. Entre os 12 casos que alcançaram sentença de absolvição, 20% tiveram as investigações iniciadas com o suspeito preso em flagrante delito e 28,6% começaram as investigações com o suspeito em liberdade. Os dados permitem inferir que, para efeitos de condenação e ou absolvição, no delito de estupro de vulneráveis, a prisão em flagrante parece não interferir na produtividade do sistema.

A produtividade no fluxo de processamento

Na pesquisa também foram apresentados os resultados de mensuração do tempo de processamento dos delitos de estupro de vulneráveis, observando o decurso em cada uma das fases nas organizações envolvidas no SJC em Belo Horizonte, procurando compreender algumas situações que pudessem interferir para a redução ou dilatação dos prazos para a conclusão do caso.

A partir da consulta e compatibilização das informações constantes dos sistemas foi gerada uma base de dados catalogando as principais datas ao longo do fluxo, considerando especialmente as datas de comunicação dos fatos, instauração dos inquéritos, conclusão dos inquéritos, oferecimento das denúncias e sentença em primeira instância. Para a análise do tempo de processamento conforme anteriormente explicitado, foi realizado um recorte entre os 261 casos de estupro de vulneráveis, envolvendo autores maiores de 18 anos, registrados em 2015, selecionando todos os casos que possuíam algum tipo de sentença de mérito ou não em 2020, restando identificados 118 casos.

Para a análise dos cálculos, foi observada também a condição do acusado no início do procedimento, se preso em flagrante ou em liberdade, visando entender o tempo despendido em cada caso, pretendendo enriquecer um pouco mais o modelo de análise avançando do campo descritivo para o explicativo, tentando apontar não somente o panorama do SJC do delito de estupro de vulneráveis, mas verificar se essa condição de flagrante ou não no início das investigações seria fator determinante do tempo3 3 Vale aqui fazer uma ressalva metodológica. Na base de dados quantitativa construída, somente foi possível verificar essa condição de prisão no momento da instauração do inquérito, não tendo sido possível fazer uma análise mais acurada sobre essa condição do acusado ao longo do restante do fluxo, diante dos recursos disponíveis e do prazo para a conclusão da pesquisa. .

A temporalidade do fluxo realizada nesta pesquisa considera duas medidas de tendência centrais, a média e a mediana, além da medida de dispersão ou variabilidade, o desvio-padrão. A média consiste no somatório dos tempos de todos os casos dividido pela quantidade dos que foram considerados válidos em determinada fase. Essa medida pode ser suscetível a variações em razão da presença de espaços temporais muito longos ou muito curtos e nesses casos, para a análise, deve-se dar mais ênfase à mediana. A mediana consiste na medida posicional, representando o valor temporal que divide a série em dois grupos iguais, organizados em ordem de grandeza crescente que não sofre impactos pela existência de valores extremos (MJ, 2014MJ. Mensurando o tempo do processo de homicídio doloso em cinco capitais. Brasília: Secretaria de Reforma do Judiciário, 2014.). O desvio-padrão, representa a distância entre cada um dos valores de tempo e a média gerada, ou seja, é a medida de capacidade da média em representar o fenômeno que se está estudando (RIBEIRO, MACHADO e SILVA, 2012RIBEIRO, Ludmila; MACHADO, Igor; SILVA, Klarissa. “Tempo na ou da justiça criminal brasileira: Uma discussão metodológica”. Opinião Pública, v. 18, n. 2, p. 355-382, 2012.).

Para melhor compreensão do tempo de processamento do delito de estupro de vulneráveis pelo SJC em Belo Horizonte, optou-se pela construção de uma tabela representando o prazo legal previsto no Código de Processo Penal (CPP) para cada procedimento no rito comum ordinário, considerando as situações de acusado/ réu preso ou em liberdade. Na Tabela 5, foram sumarizados os prazos previstos para o processamento dos delitos de estupro de vulneráveis, iniciando do IP até a sentença em primeira instância.

Tabela 5
Prazos processuais para o crime de estupro de vulneráveis segundo CPP

De acordo com os dados sumarizados é possível afirmar que o CPP prescreve como tempo de duração legal do processo de estupro de vulneráveis da instauração do IP até a sentença em primeira instância um prazo de 135 dias para os casos de réu solto e 105 dias para os casos de réu preso.

Considerando o parâmetro de morosidade legal estabelecido no CPP todo o processo de estupro de vulneráveis deveria estar concluído em torno de 4 meses4 4 Havendo pequenas variações entre os casos de réu preso em flagrante (média de 3,5 meses) e casos de réu em liberdade (4,5 meses). , o que é uma regra bastante incompatível com a morosidade real do SJC em Belo Horizonte, demonstrada nos resultados da presente pesquisa, em que o tempo total médio necessário é de 968 dias, quase 2 anos e 8 meses, para que o caso percorra todas as fases desde a comunicação do fato até a sentença em primeira instância. A Tabela 6 representa a análise do tempo total do fluxo no SJC para o delito de estupro de vulneráveis.

Tabela 6
Tempo (medido em dias) entre a data da comunicação e a data da sentença

Diante da análise do tempo total e à análise das médias de tempo em cada fase - policial de investigação ou pré-processual (que vai da instauração ao relatório final), ministerial (do recebimento do IP à denúncia) e judicial (da denúncia à sentença em primeira instância) -, conclui-se que o prazo real de morosidade necessária no fluxo de processamento dos casos de estupro de vulneráveis em Belo Horizonte é demasiadamente longo - quase 2 anos e 8 meses da comunicação do fato à sentença - e ultrapassa muito a morosidade legal prevista no CPP. Na Tabela 7, foram sumarizados os tempos médios de duração em cada fase do SJC.

Tabela 7
Tempo médio de duração nas fases do SJC para o delito de estupro de vulneráveis

A fase policial investigativa inicia-se após o registro da ocorrência, de modo que o delegado de polícia, ao tomar conhecimento do crime registrado, deverá instaurar o inquérito policial para a realização das diligências necessárias ao esclarecimento do fato, com identificação da autoria e materialidade delitivas. Não há previsão legal expressa quanto ao prazo para o início das investigações, e a instauração, via de regra, se dará por meio de APFD ou portaria.

Na presente pesquisa, considerando os 118 casos que tiveram algum tipo de sentença proferida pelo Judiciário, constatou-se que 98 foram instaurados por meio de portaria, 15 foram instaurados por meio de APFD e cinco foram instaurados como TCO.

Entre o registro da ocorrência e a instauração dos inquéritos policiais, considerando volume total dos 118 casos, o tempo médio encontrado foi de 6,64 dias. O tempo mínimo encontrado foi de zero dias, indicando que a instauração ocorreu no mesmo dia do registro e o tempo máximo para instauração encontrado foi de 127 dias. O desvio-padrão foi de 19,5 dias.

Na análise do tempo foi observada a condição do acusado no início do procedimento, se preso em flagrante ou em liberdade, uma vez que os prazos legais diferem conforme cada caso. Dos 118 casos com algum tipo de sentença, 15 casos correspondiam a prisão em flagrante e nesses a média para a instauração foi de 0,40 dias, 11 casos foram instaurados no mesmo dia da data da comunicação do registro e quatro casos foram instaurados no dia seguinte ao registro.

Nos casos iniciados com o suspeito em liberdade, a média desde o registro da ocorrência e a instauração do inquérito policial foi de 7,55 dias, tempo tido como elevado se considerarmos a natureza do delito e que, quanto mais cedo forem iniciadas as investigações, maior a probabilidade de esclarecimento do fato criminoso. A Tabela 8 sumariza os dados encontrados entre a data da comunicação do fato no Reds e a data do aceite/instauração da ocorrência no PCNET.

Tabela 8
Tempo (medido em dias) entre a data da comunicação e a data do aceite

Após a instauração do inquérito, o CPP estabelece um prazo de 30 dias para a conclusão das investigações nos casos de suspeitos em liberdade e de dez dias para suspeitos presos. Este prazo pode ser prorrogado por mais 30 dias, mediante solicitação do delegado de polícia e autorização judicial. Na prática, o que se percebe é que a dilação de prazo nas investigações tende a se estender muitas vezes sem estabelecimento de um prazo fixo legalmente instituído para a prorrogação. As dilações de prazo trazem consequências legais, como a liberação do acusado quando estiver preso e quando solto o prazo limite é o da prescrição do fato.

Encerrada as investigações do caso, o delegado de polícia deverá emitir um relatório final esclarecendo o que foi apurado, demarcando o fim da fase investigativa. Analisando o tempo encontrado na presente pesquisa desde a instauração do inquérito até a emissão de relatório final observou-se que o tempo para a conclusão varia entre zero e 1.581 dias.

Tabela 9
Tempo (medido em dias) entre a data do aceite e a data do relatório final do IP

Neste caso, face aos valores extremos encontrados entre o tempo mínimo e o máximo, para a análise deve-se dar mais ênfase a mediana, demonstrando que, entre os casos válidos que tiveram algum tipo de sentença, são necessários uma média de 372 dias desde a instauração do inquérito para a conclusão das investigações com emissão do relatório final, cerca de 12 vezes mais que o prazo legal previsto. Registre-se que esta medida é a tendência central de prazo para o encerramento da fase policial de investigações ou fase pré-processual.

O tempo verificado nessa fase da pesquisa denota a frequente autorização para dilação de prazo da investigação sem qualquer controle e fiscalização por parte do Ministério Público e/ou Judiciário. Conforme previsto na Constituição Federal, o MP tem a tarefa de fiscalizar a polícia, principalmente a investigação, a fim de que o IP dê suporte a ação penal de que ele é o titular. MP e PC deveriam, sob o ponto de vista formal, ser complementares na atividade de investigar.

Fazendo um filtro na análise, considerando as investigações que se iniciaram com suspeito preso em flagrante delito, observou-se também uma grande variação entre o tempo mínimo (dois dias) e máximo (783 dias), verificando-se que entre os casos analisados a tendência central entre os valores discrepantes mais relevante é a mediana de nove dias para a conclusão da investigação com emissão do relatório final. Nos casos dos suspeitos que tiveram investigações iniciadas em liberdade a mediana para a conclusão desta fase é de 477 dias. Nessa fase da investigação, a prisão em flagrante parece atuar como elemento que reduz a quantidade de dias.

A queda na média em dias encontrada nesta fase, para os casos de flagrante delito, tem algumas razões principais. Uma no sentido de que quando há a prisão em flagrante do autor, o procedimento tem obrigatoriedade legal em andar mais rápido. Outra circunstância que se verifica nos procedimentos que se iniciam com o autor preso em flagrante é uma maior facilidade para a conclusão das investigações, pois a localização e oitiva das testemunhas e interrogatório do suspeito são, via de regra, priorizadas e de certa forma de mais fácil cumprimento. Registre-se que, a medida de tendência central do prazo em dias para a conclusão das investigações nos casos de prisão em flagrante delito permanece dentro do prazo legal5 5 Ressalva-se aqui que o número de casos de flagrante é bastante pequeno, apenas 15 casos válidos, não permitindo talvez uma generalização do resultado. .

No fluxo de processamento do delito, após a emissão do relatório final de investigações, o procedimento é remetido à justiça, sendo dado “vistas” ao MP que fará as suas análises para as providências que entender cabíveis. Na presente pesquisa ficaram evidentes situações em que inquéritos policiais relatados, após a análise do Ministério Público, eram devolvidos pela justiça à delegacia de polícia, provavelmente em razão do lançamento de cotas ministeriais com requerimento para realização de novas diligências ou situações em que o procedimento investigativo já concluído com relatório era redistribuído entre as varas judiciais6 6 Na presente pesquisam quando da organização da base de dados, foram verificadas situações de redistribuição de IP concluídos entre a vara especializada e varas criminais face a alteração de competência. Sobre isso ver Art. 4º da resolução TJMG no 729/2013 alterada pela resolução do Órgão Especial n o 869/2018. .

No momento da coleta dos dados, verificando as circunstâncias citadas, optou-se por catalogar na base de dados organizada um registro temporal caracterizado como “data do último recebimento do inquérito na justiça”, para tentar identificar a efetiva data em que o inquérito policial foi entregue na secretaria do juízo e não mais voltou para a delegacia, delimitando o fim da fase policial de investigações, permitindo com isso registrar fatores que poderiam influenciar nos prazos após a elaboração do relatório final de investigações e antes da fase processual propriamente dita.

Neste caso, comparando as datas do relatório final de investigações e a derradeira data em que o procedimento investigativo foi enviado à justiça e não mais voltou para a delegacia, verificou-se entre os casos válidos (90 casos), um prazo médio 118 dias entre as datas.

Foram encontrados casos em que a data do relatório final e a data do último recebimento do inquérito na justiça eram a mesma, demonstrando que o procedimento foi concluído pela polícia e enviado para a justiça no mesmo dia e que não mais voltou para cumprimento de diligências seguindo o seu fluxo na fase seguinte. Em contrapartida, houve casos em que, partindo da data do relatório final até a data do último recebimento do inquérito na Justiça, transcorreram 1.546 dias, demonstrando um prazo absurdamente longo para efetiva transição da fase policial para as fases subsequentes, o que pode ter sido motivado pelo cumprimento de novas diligências solicitadas por meio de cotas ministeriais inseridas nos inquéritos relatados e ainda sucessivas solicitações de dilação de prazo para o cumprimento.

Tabela 10
Tempo (medido em dias) entre a data do relatório final e a data do último recebimento do IP na justiça

Os resultados sumarizados na Tabela 10 são bastante preocupantes, pois, conforme verificado na pesquisa, partindo da instauração do inquérito, para se alcançar um relatório final de investigações pela PC já transcorrem em média 372 dias, tempo muito superior aos prazos legais previstos para a conclusão das investigações (dez dias se autor preso e 30 dias de solto) e para que o procedimento consiga transitar da fase policial para a fase seguinte (com ações efetivas do MP), ainda podem ser acrescidos vários meses. Com essa lógica atuação distinta entre as instituições, sem nenhum tipo de articulação ou comunicação, o andamento dos casos acaba ficando sensivelmente prejudicado e protelatório.

Dando sequência na análise do tempo no fluxo de processamento dos delitos, tem-se a fase ministerial que compreende o período entre a entrega do inquérito policial ao Ministério Público e a denúncia. Os valores mínimos e máximos encontrados na pesquisa demonstraram grande variação, por esta razão concentrou-se nos valores da mediana como medida de tendência central mais relevante como parâmetro para mensuração da eficiência do MP.

Os resultados encontrados demonstram uma mediana de 70 dias para que o caso entregue na justiça tenha oferecimento/recebimento de denúncia. Filtrando os casos que se iniciaram com suspeitos presos em flagrante delito verifica-se que transcorrem cerca de 30 dias para que seja oferecida/recebida a denúncia. Nos casos de IP instaurados por meio de portaria, com suspeito em liberdade, a mediana é de 75,5 dias para que a denúncia ofertada pelo MP seja recebida.

Os prazos encontrados na pesquisa demonstram um tempo bastante superior aos prazos legais previstos no CPP que estabelece 15 dias para oferecimento da denúncia nos casos de acusados soltos e cinco dias para acusados presos. O que se verifica nesta fase é um prazo real excessivamente longo, diante da simplicidade da medida, visto que cabe ao promotor, na denúncia, apenas expor o fato criminoso e as suas circunstâncias, classificar o crime e qualificar o acusado. E essas informações, na maioria das vezes, estão presentes de forma resumida nos relatórios policiais que acompanham os inquéritos remetidos ao MP, de forma que a denúncia, geralmente se resume na simples repetição do que está disposto no inquérito.

Acredita-se que os prazos reais encontrados nesta fase, que são cerca de cinco vezes maiores que os prazos legais estabelecidos, possam também ser influenciados pelas ações protocolares desencadeadas pelos ajustes ocorridos por meio de resolução do TJMG7 7 Resolução do Órgão Especial TJMG n o 869/2018. na comarca de Belo Horizonte pertinente a mudança de competência da vara especializada para outras varas criminais quando as vítimas completam 18 anos de idade. Essa é uma condição avaliada pelos promotores quando recebem os inquéritos policiais concluídos na vara especializada, antes de oferecer a denúncia pertinente, verificam a idade da vítima, se ela naquele momento, tiver implementado a idade limite, manifestam-se ao juiz que declinará da competência, redistribuindo o IP para outra vara criminal. O procedimento então será cadastrado na nova secretaria do juízo competente e remetido para outro promotor que tenha atuação nessa nova vara, quando enfim este novo representante do MP reavaliará o IP concluído para, só então, oferecer a pertinente denúncia quando for o caso. Este vai e vem entre as varas, com a redistribuição do inquérito, por vezes concluído, para novos promotores de justiça, certamente acaba atrasando a atuação do MP quando do oferecimento da denúncia, dilatando ainda mais o prazo para a conclusão desta fase do fluxo.

Após o oferecimento/recebimento da denúncia transfere-se a responsabilidade pelo processamento do caso ao Judiciário, que deverá tomar todas as decisões no fluxo processual, além de conduzir a fase de instrução do processo, com interrogatório do réu, oitiva de testemunhas, alegações finais e sentença, que pode condenar ou absolver o acusado. A partir daqui tem-se a fase judicial do fluxo, delimitada pelo tempo encontrado entre a denúncia do Ministério Público até a sentença em primeira instância.

Dentre os casos válidos analisados constatou-se que o tempo entre a denúncia e a sentença em primeira instância pode variar de 95 a 1340 dias. Nesse caso, diante dos valores extremos que distorcem a média, a medida de tendência central de maior relevância deve ser a mediana que registra 486 dias para que se conclua a fase processual até a sentença em primeira instância.

Tabela 11
Tempo (medido em dias) entre a denúncia e a sentença

Fazendo um filtro entre os casos que se iniciaram com suspeito preso em flagrante delito tem-se uma mediana de 578 dias, maior que os 482,5 dias encontrados para os casos que se iniciaram com o suspeito em liberdade. Conforme os dados sumarizados na Tabela 11, a Justiça demora mais tempo para processar os casos que se iniciaram com os suspeitos preso em flagrante delito. Na fase judicial do SJC, para o delito de estupro de vulneráveis, a prisão em flagrante não parece atuar como elemento que reduza a quantidade de dias. Acredita-se que essa média em dias superior para os casos iniciados com prisão em flagrante possa ser decorrente do fato de que, normalmente, as prisões em flagrante acabam convertidas em prisões processuais que permanecem até a sentença final e com a restrição da liberdade do cidadão, na Vara Especializada em Belo Horizonte, se desencadeiam um maior número de pedidos da defesa e recursos processuais, que podem atrasar o andamento dos feitos nesta fase judicial.

Filtrando os casos que se iniciaram com o suspeito preso em flagrante delito, o tempo total varia de 41 a 1.642 dias entre a comunicação do fato e a sentença. Considerando a grande variação entre os tempos mínimos e máximos encontrados, a medida de tendência central mais relevante a ser considerada é a mediana, em que se verifica a necessidade de 665 dias para que um caso iniciado com o suspeito preso em flagrante tenha seu processamento completo desde o registro até a sentença em primeira instância. O tempo total de 665 dias para casos de suspeitos presos em flagrante é cerca de seis vezes maior que o prazo legal previsto.

Para os casos que se iniciaram com o suspeito em liberdade o tempo total do fluxo de processamento varia entre 64 e 1922 dias. Os valores extremos encontrados acabam por distorcer a média, logo, nos concentrando nos resultados da mediana como tendência central verificou-se que são necessários 992 dias para o processamento completo desde a comunicação do crime até a sentença. O tempo total de 992 dias é sete vezes maior que o prazo previsto em lei.

A queda em dias entre os prazos totais, desde a comunicação do fato à sentença em primeira instância, para os casos iniciados com o acusado preso em flagrante delito se justifica, pois, conforme demonstrado, a situação de flagrante tende a simplificar a coleta de provas na fase de investigação, diminuindo os prazos nessa fase inicial pré-processual. Entretanto, deve-se registrar que, conforme visto no tópico anterior, quando se adentrou na fase judicial, a condição de prisão em flagrante do autor, parece impactar com o aumento em dias para o julgamento por parte do Judiciário.

Considerações finais

Esse artigo se insere nas discussões sociológicas sobre a violência, criminalidade e sistema de justiça no contexto brasileiro e buscou compreender como funciona o fluxo de processamento em Belo Horizonte para o delito de estupro de vulneráveis. Para avaliar a efetiva capacidade da justiça em detectar, processar e punir os autores dos crimes, foram consideradas as dimensões da produção e da produtividade, tendo os dados sumarizados na pesquisa, apontado para uma ineficiência no fluxo do SJC.

Quanto a dimensão de produção, a reconstituição do fluxo realizada demonstrou o formato de funil, iniciado com grande volume de casos registrados, sofrendo sucessivas seleções e filtragens, terminando com um pequeno número de casos sentenciados e com um número ainda menor de condenados. Esses achados, confirmaram a tendência apontada em outros estudos (COELHO, 1986COELHO, Edmundo Campos. “A administração da justiça criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967”. Dados, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 61-81, 1986., 1988COELHO, Edmundo Campos. “A criminalidade urbana violenta”. Dados, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 145-183, 1988.; RIBEIRO, 2010RIBEIRO, Ludmila; SILVA, Klarissa. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal brasileiro: Um balanço da literatura”. Cadernos de Segurança Pública, n. 1, p. 13-26, 2010.; SAPORI, 1995SAPORI, Luís Flávio. “A administração da justiça criminal numa área metropolitana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995.; VARGAS, 1997VARGAS, Joana Domingues. Fluxo do Sistema de Justiça Criminal para crimes sexuais. A organização policial. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 1997., 2004).

A pesquisa realizada permitiu a mensuração das taxas de esclarecimento, processamento, sentenciamento e condenações, confirmando hipóteses quanto a fragilidade do SJC para responder as demandas que chegam ao seu conhecimento. Analisando a distribuição percentual dos dados, observam-se dois principais gargalos, um na passagem da fase policial para a ministerial em que apenas 28% dos casos registrados foram denunciados e outro na fase judicial onde apenas 17% dos casos conseguiu alcançar uma sentença de mérito. Por fim, registrou-se uma taxa de condenações de 13%.

Pertinente a dimensão de produtividade de processamento dos casos, a reconstituição do fluxo realizada na pesquisa demonstrou que todas as fases do SJC (investigativa, processual e judicial) sofrem de uma morosidade real excessiva, muito superior à morosidade legal prevista no CPP. O tempo médio total de processamento dos casos, desde comunicação do fato até a sentença em primeira instância, é de 968 dias (quase 2 anos e 8 meses), prazo demasiadamente longo e que ultrapassa em 7 vezes a morosidade legal.

Na fase policial de investigação, o tempo médio necessário desde a instauração do inquérito para a conclusão das investigações com emissão do relatório final é de 372 dias, cerca de 12 vezes mais que o prazo legal previsto. Na fase ministerial, constatou-se a necessidade de um tempo médio de 70 dias (5 vezes mais que o prazo legal), para que o inquérito concluído entregue na justiça tenha o oferecimento/recebimento de denúncia. A fase judicial por sua vez, foi a que se apresentou mais morosa, demandando um tempo médio necessário de 486 dias para que se conclua a fase processual até a sentença em primeira instância.

O artigo considerou também se a condição do acusado preso em flagrante delito no início das investigações poderia influenciar na produção e no tempo de processamento do delito de estupro de vulneráveis no SJC. Os dados sumarizados apresentaram evidências de que, para efeitos de condenação e ou absolvição, no delito de estupro de vulneráveis, a prisão em flagrante parece não interferir na produtividade. Entre os 45 casos que receberam algum tipo de sentença de mérito, para os casos em que houve condenação, 80% começaram a investigação com o suspeito preso em flagrante e 71,4%, em liberdade. Entre os casos que alcançaram sentença de absolvição 20% tiveram as investigações iniciadas com o suspeito preso em flagrante delito e 28,6% começaram as investigações com o suspeito em liberdade.

Pertinente ao tempo de processamento dos casos que se iniciaram com prisão em flagrante delito, a pesquisa constatou que, na fase de investigação, essa condição parece atuar como elemento que reduz a quantidade de dias, onde a PC gasta um tempo médio de nove dias para concluir as investigações, única situação em que o tempo de morosidade real atende a morosidade legal prevista no CPP. Já os casos iniciados com suspeitos soltos o tempo para a conclusão da investigação gira em torno de 477 dias. Acredita-se que a queda na média em dias encontrada nesta fase para os casos de flagrante delito tem duas razões principais. Uma no sentido de que quando há a prisão em flagrante do autor o procedimento tem obrigatoriedade legal em andar mais rápido. E a outra circunstância estaria relacionada a uma maior facilidade para a conclusão das investigações, pois a localização e oitiva das testemunhas e interrogatório do suspeito são, via de regra, priorizadas e de certa forma de mais fácil cumprimento.

O mesmo não ocorre, porém, no tempo de processamento da fase judicial do SJC, que vai da denúncia à sentença em primeira instância, pois a condição de prisão em flagrante dos autores no início do procedimento atua como elemento que aparentemente amplia a quantidade em dias nessa fase. O tempo na fase judicial para os casos que se iniciaram com suspeito preso em flagrante delito é de 578 dias, maior que o tempo de 482,5 dias encontrado para os casos que se iniciaram com o suspeito em liberdade. Infere-se que a ampliação do prazo de processamento nesta fase judicial seja influenciada por um número maior de pedidos da defesa e manobras processuais decorrentes das conversões das prisões em flagrante em prisões processuais que costumam permanecer até a sentença.

Os dados encontrados referentes a um maior tempo de processamento entre a denúncia e sentença para os casos de estupro de vulneráveis iniciados com os suspeitos preso em flagrante delito parecem apontar conclusão oposta ao verificado por Ribeiro, Rocha e Couto (2017)RIBEIRO, Ludmila; ROCHA, Rafael Lacerda Silveira; COUTO, Vinícius Assis. “Nas malhas da justiça: Uma análise dos dados oficiais de indiciados por drogas em Belo Horizonte (2008-2015)”. Opinião Pública, v. 23, n. 2, p. 397-428, 2017. que, analisando as Varas Criminais de Tóxicos em Belo Horizonte, concluíram que os flagrantes contribuíam para as metas de eficiência, funcionando como alavanca da justiça linha de montagem.

O SJC em Belo Horizonte, para o delito de estupro de vulneráveis, parece não operar sob o paradigma da “justiça em linha de montagem” (SAPORI, 1995SAPORI, Luís Flávio. “A administração da justiça criminal numa área metropolitana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995.), diferente dos casos de tráfico de drogas onde nas Varas de Tóxicos da capital, com ajustes informais entre os órgãos integrantes do sistema, para aqueles que estão nas malhas da justiça, sob a máxima da eficácia, se reduz o tempo de processamento entre a denúncia e a sentença, sob a máxima da eficiência suprime-se direitos e garantias com condenações com base em depoimento policial e sob a máxima da efetividade aumenta-se cada vez mais a quantidade de presos por tráfico de drogas no país (RIBEIRO, ROCHA e COUTO, 2017RIBEIRO, Ludmila; ROCHA, Rafael Lacerda Silveira; COUTO, Vinícius Assis. “Nas malhas da justiça: Uma análise dos dados oficiais de indiciados por drogas em Belo Horizonte (2008-2015)”. Opinião Pública, v. 23, n. 2, p. 397-428, 2017.).

A análise e interpretação dos dados organizados na presente pesquisa evidenciou ainda a frouxa articulação entre as organizações que compõem o SJC, fator apontado por Sapori (2007)SAPORI, Luís Flávio. Segurança pública no Brasil: Desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2007. como uma das causas da fragilidade e ineficiência do sistema de justiça brasileiro. Ficou evidente em diversos momentos a falta de articulação entre o MP e a PC, por exemplo quando da divergência sobre elementos jurídicos mínimos de autoria e materialidade que justificassem o oferecimento das denúncias.

No contexto da frouxa articulação, observa-se ainda o efeito “pingue-pongue” do inquérito entre o MP, PC e Justiça, no qual o vai em vem do inquérito ficou caracterizado nos prazos encontrados nas fases policial de investigação e ministerial. A mensuração dos prazos na pesquisa, evidenciou vários casos que denotavam dilações de prazo excessivas para a conclusão dos inquéritos e emissão do relatório final, sem qualquer controle ou fiscalização do por parte do MP e do juiz. Também ficaram caracterizadas situações em que inquéritos já relatados continuavam tramitando entre Justiça e delegacia, muito provavelmente em razão das cotas ministeriais lançadas nos casos.

A frouxa articulação e os ajustes informais entre as instituições integrantes do sistema de justiça ficam evidentes quando percebemos que o MP que tem a tarefa constitucional de fiscalizar a Polícia, sobretudo a investigação, de modo que o inquérito dê suporte à ação penal de que ele é o titular, na prática, ao receber os inquéritos policiais com solicitações por dilações de prazo para a conclusão das investigações, ao invés de realizar uma análise mais acurada e individualizada para viabilizar o fluxo do sistema, simplesmente “carimba papéis”, concordando com as dilações que inúmeras vezes são representadas pelo delegado de polícia.

Os dados empíricos permitem concluir que a lógica de atuação distinta entre as instituições do SJC, caracterizada pela frágil articulação entre elas, parece prejudicar sensivelmente a qualidade e a celeridade das investigações policiais e, consequentemente, dos processos até a conclusão com sentença (VARGAS e RODRIGUES, 2011VARGAS, Joana Domingues; RODRIGUES, Juliana Neves Lopes. “Controle e cerimônia: O inquérito policial em um Sistema de Justiça Criminal frouxamente ajustado”. Sociedade e Estado, v. 26, p. 77-96, 2011.). Eventualmente, uma maior integração entre os órgãos que compõem o sistema, especialmente MP e PC, por meio de mecanismos de comunicações mais eficientes, poderiam melhorar expressivamente o cenário atual. E nesse sentido, a viabilização operacional do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) poderia intensificar tal cooperação institucional. Criado por lei federal aprovada pelo Congresso Nacional em 2018, o Susp disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, prevendo a participação do MP e do Judiciário. Pauta-se pela coordenação, cooperação e colaboração dos órgãos e instituições componentes. Quando for efetivamente implementado, o Susp tende a se constituir em arranjo institucional atenuador da frouxa articulação do aparato organizacional do SJC.

  • 1
    Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
  • 2
    A metodologia de coleta de dados se limitou à consulta ao sistema, não tendo sido possível consultar os autos de inquéritos físicos. Algumas investigações podem ter sido concluídas com a emissão de um relatório final que não foi inserido no sistema, constando apenas como peça física e não sendo possível, portanto, sua contabilização.
  • 3
    Vale aqui fazer uma ressalva metodológica. Na base de dados quantitativa construída, somente foi possível verificar essa condição de prisão no momento da instauração do inquérito, não tendo sido possível fazer uma análise mais acurada sobre essa condição do acusado ao longo do restante do fluxo, diante dos recursos disponíveis e do prazo para a conclusão da pesquisa.
  • 4
    Havendo pequenas variações entre os casos de réu preso em flagrante (média de 3,5 meses) e casos de réu em liberdade (4,5 meses).
  • 5
    Ressalva-se aqui que o número de casos de flagrante é bastante pequeno, apenas 15 casos válidos, não permitindo talvez uma generalização do resultado.
  • 6
    Na presente pesquisam quando da organização da base de dados, foram verificadas situações de redistribuição de IP concluídos entre a vara especializada e varas criminais face a alteração de competência. Sobre isso ver Art. 4º da resolução TJMG no 729/2013 alterada pela resolução do Órgão Especial n o 869/2018.
  • 7
    Resolução do Órgão Especial TJMG n o 869/2018.

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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2022
  • Aceito
    06 Dez 2022
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