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O ‘egressante’: Notas sociológicas para a construção de um personagem do sistema penal

The ‘In-Egression’: Sociological Notes for the Construction of a Character of the Penal System

Resumos

O objetivo deste artigo é caracterizar o personagem chamado por mim de “egressante”, em referência a pessoas condenadas à privação de liberdade que se encontram cumprindo benefícios penais em meio aberto. Para tanto, mobilizo um exemplo empírico paradigmático retirado de uma pesquisa sobre as carreiras morais desses atores, desenvolvida por meio da realização de 23 entrevistas com egressantes do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, centradas em suas biografias, sobretudo no crime, na prisão e no retorno à sociedade mais ampla. Minha hipótese é que esse personagem tem seus modos de avaliação e julgamento transformados pela experiência de encarceramento, o que conduz a uma revisão identitária no processo de egressão do sistema fundamentada no que venho chamando de “ressaca”.

Palavras-chave:
crime; prisão; moral; ressaca; egressante


The ‘In-Egression’: Sociological Notes for the Construction of a Character of the Penal System aims to describe the character I call ‘egressante’ (‘in-egression’), referring to convicts who are serving the so-called ‘criminal benefits’ (such as parole) in liberty. For this purpose, I analyze an example from research on their ‘moral careers’ based on a sample of 23 interviews with in-egressions from Rio de Janeiro’s penitentiary system. The interviews focused on these actors’ biographies especially on crime life, imprisonment, and re-entry to broader society. My hypothesis is that the in-egression has modes of evaluation and judgment transformed by the experience of incarceration, which leads to an identity reassessment during the process of egression of the system, based on what I’ve been designating as ‘hangover’.

Keywords:
crime; prison; moral; hangover; in-egression


Neste texto, apresento reflexões oriundas de uma pesquisa na qual analisei a carreira moral de pessoas que se encontram em processo de egressão do sistema penitenciário fluminense (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Tomo a “carreira moral” nos termos definidos por Goffman (1961)GOFFMAN, Erving. Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates. Nova York: Doubleday Anchor, 1961. em seu estudo sobre as instituições totais1 1 Em síntese, uma instituição total pode ser definida como um local onde um grande número de pessoas experimenta uma situação semelhante, apartada da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levando uma vida fechada e formalmente administrada. Trata-se, portanto, de um híbrido social: parcialmente uma comunidade residencial e parcialmente uma organização formal. Para Goffman, esse hibridismo confere às instituições totais uma capacidade de transformação de pessoas, constituindo verdadeiras “estufas” (GOFFMAN, 1974[1961], p. 22) que nos dizem o que se pode fazer ao self de um indivíduo. Exemplos desse tipo de instituição, bastante explorados pelo autor, são as prisões e os hospitais de saúde mental. , ou seja, como a “sequência regular de mudanças provocadas no self2 2 Como discutirei adiante, o self é uma unidade de individuação sígnica fundamentalmente social, cujo modo de se inserir no mundo é envolto em uma economia dos significados que cada um representa para si mesmo e para os outros e na influência que esses sentidos para os outros produz sobre cada um. da pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros” (p. 128). Partindo dessa definição, argumentei em trabalho anterior que o que há de moral na carreira moral é a alteração da máquina valorativa/avaliativa dos atores sociais a respeito de si e do mundo, o que gera algum impacto sobre as suas noções de identidade (PORTO, 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019.). Isso significa dizer que o ator conformado pela instituição total tem sua própria moralidade revista, passando a valorar e julgar as coisas segundo outra chave.

No que concerne ao processo de encarceramento, esse estágio de revisão parece ser estruturado pelo que venho chamando de “ressaca” (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017., 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019., 2021): uma resistência automática, instantânea - e eterna enquanto dure3 3 Como demonstrarei a seguir, a ressaca se apresenta como vontade perene, embora não o seja necessariamente. De fato, o importante acerca desse fenômeno é menos a sua duração efetiva e mais a sua intenção de durabilidade. - contra tudo e todos que conduziram - ou que poderiam conduzir novamente - os atores à prisão. A ressaca se apresenta como um reflexo da experiência intramuros, mais especificamente do sofrimento acometido no cárcere, a partir da qual os atores releem e descrevem suas trajetórias na chave do accountability social circunstancial, oferecendo desculpas (SCOTT e LYMAN, 2008SCOTT, Marvin B.; LYMAN, Stanford M. Accounts. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 139-172, 2008[1968].[1968]; WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) para os seus percursos. Nesse quadro, as práticas que levaram à condenação são ressignificadas em suas narrativas como uma “ilusão” ou um “desatino”, a depender de suas trajetórias. Como apresentarei a seguir, o par ressaca/desculpas parece constituir uma manobra identitária, a partir da qual os atores não se reconhecem - no sentido deweyano (1980DEWEY, John. Art as Experience. Nova York: A Perigee Book, 1980.) do termo - naquele que foi objeto de incriminação (MISSE, 1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.) e encarceramento.

O objetivo do presente artigo é demonstrar como esse processo se estabelece a partir do caso empírico de Fabrício4 4 A fim de preservar a identidade de meu entrevistado, seu nome é fictício. , cuja trajetória é tomada por mim em três fases - pré-cárcere, encarceramento e pós-cárcere (GOFFMAN, 1961GOFFMAN, Erving. Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates. Nova York: Doubleday Anchor, 1961.) -, congruentes com os principais marcadores biográficos apontados pelos atores durante a pesquisa. Fabrício, como os demais participantes, foi incriminado pelo Sistema de Justiça Criminal (SJC) e condenado à pena de prisão, onde alcançou os chamados “benefícios penais”, concedidos pela Vara de Execuções Penais (VEP) do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (PJERJ), que converte a pena privativa de liberdade em pena restritiva de (outros) direitos. Assim sendo, ele compõe a parcela de 14% da população carcerária do estado do Rio que cumpre Liberdade Condicional (LC), Prisão Albergue Domiciliar (PAD), Prisão Albergue Domiciliar Monitorada (PADM), Limitação de Final de Semana (LFS), Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) e/ou Suspensão Condicional da Pena (Sursis).5 5 A configuração e as exigências de cada um desses benefícios são bastante similares. Os únicos que compreendem especificidades em relação aos demais são LFS e PSC, que preveem, além das obrigações comuns a todos, a permanência dos beneficiários durante dez horas aos fins de semana no Patronato Magarinos Torres, estrutura a ser descrita nas páginas a seguir. Na PSC, os atores também precisam prestar serviço comunitário gratuito durante sete horas semanais.

Em síntese, o processo para a obtenção do benefício ocorre da seguinte maneira: findado o cumprimento do tempo mínimo de pena em regime fechado,6 6 Réus primários condenados por crimes comuns devem cumprir ao menos 1/6 da pena em regime fechado; réus primários condenados por crimes hediondos devem cumprir 2/5; e reincidentes condenados por crimes hediondos, 3/5. o advogado responsável pelo processo do interno ou, como mais habitualmente, o defensor público faz um pedido de exames, entre os quais o mais significativo é o chamado exame criminológico (supostamente destinado a “medir” o potencial criminoso do apenado), cujo resultado é agregado a outras informações sobre seu comportamento, reunidas pela Comissão Técnica de Classificação (CTC), órgão do sistema penal7 7 Conforme o regulamento do Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro, as CTCs são órgãos complementares à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio (Seap/RJ) que atuam no interior das unidades prisionais e contam em sua equipe com um psiquiatra, um psicólogo, um assistente social e dois chefes de serviço, designados pelos diretores entre os servidores em exercício nos respectivos estabelecimentos. . Em seguida, todas as informações são encaminhadas à VEP, para que o juiz avalie a concessão do benefício. Sobre essas avaliações, descreve um entrevistado:

- Vou te falar como foi o meu exame criminológico. (...) Eles chamam de exame maluquinho. Aí, tem mais mil homens para fazer os exames: “Ó, vai fazer o maluquinho hoje”. Aí, o cara senta, olha para a tua cara, bem bisonho e fala: “E aí, parou com o crime?”. “Parei”. “Quer mais não?”. “Não”. “Tá bom, vai lá”. É assim, é tudo assim. Tem cara que... É o chamado VPL [Visita Periódica ao Lar], o “VP-fui”: o cara pega, te faz essa entrevista bisonha e te põe na rua. Lá não tem separação. Tem cara lá que é psicopata, matou porque gosta de matar; tem cara que pegou a mulher com outro e, pum, matou; tem cara que tem a vida inteira trabalhando, entendeu? No exame criminológico atual, o psicopata que vai sair, vai e mata alguém: “E aí, parou?”; “Claro que eu parei”. Aquele maluco, psicopata, ali, vai sair. Porque a Justiça não olha para essas coisas. Ela não sabe a percepção das pessoas, entende?8 8 Por outro lado, os técnicos do sistema penal responsáveis por realizar esses procedimentos denunciam em suas falas a enorme quantidade de pedidos de exames que chegam diariamente nas instituições prisionais, direcionados a um efetivo habitualmente muito inferior ao necessário, produzindo um caráter burocrático e superficial de avaliação, que não parece adequada aos apenados e tampouco aos técnicos. Uma profissional me narrou, por exemplo, o encargo de realizar 24 exames criminológicos em um único dia de trabalho, uma jornada de 8h.

Meus interlocutores são os chamados beneficiários do sistema penal, ou seja, aqueles que apresentaram um bom comportamento no cárcere, enquadrando-se no modelo pretendido pela instituição. Mais especificamente, são aqueles que obtiveram um rendimento considerado satisfatório no chamado “boletim penitenciário”: um registro dos índices de aproveitamento em relação a determinados critérios, como trabalho, educação e disciplina. Na presente pesquisa, não importa se esse comportamento e o discurso condizente a ele - revelado na ressaca - são frutos de um conhecimento aprendido e apreendido estrategicamente no decorrer da carreira penal ou se são acionados de maneira não reflexiva e involuntária. Seja a ressaca de caráter genuíno ou planejado, os entrevistados constroem suas narrativas de maneira muito semelhante, e é sobre essa construção que me debruço.

No período de vigência dos benefícios penais - que dura, em média, quatro anos após o cumprimento da pena em privação de liberdade9 9 Dado apresentado pela frente estatística da pesquisa à qual me vinculei, intitulada “Justiça Penal, Sistema Penitenciário e Democracia no Rio de Janeiro: Uma Pesquisa Sociológica sobre Benefícios Penais e Controle Social”, coordenada pelo professor Michel Misse e realizada centralmente pelo professor Cesar Pinheiro Teixeira, integrantes do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), da UFRJ. Os dados estatísticos foram elaborados a partir de um levantamento dos prontuários de beneficiários penais, armazenados no arquivo do Patronato Magarinos Torres. Os demais resultados dessa frente de pesquisa podem ser encontrados no excelente artigo de David Maciel de Mello Neto (2022). -, os beneficiários precisam dar provas de interesse e dedicação em reconstituir os laços com a sociedade mais ampla e com as instituições tradicionais, respeitando determinadas regras e restrições impostas por todos os benefícios concedidos10 10 É digno de nota o fato de a Prisão Albergue Domiciliar Monitorada (PADM) ser o único benefício que prevê efetivamente uma vigilância do beneficiário em tempo integral, por meio de um equipamento preso ao seu corpo, que notifica, via satélite, irregularidades à VEP - mais conhecido como “tornozeleira eletrônica”. E mesmo este é muitas vezes burlado por meio de determinadas estratégias, como a de vestir o aparelho no cachorro para poder sair de casa em um horário ou para um local proibido por seu benefício, como contaram certa vez durante a pesquisa. . No caso do estado do Rio de Janeiro, conforme a Cartilha do Egresso, documento formulado pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap/RJ), são elas: permanecer no estado do Rio; não sair de casa aos fins de semana, feriados e em períodos noturnos (de 20h às 6h ou de 23h às 6h, a depender do tipo de benefício); se comportar de acordo com os “bons costumes”11 11 Não há nenhum tipo de esclarecimento na Cartilha do Egresso quanto ao que se entende por “bons costumes”. Mas é possível perceber no campo que essa definição está relacionada à restrição a comportamentos “imorais”, como ir a bares, locais de jogos de azar, casas de prostituição etc., como exposto explicitamente a seguir. ; não frequentar lugares onde haja venda e consumo de bebidas alcóolicas, drogas ilícitas, jogos proibidos ou casas de prostituição; apresentar-se periodicamente12 12 A frequência de visitas é determinada pelo juiz da VEP responsável pela concessão do benefício e varia de caso a caso, dependendo do tempo de cumprimento da pena em regime fechado, do tipo de benefício obtido etc. Em geral, as visitas são mais frequentes após a saída imediata da prisão, podendo ser quinzenais ou mensais, e gradualmente tornam-se mais intervaladas, tornando-se bimestrais ou trimestrais. ao Patronato Magarinos Torres13 13 Localizado em Benfica, bairro da Região Central do Rio de Janeiro, o Patronato Magarinos Torres atende a ampla maioria de beneficiários do estado. Ele conta somente com dois anexos, um em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, e um em Volta Redonda, no sul do estado. , órgão vinculado à Seap/RJ, para assinar o prontuário, comprovar empregabilidade e se submeter a atendimentos técnicos prestados pelos departamentos de Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional da instituição. Em casos de descumprimento das regras ou de novos delitos, todos os benefícios penais podem ser revogados ou suspensos pela VEP, sendo o beneficiário conduzido ao risco de regressão penal - isto é, de retorno ao regime fechado.

Trata-se, portanto, de uma fase híbrida, estabelecida fora dos limites físicos da prisão, mas dentro do sistema, na qual os participantes se encontram ainda - e durante algum tempo - na condição de apenados14 14 Não à toa eles são designados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) pelo nome de “apenados soltos”. , transitando entre uma biografia da prisão e uma biografia de afastamento dela. Na pesquisa, frequentei o Patronato Magarinos Torres por um período de seis meses e realizei 23 entrevistas de caráter compreensivo (KAUFMAN, 2013KAUFMANN, Jean-Claude. A entrevista compreensiva: Um guia para pesquisa de campo. Petrópolis: Vozes, 2013[1996].[1996]) com os beneficiários que se apresentam regularmente à instituição; observei as relações estabelecidas entre eles e os profissionais do órgão; e acompanhei o atendimento prestado pelas técnicas do setor de Serviço Social, que mediaram o meu acesso aos entrevistados, perguntando, ao final de cada atendimento, se os apenados estariam dispostos a participar de uma pesquisa sem vínculo com a Seap e com o cumprimento de suas penas - o que era reafirmado por mim ao início de cada entrevista, bem como a garantia de anonimato.

Aqueles que aceitavam o convite eram conduzidos a uma saleta utilizada como biblioteca, onde ficávamos a sós. Em um primeiro momento, apliquei um roteiro elaborado previamente ao campo - e reelaborado ao longo das semanas posteriores -, seguindo a ordem cronológica de suas trajetórias - isto é, pré-cárcere, encarceramento e pós-cárcere. Diante da hesitação de alguns entrevistados para falar de partida sobre o contexto e a natureza dos crimes cometidos, acabei por adotar a estratégia de perguntar, ao início da entrevista, como eles chegaram até ali, deixando-os à vontade para iniciar a conversa como desejassem. Ficou claro para mim que a quantidade de entrevistas realizadas era suficiente quando identifiquei um ponto de saturação qualitativa, conseguindo prever quais categorias seriam mobilizadas pelo entrevistado a partir de suas primeiras falas. Se, por um lado, a mediação das assistentes sociais certamente facilitou a minha aproximação em campo, pelo fato de estabelecerem relações de confiança com os apenados, ouvindo suas angústias e confidências, em contrapartida, a realização das entrevistas no interior de um estabelecimento penal é um fator que apresenta possíveis limitações à pesquisa.

É bem verdade que os atores estudados comparecem ali para reafirmar diante do Estado seu compromisso com a construção de uma vida fora do crime e como reflexo de uma transformação pessoal - o que pode condicionar, em maior ou menor grau, as suas construções narrativas. Contudo, como mencionado, me interesso menos pela veracidade e mais pelas regularidades encontradas nas falas, as quais decorrem, em minha análise, de uma pragmática mais ou menos específica de experimentação de si e do mundo no decorrer da trajetória penal. Embora meus interlocutores sejam reconhecidos e chamados no Patronato pelo nome de “egressos” - bem como na literatura especializada (SANTOS e SILVA, 2017SANTOS, Thalita Mara dos; SILVA, Luiz Carlos Avelino da. Os sujeitos egressos prisionais e o processo de (re)inserção social. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 23, n. 3, p. 975-993, 2017.; LOPES SOUZA e SILVEIRA, 2017LOPES SOUZA, Rafaelle; SILVEIRA, Andrea Maria. Egressos do sistema prisional no mercado formal de trabalho: oportunidade real de inclusão social?. Revistas de Políticas Públicas, v. 21, n. 2, p. 761-779, 2017.; TOLEDO, KEMP e MACHADO, 2014TOLEDO, Isadora d’Avila; KEMP, Valéria Heloisa; MACHADO, Marília Novais da Mata. Os sentidos do trabalho para egressos do sistema prisional inseridos no mercado formal de trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, v. 17, n. 1, p. 85-99, 2014.) -, eles ainda não são efetivamente definíveis por esse termo: há uma diferença que não se pode ignorar entre o indivíduo que cumpre o término da pena em meio aberto e aquele que já a cumpriu integralmente e não presta mais contas ao Estado. O primeiro vive em uma espécie de limbo, em uma situação no gerúndio: eles estão, na verdade, “egressando” do sistema, e, por isso, adoto o termo egressantes.

Como é amplamente sabido, o sistema prisional fluminense, e brasileiro de modo geral, é composto majoritariamente por uma população bastante específica: jovens, negros e pobres - como é o caso, inclusive, de Fabrício, que ganha centralidade analítica no texto. Apesar disso, os participantes da pesquisa pertenciam a diferentes classes sociais (da mais baixa à classe média alta), trabalhavam em ocupações variadas (lícitas e ilícitas), moravam em lugares distintos (da favela ao asfalto), foram incriminados pelos mais diversos tipos de crime (tráfico de drogas, constituição de milícia privada, formação de quadrilha, assalto a banco, furto, roubo, receptação, lesão corporal, estupro, homicídio, entre outros) e ingressaram em diferentes unidades do sistema carcerário fluminense, submetendo-se a dinâmicas significativamente distintas em cada uma delas (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Mas, a despeito das variações em curso, todos vivenciaram experiências similares desde o processo de incriminação que os conduziu ao cárcere até o de egressão do sistema penitenciário. E essa vivência parece atuar de maneira significativa na configuração de seus selves e em suas competências de avaliação e julgamento.

Tomo o self como uma unidade de individuação psicológica de caráter social, e não puramente interior, que se configura mais como processo do que como substância. Baseio-me na partição original construída no pragmatismo filosófico de William James (1950JAMES, William. The Principles of Psychology. Oxford: Dover, 1950[1890].[1890]), segundo o qual o indivíduo pode ser pensado simultaneamente como um agente ativo de conhecimento (eu), e um objeto passivo de ser conhecido (mim). Sustento-me também na discussão estendida por Charles Horton Cooley (1902)COOLEY, Charles Horton. Human Nature and the Social Order. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1902. com a metáfora “looking glass self”, sugerindo que a imagem que sustentamos de nós mesmos é construída reflexivamente, isto é, a partir da maneira como somos vistos pelos outros.

Naturalmente, apoio-me ainda nas contribuições de George Herbert Mead (1934)MEAD, George Herbert. Mind, Self, and Society: From the Standpoint of a Social Behaviorist. Chicago: University of Chicago Press, 1934., que estabeleceu as bases segundo as quais todo o modelo do self passou à sociologia da chamada Escola de Chicago. Com a proposta de um “behaviorismo social”, Mead projetou uma ciência destinada a explicar o comportamento - termo que nele, e aqui, assume o sentido alemão, isto é, o de uma forma de agir que “porta” uma abstração, um “espírito” - sem recorrer à interioridade, e sim, em vez disso, empregando a dimensão social como base de suas explicações. Para Mead, o indivíduo pode ser pensado a partir de três dimensões: me (mim), que consiste na reprodução das reações socialmente construídas e corresponde às perspectivas que ele aprendeu sobre si mesmo com os outros significativos; I (eu), que se refere aos comportamentos assumidos e criados diante das reações sociais formalizadas, representando a dimensão mais íntima e individual do sujeito; e self, construído na relação indissociável entre esses dois componentes. Assim, o self é uma unidade sígnica formada por outras unidades sígnicas, o que significa, entre outras coisas, que ele é cambiante, e não fixo (PORTO, 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019.).

Debruçando-me sobre a carreira moral de egressantes penais segundo suas próprias narrativas e interpretações, investiguei as mudanças provocadas nos selves dos participantes a partir de uma perspectiva a posteriori15 15 Lembremo-nos da máxima de Kierkegaard: “A vida é vivida olhando-se para frente, mas só pode ser compreendida olhando-se para trás”. . Em outras palavras, empreendi uma análise retrospectiva e compreensiva (WEBER, 2001WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2001[1904].[1904]; 1947WEBER, Max. The Theory of Social and Economic Organization. Nova York: The Free Press, 1947[1922].[1922]), centrada em como os atores atribuem sentido àquilo que eles eram a partir daquilo que eles são - e vice-versa. De fato, o que fiz foi analisar as histórias contadas pelos egressantes sobre as suas próprias histórias - que variam conforme o conteúdo, mas se aproximam quanto à forma. Parto do pressuposto de que a fala retrospectiva pode ser distendida em dois tempos: um biográfico, concernente às histórias de vida, à sequência cronológica de eventos pelos quais os atores passaram até o momento; e outro pragmático, pertinente à agenda que orienta a vida cotidiana e o ponto de vista atual dos participantes, a partir do qual enxergam e apresentam o passado, o presente e o futuro (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.).

O que proponho com a noção de um tempo pragmático é dar atenção ao fato de os acontecimentos biográficos e os instantes passados serem “achatados” no decorrer de uma trajetória e estarem sempre submetidos a um processo de ressignificação ou de atualização pelos acontecimentos emergentes - o que significa que a construção de uma história de vida (e, por que não, de uma identidade) varia de acordo com o momento no qual o narrador fala.16 16 Vale recordar que, para Bourdieu (1996, p. 184) - e concordo com ele nesse caso -,“produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica”. Em outras palavras, acredito que a forma e, por vezes, o conteúdo de um evento biográfico são influenciados pelo lugar a partir do qual o sujeito da ação olha para trás (e para frente) - cujo processo, em minha leitura, reflete e resulta de um modo específico de gestão da memória (POLLACK, 1986POLLAK, Michael. La gestion de l’indicible. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 62-63, p. 30-53, 1986.). Para Ricœur (2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: O tempo narrado, vol. 3. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.), o ponto de origem de qualquer estrutura narrativa está na articulação entre enredo e personagem: “[N]arrar é dizer quem fez o quê, por quê...” (RICŒUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: O tempo narrado, vol. 3. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010., p. 153). E a noção de identidade narrativa nos convida à seguinte indagação: “[O] que justifica que se considere que o sujeito da ação, assim designado por seu nome, é o mesmo ao longo de uma vida que se estende do nascimento à morte?” (RICŒUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: O tempo narrado, vol. 3. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010., p. 418).

Para dar conta disso, Ricœur (2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: O tempo narrado, vol. 3. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.) propõe a substituição da ideia de identidade pessoal, entendida no sentido do mesmo (RICŒUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: O tempo narrado, vol. 3. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.) como um núcleo idêntico, fixo e não mutável; pela compreensão da identidade como um si-mesmo (ipse), que colocaria em evidência a dimensão temporal implicada tanto no sujeito quanto em sua ação: “[D]iferentemente da identidade abstrata do mesmo, a identidade narrativa, constitutiva da ipseidade, pode incluir a mudança, a mutabilidade, na coesão de uma vida” (RICŒUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: O tempo narrado, vol. 3. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010., p. 419). Em minha análise, a compreensão desse conceito somente é possível quando aliada à ideia de identidade como uma galeria ou cadeia de selves (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.), ou seja, como espécies de fotografias da relação entre um eu - sua dimensão mais constante - e um mim - a mais variante - em contextos distintos. O que fiz na pesquisa que deu origem a este artigo foi capturar a imagem de um self característico do egressante, isto é, a configuração usual dessa unidade de individuação no período específico (e híbrido) de egressão (parcial) do sistema penal. Como demonstrarei a seguir, o encarceramento parece instaurar uma espécie de filtro moral nos atores sociais - que, seguindo a metáfora, tem mais a ver com um mecanismo administrável e operacional da câmera do que com aquilo que ela fotografa (GOFFMAN, 2012GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social: Uma perspectiva de análise. Petrópolis: Vozes, 2012[1968].[1968]).

O ‘bandido’

Antes do cárcere, a vida de Fabrício girava inteiramente em torno do crime, atividade na qual se engajou ainda muito jovem e que lhe servia de base para definir a si mesmo. A identidade descrita em sua fala muito se assemelha ao tipo social identificado por Michel Misse (1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., 2010MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, n. 79, p. 15-38, 2010.) como sujeito criminal, “produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais”, sob o rótulo do “bandido”, articulando “um sujeito não democrático, não igualitário e não voltado ao bem comum” (MISSE, 2010MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, n. 79, p. 15-38, 2010., p. 17). Trata-se de uma identidade social representada como a de alguém que “carrega” o crime consigo, estruturada pela sujeição criminal - um processo social de criminação de sujeitos e não de cursos de ação. Desse modo, o sujeito criminal é interpretado não apenas como alguém que comete crimes, mas também como alguém que sempre estará disposto a fazê-lo, o que lhe imputaria a definição de irrecuperável.

Fabrício estava imerso no universo de ação e significação representado como o “mundo do crime” (RAMALHO, 1979RAMALHO, José Ricardo. Mundo do crime: A ordem pelo avesso. Rio de Janeiro: Graal, 1979.; ZALUAR, 1985ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.; MACHADO DA SILVA, 1993MACHADO DA SILVA, Luis Antônio. Violência urbana: Representação de uma ordem social. In: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro; BARREIRA, Irlys (Orgs). Brasil urbano: Cenário da ordem e da desordem. Rio de Janeiro: Notrya, 1993. p. 131-142.; MISSE, 1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; BARBOSA, 2005BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: Biopolítica, sistema penitenciário e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.; FELTRAN, 2008FELTRAN, Gabriel de Santis. O legítimo em disputa: As fronteiras do mundo do crime nas periferias de São Paulo. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 93-126, 2008.; NERI, 2009NERI, Natasha. “Tirando a cadeia dimenor”: A experiência da internação e as narrativas de jovens em conflito com a lei no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.; TELLES, 2010TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010.; HIRATA, 2010HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade: Entre o mercado e a vida. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.; LOPES, 2011LOPES, Natânia. Os bandidos da cidade: Formas de criminalidade da pobreza e processos de criminalização dos pobres. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.; LYRA, 2013LYRA, Diogo. A República dos meninos: Juventude, tráfico e virtude. Rio de Janeiro: Mauad, 2013.; GRILLO, 2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.; TEIXEIRA, 2013TEIXEIRA, César Pinheiro. A teia do bandido: Um estudo sociológico sobre bandidos, policiais, evangélicos e agentes sociais. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.; ZILLI, 2015ZILLI, Luís Felipe. O “mundo do crime” e a “lei da favela”: Aspectos simbólicos da violência de gangues na região metropolitana de Belo Horizonte. Etnográfica, v. 19, n. 3, p. 463-487, 2015.; GRILLO e MARTINS, 2020GRILLO, Carolina Cristoph; MARTINS, Luana Almeida. Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 565-590, 2020.; PRADO, 2020PRADO, Sophia. Vivendo o roubo: Um momento de adrenalina, deleite e performance. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 669-690, 2020.; ROCHA, 2020ROCHA, Rafael. Sobre a gramática moral do crime: A mobilização de justificativas e acusações em homicídios na zona Leste de Belo Horizonte. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 737-757, 2020.; BERALDO, 2021BERALDO, Ana. Entre a vida e a morte: Normatividades, negociações e violência em uma favela de Belo Horizonte. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 27-51, 2021.) - o que corresponde ao envolvimento pleno em uma dada atividade criminosa, necessariamente associada a uma dinâmica de violência e desenrolada em um território específico (TEIXEIRA, 2013TEIXEIRA, César Pinheiro. A teia do bandido: Um estudo sociológico sobre bandidos, policiais, evangélicos e agentes sociais. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.). Conforme relata, a medida mais difícil que precisou executar nessa condição de “bandido” foi expulsar uma família muito querida por ele da favela onde moravam. Isto porque, como me disse, o casal havia sido acusado de traição pelo dono do morro (cf. GRILLO, 2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.; GRILLO e HIRATA, 2017HIRATA, Daniel Veloso; GRILLO, Carolina. Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: Perspectivas comparadas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 29, n. 2, pp. 75-97, 2017.), autoridade máxima daquele território. Embora não quisesse fazê-lo, porque sabia que os acusados eram inocentes, ele precisava prestar contas ao seu superior e cumprir o que lhe foi mandado, servindo também como efeito de demonstração para a comunidade. Além disso, confessa, preferia vê-los fora da favela, em um lugar onde não corressem risco de vida, a deixá-los em casa, onde estariam sujeitos a ataques em busca de reparação.

Em outras palavras, Fabrício agia “pelo certo”, noção fluida, condutora das avaliações morais nesse mundo. De fato, é no ponto que sua memória se encontra com esse universo que a ressaca se manifesta: enquanto descreve o passado criminoso, e ao longo de toda a sua fala, ele apresenta continuamente uma ruptura identitária fundamentada em um estado de desconforto. Essa construção narrativa parece funcionar como prova de sua “recuperabilidade”, questionada no processo de sujeição criminal, mas ali proclamada como possível:

- Antigamente eu tinha a mente mais pesada, mais criminosa, porque eu era bandido, eu traficava. Eu era gerente do tráfico, mas hoje em dia não mais. Hoje em dia já penso em trabalhar, ganhar um num serviço, já mudei de vida. Antigamente, eu tirava a vida dos outros, agredia... Mas agora, não. Fora os tóxicos que a gente vende, que é uma coisa muito prejudicial. Eu vendia, trabalhava, mas, na verdade mesmo, eu não usava. Eu sabia que prejudicava e não usava. (...) Depois que a gente passa lá dentro [da prisão] e depois que a gente vai ficando mais velho e vai ganhando experiência de vida, a gente aprende.17 17 É curioso e significativo para a análise o fato de Fabrício dizer estar “ficando mais velho” e “ganhando experiência de vida”, quando tinha somente 26 anos. São numerosas as falas como a dele, de jovens outrora engajados na vida do crime, que descrevem um fim de carreira no período de egressão do sistema. Por isso, em certa medida, a carreira aqui analisada não seria somente moral, mas também etária, muito embora sua fase terminal não esteja necessariamente relacionada à velhice. Até porque também não é a primeira vez que eu tô passando pelo presídio. Na [cadeia] de maior, é a primeira vez, mas fora as de menor. Lá a gente fica oito meses, um ano...

Para Misse (1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., 2010MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, n. 79, p. 15-38, 2010.), não há sujeição criminal sem incriminação, mas pode haver incriminação sem sujeição criminal. Grosso modo, o que difere ambos os fenômenos é representado socialmente pela distinção entre aqueles que são e não são “bandidos”. Em sua fala, o jovem destaca um conjunto de representações que permite associar sua trajetória com aquilo que Machado da Silva (2004)MACHADO DA SILVA, Luis Antônio. Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, 2004. chama de sociabilidade violenta, isto é, um padrão de sociabilidade baseado em “uma radical transformação de qualidade das relações sociais a partir das práticas de criminosos comuns” (MACHADO DA SILVA, 2004MACHADO DA SILVA, Luis Antônio. Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, 2004., p. 53), cujo princípio regulador é o uso da força, gerando um padrão de articulação que “autonomiza um âmbito das rotinas cotidianas, produzindo uma ‘forma de vida’” (MACHADO DA SILVA, 2004MACHADO DA SILVA, Luis Antônio. Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, 2004., p. 74). Antes de completar a maioridade, Fabrício foi internado duas vezes no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), órgão do Governo do Estado do Rio de Janeiro que executa medidas judiciais aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei - processo que já envolvia a construção e reificação de sua identidade como bandido (Cf. GONÇALVES, 2020GONÇALVES, Vitor Sousa. O sistema de justiça juvenil na perspectiva sociológica: Entre frouxa articulação e linha de montagem. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 781-799, 2020.) e lhe conferia uma experiência penal “ainda pior do que a prisão” porque, segundo ele, “lá é sem piedade”:

- Lá os cara corta a mão, fura a mão... hoje em dia nos presídios já não pode fazer mais isso, senão tu tem que dá conta. Mas, na [cadeia] de menor, não. Na de menor, cortou a mão. Se o funcionário vir querendo arrumar caô, [a gente] faz logo uma rebelião, acabou. [Quando a rebelião] estoura, vão se preocupar com o quê? Com o mais perigoso, que é a rebelião. Então aquele acidente que cortou a mão do amigo, furou a mão dele, quebrou a cabeça dele, vai acabar. Vai dar nada pra ninguém. Por isso que a gente estoura rebelião: pra esquecer as outras coisas que acontecem, entendeu? Criar uma coisa maior do que a outra. Uma preocupação que é mínima faz uma maior pra não sujar pra um, pra dois. Se fizer uma coisa maior, não vai dá pra sujar pra todo mundo, pra cadeia toda. Então aquilo ali é pra tentar amenizar e ficar por baixo, tirar aquilo ali por menos.

Após as internações na juventude, Fabrício começou a trabalhar em um hortifruti na favela em que morava para que pudesse comprovar empregabilidade quando questionado em operações policiais18 18 Instrumento de controle social executado há décadas nas comunidades do Rio de Janeiro, cuja premissa básica é a invasão violenta para o estabelecimento da ordem e da disciplina (Cf. MORELLATO e REID DOS SANTOS, 2020). Como aponta Rodrigues (2021), a partir dos dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) trabalhados por Misse et al. (2013), mais de dez mil pessoas foram assassinadas entre 2001 e 2011 em episódios como esse. . Trabalhando meio período por dia, ele comparecia ao emprego formal de manhã e assumia a posição de gerente do tráfico à tarde. “Mas aquilo ali era só uma fachada, minha vida mesmo era no crime”, disse. Na citada obra de Machado da Silva (2004)MACHADO DA SILVA, Luis Antônio. Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, 2004., o autor reconhece que o “mundo do crime” não se resume à sociabilidade violenta: esta seria o seu núcleo duro. E é nesse núcleo que Fabrício se encontrava, operando cotidianamente conforme as regras, normas, lógicas e dinâmicas internas da facção à qual era vinculado, o Comando Vermelho..

Para Grillo (2013)GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., que analisou o crime tal como é vivido por bandidos dessa facção, “o comando estabelece um quantum de coletividade moral entre os bandidos que respondem por seu nome” (p. 52). Conforme a autora, o norte da moralidade criminal é “o certo” (FELTRAN, 2011FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: Política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.; BIONDI, 2010BIONDI, Karina. Junto e misturado: Uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.), cuja definição não se aprende, mas se apreende ao longo da experiência no crime. É por meio de conflitos e de contato com boatos sobre desenrolos e cobranças (GRILLO, 2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 134) que o ordenamento criminal é progressivamente internalizado pelos participantes. Grosso modo, os desenrolos “instituem um espaço de diálogo, (...) são o contraponto da violência descontrolada” (GRILLO, 2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 109); enquanto a cobrança, como bem define Biondi (2010)BIONDI, Karina. Junto e misturado: Uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2010. sobre os bandidos ligados ao PCC, em São Paulo, “diz respeito a uma das ‘consequências’ possíveis dos atos de alguém, na qual se lembra do compromisso de agir de acordo com a ‘disciplina do Comando’” (p. 238). Nesse quadro, a força física não é livremente empregada na resolução de conflitos isolados, ela depende do aval construído coletivamente na organização:

- Agredir era necessário: era eu ou era ele. Antes ele do que eu, né?19 19 Uma das máximas do mundo do crime, como destacam Caminhas e Beato Filho (2020). A necessidade leva a gente a tomar umas atitudes, mas depois explicar a situação: “Sabe como é, a vida do crime é essa, tu fecha comigo, trafica comigo aí, mas infelizmente tem que fazer”. Pior é quando a gente tem que matar mesmo, porque aí não tem nem como dar nenhuma explicação. O cara morreu... Mas, graças a Deus, isso não faz mais parte da minha vida.

O detento

No Rio de Janeiro, os detentos são alocados no sistema a partir do vínculo declarado a uma facção criminosa, seja por filiação ou por área de residência. Desse modo, o sistema carcerário fluminense incorporou em seu desenho formal estatalmente organizado uma lógica não estatal que estabelece: cadeias “de facção”, reservadas aos que se declaram filiados a uma das principais facções do estado - Comando Vermelho (CV), Amigos dos Amigos (ADA) e Terceiro Comando Puro (TCP); cadeias “neutras”, para aqueles que não declaram vínculo com facções criminosas; unidades “de seguro”, para aqueles que se declaram ameaçados em outros tipos de cadeia, pela natureza dos crimes cometidos (como estupro e pedofilia, repudiados nos demais e habitualmente punidos com a morte nas prisões) ou em função de conflitos intrafaccionais; cadeias femininas, reservadas às mulheres, sem distinção faccional; cadeias “mistas”, que reúnem algumas das categorias citadas acima em galerias ou andares diferentes; cadeias “de milícia”, destinadas a milicianos e ex-policiais; além das unidades reservadas a diplomados.20 20 Para saber mais sobre a divisão carcerária do estado do Rio e sobre a experiência prisional em cada um desses tipos de cadeia, ver Porto (2017). Fabrício ingressou em uma unidade destinada ao CV, facção que comandava a favela onde nasceu e foi criado, e da qual fez parte durante toda a sua juventude. Ele fala de seu percurso na cadeia em que ingressou:

- Todo mundo me conhecia e sabia como que eu era, sabia que eu era mais de ajudar... Se tivesse que: “Ah, vamo endireitar aquele jardim ali?”, [ele respondia:] “Bora”. “Endireitar a fossa?” “Bora”. Eu tava ali pra ajudar o povo [isto é, os presos]. Aí eu cresci de patente lá dentro. Eu era ligação - fazia ligação da cadeia -, depois eu virei visão de cela, depois eu virei comissão da galeria.21 21 Conforme me narraram, o ligação é aquele que transmite as reivindicações dos presos aos agentes institucionais, realizando uma espécie de mediação entre a massa e a administração carcerária; o visão de cela é aquele que assume o papel de autoridade no interior de cada um desses espaços, repassando à comissão da galeria as demandas dos presos e os eventuais desvios à doutrina; e, finalmente, o comissão é aquele que desempenha o papel de líder diante de todo o agrupamento de presos da galeria. Assim como na vida do crime, as posições ocupadas nessa hierarquia acompanham não somente prestígio, mas também certas responsabilidades como aquelas narradas por Fabrício anteriormente.

- E quem é que te promove?

- É o povo, que vê que você quer melhoria. É você conversar com funcionário por melhoria: “Pô, deixa eu botar um exaustor dentro da cela?”. Uma cela pra 120 pessoas num quadrado de 6m x 4m. Dorme um em cima do outro na comarca [cama de cimento das celas], dorme cinco no vão, cinco no miolo, é cinco numa fileira, mais cinco, mais cinco, mais cinco... até o final da cela: 120 pessoas... Tem que ter melhoria, as grades... não dá vazão. Aí, a melhoria foi o que eu consegui: pedi uma declaração pedindo pra mim botar o exaustor. Como a gente vai botar o exaustor se a gente não tem dinheiro? Vamo abrir a cantina. Tem a cantina da cadeia. Pode entrar dinheiro na cantina...

- A cantina não funcionava?

- Funcionava, mas só em dia de cadeia aberta. Falei: “Então, vamo fazer a nossa cantina do povo”. Aí, eu abri a minha cantina pro povo, que era a caixinha central. Aí, o que que eu fazia? Eu comprava, juntava dinheiro do coletivo. Aí isso aqui é melhoria pro coletivo. Chamei todo mundo do pavilhão, todos os coletivos [e] falei: “Vamo fazer melhoria. A gente vai abrir a caixinha do pavilhão, e a caixinha de cada um vai abrir a caixinha do coletivo, pra suprir as necessidades de cada um: um sabonete, um sabão em pó...” O material, né? Se alguém chegasse: “Ah, quero um biscoito”, aí comprava na cantina e botava [o dinheiro] na nossa mão. O biscoito era R$ 3 na cantina que eu comprava; ganhava R$ 0,50 em cada biscoito; vendia a R$ 3,50. Aí fui abrindo a caixinha, até que eu consegui fazer R$ 1 mil. Em três meses, consegui fazer R$ 1 mil! Desses R$ 1 mil, foi R$ 600 [para o exaustor]. Conseguimos falar com o chefe de segurança, [e] ele deu a declaração pra gente. Conseguimos botar dois exaustor em cada cela, e o restante do dinheiro ficou pro pavilhão. Aí conseguimos reformar: pedimos pra botar cal, pintamos a galeria... Nisso eu já fui ganhando moral pela cadeia. Aí fui virando comissão.

Fabrício passou por diversas unidades ao longo de sua internação: na Cadeia Pública Juíza Patrícia Lourival Acioli e no Presídio Isap Thiago Telles de Castro Domingues, localizados em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro; no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho e no Presídio José Frederico Marques (Bangu 10), situados no Complexo de Gericinó, na Zona Oeste da cidade do Rio; entre outros.

- Passei por todos esses presídios e em todos esses presídios eu não conseguia deixar de ser o que eu era.

- E a sua patente era passada de uma cadeia pra outra?

- Não, eu chegava como qualquer outro, qualquer outra leva - a gente fala que é leva. Mas ali a gente passa fundamentos [da estrutura carcerária], né? [Perguntavam a ele:] “Você respondia por qual galeria, qual pavilhão, qual cadeia, conhecia o comissão ou não...?”. [Após respondê-los, diziam:] “Ah, então você tem um discernimento, tem uma experiência... Quer formar aqui com a gente?”. [Ele respondia:] “Não, quero ver o dia a dia de vocês. Se eu vir a calhar de ver erro, eu tô aqui pra ajudar, mas se eu vê que tá trabalhando certo, eu não vou me meter num negócio que tá certo. O meu [objetivo] é mais ajudar o próximo”. Já tô lá dentro, já tô ferrado...

Segundo Barbosa (2006)BARBOSA, Antônio Rafael. O baile e a prisão: Onde se juntam as pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Cadernos de Ciências Humanas: Especiaria, v. 9, n. 15, p. 119-135, 2006., o tráfico é atravessado por um “devir-bando” - no sentido de Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995., isto é, “uma afecção que une alguns indivíduos, dando existência a esta formação, durante algum tempo” (BARBOSA, 2006BARBOSA, Antônio Rafael. O baile e a prisão: Onde se juntam as pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Cadernos de Ciências Humanas: Especiaria, v. 9, n. 15, p. 119-135, 2006., p. 128). Essa constituição se sucede de maneira intermitente em função de dois componentes que conferem um aspecto de organização àquela atividade: sua “forma-Estado” - que nos interessa aqui - e seu caráter empresarial. Para Barbosa (2006BARBOSA, Antônio Rafael. O baile e a prisão: Onde se juntam as pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Cadernos de Ciências Humanas: Especiaria, v. 9, n. 15, p. 119-135, 2006., p. 129), essa “forma-Estado” é percebida nos sobrecódigos (a “lei” do tráfico) que influenciam a vida comunitária nos níveis disciplinar, hierárquico e territorial. Como destaca o autor, essas formas de interioridade são aprendidas e/ou ratificadas em um dos lugares em que o Estado está mais presente: na prisão - sendo o Comando Vermelho a facção com esse aspecto mais desenvolvido dentre as demais, dadas as circunstâncias de sua origem22 22 Como descreve uma vasta literatura (COELHO, 2005[1987]; PAIXÃO, 1987; MISSE, 1999; 2011; ADORNO e SALLA, 2007; GRILLO, 2013; LOURENÇO, 2013; DIAS e LOURENÇO, 2015), o crime organizado por comandos ou facções criminosas no Rio nasce no interior do sistema penitenciário, durante a ditadura militar. Com a sanção da Lei de Segurança Nacional, em 1969, militantes de esquerda que se lançaram ao assalto a bancos para financiar a revolução foram enquadrados no mesmo dispositivo legal aplicado a assaltantes de bancos comuns. A relativa vitória nas reivindicações de presos políticos em meados dos anos 1970 criou um efeito de demonstração para os assaltantes de banco comuns, que a partir de então também começaram a se organizar em favor de seus direitos (MISSE, 2011). Práticas como a instituição da “caixinha” para atender às necessidades não satisfeitas pela administração - realizada até hoje, como descreve Fabrício - e uma exigência constante de respeito aos direitos dos presos levaram a um fortalecimento do grupo e ao surgimento de novas adesões (COELHO, 2005[1987]). Por alguns de seus líderes considerarem-se de esquerda, os “Lei de Segurança” passaram a designar-se como “Falange Vermelha” e, a partir de 1979, pelo nome que prevalece até hoje, “Comando Vermelho”. .

Assim, as cadeias são descritas pelo autor como espaços de socialização, de convergência e articulação entre grupos intrafaccionais que garantem ao tráfico sua dinâmica segmentar. Trata-se, portanto, de um espaço-tempo em que as alianças, as amizades e os fortalecimentos são acionados, onde e quando se efetiva um dos polos garantidores da dinâmica interna das facções. Para Barbosa (2006)BARBOSA, Antônio Rafael. O baile e a prisão: Onde se juntam as pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Cadernos de Ciências Humanas: Especiaria, v. 9, n. 15, p. 119-135, 2006., esse espaço-tempo do encontro - mesmo forçado - entre indivíduos (donos, gerentes, soldados, vapores, olheiros) promove o estreitamento de vínculos previamente estabelecidos ou a formação de novos; de modo que ali se estabelece o principal ponto de articulação entre todos os grupos locais de uma facção, fornecendo as amarras para as pontas soltas em um “espaço estriado” (BARBOSA, 2006BARBOSA, Antônio Rafael. O baile e a prisão: Onde se juntam as pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Cadernos de Ciências Humanas: Especiaria, v. 9, n. 15, p. 119-135, 2006., p.130).

Por isso, muitas das descrições de egressantes que passaram por cadeias de facção descrevem um continuum de rotina produzido por uma razão prática que não parece se organizar em outros tipos de prisão (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Esses tipos de cadeia podem ser pensados, à luz de Manuela da Cunha (2003)CUNHA, Manuela Ivone P. da. O bairro e a prisão: A erosão de uma fronteira. In: BRANCO, Jorge Freitas; AFONSO, Ana Isabel (Orgs). Retóricas sem fronteiras, v. 1. Lisboa: Celta, 2003. p. 101-109., como ambientes em que se articulam redes de interconhecimento externo que atribuem certa fluidez e continuidade entre os polos intra/extramuros, sincronizando a vida prisional, de certa forma, com a progressão externa. De fato, as atividades desempenhadas por Fabrício no cárcere muito se assemelhavam, em termos de regras e dinâmicas, àquelas realizadas na condição de gerente do tráfico:

- [Quando você vira comissão,] nego te idolatra, te respeita mais... O ruim é que de vez em quando você tem que tomar algumas atitudes que você não queria tomar. Às vezes você tem que bater, agredir teu companheiro ali, porque ele errou. Tem que você fazer, ou vão fazer contigo. Ali a gente tem que corrigir, ensinar, tipo como se nós fôssemos os pais deles... [Esse é o papel] do visão de cela, depois do comissão. Porque se nós estamos lutando ali pra fazer uma caixinha pra suprir nossas necessidades, por que o nosso companheiro de cela que dorme, come, bebe com a gente e tá passando a mesma necessidade que a gente vai roubar o sabonete do amigo? Aí, tem gente maldoso, que pega e bota um gilete dentro do sabonete... Vai tomar banho e se corta todo. Pra não haver isso, é mais fácil a gente corrigir do que deixar isso aí acontecer. Aí a gente agride, deixa eles tomar [a surra]. Uma semana todo amassado, dolorido, não vai vir a errar de novo, roubar dinheiro de ninguém, roubar o sabonete, não vai agredir o próximo nem verbalmente... Então, tem que ter um corregimento, tem que tomar o teu. Por que que eu vou roubar teu sabonete, teu dinheiro que tua família trouxe? Tem que corrigir pra não vir a errar de novo. E dessa forma a cadeia anda, um ensinando o outro e um corrigindo o outro. Por isso que, quando a gente sai, a gente sai assustado, com medo de tudo. É cabeça baixa e mão pra trás...

Conforme Dias e Salla (2019)DIAS, Camilla Nunes; SALLA, Fernando. Violência e negociação na construção da ordem nas prisões: A experiência paulista. Sociedade e Estado, v. 34, n. 2, p. 539-564, 2019., os grupos de presos que passaram a ter maior controle sobre a massa carcerária - isto é, as facções, também conhecidas nesse contexto como “gangues prisionais” (LOURENÇO e ALMEIDA, 2013LOURENÇO, Luiz Claudio; ALMEIDA, Odilza Lines de. Quem mantém a ordem, quem cria desordem: Gangues prisionais na Bahia. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 37-59, 2013.) - redesenharam as formas de exercício do poder na esfera intramuros, não somente em termos de hierarquia entre os presos e de uso da violência, mas também no que concerne às relações estabelecidas com os custodiadores. Obras mais clássicas, como a de Sykes (1974SYKES, Gresham. The Society of Captives: A Study of a Maximum Security Prison. Princeton: Princeton University Press, 1974[1958].[1958]), já tomavam a ordem prisional como um relativo equilíbrio entre presos e “staff” (GOFFMAN, 1961GOFFMAN, Erving. Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates. Nova York: Doubleday Anchor, 1961.), cuja dinâmica não visa à evitação de conflitos ou disputas cotidianas, mas à manutenção de pactos “legitimados” de regras formais e informais entre presos e entre grupos de presos e profissionais. Nesse sentido, não são as tensões que caracterizam a desordem, mas a ruptura do equilíbrio nas relações entre esses grupos, capaz de produzir a rejeição dos papéis recíprocos, a fratura dos acordos, a revolta, a rebelião e a imprevisibilidade (DIAS e SALLA, 2019DIAS, Camilla Nunes; SALLA, Fernando. Violência e negociação na construção da ordem nas prisões: A experiência paulista. Sociedade e Estado, v. 34, n. 2, p. 539-564, 2019.). Como vimos, Fabrício pertenceu aos citados grupos de liderança e exerceu cotidianamente uma forma de controle social no cárcere, pactuada pelos agentes institucionais:

- Os Desipe23 23 Ele se refere aos Inspetores de Segurança e Administração Penitenciária (Isaps), em alusão ao já extinto cargo de Agentes de Segurança Penitenciária (ASP) do antigo Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe), elevado à condição de Secretaria de Estado (Seap) em 2003. ensina pra gente a doutrina. Tem que ter a doutrina, então a gente aprende a nossa doutrina, e quem não quer aprender por bem, aprende por mal. Aí também já é a nossa parte que a gente faz. Se não aprender por bem, vai aprender por mal. Melhor você tomar uma trava da gente, sendo companheiro de cela, do que tomar do polícia, que o polícia não vai ter piedade. A gente bate, agride, tá ali, mas depois que acabou aquilo ali, que tu tomou tua correção, a gente tá ali dando um remédio, a gente tá dando uma sopa, a gente tá tentando te ajudar ali. Aquilo ali foi só uma coisa pra você aprender. Então, as coisas se tornam assim dentro da cadeia, um ajudando o outro.

O caso de Fabrício é emblemático porque, embora tenha gozado de um status respeitável e de atribuições consideradas ilustres no cárcere, com as quais inclusive já estava familiarizado, por condizerem com aquelas previamente desempenhadas na rua, ele descreve, como o restante de meus interlocutores, que precisou aprender e desenvolver novas competências para sobreviver ao cotidiano prisional:

- A cadeia é aquilo, né: a gente aprende a virar homem, porque ali é onde o filho chora e a mãe não vê. Na verdade, é assim: escreveu, não leu, pau comeu. Essa é a verdade. Então, você tem que aprender a virar sujeito homem lá, você tem que aprender a se expressar, falar menos e ouvir mais.24 24 Conforme a descrição de Fabrício, embora essa configuração seja muito semelhante àquela que atravessa o tráfico, na prisão “o negócio é mais difícil” porque lá “é um olhando mil e mil olhando um”, ou seja, existe uma vigilância e uma cobrança intermitente de respeito à doutrina da facção e aos valores e comportamentos previstos por ela. Segundo ele, ainda, “na rua também tem [a doutrina], mas quem controla?”.

De fato, mesmo em uma condição de relativo privilégio, Fabrício descreve a “necessidade”, a “dificuldade” e o “sofrimento” relatados por todos os egressantes que entrevistei. Falo de sofrimento, e não de “dores do cárcere”, como queria Sykes (1974SYKES, Gresham. The Society of Captives: A Study of a Maximum Security Prison. Princeton: Princeton University Press, 1974[1958].[1958]), porque, embora o autor se refira à condição de sofrimento em um sentido amplo e equivalente àquele descrito por mim, creio haver uma passagem analítica importante entre um termo e outro. Se, para Le Breton (2013)LE BRETON, David. Antropologia da dor. São Paulo: FAP-Unifesp, 2013., a dor é sempre sentida em uma dimensão física e corpórea, o sofrimento perpassa a subjetividade de quem a padece, ou seja, não é somente o corpo que sofre, mas o indivíduo como um todo - muito embora o corpo e o fisiológico, segundo o autor, não existam em si mesmos como algo dado a priori, o que leva à caracterização da dor como um fenômeno polissêmico. Assim, o sofrimento atravessa a experiência da dor, mas ultrapassa o sentido visceral, anatômico, do termo, transcendendo o fluxo meramente sensorial e penetrando os esquemas de significação, interpretação e explicação de quem o padece (LE BRETON, 2007LE BRETON, David. Compreender a dor. Lisboa: Estrela Polar, 2007.).

Por conta disso, privilegio em minha análise o termo “sofrimento”, que além de descrever a experiência prisional em sua totalidade, dando conta de suas dimensões materiais e abstratas, também corresponde a uma categoria nativa. Por certo, cada um dos entrevistados experimentou o sofrimento em intensidades variadas, a depender de uma série de fatores, como o apoio da família, o presídio no qual cumpriu pena, a relação estabelecida com companheiros de cela, suas próprias trajetórias e demais especificidades institucionais e biográficas. Mas, a despeito das diferenças de percurso, há um consenso mais ou menos geral entre eles de que a experiência prisional corresponde a uma condição de sofrimento - cujos efeitos são negociáveis, mas não inescapáveis -, podendo ser distendida em duas dimensões: o sofrimento de si e o sofrimento do outro (isto é, de todos aqueles que sofrem colateralmente por conta de sua condição) (PORTO, 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019.):

- Lá dentro você não tem o livre-arbítrio de fazer o que você quiser, porque tudo você tem que pedir permissão. Você tem que medir tuas palavras, antes de falar qualquer coisa, pensar duas vezes... As coisas lá dentro são difíceis. Você tem que guardar o almoço pra janta, senão você fica com fome. Pior é quando você não tem visita... Eu, graças a Deus, tive minhas visitas, mas tu vê os amigos que não têm passando dificuldade... Aí, você ajuda eles. Aí, o próprio amigo que você ajudou tá te ferrando. Pô, tu não fez uma coisa, o cara vai lá e fala que foi tu. Aí tu fica na evidência. Até mostrar que pau não é teto, tu já ganhou o teu. (...) Lá você tem que ter medo, que nem aquele ditado que diz na cadeia: “Quem tem medo não merece castigo”. Porque quem tem medo tem medo de errar, então vai fazer de tudo pra não errar. Então, não merece castigo. Mas quem não tem medo faz o que quer, acha que é o cara. É o que se ferra. Muitos morrem, [alguém] dá chá de sumiço. Cadê o cara? Ninguém sabe onde tá, ninguém sabe o que aconteceu. E todo mundo se ferra por causa disso. Aí, vem a necessidade... [A administração penitenciária] trava a comida, vem comida azeda, fica sem água dois, três dias... É muito sofrimento ali que a gente vai passando, ainda mais pra quem não tem visita. Aí, imagina, a família vê tu entrando no pau na cadeia. Fica um negócio chato, né? Tu vai pra visita todo inchado, todo ferrado, todo ralado. Os filhos perguntam o que que é, e tu não sabe responder. Então, fica um negócio difícil. Aí, a gente tenta ajudar o próximo, mas, mesmo assim, ainda se ferra, muitas vezes. Já houve caso de eu tá ajudando, ceder minha cama na comarca pro amigo dormir, o amigo dormia comigo, comia comigo, e tentou me botar de bola.

- E como é isso?

- “Botar de bola” é, assim, tentar me ferrar, me botar contra os comissão da cadeia.

Em suma, a condição de sofrimento atinge tudo aquilo que os atores podem chamar de “seu”: seus corpos, seus domínios psíquicos, suas famílias, suas relações, seu meio. Ora, se para James (1950JAMES, William. The Principles of Psychology. Oxford: Dover, 1950[1890].[1890]) o que sentimos e como agimos em relação ao que temos (mine) é equivalente ao que sentimos e como agimos em relação a nós mesmos (me), não seria exagero dizer que o sofrimento incide não somente sobre aquilo que os atores têm, mas também sobre aquilo que eles são, isto é, sobre a constituição mesma de seus selves. Não à toa, os egressantes tendem a descrever o cárcere como uma espécie de catalisador de transformação de si, um dispositivo que opera retrospectiva e prospectivamente, promovendo a revisão dos atos anteriores e a motivação para “acordar” e “dar valor ao que importa”, como afirmam. Majoritariamente, os egressantes previamente engajados no mundo do crime se declaram merecedores da pena a eles imposta e dispostos a se manterem longe desse universo no futuro (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.; 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019.):

- Você acha que merecia ter passado por isso?

- Merecia. Tinha que ter acontecido até coisa pior pra mim aprender mais. Se a gente sofrer mais, a gente tem mais medo (...) Depois que a gente tem filho, a gente vai crescendo, teu filho vendo aquilo ali... Você vê que o que tu passou não foi bom - não é uma experiência que tu quer passar pro teu filho - e aí vai mudando de vida. Depois que tu passa lá dentro, muito mais, a gente aprende. Mas é o que eu falo, a cadeia não é recuperação pra ninguém, porque a gente vê tanta coisa lá dentro, tanta desilusão lá dentro... Funcionário que faz ruindade com a gente, deixa com fome, sem água, trancado dois, três dias25 25 Como apontam Jesus e Gomes (2020), a partir dos dados de pesquisas desenvolvidas pela Pastoral Carcerária, a tortura é parte indissociável dos estabelecimentos penais no país. Trata-se de um componente inscrito nas dinâmicas carcerárias, que corresponde a uma forma difusa de violência revelada não apenas nas formas física e psicológica, mas também na falta sistemática de atendimento médico, de alimentação adequada, água potável etc. Segundo as autoras, a maior parte dos episódios de tortura institucional reportados não tem qualquer tratamento jurídico na esfera criminal ou cível. Além disso, nos poucos casos que chegam a ser investigados e processados, as vítimas (e suas falas) são frequentemente deslegitimadas por sua condição de “presos/as” ou “sentenciados/as”. ... Pô, a gente passa tanta necessidade que aqui fora já aumenta ainda mais o ódio. A gente sai: “Vou pegar ele, e já era”. Mas aí volta, volta, volta [para a cadeia].

Em minha interpretação, o aprendizado descrito por Fabrício e pelos demais não reflete tampouco resulta do processo de transformação a que se pretenderia oficialmente a instituição carcerária, cujo lema oficial, no estado do Rio, é “ressocializar para o futuro conquistar” (Seap/RJ). Parece-me, antes disso, uma operação lógica, quase matemática, segundo a qual o crime gera sofrimento a si e aos seus, e, por isso, deve ser evitado. Afinal de contas, como disse repetidamente o entrevistado, o que se aprende na cadeia é a ter medo. Assim, não se trata de um processo de recuperação ou de regeneração moral e ética com base em uma reeducação para prevenir o comportamento socialmente esperado em relação ao “bandido”, mas da aquisição de uma capacidade moral produzida pelo sofrimento cuja metonímia é o medo, já que representa o dispositivo cognitivo fundamental para a sua operacionalização.

Para Garland (1999)GARLAND, David. As contradições da “sociedade punitiva”: O caso britânico. Revista de Sociologia e Política, n. 13, p. 59-80, 1999., a maior parte das medidas penais opera em dois registros diferentes, um instrumental, adequado aos objetivos de proteção do público e de gestão do risco, e um punitivo, que emprega os símbolos de condenação e de sofrimento para entregar sua mensagem. O que considero importante acerca disso é que, com a oferta do sofrimento, a instituição penal parece produzir certo planejamento estratégico: embora a “necessidade” que experimentam no cárcere “aument[e] ainda mais o ódio”, os atores acabam por evitar novas transgressões, já que essas os conduziriam de volta (e de volta e de volta...) à prisão. Conforme a descrição de Fabrício, o tamanho do sofrimento imputado no cárcere seria proporcional ao do “medo de errar” de novo, como se houvesse, em certo sentido, uma justa medida do sofrimento, isto é, a medida necessária para produzir o desengajamento no crime. Todavia, como mostrarei a seguir, essa grandeza não é a mesma para todos os atores e nem sempre efetiva a longo prazo.

Apesar da consolidação no pensamento jurídico e no senso comum da certeza de que a taxa de reincidência criminal no Brasil supera 70%, nunca foi realizada uma pesquisa de abrangência nacional sobre o assunto, prevalecendo estimativas no debate público sem embasamento científico (SAPORI, SANTOS e WAN DER MAAS, 2017SAPORI, Luis Flávio; SANTOS, Roberta Fernandes; WAN DER MAAS, Lucas. Fatores sociais determinantes da reincidência criminal no Brasil: O caso de Minas Gerais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017.). Um bom parâmetro, no entanto, seria o estudo executado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) (2015IPEA. Reincidência criminal no Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, 2015.), que mapeou os casos de condenação dos mesmos indivíduos em diferentes ações penais, obtidos nas varas de execução criminal em cinco estados brasileiros: Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco. A taxa de reincidência encontrada foi de somente 24,4%. Por certo, não cabe à minha pesquisa afirmar se esse número, via de regra, é produzido por aquilo que estou chamando de ressaca. No processo de reincidência, operam inúmeros fatores biográficos, situacionais e estruturais que escapam ao meu estudo. O que pode ser dito com relativa segurança a partir da fala de Fabrício e dos demais entrevistados é que, a despeito de suas circunstâncias específicas, quase todos constroem a mesma narrativa caracterizando o sofrimento do cárcere e o medo de revivê-lo como instrumentos de reavaliação de seus comportamentos e prioridades. Isto porque, segundo eles, esse tipo de sofrimento, diferentemente daquele experimentado no crime, não acompanha certos benefícios, como “dinheiro, amigos, adrenalina, bebidas, curtição, status e mulheres”, para mencionar alguns exemplos citados. A cadeia, pelo contrário, “te tira tudo” (PORTO e WERNECK, 2021PORTO, Camille; WERNECK, Alexandre. O valor de uma existência: Uma análise pragmática de valorizações da vida humana em situações envolvendo dinheiro. Sociedade e Estado, v. 36, n. 2, p. 563-589, 2021., p. 577).

O egressante

Como sinalizei anteriormente, a ressaca se apresenta como um reflexo, ou um sintoma, da incorporação da experiência prisional que revela o anseio de “nunca mais voltar para aquele lugar” e, no limite, de se afastar permanentemente do crime. Tomo esse processo em analogia à embriaguez porque ambos podem provocar uma ojeriza que leva, por vezes, à promessa, nem sempre cumprida, mas muitas vezes afirmada, de nunca mais repetir a dose (ou um ato criminal). Não pretendo, com isso, sugerir que a prisão cumpre o papel de coibir o comportamento criminoso, tampouco ratificar o efeito dissuasório reconhecido por certa literatura (GEERKEN e GOVE, 1975GEERKEN, Michael R.; GOVE, Walter R. Deterrence: Some Theoretical Considerations. Law Society Review, p. 497-513, 1975.; KESSLER e LEVITT, 1999KESSLER, D.; LEVITT, K. Using Sentence Enhancements to Distinguish Between Deterrence and Incapacitation. Journal of Law and Economics, v. 42, p. 343-363, 1999.; NADANOVSK, 2009NADANOVSKY, Paulo. O aumento no encarceramento e a redução nos homicídios em São Paulo, Brasil, entre 1996 e 2005. Cad. Saúde Pública, v. 25, n. 8, p. 1859-1864, 2009.), mesmo porque, como vimos anteriormente, uma série de componentes do “mundo do crime” é absorvida pela lógica intramuros, de forma particular no contexto fluminense, fortalecendo, muitas vezes, os laços previamente estabelecidos naquele universo. No decorrer da pesquisa, entrevistei reincidentes que me relataram ter experimentado a ressaca somente na segunda ou na terceira passagem pela prisão, e fui também confrontada com dois casos de exceção, cujas narrativas não se apresentaram de maneira “ressacada”.

Em minha análise, a ressaca (e sua permanência) não decorre somente dos marcadores institucionais inerentes ao processo de encarceramento, mas também - e principalmente - dos próprios marcadores biográficos dos participantes, que operam de maneira a viabilizá-la ou obstruí-la. Minha aposta é que a ressaca pode durar dias, meses, anos ou uma vida inteira; ela depende de uma série de fatores, como amparo familiar, apoio institucional e oportunidades, incluindo a de voltar ao crime. Designo esse fenômeno como ressaca justamente por se tratar de um estado, uma condição específica que pode render frutos duráveis ou esvair. Assim, os casos de reincidência no sistema não fazem dela menos real ou efetiva. Falo, como efeito, de uma intenção, a partir da qual os atores olham e avaliam seu passado, presente e futuro, por mais breve que seja. A metáfora também permite pensar que, se o álcool “sequestra” os mecanismos de formação de memórias, criando um desejo de repetição a despeito de eventuais lembranças ruins associadas à bebida (SCAPLEN et al., 2020SCAPLEN, Kristin M.; TALAV, Mustafa; NUNEZ, Kavin M.; SALOMON, Sarah; WATERMAN, Amanda G.; GANG, Sydney; SONG, Sophia L.; BARNEA, Gilad; KAUN, Karla R. Circuits that Encode and Guide Alcohol-associated Preference. eLife, n. 9:e48730, 2020.), o crime pode exercer efeitos semelhantes sobre o egressante à luz da ressaca. Afinal, como afirma Barbosa (2005BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: Biopolítica, sistema penitenciário e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005., p. 340): “Diz-se que a droga corre atrás do viciado; (...) igualmente do crime se pode dizer que corre atrás do egresso”.

Como demonstrei em trabalhos já citados, os egressantes elaboram a ressaca em suas narrativas por meio da mobilização de accounts, um dispositivo linguageiro - e de resposta a julgamentos morais - que assume duas formas: desculpas e justificativas. Invariavelmente, eles mobilizam o primeiro tipo, na medida em que “admite[m] que o ato em questão seja ruim, errado ou inapropriado, mas nega[m] ter plena responsabilidade sobre ele” (SCOTT e LYMAN, 2008SCOTT, Marvin B.; LYMAN, Stanford M. Accounts. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 139-172, 2008[1968].[1968], p. 141), evocando uma circunstância ou um traço específico daquela situação para explicá-la (WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.). Como já sinalizado, a ressaca se apresenta quase unanimemente entre os entrevistados, mas não homogeneamente. Identifico dois subgrupos entre os egressantes, que podem ser definidos segundo a distinção de Misse (1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; 2010MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, n. 79, p. 15-38, 2010.), opondo incriminados que experimentam a sujeição criminal - os que se reconhecem como “bandidos” - àqueles que não experimentam esse processo, apesar da incriminação - e, portanto, não se reconhecem como tal.

O primeiro grupo operacionaliza a ressaca por meio da desculpa do “é assim mesmo” (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. Sociologia da moral como sociologia da agência. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 36, p. 704-718, 2013., p. 710), evocando uma partição entre a “vida real” e a vida do crime, cujo modus operandi retira a capacidade de julgamento das pessoas e as faz acreditar que suas práticas são circunstancialmente aceitáveis. Nesse caso, a ressaca parece levar à ressignificação dessa forma de vida como uma ilusão, produzida pelas artimanhas do mundo que lhe é próprio, uma entidade sedutora, análoga a um gênio maligno cartesiano ou um ser demoníaco. O segundo grupo, por sua vez, faz essa operação por meio da desculpa do “não era eu” (WERNECK, 2013WERNECK, Alexandre. Sociologia da moral como sociologia da agência. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 36, p. 704-718, 2013., p. 710), evocando uma partição temporal entre aquele que o ator sempre é e aquele que foi temporariamente quando praticou o delito. Nesse caso, a ressaca costuma levar à representação do crime cometido como um desatino, isto é, uma “falha”, um “lapso”, um “deslize”, como narram, incompatível com o padrão de comportamento dos atores e produzido por circunstâncias extraordinárias (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.; 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019.).

Fabrício se enquadra no primeiro caso, descrevendo a vida do crime como um universo ilusório que compromete a percepção, o discernimento e os sentidos, como o da visão: “A gente cresce o olho na ambição do dinheiro”. Em minha análise, a representação da ilusão é produzida, ao menos parcialmente, pelo fato de que no cárcere se confirmam e se repetem os relatos de que “o crime não compensa”. Conforme Magalhães (2006)MAGALHÃES, Carlos Augusto Teixeira. O crime segundo o criminoso: Um estudo de relatos sobre a experiência da sujeição criminal. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006., o encarceramento apresenta aos atores a perspectiva de que, nessa forma de vida, a despeito das devidas precauções, em algum momento, alguma coisa não apenas pode como vai dar errado, tornando-se, com o passar do tempo, cada vez maior a probabilidade do fracasso. De fato, na cadeia, e, sobretudo em cadeias de facção, as pessoas estão cercadas, de forma detida e concentrada, por histórias de um engajamento malsucedido no crime - e, entre elas, a sua.

Em suma, por meio do par ressaca/desculpa, os egressantes atribuem uma agência externa à origem decisória de suas ações passadas, ao mesmo tempo em que reivindicam a agência de si mesmos no momento presente, uma vez retomado o seu estado de “normalidade”, chamando para si a responsabilidade para lidar com as consequências dessas ações - o que pode ser constatado na percepção de merecimento da pena previamente imposta. Esse movimento permite tomar o tema da agência social sob o prisma do situacionismo metodológico (CICOUREL, 1964CICOUREL, Aaron Victor. Method and Measurement in Sociology. Nova York: Free Press of Glencoe, 1964.; KNORR-CETINA, 1981KNORR-CETINA, Karin. The Micro-Sociological Change of the Macro-Sociology: Towards a Reconstruction of Social Theory and Methodology. In: KNORR-CETINA, Karin; CICOUREL, Aaron Victor (Orgs.). Advances in Social Theory and Methodology: Toward an Integration of Microand Macro-Sociologies. Boston/Londres: Routledge & Keegan Paul, 1981. p. 1-47.; COLLINS, 1981COLLINS, Randall. Micro-translation as a Theory-building Strategy. In: KNORR-CETINA, Karin; CICOUREL, Aaron (Orgs.). Advances in Social Theory and Methodology: Towards an Integration of Micro and Macro-Sociologies. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1981. p. 81-108.; JOSEPH, 2000JOSEPH, Isaac. Erving Goffman e a microssociologia. Rio de Janeiro: FGV, 2000.), em especial a partir da leitura proposta por Werneck (2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: As circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., 2013WERNECK, Alexandre. Sociologia da moral como sociologia da agência. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 36, p. 704-718, 2013.), segundo a qual a clássica dicotomia agente-estrutura pode ser lida como um par de representações pensadas não (simplesmente) como disposições, mas como dispositivos - a agência do agente e a agência da estrutura -, mobilizados pelos atores para entender/operar o mundo e para efetivar as ações e situações nas quais se encontram inseridos ou pelas quais passaram.

Desse modo, ambos os polos de generalidade representados pelos dois accounts fundamentais - justificações e desculpas - podem ser pensados como reivindicações dos atores em termos agênticos: ao se justificarem, afirmando agir conforme um princípio adequado, eles se afirmam responsáveis pelo que fazem e, portanto, se reivindicam senhores de sua própria agência, ao passo que, ao oferecerem desculpas, afirmando não terem sido os verdadeiros responsáveis pelo que fizeram, eles consideram que outra coisa, estruturalmente mais potente, definiu a situação e, assim, teve mais agência. De fato, os egressantes também justificam sua condição atual de cidadãos, produzida pelo compromisso de engajamento em ordens normativas hegemônicas, que, traduzidas nos termos do modelo da economia das grandezas proposto por Boltanski e Thévenot (2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: Sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020[1991].[1991]), correspondem às cités cívica (eles agora se integram a um todo como pequeno sob proteção de um Estado garantidor e ocupante da condição de grande), mercantil (eles agora trabalham e ganham dinheiro honestamente em troca do próprio esforço) e do renome (eles reconstituem uma reputação):

- Hoje em dia eu continuo morando no mesmo lugar, tento demonstrar respeito pra todo mundo, mostrar pra população que eu mudei de vida. Então, eu vou demonstrando na prática. Hoje em dia eles tão vendo... Se fosse uns anos atrás, eu saía [da prisão] e duvido que eu vinha [no Patronato Magarinos Torres] assinar [seu prontuário]. Eu não queria saber era de mais nada: “Vem me buscar aqui dentro” [da favela]. Todo armado, ninguém vai lá dentro buscar. Na operação, a bala come. Então, quem diria que eu ia vim aqui? Já tô até com carta de serviço na mão. Mas a verdade é essa: a vida do crime é só pra bobo. Pra malandro, na verdade.

Essa construção discursiva, um tanto curiosa a princípio, é bastante esclarecedora. Segundo Misse (1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., 2010MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, n. 79, p. 15-38, 2010.), a figura do “malandro”, assim como o “bandido”, evoca um personagem do mundo do crime. Conforme os significados contextuais desse mundo, falamos de uma imagem social atrelada a valores correspondentes de “superioridade moral” e “astúcia”. Quando Fabrício descreve a vida do crime como feita “só pra bobo”, e se corrige, explicando que na verdade é feita “pra malandro”, ele está dizendo que permanecer nessa forma de vida com êxito, sem prejuízos, e, principalmente, sem ser pego, é uma tarefa tão árdua que só pode ser executada por alguém significativamente astuto, um verdadeiro malandro. Mas cumprir essa tarefa com sucesso se revelou para ele tão arriscado, custoso e improvável que, nesse caso, o malandro se torna um bobo por tentar executá-la.

Considerações finais

Para Goffman (1974GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974[1961].[1961]), os atores chegam à instituição total com uma cultura aparente, vinculada a seu “mundo doméstico”, que envolve um determinado conjunto de atividades e um estilo de vida correspondente. Qualquer que tenha sido, o ambiente civil do interno era parte de um agrupamento mais amplo de experiências que lhe confirmava uma concepção tolerável sobre si mesmo e sobre o mundo, isto é, uma concepção por ele julgada, com base em seus valores, como moralmente adequada, dotada de sentido, e, portanto, cabível. Para o autor, no cárcere os internos não somente se encontram despidos do apoio das disposições sociais estáveis em seu mundo doméstico, como também se veem limitados ao desempenho de um único papel social possível, o de detento. Nas palavras de Goffman (1974GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974[1961].[1961]), esse processo viria a produzir uma espécie de “morte civil” (p. 25), agravada pela efetivação de determinadas práticas institucionais ritualizadas que despersonificam os atores sociais, promovendo o que ele designa como “mortificação” do self:

Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do self. O seu self é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que [o sujeito] têm a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele (GOFFMAN, 1974GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974[1961].[1961], p. 24).

Sustento que, com o termo “mortificação”, Goffman não pretendia descrever uma morte propriamente dita (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Afinal, falamos de uma unidade sígnica flexível e cambiante, e não de uma identidade fixa ou uma personalidade sólida. O self, como tal, não admite desfecho senão como ponto de uma linha contínua estendida no decorrer de uma carreira, isto é, de uma trajetória. Por isso, considero que o processo assinalado pelo autor se refere mais à supressão de um self conhecido, previsível, ritualizado, característico do mundo doméstico dos atores, que, por sua vez, viria a produzir um movimento de reconfiguração interna, calcada na criatividade, na competência (GARFINKEL, 1967GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1967.) e na capacidade de agência diante de determinados desafios gramaticais.

Trajetórias como a de Fabrício, muito comuns em cadeias de facção, mostram que a experiência penitenciária não institui necessariamente um abandono completo de suas noções originárias de identidade e de pertencimento, tampouco o desempenho de um único papel social, visto que, muitas vezes, os papéis previamente desempenhados na rua são transpostos para o cárcere. Sua narrativa deixa bastante claro que ele conseguiu manter, ao menos parcialmente, a configuração do self que apresentava antes de ingressar na prisão, já que encontrou lá dentro elementos constitutivos de sua vida pregressa, atribuindo um caráter de familiaridade e de contiguidade ao encarceramento.

Isso me permite supor que, ao menos no que se refere às prisões - lembrando que Goffman também se debruça sobre outras instituições do tipo “total” -, as progressivas mudanças provocadas nas crenças do sujeito a respeito de si e dos outros são desencadeadas pela experiência de sofrimento partilhada por todos os internos de maneira mais ou menos homogênea. De fato, é o sofrimento - e o medo de sofrer de novo - que se revelam como os principais agentes de transformação da carreira moral de egressantes penais. São esses fatores que parecem alterar suas operações de avaliação e julgamento, culminando na interpretação do crime como uma vida feita “só para bobo”, como relata Fabrício, em consonância com os demais entrevistados (PORTO, 2017PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.; 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019.). E são esses modos de avaliar e julgar que formam e conformam as novas concepções identitárias - ainda que temporárias - dos egressantes como um todo.

Nesse sentido, entendo que as transformações ocorridas na carreira moral de atores como Fabrício se encontram na construção de um dispositivo cognitivo capaz de torná-los, pouco a pouco, mais dispostos a levar em consideração códigos morais alternativos ao seu. O que, nesse caso, não ocorre de maneira ampla e genérica, mas específica, já que é partir de um código particular, o da “pessoa de bem”, que se dá esse moralismo. Por outro lado, o dispositivo parece também intensificar a discrepância entre a nova metafísica moral adquirida e a anterior, valorizando enormemente essa distância por meio de uma intervenção somática: a impressão de um sofrimento perene é permanentemente trazida à mente (e, por vezes, ao corpo), alterando o sinal moral da vida pregressa em favor da nova (PORTO, 2019PORTO, Camille. O que há de moral na carreira moral: Sobre dispositivos de transformação de si em “egressantes” do sistema penitenciário. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 477-498, 2019.).

Essas são algumas características do personagem sobre o qual me debruço, o egressante, e que parecem estar presentes, em maior ou menor grau, nos atores que descrevo com esse nome. Recorrendo à desculpa, é possível desvincular as práticas pelas quais eles foram incriminados e se tornaram objeto de punição da expectativa - dos outros e de si mesmos - em relação à sua identidade, a seu agenciamento típico, generalizável como uma personalidade. Trata-se de uma prestação de contas que legitima sua intenção e a sua capacidade de afastar-se permanentemente do crime, enunciadas pela ressaca. Com essa operação, os atores empreendem um retorno ao passado para reescrevê-lo em outras bases, segundo a nova maquinaria moral adquirida - seja ela treinada ou imposta. Assim, encerro, mais uma vez, com Fabrício:

Eu entrei [no crime] querendo ser igual ao meu pai, meu super-homem, que era traficante. E por isso que morreu. Hoje em dia, graças a Deus, eu tô aí mudando de vida. Igual ele sempre falou: “Malandro demais se atrapalha. O verdadeiro malandro se faz de otário pra poder sobreviver”. Ele foi malandro demais e morreu. E eu, graças a Deus, fui o otário, que hoje em dia saí da cadeia e tô mudando de vida.

  • 1
    Em síntese, uma instituição total pode ser definida como um local onde um grande número de pessoas experimenta uma situação semelhante, apartada da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levando uma vida fechada e formalmente administrada. Trata-se, portanto, de um híbrido social: parcialmente uma comunidade residencial e parcialmente uma organização formal. Para Goffman, esse hibridismo confere às instituições totais uma capacidade de transformação de pessoas, constituindo verdadeiras “estufas” (GOFFMAN, 1974GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974[1961].[1961], p. 22) que nos dizem o que se pode fazer ao self de um indivíduo. Exemplos desse tipo de instituição, bastante explorados pelo autor, são as prisões e os hospitais de saúde mental.
  • 2
    Como discutirei adiante, o self é uma unidade de individuação sígnica fundamentalmente social, cujo modo de se inserir no mundo é envolto em uma economia dos significados que cada um representa para si mesmo e para os outros e na influência que esses sentidos para os outros produz sobre cada um.
  • 3
    Como demonstrarei a seguir, a ressaca se apresenta como vontade perene, embora não o seja necessariamente. De fato, o importante acerca desse fenômeno é menos a sua duração efetiva e mais a sua intenção de durabilidade.
  • 4
    A fim de preservar a identidade de meu entrevistado, seu nome é fictício.
  • 5
    A configuração e as exigências de cada um desses benefícios são bastante similares. Os únicos que compreendem especificidades em relação aos demais são LFS e PSC, que preveem, além das obrigações comuns a todos, a permanência dos beneficiários durante dez horas aos fins de semana no Patronato Magarinos Torres, estrutura a ser descrita nas páginas a seguir. Na PSC, os atores também precisam prestar serviço comunitário gratuito durante sete horas semanais.
  • 6
    Réus primários condenados por crimes comuns devem cumprir ao menos 1/6 da pena em regime fechado; réus primários condenados por crimes hediondos devem cumprir 2/5; e reincidentes condenados por crimes hediondos, 3/5.
  • 7
    Conforme o regulamento do Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro, as CTCs são órgãos complementares à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio (Seap/RJ) que atuam no interior das unidades prisionais e contam em sua equipe com um psiquiatra, um psicólogo, um assistente social e dois chefes de serviço, designados pelos diretores entre os servidores em exercício nos respectivos estabelecimentos.
  • 8
    Por outro lado, os técnicos do sistema penal responsáveis por realizar esses procedimentos denunciam em suas falas a enorme quantidade de pedidos de exames que chegam diariamente nas instituições prisionais, direcionados a um efetivo habitualmente muito inferior ao necessário, produzindo um caráter burocrático e superficial de avaliação, que não parece adequada aos apenados e tampouco aos técnicos. Uma profissional me narrou, por exemplo, o encargo de realizar 24 exames criminológicos em um único dia de trabalho, uma jornada de 8h.
  • 9
    Dado apresentado pela frente estatística da pesquisa à qual me vinculei, intitulada “Justiça Penal, Sistema Penitenciário e Democracia no Rio de Janeiro: Uma Pesquisa Sociológica sobre Benefícios Penais e Controle Social”, coordenada pelo professor Michel Misse e realizada centralmente pelo professor Cesar Pinheiro Teixeira, integrantes do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), da UFRJ. Os dados estatísticos foram elaborados a partir de um levantamento dos prontuários de beneficiários penais, armazenados no arquivo do Patronato Magarinos Torres. Os demais resultados dessa frente de pesquisa podem ser encontrados no excelente artigo de David Maciel de Mello Neto (2022)MELLO NETO, David Maciel. Patronato: Uma pesquisa exploratória sobre quem entra e quem sai do sistema carcerário fluminense. Novos Estud. Cebrap, São Paulo, v. 41, n. 1, p. 165-181, 2022..
  • 10
    É digno de nota o fato de a Prisão Albergue Domiciliar Monitorada (PADM) ser o único benefício que prevê efetivamente uma vigilância do beneficiário em tempo integral, por meio de um equipamento preso ao seu corpo, que notifica, via satélite, irregularidades à VEP - mais conhecido como “tornozeleira eletrônica”. E mesmo este é muitas vezes burlado por meio de determinadas estratégias, como a de vestir o aparelho no cachorro para poder sair de casa em um horário ou para um local proibido por seu benefício, como contaram certa vez durante a pesquisa.
  • 11
    Não há nenhum tipo de esclarecimento na Cartilha do Egresso quanto ao que se entende por “bons costumes”. Mas é possível perceber no campo que essa definição está relacionada à restrição a comportamentos “imorais”, como ir a bares, locais de jogos de azar, casas de prostituição etc., como exposto explicitamente a seguir.
  • 12
    A frequência de visitas é determinada pelo juiz da VEP responsável pela concessão do benefício e varia de caso a caso, dependendo do tempo de cumprimento da pena em regime fechado, do tipo de benefício obtido etc. Em geral, as visitas são mais frequentes após a saída imediata da prisão, podendo ser quinzenais ou mensais, e gradualmente tornam-se mais intervaladas, tornando-se bimestrais ou trimestrais.
  • 13
    Localizado em Benfica, bairro da Região Central do Rio de Janeiro, o Patronato Magarinos Torres atende a ampla maioria de beneficiários do estado. Ele conta somente com dois anexos, um em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, e um em Volta Redonda, no sul do estado.
  • 14
    Não à toa eles são designados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) pelo nome de “apenados soltos”.
  • 15
    Lembremo-nos da máxima de Kierkegaard: “A vida é vivida olhando-se para frente, mas só pode ser compreendida olhando-se para trás”.
  • 16
    Vale recordar que, para Bourdieu (1996BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. p. 181-191., p. 184) - e concordo com ele nesse caso -,“produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica”.
  • 17
    É curioso e significativo para a análise o fato de Fabrício dizer estar “ficando mais velho” e “ganhando experiência de vida”, quando tinha somente 26 anos. São numerosas as falas como a dele, de jovens outrora engajados na vida do crime, que descrevem um fim de carreira no período de egressão do sistema. Por isso, em certa medida, a carreira aqui analisada não seria somente moral, mas também etária, muito embora sua fase terminal não esteja necessariamente relacionada à velhice.
  • 18
    Instrumento de controle social executado há décadas nas comunidades do Rio de Janeiro, cuja premissa básica é a invasão violenta para o estabelecimento da ordem e da disciplina (Cf. MORELLATO e REID DOS SANTOS, 2020MORELLATO, Ana Carolina Batista; REID DOS SANTOS, André Filipe Pereira. Intervenção federal e a guerra contra os pobres na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 711-736, 2020.). Como aponta Rodrigues (2021)RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. Necropolítica: Uma pequena ressalva crítica à luz das lógicas do “arrego”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 189-218, 2020., a partir dos dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) trabalhados por Misse et al. (2013), mais de dez mil pessoas foram assassinadas entre 2001 e 2011 em episódios como esse.
  • 19
    Uma das máximas do mundo do crime, como destacam Caminhas e Beato Filho (2020)CAMINHAS, Diogo Alves; BEATO FILHO, Claudio Chaves. “Todo ladrão vai trabalhar com a sua mente”: O uso da força e de armas nos assaltos em Belo Horizonte, Minas Gerais. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 645-667, 2020..
  • 20
    Para saber mais sobre a divisão carcerária do estado do Rio e sobre a experiência prisional em cada um desses tipos de cadeia, ver Porto (2017)PORTO, Camille. Selves em cadeia: Um estudo sociológico sobre a carreira moral de “egressantes” do sistema penitenciário fluminense. Dissertação (Mestrado em Sociologia [com concentração em Antropologia]) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017..
  • 21
    Conforme me narraram, o ligação é aquele que transmite as reivindicações dos presos aos agentes institucionais, realizando uma espécie de mediação entre a massa e a administração carcerária; o visão de cela é aquele que assume o papel de autoridade no interior de cada um desses espaços, repassando à comissão da galeria as demandas dos presos e os eventuais desvios à doutrina; e, finalmente, o comissão é aquele que desempenha o papel de líder diante de todo o agrupamento de presos da galeria. Assim como na vida do crime, as posições ocupadas nessa hierarquia acompanham não somente prestígio, mas também certas responsabilidades como aquelas narradas por Fabrício anteriormente.
  • 22
    Como descreve uma vasta literatura (COELHO, 2005COELHO, Edmundo Campos. Oficina do diabo e outros estudos sobre criminalidade. Rio de Janeiro: Record, 2005[1987].[1987]; PAIXÃO, 1987PAIXÃO, Antônio Luiz. Recuperar ou punir? Como o Estado trata o criminoso. São Paulo: Cortez, 1987.; MISSE, 1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; 2011MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: Diferenças e afinidades. Revista de Sociologia Política, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011.; ADORNO e SALLA, 2007ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC. Estudos Avançados, v. 21, n. 61, p. 7-29, 2007.; GRILLO, 2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.; LOURENÇO, 2013; DIAS e LOURENÇO, 2015DIAS, Camilla Nunes; LOURENÇO, Luiz Cláudio. Discutindo elementos para a definição e a atuação de coletivos de internos do sistema prisional de São Paulo e da Bahia. Trabalho apresentado no 39º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu (MG), 2015.), o crime organizado por comandos ou facções criminosas no Rio nasce no interior do sistema penitenciário, durante a ditadura militar. Com a sanção da Lei de Segurança Nacional, em 1969, militantes de esquerda que se lançaram ao assalto a bancos para financiar a revolução foram enquadrados no mesmo dispositivo legal aplicado a assaltantes de bancos comuns. A relativa vitória nas reivindicações de presos políticos em meados dos anos 1970 criou um efeito de demonstração para os assaltantes de banco comuns, que a partir de então também começaram a se organizar em favor de seus direitos (MISSE, 2011MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: Diferenças e afinidades. Revista de Sociologia Política, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011.). Práticas como a instituição da “caixinha” para atender às necessidades não satisfeitas pela administração - realizada até hoje, como descreve Fabrício - e uma exigência constante de respeito aos direitos dos presos levaram a um fortalecimento do grupo e ao surgimento de novas adesões (COELHO, 2005COELHO, Edmundo Campos. Oficina do diabo e outros estudos sobre criminalidade. Rio de Janeiro: Record, 2005[1987].[1987]). Por alguns de seus líderes considerarem-se de esquerda, os “Lei de Segurança” passaram a designar-se como “Falange Vermelha” e, a partir de 1979, pelo nome que prevalece até hoje, “Comando Vermelho”.
  • 23
    Ele se refere aos Inspetores de Segurança e Administração Penitenciária (Isaps), em alusão ao já extinto cargo de Agentes de Segurança Penitenciária (ASP) do antigo Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe), elevado à condição de Secretaria de Estado (Seap) em 2003.
  • 24
    Conforme a descrição de Fabrício, embora essa configuração seja muito semelhante àquela que atravessa o tráfico, na prisão “o negócio é mais difícil” porque lá “é um olhando mil e mil olhando um”, ou seja, existe uma vigilância e uma cobrança intermitente de respeito à doutrina da facção e aos valores e comportamentos previstos por ela. Segundo ele, ainda, “na rua também tem [a doutrina], mas quem controla?”.
  • 25
    Como apontam Jesus e Gomes (2020)JESUS, Maria Gorete Marques de; GOMES, Mayara de Souza. Nem tudo é o que parece: A disputa semântica sobre a tortura no sistema de justiça criminal. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 361-378, 2021., a partir dos dados de pesquisas desenvolvidas pela Pastoral Carcerária, a tortura é parte indissociável dos estabelecimentos penais no país. Trata-se de um componente inscrito nas dinâmicas carcerárias, que corresponde a uma forma difusa de violência revelada não apenas nas formas física e psicológica, mas também na falta sistemática de atendimento médico, de alimentação adequada, água potável etc. Segundo as autoras, a maior parte dos episódios de tortura institucional reportados não tem qualquer tratamento jurídico na esfera criminal ou cível. Além disso, nos poucos casos que chegam a ser investigados e processados, as vítimas (e suas falas) são frequentemente deslegitimadas por sua condição de “presos/as” ou “sentenciados/as”.

Referências

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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2022
  • Aceito
    21 Set 2022
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