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O parentesco de papel: Direito, poder e resistência em uma ‘cena etnográfica’ com migrantes estrangeiros1 1 São apresentados aqui resultados parcelares de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) no processo no 2019/13162-5, orientada por Ana Cláudia Duarte Rocha Marques, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Esses resultados foram discutidos e debatidos junto ao Hybris: Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades da FFLCH/USP, a cujos membros agradeço por todos os comentários, sugestões e indicações.

Resumos

O artigo parte de uma “cena etnográfica” com migrantes estrangeiros em um escritório de advogado para discutir a função que os documentos migratórios exercem sobre o parentesco no movimento transnacional. Por meio dela, evidencia como o Estado e o Direito disciplinam essas relações e como os próprios migrantes, usando a lógica jurídica da produção documental, elaboram a si mesmos como pessoas, em resistência ao poder estatal. A partir dessa experiência, chamada aqui de parentesco de papel, propõe-se uma reelaboração do conceito de documento, abrangendo tanto a agência burocrática quanto aquela dos sujeitos da documentação.

Palavras-chave:
parentesco; migração; documentos; antropologia do Direito; antropologia do Estado


Paper Kinship: Law, Power and Resistance in an Ethnographic Scene with Foreign Migrants starts from an “ethnographic scene” with foreign migrants in a lawyer’s office to discuss the role that migratory documents play on kinship in the transnational movement. By doing this, it highlights how the state and the Law discipline these relations and how migrants themselves, using the legal logic of documentary production, elaborate themselves as persons, in resistance to state power. Based on this experience, named here as paper kinship, a re-elaboration of the concept of document is proposed, encompassing both the bureaucratic agency and that of the subjects of documentation.

Keywords:
kinship; migration; documents; anthropology of law; anthropology of the state


O que o movimento faz e o que dele é feito quando os espaços por que passa são os dos territórios nacionais e quem se movimenta são pessoas? Em traços bem largos, é isso que pesquiso no trabalho de campo com migrantes estrangeiros ora residentes na cidade de São Paulo. Quero partir do que chamei de uma “cena etnográfica” para endereçar algumas das questões com as quais venho me deparando na pesquisa. Elas dizem respeito principalmente a um cruzamento entre Estado, Direito, parentesco e mobilidade, que se divisa por meio da confecção, do exame, do manejo e do arquivamento dos documentos desses migrantes. Antes de apresentar a cena selecionada, contudo, é necessário fazer algumas observações sobre o que entendo por cena etnográfica e também sobre como construí essa categoria a partir dos meus dados.

Começo por estes últimos. Os dados que mobilizo aqui foram colhidos principalmente no Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante (Crai) do município de São Paulo. O Crai é um aparelho público instituído, junto de outras políticas públicas endereçadas à população imigrante, pela lei municipal no 16.478/2016, sendo gerido atualmente por uma organização da sociedade civil, o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras). Entre os serviços prestados pelo Crai estão o apoio especializado e multilíngue para imigrantes, centrado em orientações sobre regularização migratória e acesso a direitos sociais, o encaminhamento de denúncias por violação de direitos humanos, a orientação pelo serviço social e a consultoria jurídica. Foi nessa última que atuei, como advogado. Por isso, meus dados estão armazenados em agenda profissional, formulários-padrão, autos de processos de imigração, prontuários e até protocolos de atendimento, além do meu caderno de campo.

Minha atuação como advogado no Crai não era litigiosa2 2 Os termos expressos em itálico no decorrer do texto se referem a conceitos êmicos de duas ordens distintas: a das falas de meus interlocutores migrantes e a das falas dos juristas, inclusos aqui a teoria ou a dogmática jurídica e as normas e categorias jurídicas. Os termos “imigrante” e “emigrante”, assim como os termos que se referem a nacionalidades, eu os considero categorias jurídicas. Não distingo entre as duas ordens êmicas porque elas têm a mesma função e o mesmo estatuto no texto. Conceitos das ciências sociais são expressos entre aspas. , isto é, eu não representava os migrantes em processos judiciais no interior das instituições judiciárias. E, apesar de às vezes auxiliá-los no preenchimento dos formulários que instruiriam seus processos de imigração — processos chamados administrativos, pois tramitam em instâncias do Poder Executivo —, eu também não os representava, nessas circunstâncias, como procurador. O que eu fazia, portanto, não era uma “advocacia” em sentido etimológico, na qual o ad-vocatus toma a fala para si, mas em defesa ou no interesse de outrem.

A consultoria, como eu e outros tantos advogados a praticamos, em vez disso, à primeira vista, consiste em um diálogo no qual as falas dos interlocutores têm funções diferentes. Ao cliente, chamado consultante, cabe a priori a apresentação de uma questão ou demanda, entendidas como circunstâncias conflituosas ou intenções a que se quer endereçar uma solução ou dar uma forma jurídica, respectivamente. O advogado, também chamado de consultado, por sua vez, é incumbido de prestar, de maneira inteligível, informações técnicas e especializadas sobre o ordenamento jurídico nacional, além de indicar, se for possível, a solução ou a forma jurídica que melhor se adequam — no sentido de satisfazê-la — à demanda do consultante.

As relações que travei nesse campo se mostraram manifestamente instrumentais, talvez porque esse procedimento padrão torne as situações de consultoria jurídica algo previsíveis em relação a seus desfechos possíveis — mas certamente também porque meus interlocutores já estavam acostumados ao atendimento jurídico, que, via de regra, já haviam experimentado tanto em outras instituições nacionais como em outros países. Elas eram instrumentais em pelo menos três sentidos diferentes. Em primeiro lugar, os migrantes recorriam a mim como um meio para viabilizar a satisfação de suas demandas — da mesma maneira que eu recorria ao Direito como um meio para dar uma resposta a essas demandas. Em segundo lugar, quando meus interlocutores enunciavam suas questões — muitas vezes por meio de discursos ensaiados antecipadamente ou que já eram então objeto de repetição —, o faziam de forma a selecionar o que consideravam juridicamente relevante (e que, portanto, devia ser frisado na fala) e filtrar ou mesmo suprimir o que qualificavam como juridicamente irrelevante ou comprometedor: suas falas eram instrumentos concebidos para a consecução de seus objetivos. Por fim, em terceiro lugar, as interações também eram instrumentais de minha parte. Afinal, entre aquilo que os consultantes falavam, eu re-selecionava o que seria juridicamente relevante para formular uma resposta à consultoria, dispensando todos os elementos juridicamente irrelevantes ou prejudiciais que restassem em seus relatos — embora os retivesse, quase como em um registro paralelo, como antropólogo.

Para além da instrumentalidade, é seguro dizer que as relações que travei, e, por conseguinte, meus dados, ficaram marcados pela desconfiança com que meus interlocutores se resguardavam de mim. E por que seria diferente? Nós não havíamos sido apresentados antes da consulta. Não tínhamos qualquer intimidade. Além disso, permanecia sempre uma distância ou uma separação entre nós, que se reproduzia reiteradamente nas materialidades físicas e simbólicas, fosse pela minha condição de “advogado”, pela mesa que se interpunha entre mim e os consultantes, pela sala individual que eu usava, pelo órgão público em que ela estava sediada, pelos protocolos e fluxos de atendimento que tornavam tanto maquínica quanto seriada a passagem dos migrantes no Crai, ou mesmo pelas línguas faladas no escritório — já que a maioria dos consultantes não falava o português fluentemente e poucos compreendiam alguma coisa desse dialeto técnico e especializado que é o jargão jurídico. A bem da verdade, inobstante isso tenha sido surpreendente para mim em um primeiro momento, não demorou muito até que eu percebesse que, para meus interlocutores, eu estava ali como se fosse um representante do Estado — o que virava de ponta-cabeça minhas expectativas sobre as relações entre advogado e cliente.

Por tudo isso, não apenas as informações que me eram passadas já chegavam direcionadas, instrumental ou tematicamente, como eu também as recebia de maneira enviesada. Ou melhor: de maneiras enviesadas — no plural. Eu escutava os migrantes, lia e redigia seus documentos, tudo a partir de perspectivas diferentes, as quais, se não podem ser sintetizadas em uma só, tampouco podem ser completamente dissociadas, ainda que mediante um procedimento analítico que se reconhecesse irrealizável na prática. Eu era o ativista que se candidatara para prestar atendimento aos migrantes. Mas também era o advogado que selecionava o que eles diziam, traduzia para a linguagem jurídica e criava soluções jurídicas a partir disso. E, ao mesmo tempo, era o antropólogo que examinava a si mesmo tanto quanto aos relatos de seus interlocutores, a fim de dar inteligibilidade àquela experiência que parecia simultaneamente tão complexa e tão circunscrita.

No entanto, tampouco era evidente, em um primeiro momento, o estatuto epistemológico daquela análise. Porque nisso também havia uma inversão. Um dos elementos estereotípicos que sempre esperamos encontrar quando lemos uma etnografia — e que, portanto, a constitui enquanto tal — é o deslocamento. Também o deslocamento conceitual, de preferência, mas principalmente o deslocamento físico. Genealogicamente falando, herdamos isso ainda dos relatos de viagem, com os quais a antropologia clássica do século XX rompeu, ao menos parcialmente, buscando produzir em si mesma um saber positivo, científico. O deslocamento físico é o fundamento de nossa autoridade etnográfica (CLIFFORD, 2002CLIFFORD, James. “Sobre a autoridade etnográfica”. In: CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, pp. 17-62.), e, portanto, do saber-poder que exercemos. Por meio dele é como se disséssemos: sei porque fui até “lá”, aprendi a língua, vi e ouvi. Dessa forma, há dois espaços e dois tempos implicados no estilo etnográfico: o tempo do trabalho de campo, realizado “lá”, entre os “outros”, e o tempo do trabalho de escrita, realizado “aqui”, entre “nós”. E mesmo na antropologia urbana algo como isso se mantém, ao menos retoricamente, com alguma frequência: a viagem pode ser curta e os outros podem estar mais próximos e se parecer mais conosco, mas ainda assim não estão propriamente aqui, dentro do nosso gabinete — e menos ainda dentro do nosso círculo existencial.

Meus dados, todavia, são oriundos de uma (con-)fusão bastante visível entre o campo e o gabinete — entre o “lá” e o “aqui”, o “dentro” e o “fora”. Não fui eu quem viajou. Não era, em nenhum momento, um de “nós” que se excedia de “nossas” fronteiras — “nossa política”, “nossa cultura” — e se projetava para fora, para o campo, que é sempre, em alguma medida, um lugar “estrangeiro”. Pelo contrário. Eu sempre estive dentro do “meu gabinete”, e foram meus interlocutores, os estrangeiros, que se deslocaram até mim: se eles eram os “outros”, ainda assim estavam “aqui”, dentro de “nossas” fronteiras, como externalidades de alguma maneira sempre em vias de serem internalizadas — ou naturalizadas, como se diz da última etapa ideacional da imigração no direito migratório.

Isso implica toda uma comutação na fenomenologia do fazer antropológico, com não desprezíveis repercussões em termos de ética, método e política etnográfica (Idem, 1995). Eu não podia mais constituir meus dados a partir de qualquer autoridade etnográfica que fosse paga ao preço do deslocamento sobre o espaço e do aprendizado de uma nova língua. A que título, então, eu podia pretender a elaboração de um conhecimento etnográfico?

O que posso dizer sobre isso é que, até o momento, me pautei por manter, além do contato face a face com meus interlocutores, o deslocamento como elemento discriminante dos dados que colhi junto a eles. No entanto, tive de ressignificar esse deslocamento, ou então extrair dele uma parte que me parece ser ainda mais essencial do que a distância física, como atestam algumas experiências com a antropologia urbana. Em vez de viajar pelo espaço geográfico, desloco minha perspectiva, constituindo o “aqui” como uma heterotopia (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. “Outros espaços”. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.) ou um lugar em que habitam tantos outros lugares e, por conseguinte, tantas outras vozes (APPADURAI, 1988APPADURAI, Arjun. “Place and Voice in Anthropological Theory”. Cultural Anthropology, vol. 3, n. 1, pp. 16-20, 1988.). Sou simultaneamente advogado e antropólogo; estou ao mesmo tempo no gabinete e no campo; toda tradução que eu faço não é apenas da língua e dos modos estrangeiros para os “nossos”, mas também desses para a linguagem jurídica, e, desta, para a linguagem antropológica — cada qual com sua gramática e seus interesses particulares. Assim, qualquer autoridade etnográfica que eu possa pleitear talvez esteja calcada, ao menos parcialmente, na autoridade jurídica que tenho como um intérprete qualificado do Direito sendo essa a minha versão de “domínio da língua nativa”.

E foi preciso levar isso a sério. Se minha pesquisa supunha meu papel como advogado, então os direcionamentos éticos que a orientavam tinham de ser revistos a fim de que pudessem corresponder a essa situação. Não para flexibilizar as responsabilidades do advogado a partir do papel do antropólogo ou vice-versa, mas para que eu pudesse agir adequadamente em relação a meus clientes/interlocutores tanto como advogado quanto como antropólogo — o que implicava lhes reservar o mais absoluto sigilo, intrínseco à relação entre advogado e cliente e, ao mesmo tempo, respeitar a diretriz de dar voz a eles na etnografia. Isso exigia de mim um mecanismo de escrita capaz de tornar indistinguíveis os migrantes, sem, no entanto, torná-los invisíveis.

As cenas etnográficas são a minha resposta a essa exigência, de uma só vez ética, metodológica e política. Por meio delas eu apresento ao leitor aquilo que ordinária e cotidianamente se passa no escritório de um advogado quando migrantes estrangeiros vêm interpelá-lo na procura por soluções jurídicas para suas demandas, suprimindo da descrição tudo aquilo que tenha se revelado, na prática do meu campo, extraordinário e, portanto, particularizante em relação atendido(s). As cenas cuidam de diálogos em que as demandas e as respostas a elas representam, no sentido do drama social de Victor Turner (2008)TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas. Niterói: EDUFF, 2008., elementos da migração, dos modos de vida dos migrantes e do modo de existência do Estado-nação como “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), porém praticada. Esses elementos, por sua vez, são selecionados por responderem a preocupações teóricas da antropologia, com potencial para recolocar suas questões em novos e inesperados termos. E inesperados não porque sejam novidadeiros, mas porque, uma vez que esses diálogos são todos marcados em alguma extensão pela poliglossia e pela interculturalidade, nunca se sabe exatamente quais são as “línguas” e as “culturas” que aparecem para conversar, já que nem como advogado e nem como antropólogo posso prever as origens, os percursos biográficos e as influências de meus atendidos e interlocutores.

Valho-me, assim, do mesmo procedimento explorado diversas vezes por Marilyn Strathern (2020)STRATHERN, Marilyn. Relations: An Anthropological Account. Durham/Londres: Duke University Prees, 2020., em que se estabelece uma relação de homologia entre a descrição etnográfica, a análise teórica e o processo de conhecimento que se quer descrever e analisar — e que é, nesse caso, aquele propriamente jurídico, cujo instrumento é o escritório do advogado. Daí ser necessário entender que a cena etnográfica é produto de uma “cenografia jurídica” na qual os papéis dos sujeitos que entram no escritório, e mesmo do advogado que espera por eles, são eminentemente alegóricos, embora etnograficamente instruídos, uma vez que, no primeiro caso, esses personagens representam e ostentam características de uma série de sujeitos que se mantiveram nos bastidores e, no segundo caso, o advogado não oferece nenhuma solução que possa parecer inovadora a qualquer outro advogado que estivesse em seu lugar. Quando utilizou sua sala de aula, em num curso jurídico, como campo para a pesquisa sobre a forma de conhecimento do Direito, Annelise Riles (2004)RILES, Annelise. “Property as Legal Knowledge: Means and Ends”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 10, n. 4, pp. 775-95, 2004. nomeou de anedotização esse mecanismo. Na disciplina da Teoria Geral do Direito, contudo, ele é o que chamaríamos da formulação de um tipo concreto (LARENZ, 2012LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2012., pp. 655-659), uma abstração alegórica de casos reais, efetivamente suscitados no passado e agrupados em um arquivo, a que se chama jurisprudência (lato sensu), em virtude de suas semelhanças.

A cena que escolhi apresentar aqui, e que será descrita e discutida adiante, retrata, entre outras coisas, como o parentesco e a família podem ser feitos, representados e mobilizados poeticamente — nos termos da poética social de Herzfeld (2008HERZFELD, Michael. Intimidade cultural: Poética social no Estado-nação. Coimbra: Edições 70, 2008., p. 42) — em um escritório de advogado por meio de documentos. O leitor perceberá que não separo a teoria ou a dogmática jurídicas de quaisquer outros elementos factuais da cena. Pelo contrário, entremeio a narração com a análise jurídica que eu realizava, como advogado, durante o diálogo com meus consultantes. Isso porque, em primeiro lugar, como se trata de uma situação de consulta, a análise jurídica constitui parte do diálogo cuja denotação é indispensável para a compreensão do desfecho da cena: sem ela, tudo não passaria de um “truque de mágica”, cuja técnica elíptica geraria efeitos literalmente fantásticos (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, Pierre. “A força do Direito: Elementos para uma sociologia do campo jurídico”. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989, pp. 209-54.). Depois, porque eu não era o único que interpretava o Direito ali — e, se a melhor interpretação é aquela que mais desnaturaliza o texto interpretado, eu sequer era o melhor intérprete na maioria das consultorias de que participei, ficando as exegeses mais bem-sucedidas a cargo, quase sempre, dos próprios migrantes. Mas também, e por fim, porque a teoria jurídica é aqui tratada, consoante a sugestão de Riles (2004)RILES, Annelise. “Property as Legal Knowledge: Means and Ends”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 10, n. 4, pp. 775-95, 2004., como uma teoria nativa — o que supõe que a teoria jurídica e a teoria antropológica não só não compartilham idênticos estatutos epistemológicos como correspondem a diferentes critérios de veridicção e, portanto, a modos de existência distintos (LATOUR, 2019LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: Uma antropologia dos modernos. Petrópolis: Vozes, 2019.passim).

O texto doravante está dividido em três partes. A primeira e mais longa descreve a cena etnográfica analisada e discute como o parentesco e a família são agenciados por meus interlocutores em um escritório de advogado. Meu objetivo teórico principal é descrever o conceito de “parentesco de papel”, que desenvolvi para dar conta desse agenciamento que sempre passa pelos documentos. A segunda parte informa ao leitor sobre alguns dos desdobramentos da cena e discute a intervenção do poder estatal e da resistência migrante na confecção dos documentos que compõem o parentesco de papel. Quero mostrar como as experiências e as interpretações propriamente jurídicas de meus interlocutores acabam por deslocar e especificar os termos das discussões tradicionalmente feitas nas Ciências Sociais sobre os documentos, autorizando uma definição mais concreta sobre esses, especialmente pertinente no âmbito da migração internacional. A última parte indica alguns dos caminhos pelos quais a reflexividade antropológica deve passar em um trabalho como o meu, problematizando o papel que desempenhei na cena etnográfica — ainda que essa discussão permaneça em aberto, até o momento.

A família e o parentesco de papel em um escritório de advogado

Em meados de janeiro fazia calor no meu escritório, no Crai, quando a recepcionista — outra voluntária — bateu à porta para informar que Latasha3 3 Todos os nomes utilizados no texto são pseudônimos criados por mim. , a migrante que agendara atendimento para as 9h, havia chegado. “Mas ela está subindo com a família toda”, disse, referindo-se à circunstância de que aquela sala ficava no primeiro andar, ao contrário das salas do serviço social e dos demais atendentes, que ficavam no térreo.

Alguns minutos se passaram entre a chegada dos atendidos e o começo do atendimento. Isso porque tinham vindo Latasha, seus três filhos (um deles ainda de colo) e seu companheiro — a “família toda” —, mas meu escritório só dispunha de dois assentos: um para mim e outro para o atendido da vez. Até então as duas cadeiras tinham me bastado, dado que, a toda evidência, embora na migração já se tenham identificado os contornos de um fenômeno coletivo, ainda assim os processos de imigração, conforme regulados pelo Direito brasileiro, continuam sendo eminentemente individuais — e, por isso mesmo, individualizantes. Cada processo se refere a uma pessoa e é instruído por formulários preenchidos com seus dados pessoais e biográficos, além de cópias dos seus documentos de identificação e antecedentes, tanto criminais como migratórios. Isso mesmo quando o processo, por sua própria natureza jurídica, como se diz, se refere a uma multiplicidade de pessoas, como no caso dos processos de reunião familiar — já que aí se supõe a presença de um familiar, o chamado, e a ausência de outro(s), o(s) chamante(s) já residente(s) no território nacional, a que o primeiro nomeia a fim de requerer uma autorização de residência4 4 Por “individualidade” e “individualização” do processo, me refiro ao fato de que só o chamado é formalmente parte do processo administrativo, tal como entende o direito. Isso não significa, todavia, que inexistam investimentos coletivos dos parentes visando ao bom-sucesso do requerimento de um deles. A busca, a confecção e a coleção dos documentos, por exemplo, aparece, em campo, como um trabalho concertado dos grupos familiares que migram juntos. Além disso, para averiguação e comprovação dos dados necessários à tomada de decisão (inclusive a comprovação do vínculo familiar) a autoridade migratória pode exigir que sejam realizadas atividades de instrução, como as entrevistas pessoais dos familiares do chamado. Por isso é comum que os chamados sejam instruídos, em órgãos especializados como o Crai ou em ONGs que trabalham com migrantes, a comparecerem junto de seus chamantes no momento de apresentação da Solicitação de Autorização de Residência, na Polícia Federal. .

Com a adição de mais cadeiras à sala — e a consequente expulsão do ventilador, para o qual não havia mais lugar —, no entanto, o atendimento pode começar. E começou com Latasha dispondo sobre a mesa uma série de documentos seus e de sua família — um gesto bastante comum entre os meus atendidos —, todos virados para mim, enquanto narrava sua questão, em um português fluente que só muito raramente era emendado pelo seu companheiro.

Ela e seu filho mais velho, Kwame, haviam deixado o território da Nigéria em 2015, quando o rapaz ainda tinha 11 anos. Os passaportes da época, já expirados, que a atendida me exibia o confirmavam. Nada me foi dito sobre as circunstâncias que levaram a essa emigração, e eu também não perguntei sobre o assunto, preferindo deixar que Latasha terminasse livremente o seu relato, selecionando por si mesma aquilo que pensava ser relevante para me dizer.

Ainda em 2015, mãe e filho foram autorizados a residir no Brasil, primeiro temporária e depois permanentemente, a título de serem refugiados, como grande parte dos imigrantes nigerianos. As cópias dos protocolos de refúgio e das autorizações mais recentes — todos oficiais, conquanto simplesmente impressos em folhas A4, já um tanto castigadas — estavam sobre a mesa, assim como os Registros Nacionais de Migratórios (RNM) de ambos — estes feitos de material mais durável, além de plastificados5 5 A materialidade e a durabilidade de cada documento em campo parecem estar sempre relacionadas à precariedade do status migratório do sujeito que porta o documento. Não há, por exemplo, protocolo de pedido de refúgio que não seja emitido em folhas A4, sem plastificação, apesar do papel fundamental que esse documento desempenha na vida do migrante. . Por sorte, Latasha conseguiu matricular rapidamente Kwame em uma escola municipal e, assim, pode começar a trabalhar — o que ela fazia no centro de São Paulo, comprando e revendendo roupas, como tantos outros migrantes em condições econômicas vulneráveis. Foi durante o trabalho que ela conheceu Renato, brasileiro, empregado desde aquela época em uma oficina mecânica da região.

Após um período de namoro, os dois foram morar juntos na casa dele, na Zona Leste de São Paulo, em 2017. Latasha, naturalmente, levou Kwame consigo — havia comprovantes de endereço na bolsa da atendida, mas eu a dispensei de mostrá-los para mim, com um gesto. Pouco tempo depois, Renato e Latasha formalizaram sua união em um Cartório de Notas, onde lavraram uma Declaração de União Estável — cuja cópia xerografada rápida e impetuosamente cruzava a minha mesa. Desde então, eles tinham “formado uma família”, conforme me dizia a atendida. Família essa que seria integrada, um pouco mais tarde, pelos dois filhos do casal, nascidos com um ano de diferença, entre 2018 e 2019. Para cuidar dos pequenos, Latasha tinha deixado de trabalhar temporariamente na região central da cidade. Quando podia, ainda vendia roupas para os seus vizinhos, a fim de complementar a renda familiar, que vinha principalmente do salário de Renato.

O problema de todo aquele arranjo doméstico era Kwame. “Porque ele não é parte da família, não se sente parte da família”, me disse a atendida. E, como eu não tinha entendido bem, ela continuou a me explicar, desviando cuidadosamente os olhos do filho mais velho, que, já de braços cruzados, parecia cada vez mais insatisfeito com o relato.

Kwame, então aos 16 anos, tinha problemas na escola. Era “briguento”, “inquieto”, tirava notas baixas. Ficava “o dia todo no celular” e “não dava bola para ninguém”. Os professores tinham recomendado que Latasha o levasse ao posto de saúde, onde ele poderia receber tratamento psicológico para a sua “hiperatividade”. Desde então o rapaz tomava uma série de remédios — cujos receituários médicos me eram exibidos. Mas nada daquilo havia funcionado, e agora Kwame chegara ao ponto de querer morar sozinho ou então migrar para procurar o seu pai, de quem as últimas notícias informavam sobre sua chegada à França, anos antes — o que, para Latasha, era “uma loucura”. Tudo isso, aparentemente, porque Kwame “não fazia parte da família”.

Eu não sabia bem o que dizer, e muito menos como ajudar. Deduzi, então, que a consultante ainda não tinha terminado de formular sua questão. Como um silêncio incômodo se alongava na sala, todavia, perguntei a Kwame — que, àquela altura, tinha feições bastante irritadas — o porquê de ele querer morar sozinho. Isso, como eu devia ter previsto, mas não previ, desencadeou uma discussão, da qual transcrevo um trecho, conforme minhas anotações de campo:

— Porque eu não quero morar com eles, são a família da minha mãe, não a minha... (Kwame)

— Ele fica repetindo isso... (Renato)

— O quê? E você é meu pai? (Kwame)

— Você vê [olhando para mim]... Sou eu que cuido dele, mas ele não me deixa ser pai dele. (Renato)

— Eu já tenho pai. Pode olhar no papel aí. O nome dele tá aí. E um dia eu vou lá encontrar com ele. Não quero que ele deixe de ser meu pai. (Kwame)

Mesmo se fossem excluídos o burburinho, os tons de voz cada vez mais altos e o choro do irmão mais novo de Kwame, que explodira junto dos ânimos no escritório, ainda assim pareceria haver muito ruído naquele diálogo. Enquanto Latasha acalmava os envolvidos, eu, um tanto desconcertado, me esforçava para entender o que estava se passando, de preferência sem provocar novos confrontos.

Eu conseguia reconhecer sem muito esforço aquilo de que Renato falava. Eram, afinal, noções de que eu compartilhava — “nossas”, por assim dizer. “Pai é quem cria” — quantas vezes eu já não tinha ouvido isso de outros clientes, principalmente brasileiros? O ditado, reproduzindo a distinção entre “genitor” e “pater” (RADCLIFFE-BROWN, 1973RADCLIFFE-BROWN, Alfred. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.; FORTES, 1983FORTES, Meyer. Rules and the Emergence of Society. Londres: Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1983.), parece partir daqueles mesmos dois elementos, sangue e código, que, segundo Schneider (2016)SCHNEIDER, David. Parentesco americano: Uma exposição cultural. Rio de Janeiro: Vozes, 2016., compõem o parentesco americano — mas só para, em seguida, opô-los. Pai, a priori, é quem compartilha o sangue e desempenha o papel reservado para ele no sistema de parentesco. No entanto, se os dois elementos são dissociados subjetivamente — isto é, se uma pessoa compartilha do sangue de alguém, mas é outra pessoa que desempenha o papel reservado ao pai —, então quem é realmente, o pai? O ditado responde: “pai é quem cria”, e não quem tem o mesmo sangue.

A resposta do Direito brasileiro a essa questão, contudo, inverte a ordem das palavras na definição. Se traduzíssemos “quem cria [também] é pai” para o latim, a sentença provavelmente poderia se tornar um adágio do Direito de Família contemporâneo. Isso porque a inversão, sinteticamente, tem o efeito de imputar a paternidade a quem desempenha o código de conduta, mas não exclui a imputação da paternidade sobre aquele com que se compartilha o sangue. Assim, há um desdobramento: aquele que cria é pai, mas nem todo pai é quem cria. Essa é, aliás, a lógica que fundamenta aquilo que, no Direito, chamamos de paternidade socioafetiva, que tem como consequência imediata o reconhecimento da multiparentalidade jurídica — isto é, da possibilidade de multiplicação do pater pela via das mesmas regras que antes produziam esse papel como individual.

É claro que eu sabia que as coisas nem sempre tinham sido assim, e que um longo percurso doutrinário e jurisprudencial teve de ser percorrido até que a multiparentalidade se tornasse, há poucos anos, uma possibilidade jurídica concreta. No entanto, para mim, como advogado, o instituto aparecia como uma categoria dogmática evidente, de interpretação pacificada e, inclusive, já naturalmente aplicada (no passado mesmo!) àquela situação. Até porque, pelo que Latasha começava a me contar, Renato sempre tinha agido como pai de Kwame: provia seu sustento, comparecia às reuniões escolares, levava-o ao posto de saúde para as consultas periódicas sempre que podia, dava ele atenção e carinho e, sobretudo, queria (expressamente) ser pai do rapaz — tudo isso sendo mais do que suficiente, no meu entendimento, para fazer com que a norma jurídica atributiva de paternidade socioafetiva já tivesse incidido sobre a hipótese de fato. E as normas jurídicas, conforme eu havia apreendido, são chamadas indefectíveis justamente porque incidem de maneira automática e instantânea sempre que os fatos ou atos humanos reproduzem as situações previstas em seus enunciados — ainda que os intérpretes e aplicadores do Direito possam demorar a reconhecê-lo, por serem, eles mesmos, falíveis. Dito de outra forma: juridicamente falando, Kwame e Renato já tinham se constituído há muito tempo, e inescapavelmente, como pai e filho — tudo o que faltava era alguém que os avisasse disso.

Para Kwame, todavia, as coisas não eram assim — e o aviso, se eu fosse ingênuo o suficiente para enunciá-lo assim, provavelmente lhe soaria absurdo. Que Renato agisse como se fosse seu pai, que fosse companheiro de sua mãe e pai de seus irmãos mais novos não só não eram condições suficientes para que ele se tornasse seu pai como representavam tentativas, por parte do padrasto, de usurpar o lugar do seu pai verdadeiro.

E havia mais. Kwame não falava só de parentesco, mas também de família. Ele e sua mãe tinham composto uma família, antes de Renato aparecer. Ele e seu pai verdadeiro, de outra feita, também poderiam compor uma família, se porventura viessem a se reencontrar no futuro. E, em sua opinião, seus irmãos, sua mãe e seu padrasto formavam, igualmente, uma família, da qual, contudo, ele se via excluído. Essa exclusão, ao que tudo indicava, decorria do tipo de relação que ele travava com Renato. Havia uma falta nela que nenhum cumprimento de código de conduta poderia sanar. Eles não podiam ser familiares porque não eram parentes — e não podiam sê-lo.

Contudo, simultaneamente, Kwame era filho de Latasha e irmão dos outros filhos dela, enquanto Renato era companheiro daquela e pai destes. Ou seja: havia duas redes familiares e de parentesco que não apenas se sobrepunham parcialmente como disputavam entre si. Ora, entre ter o lugar de seu pai verdadeiro usurpado ou ter de concorrer com o padrasto pela própria família, Kwame optava por subtrair a si mesmo da convivência doméstica, indo morar sozinho ou partindo para a França. E isso a despeito de gostar de Renato, como ele mesmo admitia, um pouco a contragosto.

A demanda de Latasha naquela consulta, então, começava a ficar clara para mim. Como ela não tinha intenção de desfazer seu vínculo com Renato, mas tampouco queria que Kwame saísse de casa, só lhe restava a opção de costurar as duas redes familiares e de parentesco que o filho enxergava. Ela queria integrá-lo na família de que ele se via excluído. A pergunta, por conseguinte, passava a ser: o que um advogado podia fazer sobre isso? O que eu poderia fazer que um assistente social ou um psicólogo não faria com muito mais competência?

Pego desprevenido, tentei mediar o conflito. Isso implicava traduzir de alguma forma para Kwame aquilo que Renato havia dito na discussão que acabara de acontecer entre eles. Era minha única opção, já que eu ainda não tinha entendido os argumentos do rapaz. E o fiz tentando apresentar a ele o que se entendia por paternidade socioafetiva. Falhei miseravelmente. O seguinte trecho, tirado das minhas notas, expressa a consternação de Kwame:

— É como ser adotado? (Kwame)

— Mais ou menos. Ele passaria a ser seu pai também. (Eu)

— Mas aí iam apagar o meu pai de verdade pra pôr ele? (Kwame)

— Como assim? (Eu)

— Nos documentos aí [apontando para a mesa com a cabeça]. Iam tirar meu pai pra por ele? (Kwame)

Só quando cheguei aí é que compreendi concretamente como o objetivo de Latasha passava por aquela consulta jurídica. Seu problema não era de sangue ou de código. Era de documento.

— E se você tiver documentos que digam que os dois são seus pais? Que você tem dois pais, o que está na França e o Renato? (Eu)

— Mas isso pode? (Kwame)

— Pode. Aqui a gente chama de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva. É um documento que vai dizer que o Renato também é seu pai. (Eu)

— E o meu pai de verdade? (Kwame)

— O nome dele vai continuar nos seus outros documentos. Não precisa ser tirado. Aí ele fica como seu pai biológico e o Renato como seu pai socioafetivo, aquele que cuida de você. O que acha? (Eu)

Kwame não aceitou a ideia de imediato. Pensou por alguns minutos e antes de me responder positivamente até negociou com a mãe a devolução de seu celular — que havia sido tomado como castigo, por algum motivo. Renato, satisfeito, comentou que a solução tinha “caído como uma luva” — e Latasha, como se não tivesse me conduzido até ali por sua própria perspicácia, me agradeceu contente.

Durante a conversa eu procedia à etapa seguinte da consulta, que implicava o cadastro e a confecção de um prontuário para os atendidos. Enquanto isso, olhava às vezes para o que estava sobre a minha mesa. Eram os papéis que Latasha vinha me mostrando desde o início. Os documentos a partir dos quais ela havia formulado um arquivo próprio, paralelo ao do Estado (HEIMER, 2006HEIMER, Carol. “‘Conceiving Children’: How Documents Support Case versus Biographical Analyses”. In: RILES, Annelise (org). Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2006, pp. 95-126.; AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: O arquivo e a testemunha (homo sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008., pp. 145-146) e apto a contar de maneira coerente, do seu ponto de vista, a sua história, a história de Kwame e a história de sua família.

Havia ali algo de intrigante. Para mim, a maioria daqueles documentos tinha, quando muito, o que em Direito chamamos de natureza (jurídica) meramente declaratória. Eles não faziam nada de novo. Apenas atestavam ou acertavam uma relação jurídica pré-existente à sua lavra, ou confecção, no sentido de lhe dar certeza jurídica. O exemplo mais claro para explicá-lo é o da Certidão de Nascimento. A pessoa nasce, e isso é dito um fato da vida, mas também do Direito. O nascimento enseja a formação de uma nova personalidade jurídica, que corresponde àquela pessoa, e isso é um fato jurídico. Com a personalidade, surge o patrimônio da pessoa, que entendemos pelo conjunto de todos os seus direitos e deveres, entre eles o direito ao nome e ao sobrenome, à filiação, ao corpo e os demais direitos chamados da personalidade — esses são termos ou posições em relações jurídicas (LUMIA, 2003LUMIA, Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.). O nascimento é registrado em um Cartório de Registro de Pessoas Naturais e, ato contínuo ao registro, o tabelião lavra a partir dele uma Certidão de Nascimento. Desse ato de registro ou dessa Certidão não se diz que eles constituem indivíduos, formam pessoas ou criam direitos e deveres. Não em Direito, pelo menos. O que constitui indivíduos, forma pessoas6 6 Refiro-me apenas às pessoas naturais (isto é, humanas), que são as únicas que nascem. Pessoas jurídicas, que também têm patrimônios e inclusive direitos da personalidade, não nascem, são constituídas; sua constituição se dá pela via de um ato jurídico (isto é, uma declaração de vontade válida emitida por outros sujeitos de direito precedentes), e não de um fato jurídico (isto é, um fato natural, independente da vontade validamente declarada, que suscita efeitos jurídicos). e cria direitos e deveres é tão-só o nascimento. Para o Direito, o que a Certidão faz é informar sobre o nascimento e seu registro: declará-lo — e isso é só.

Mas as insistentes alusões de Latasha e Kwame aos documentos sobre minha mesa me davam a impressão de que essa não era a melhor interpretação acerca do sentido que aqueles papéis tinham naquela situação. Para os meus atendidos, os documentos tinham outro estatuto, outra função, agiam de outra forma. E a maneira como atuavam estava estreitamente ligado ao motivo pelo qual Latasha escolhera passar por um escritório de advogado para ligar suas redes de parentesco e familiares.

Kwame falava dos documentos como se tivessem a aptidão para fazer ou desfazer parentesco e família. Um documento novo poderia fazer de Renato um pai. E a remoção de seu pai de verdade dos seus documentos poderia fazê-lo deixar de ser seu pai. Mais precisamente: poderia fazer com que seu pai de verdade fosse apagado, como se esse elemento pudesse ser eliminado de sua biografia. Se há algo que corresponde a isso no Direito, é o que chamamos de eficácia constitutiva, que se opõe à eficácia declaratória na medida em que dá ensejo a uma nova relação jurídica, em vez de apenas certificar uma relação pré-existente. É a diferença entre a Certidão de Nascimento ou da Declaração de União Estável para um contrato ou para o casamento — as duas primeiras sendo declaratórias e os últimos constitutivos. Para o Direito, apenas os atos constitutivos (negativos ou positivos, porque a desconstituição é vista como uma constituição de sinal trocado) tem a característica de serem performativos, nos termos da filosofia da linguagem de John Austin (1990AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990., passim).

Mas tampouco era a qualquer documento que Kwame e Latasha atribuíam essa eficácia constitutiva do parentesco e da família. A nenhum momento eles tinham me mostrado ou feito referência a documentos particulares ou produzidos por eles mesmos, como cartas, fotos, genealogias, diários ou até mensagens eletrônicas. Os documentos a que se referiam eram todos públicos, ou seja, dotados da chancela ou da “assinatura” do Estado, para usar um termo de Veena Das (2004)DAS, Veena. “The Signature of the State: The Paradox of Illegibility”. In: DAS, Veena; POHLE, Deborah (orgs). Anthropology in the Margins of the State. Nova York: Oxford University Press, 2004, pp. 225-252.. Sua confecção, por conseguinte, se dava por meio dos mecanismos da burocracia estatal e nos moldes do Direito e da administração pública. Daí eu entendia, enfim, o motivo pelo qual Latasha procurara, justamente, um advogado para costurar a sua família.

O que eram, todavia, aquele parentesco e aquela família de papel?

A primeira coisa a se dizer sobre isso é que, independentemente de qual fosse o sistema de parentesco de que vinham Latasha e Kwame, ele definitivamente não era o daqueles documentos. E isso a despeito de quaisquer coincidências que se pudessem verificar entre os dois. O motivo dessa afirmação é sumário: o direito migratório, a partir do qual os documentos dos imigrantes são confeccionados, desconhece em absoluto qualquer relação de parentesco que não se enquadre naquelas qualificadas pelo ordenamento jurídico nacional como juridicamente relevantes.

Por sua vez, a relevância jurídica no direito migratório está sempre orientada pela tutela do território nacional, da nacionalidade e das fronteiras que dividem cidadãos e estrangeiros. Logo, a descrição mais pormenorizada do parentesco documental se encontra nas normas sobre o processo de reunião familiar, de que falei anteriormente, já que ele é o meio jurídico através do qual, com fundamento no parentesco, um migrante pode ingressar e permanecer no território nacional7 7 Há, no entanto, o procedimento especial de pedido de visto e de extensão da condição de refugiado para familiares de refugiados, que torna possível o chamamento de qualquer familiar que dependa economicamente do refugiado já reconhecido segundo as normas brasileiras. A hipótese é regulada pela resolução normativa no 27/18 do Conselho Nacional para Refugiados (Conare), que nisso derroga a Portaria Interministerial no 12/18 dos ministérios de Estado, da Justiça e Extraordinário da Segurança Pública e das Relações Exteriores. . No que toca a esse tipo de processo, a Portaria Interministerial no 12 de 2018, dos ministérios da Justiça, da Segurança Pública e das Relações Exteriores, em seu art. 2º, considera como parentes apenas o cônjuge ou companheiro, os ascendentes e descendentes até segundo grau e os irmãos. Se o estrangeiro tem, como é provável, mais parentes do que essas hipóteses lhe concedem, ou se ele trava relações de parentesco diferentes das descritas, então ambos ficam de fora. Sequer são objeto do apagamento de que Kwame tinha me falado, pois permanecem indocumentados e indocumentáveis.

Mas mesmo que o estrangeiro preencha todas as posições de parentesco que o direito migratório lhe permite, isso não significa que ele o fará. Porque a relevância não coincide, muitas vezes, com a conveniência, de forma que a inclusão de muitos parentes pode fazer com que a autoridade migratória negue a autorização de permanência no território nacional por prever que ela será a base para tantos outros pedidos de residência em processos de reunião familiar. O que está em jogo é o controle (maior ou menor), pelo Estado, do fluxo de pessoas que passa pelas fronteiras nacionais, além das maneiras pelas quais os migrantes percebem esse controle e se previnem dele. Nesse sentido, Frédérique Fogel (2019)FOGEL, Frédérique. Parenté sans papiers. Canadá: Dépaysage, 2019., que fez sua pesquisa de campo junto aos sans papiers na França, identificou estratégias que faziam com que os migrantes não declarassem inclusive outros parentes seus que estavam no mesmo território nacional por temerem que uma decisão desfavorável a esses parentes em seus pedidos de residência pudesse alcançá-los, em uma lógica de contágio.

Assim, essa “moldura” (BATESON, 1972BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Nova York: Ballantine, 1972., p. 188; GOFFMAN, 1974GOFFMAN, Erving. Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience. Cambridge: Harvard University Press, 1974.), imposta violentamente desde os primeiros formulários-padrão que instruem os processos imigratórios, conquanto deva ser preenchida, dentro de seus limites, pelo sistema de parentesco de que os migrantes são provenientes (BRENNEIS, 2006BRENNEIS, Don. “Reforming Promise”. In: RILES, Annelise (org). Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2006, pp. 41-70.), redunda em uma “política do esquecimento” cujos traços gerais são bastante semelhantes àqueles que Janet Carsten (1995)CARSTEN, Janet. “The Politics of Forgetting: Migration, Kinship and Memory on the Periphery of the Southeast Asian State”. The Journal of Royal Anthropological Institute, vol. 1, n. 2, pp. 317-35, 1995. identificou nos Estados do sudoeste asiático. Com isso não quero dizer que os migrantes, principalmente os de primeira geração, como Latasha, se tornam incapazes de se lembrar de seus parentes conforme são determinados pelo seu sistema de parentesco de origem. Uma afirmação como essa não apenas seria inverossímil e largamente desmentida, por exemplo, pelo contato mantido pelos migrantes com seus parentes do território de emigração (HALL, 2003HALL, Stuart. “Pensando a diáspora: Reflexos sobre a terra no exterior”. In: HALL, Stuarte; SOVIK, Liv (orgs). Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, pp. 25-50., p. 26), como também ignoraria o relevante agenciamento coletivo da família na criação de possibilidades migratórias (ver, por exemplo, GAIBAZZI, 2014GAIBAZZI, Paolo. “Visa Problem: Certification, Kinship and the Production of ‘Ineligibility’ in the Gambia”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 20, n. 1, pp. 38-55, 2014.) — por via de suporte financeiro, por exemplo — e a ajuda enviada pelos migrantes às suas famílias, quando conseguem se estabelecer economicamente no território de imigração — algo que qualifica o que se convencionou chamar de imigração econômica. O que quero dizer, em vez disso, é que a supressão dos parentes nos documentos migratórios implica sua supressão também nas narrativas biográficas que os migrantes acionam durante a migração, e isso se dá de maneira reiterada ad nauseam, já que a todo o momento o estrangeiro é interpelado para que conte a sua história. Há uma negação contínua dos parentes que “ficam de fora”, atrelada à criação de uma identidade imigrante que o Estado se propõe a controlar.

Está relacionada a isso outra característica do parentesco de papel, que decorre do próprio Direito como lógica de produção documental. Trata-se de uma historicidade específica, que não é apenas linear e cumulativa, mas também sujeita ao mandamento da coerência. Como Latour (2019LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: Uma antropologia dos modernos. Petrópolis: Vozes, 2019., pp. 291-308) bem observou, o Direito é funcionalizado pelo projeto da modernidade no sentido de produzir sujeitos (ou “quase-sujeitos”, nos termos do autor) como centros de imputação (KELSEN, 1998KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998., pp. 120-122), ou seja, como produtos de biografias nas quais a cada um de seus atos se seguem suas consequências, em homologia à forma deontológica das normas jurídicas, segundo a qual “se [faz] A, então [deve acontecer] B” (BOBBIO, 2016BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Edipro, 2016.) — ou à forma da dicotomia, percebida por Strathern (2015STRATHERN, Marilyn. Parentesco, direito e o inesperado: Parentes são sempre uma surpresa. São Paulo: Editora Unesp, 2015., p. 13), entre relações efetivamente travadas e relações que devem ser criadas deliberadamente. É dizer: no Direito, nemo potest venire contra factum proprium: não há como “voltar atrás”. Uma vez que os parentes são incluídos em um primeiro documento, eles estarão presentes também no próximo. E uma vez que se suprimam parentes no primeiro documento, só excepcionalmente eles poderão ser incluídos no segundo. Daí o sentido do apagamento de que Kwame falava: se seu pai de verdade fosse excluído de seus documentos, dificilmente poderia voltar a eles.

As consequências práticas desse primado de coerência durante a “vida social” dos documentos (APPADURAI, 1986APPADURAI, Arjun. La vida social de las cosas: Perspectiva cultural de las mercancías. Miguel Hidalgo: Grijalbo, 1986., pp. 17-88) são amplas. Todos os migrantes que conheci no Crai “colecionavam” papéis. Seus arquivos apareciam em pastas, envelopes ou compartimentos separados de suas bolsas e mochilas. Eram bem guardados e sempre cuidadosamente manuseados8 8 O cuidado com os documentos, aliás, parece implicar formas específicas de manuseio. No Crai é raro que um documento seja apresentado isoladamente sem que outros o acompanhem e que o encadeamento entre eles forme, de alguma maneira, um relato. Além disso, como já mencionei, era comum que os migrantes dispusessem, algo cerimonialmente, seus documentos sobre a minha mesa, de maneira a constituir uma “trilha” que lhes servisse, talvez, de prova das histórias que me contavam. . Compunham-nos documentos ainda válidos, mas também outros, já expirados, como o passaporte nigeriano que Latasha fez questão de me mostrar. E, dos documentos mais antigos para os mais novos, as diferenças não eram só materiais (dos impressos em A4 aos plastificados), mas também de valor: um protocolo de pedido de refúgio valia sempre menos do que a autorização de residência que ele podia suscitar, uma vez que esta conferiria mais segurança jurídica e menos precariedade à situação legal do migrante diante do Estado. Assim, há um acúmulo de documentos menos valiosos que é orientado à finalidade de obtenção de documentos mais valiosos — documentos eram produzidos para que novos documentos também o fossem (FOGEL, 2019FOGEL, Frédérique. Parenté sans papiers. Canadá: Dépaysage, 2019.).

Isso não afeta apenas a permanência do migrante no território de expedição desses documentos, mas também suas possibilidades de ingresso em outros territórios. Já mencionei acima que os processos de imigração são instruídos com os documentos que comprovam os antecedentes migratórios de seus requerentes. Pois bem: essas provas de antecedentes migratórios são, muito exatamente, os documentos produzidos pelos outros Estados por cujos territórios o migrante passou em seu trajeto. E aqui também há diferenças de valor: o Estado de chegada qualifica diferencialmente os antecedentes com base nas suas próprias relações com o Estado que os expediu, determinando que uns são mais aptos a garantir a permanência do migrante em seu território do que outros. Dessa maneira, cruzando a distância física entre o lugar de origem e o lugar de destino, há diferentes rotas documentais cuja dificuldade é constantemente considerada pelos migrantes no momento de definir seu trajeto9 9 Para exemplos etnográficos nesse sentido, especialmente no que toca à migração de haitianos para o Brasil, ver Montinard (2019) e Handerson (2015). .

É nos termos de um acréscimo progressivo de investimento — não só econômico, mas também biográfico — e do risco da perda desse investimento, então, que se torna cada vez mais difícil, isto é, custoso, para o migrante se desvencilhar dos documentos que representam, entre outras coisas, seu parentesco. O hipotético retorno ao ponto de partida com a inauguração de uma nova trilha documental em que fosse outra a narrativa de parentesco é muitas vezes infactível: a “queima de arquivo” (DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.), aqui, só prejudicaria, via de regra, o próprio sujeito, via obliteração de seus esforços até então acumulados.

Portanto, o parentesco de papel se elicita, do ponto de vista estatal, como um mecanismo de captura e sobrecodificação das linhas de fuga que a mobilidade humana representa, funcionando pela via do acréscimo progressivo do custo da descodificação com o objetivo de devolver qualquer disrupção ocasionada pelo movimento migratório de volta a alguma estrutura apreensível pelo Estado — e que só é a mesma de que saiu o migrante no caso da ultima ratio, que é a deportação.

Os documentos como poder e como resistência

Latasha, Kwame e Renato saíram do meu escritório no Crai com dois ofícios redigidos e assinados por mim, mas impressos no papel timbrado da instituição. Ofícios são documentos de governança por meio dos quais diferentes setores, internos ou externos à administração pública, compartilham informações relevantes na prestação de um serviço. Sendo o Crai um centro de referência, os ofícios eram vistos como produtos cotidianos do nosso trabalho.

O primeiro ofício que entreguei aos atendidos era endereçado ao devido Cartório de Registro de Pessoas Naturais na comarca de São Paulo10 10 Não é qualquer Cartório de Registro de Pessoas Naturais que tem a competência legal para o atendimento de imigrantes e estrangeiros. Em cada comarca, na verdade, há apenas um — seguindo nisso, as normas administrativas, uma preferência pela especialização temática. Entretanto, conforme os relatos que ouvi em campo e experiências por que passei, como a que relato aqui, essa especialização não implica qualquer adequação dos serviços prestados por essas instituições, do ponto de vista dos migrantes. Para fins de acesso a direitos, por conseguinte, a atribuição de competência a apenas um cartório da comarca acaba sendo prejudicial aos administrados, que não tem a alternativa de procurar outro cartório para deduzirem suas demandas. . Era ali que Renato podia expedir uma Declaração Voluntária de Paternidade Socioafetiva, fazendo-se pai de Kwame. O ofício sumarizava a demanda de Latasha e sua família, em uma tentativa de evitar que precisassem se repetir mais uma vez, e indicava para o cartorário os dispositivos legais que tornavam possível a realização daquele procedimento pela via extrajudicial.

Alguns dias depois da consulta eu telefonei para Latasha para saber sobre os rumos que a demanda tinha tomado e fui informado de que o ofício não tinha sido recebido pelo seu destinatário. Inconformada, Latasha me contou que certo preposto do Cartório se negou a lê-lo e, quando os atendidos disseram o motivo de sua vinda, o mesmo os rejeitou dizendo que “aquilo não era para eles”.

Esse “eles”, para quem o Cartório não servia, se referia, como descobri mais tarde, contatando o cartorário, a um grupo bem delimitado no interior da categoria dos “estrangeiros”. O que para mim e para Latasha era um ato patente ilegalidade, para o oficial do registro não passava de uma decisão estritamente técnica: Kwame não havia levado consigo nem a cópia de sua Certidão de Nascimento original (nigeriana), nem a Certidão de Translado da certidão original no registro de pessoas brasileiro, de forma que era alegadamente impossível proceder à Declaração Voluntária de Paternidade Socioafetiva.

Como tentei, em vão, argumentar com o cartorário, aquele era um equívoco juridicamente indefensável. O registro de nascimento a partir do qual a Certidão de Nascimento é lavrada, afinal de contas, é qualificado, no Direito, como um ato de soberania a partir do qual o Estado marca as pessoas que nasceram no seu território como seus nacionais. Era absurdo exigir um documento como esse de refugiados que poderiam estar fugindo de seus Estados. Não seria tão diferente de fazer a mesma exigência a um apátrida, que é chamado dessa forma justamente porque o Estado em cujo território nasceu se recusa a reconhecê-lo como seu cidadão — e, portanto, recusa a ele o registro. Desde 2017 a Lei de Migração (lei no 13.445/2017), em seu art. 19, §1º, havia reconhecido essa circunstância, determinando que o RNM devia garantir o pleno exercício de todos os atos da vida civil a seus portadores, a despeito de quaisquer outros documentos faltantes. Entretanto, nem mesmo a lei convenceu o cartorário.

Eu já sabia que os oficiais dos Cartórios de Registro de Pessoas vinham se recusando indevidamente a proceder a atos de registro em favor de migrantes especialmente vulnerabilizados por suas circunstâncias migratórias. Havia, inclusive, informado os atendidos desse risco, embora também tivesse ponderado para eles que, caso o cartorário aceitasse sua demanda, ela seria satisfeita mais prontamente do que no Poder Judiciário — no qual a matéria já estava pacificada. Meu segundo ofício, endereçado à Defensoria Pública do Estado — encarregada das matérias de Direito de Família, inclusive no caso de imigrantes — já cobria a possibilidade, abrindo um caminho alternativo para a obtenção da Declaração Voluntária de Paternidade Socioafetiva. Depois de acionarem o defensor público, que ingressaria com uma ação junto à Justiça Estadual para obrigar o cartorário a proceder ao registro, tudo o que restaria para eles seria... esperar.

Do começo ao fim, então, o parentesco de papel, como chamei, está entretecido no poder do Estado. Esse poder o inaugura em um ato cuja falta pode, inclusive, se tornar ocasião para que os direitos dos migrantes sejam injustamente negados por outros Estados — porque, para esses, afinal, a “forma estatal” parece ser um bem em si mesmo, cuja defesa nunca deve falhar. E também é por meio desse poder que o parentesco de papel se desenvolve, na dependência da “assinatura estatal” para ora acrescentar, ora remover pessoas das categorias de parente. Os documentos aparecem como o ponto de inflexão entre, de um lado, o nível biopolítico da lei, correspondente a “anátomo-políticas” populacionais (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 299) que formam as categorias nacionais, e, de outro, a “disciplina” que constitui os sujeitos imigrantes, assujeitando-os para docilizar seus corpos (Idem, 2014, pp. 140-141, 1998, pp. 179-192, p. 277 e ss.), em cuja superfície os “papéis” aderem.

Até aí não há nada de realmente novo, e tudo o que se faz é reafirmar aquele que já se tornou um lugar comum para uma tradição foucauldiana das Ciências Sociais (REED, 2006REED, Adam. “Documents Unfolding”. In: RILES, Annelise (org). Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2006, pp. 158-77.). Que os documentos, a despeito da natureza jurídica que possam ter, constituem os sujeitos pelo exercício de um saber-poder já está largamente demonstrado.

Mas a atitude de Latasha, que nisso representa tantos outros de meus interlocutores migrantes, não me permite parar aí. Porque quando ela entrou no escritório para buscar uma satisfação para sua demanda, não o fez tão-só e simplesmente por adesão a uma “servidão voluntária” (BOéTIE, 2017BOÉTIE, Étienne de la. Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Edipro, 2017.) perante as estruturas estatais que a reprimiam. Ela o fez como agente de sua própria história, como constituidora de si mesma. Como sujeito da documentação, e não só seu objeto.

Partindo da distinção entre a crítica e a metacrítica da prática jurídica, em que a teoria (ou a dogmática) do Direito corresponde à primeira e a teoria antropológica corresponde à segunda, pelo critério do compartilhamento ou não dos mesmos critérios de veridicção (LATOUR, 2019LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: Uma antropologia dos modernos. Petrópolis: Vozes, 2019., pp. 55-58), meu argumento é o de que Latasha e meus outros interlocutores atuam “criticamente” como intérpretes do Direito e, dessa forma, respondem a uma “metacrítica” da prática jurídica, exigindo também dela reformulações relevantes, atinentes à sua própria situação concreta de migrantes internacionais.

Como expus acima, quando Latasha e Kwame falam dos documentos oficiais como constitutivos, eles o fazem “minoritariamente” em contraposição a uma teoria jurídica “majoritária” (DELEUZE, 1992DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 214) que os afirma como declaratórios. Sua interpretação só ganha inteligibilidade, no entanto, quando se considera que os migrantes a mobilizam como meio ou tática em estratégias voltadas à aquisição de algum status legal (de residente temporário ou permanente, de naturalizado etc.). Ou seja, de viabilização do seu movimento pelos trajetos transfronteiriços que eles elegeram, ou de nidificação de seu modo de vida no território nacional que lhes é estrangeiro. Sendo assim, a viragem entre declaração e constituição se dá pela integração do contexto social e jurídico de produção dos significados destes termos (HERZFELD, 2008HERZFELD, Michael. Intimidade cultural: Poética social no Estado-nação. Coimbra: Edições 70, 2008., p. 107; AUSTIN, 1990AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990., passim). Logo, a exegese que faz de Kwame e Latasha intérpretes do Direito é especificamente aquela que desnaturaliza as mesmas categorias jurídicas que tanto o Estado como a teoria “majoritária” naturalizam pela via da des-historicização (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, Pierre. “A força do Direito: Elementos para uma sociologia do campo jurídico”. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989, pp. 209-54.).

Há aqui o que Herzfeld (2008HERZFELD, Michael. Intimidade cultural: Poética social no Estado-nação. Coimbra: Edições 70, 2008., p. 38) chamou de “dissemia”, ou seja, a circunstância de que ao mesmo significante (os documentos) se ligam, alternativamente, dois significados (declarativo e constitutivo), que se distribuem distintamente entre um par de contextos típicos (o oficial e o oficioso). Isso, todavia, não é tudo, e parar por aí faria com que se perdesse uma das características mais importantes dessa interpretação jurídica, que é a dos seus efeitos perante — e sobretudo contra — o próprio ordenamento jurídico nacional. Não se trata aqui de uma simples ressignificação, mas de uma “simbolização diferencial coletivizante”, nos termos de Roy Wagner (2010WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010., p. 88-9). Em outro lugar nomeei esse procedimento, propriamente jurídico, de “dogmática ascendente”, a fim de contrastá-lo com as “dogmáticas descendentes”, que partem dos conceitos jurídicos abstratos e descontextualizados (isto é, reificados) para colonizar os modos de vida divergentes daqueles pressupostos pelo Direito positivo (FERNANDES JúNIOR, 2021FERNANDES JÚNIOR, João Gilberto Belvel. Restrições convencionais de loteamentos e função social da propriedade urbana: A cidade, o bairro e o Direito Civil. Curitiba: Juruá, 2021.). O que importa ressaltar é que, até ser mapeada, capturada, compilada e sobrecodificada pelo Direito, a “dogmática ascendente” é tal que faz devir-minoritário o processo hermenêutico, surpreendendo as instituições com linhas de fuga que escapam do controle em virtude, justamente, de sua gênese nas próprias regras controladoras. Herzfeld (1985)HERZFELD, Michael. “’Law’ and ‘Custom’: Ethnography of and in Greek National identity”. Journal of Modern Greek Studies, vol. 3, n. 2, pp. 167-85, 1985. assistiu a algo assim, por ocasião da dicotomia entre lei e costume em vilarejos gregos — e nisso sua descrição etnográfica não é apenas pertinente, mas generalizável sobre a potência do direito consuetudinário —, atestando-o toda a história da codificação do Direito, cuja imagem arquetípica é a do “gesto napoleônico” de revogação dos “costumes” para a garantia da soberania da “lei escrita” (ANDRADE, 1997ANDRADE, Fábio. Da codificação: Crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.). Daí o sentido de Deleuze (1992DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 210) ter afirmado, sobre a capacidade transformativa do fazer jurídico, que “não é de um comitê de sábios, comitê moral e pseudocompetente, que precisamos, mas de um grupo de usuários. É aí que se passa do Direito à política”.

Nos termos de uma teoria que se autointitula dogmática por ligar sempre soluções passadas a problemas presentes e futuros11 11 Conforme Tércio Ferraz Sampaio Júnior (2003, p. 48): “Uma disciplina pode ser definida como dogmática à medida que considera certas premissas, em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes de uma decisão) como vinculantes para o estudo, renunciando-se, assim, ao postulado da pesquisa independente. (...) Por isso podemos dizer que elas são regidas pelo que chamaremos de princípio da proibição da negação, isto é, princípio da não-negação dos pontos de partida de séries argumentativas (...). Um exemplo de premissa desse gênero, no direito contemporâneo, é o princípio da legalidade, inscrito na Constituição, e que obriga o jurista a pensar os problemas comportamentais com base na lei, conforme a lei, para além da lei, mas nunca contra a lei”. de forma a criar um achatamento histórico segundo o qual “as coisas devem ser assim porque sempre o foram” (REINACH, 2012REINACH, Adolf. The Apriori Foundations of the Civil Law. Berlim: De Gruyter, 2012.), a desnaturalização pela via da experiência histórica soa, senão como uma heresia contra os mandamentos sacrossantos de um Direito que o Ocidente produz como reprodução desde a Roma clássica (WIEACKER, 1980WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1980.), então como tremendamente cínica — até para os juristas, cuja vocação para a sofística é bem conhecida. Mas não soa juridicamente incoerente, como certifica o renome da Escola Realista do Direito (por todos: LLEWELLYN, 1931LLEWELLYN, Karl. “Some Realism about Realism: Responding to Dean Pound”. Harvard Law Review, vol. 44, n. 8, pp. 1222-64, 1931.), que, usando de procedimentos analíticos semelhantes, chegou a ser “majoritária” no contexto estadunidense da common law (RILES, 2004RILES, Annelise. “Property as Legal Knowledge: Means and Ends”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 10, n. 4, pp. 775-95, 2004.), hoje uma inspiração constante para diferentes ordenamentos da civil law, como o brasileiro.

Independentemente de ser cínica ou “jus-realista”, o que a interpretação migrante faz, no entanto, é jogar o jogo do próprio Estado, reconhecendo que seu direito se encarcera nas mesmas fronteiras que ele guarda tão aguerridamente e usa para dividir nacionais e estrangeiros. A jogada da interpretação atine ao problema do conhecimento (cf. LATOUR, 2004LATOUR, Bruno. “Scientific Objects and Legal Objectivity”. In: POTTAGE, Alain; MUNDY, Martha (org). Law, Anthropology and the Constitution of the Social: Making Persons and Things. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, pp. 73-113.). Aferradas na soberania e, portanto, no princípio da não-interferência segundo o qual um Estado não tem jurisdição sobre outro, as estruturas estatais não têm nenhum outro meio para descobrir ou qualificar o parentesco de um migrante que não seja, via de regra, o da autodeclaração. Os antecedentes migratórios e os documentos pessoais tem de ser entregues voluntariamente pelos requerentes nos processos de imigração. Não há como exigi-los dos Estados de emigração. E, se a condição para a aceitação do migrante no território nacional é a de que se apresente uma série de documentos, ainda assim há exceções, como a do refúgio, a do asilo, a da apatridia e a da acolhida humanitária, que dispensam quaisquer documentos que o migrante afirme não ter consigo (o caso da Certidão de Nascimento nigeriana de Kwame é um exemplo). E mesmo que não houvesse essas exceções, diante da obrigatoriedade de apresentação do documento de viagem (por exemplo, passaporte) e da certidão de nascimento, apenas se veicula o conhecimento sobre a filiação do sujeito, ficando de fora a obrigatoriedade de comprovação do cônjuge ou companheiro, dos ascendentes de segundo grau, dos descendentes, dos irmãos e dos dependentes — todos esses sendo parentes que podem se beneficiar de, ou fundamentar pedidos de reunião familiar.

A situação é manifestamente diversa daquela do parentesco interno às fronteiras, cuja detecção é juridicamente imprescindível em uma série de circunstâncias, desde os impedimentos conjugais e o processo de partilha da herança, até a suspeição processual, o impedimento de contratação de dirigentes em sociedades anônimas e a inelegibilidade dos parentes de titulares de certos cargos eletivos da administração pública, por exemplo. Nesta, por hipótese, o poder jurisdicional, para determinar os parentes de alguém, pode fazer valer, até pela coação física, os diferentes instrumentos de conhecimento de que se mune, e que variam desde a biotecnologia — sendo conhecidos os efeitos da popularização dos exames de DNA nas demandas judiciais (ver FONSECA, 2001FONSECA, Cláudia. “A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea”. ABC: Textos acadêmicos, 2001., 2011FONSECA, Cláudia. “As novas tecnologias legais na produção da vida familiar: antropologia, direito e subjetividades”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, vol. 11, n. 1, pp. 8-23, 2011.; STRATHERN, 2015STRATHERN, Marilyn. Parentesco, direito e o inesperado: Parentes são sempre uma surpresa. São Paulo: Editora Unesp, 2015., p. 17) — até as presunções e ficções jurídicas (CAULFIELD, 2000CAULFIELD, Suean. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas: Editora Unicamp, 2000.; FERNANDES JúNIOR e LIMA, 2021FERNANDES JÚNIOR, João Gilberto Belvel; LIMA, Bárbara Ferreira. “Da presunção de paternidade à multiparentalidade biológica: O parentesco como sanção processual”. Revista de Direito Privado, n. 107, pp. 225-238, 2021), próprias da dogmática. Nesses casos, faz sentido falar em uma eficácia meramente declaratória dos documentos: entende-se, no Direito, que a relação jurídica pré-existe ao documento porque a informação sobre ela está ao alcance das estruturas estatais. Se o aparelho coercitivo do Estado for mobilizado, ele pode até mesmo subtrair a informação de pessoas que não querem ou não podem cedê-la espontaneamente. Mas como isso poderia se passar com imigrantes cujos parentes não estão dentro das fronteiras do Estado ou são insuspeitos?

A própria condição migratória, assim sendo, faz com que os documentos dos migrantes, embora também sejam declarações, suscitem, na verdade, uma eficácia constitutiva do parentesco no interior do ordenamento jurídico nacional. E mais: confere aos sujeitos nessa condição o poder de dizer (ou não dizer), performativamente, quem são seus parentes, cabendo ao ius imperii estatal apenas a definição das relações de parentesco (juridicamente) relevantes dentro do seu território e a fiscalização da trilha documental do migrante no que diz respeito à sua coerência narrativa.

Se as coisas são assim, então, nos termos de uma metacrítica antropológica, para tratar dos documentos migratórios é preciso abrir espaço na teoria a fim de reconhecer, identificar e valorar adequadamente os graus de agenciamento com que os migrantes se utilizam dos mesmos papéis que tendem a sujeitá-los e objetificá-los para constituírem a si mesmos, seus futuros e suas vidas. Ou seja: determinar como esses agentes, como os “sujeitos pós-coloniais” de Mbembe (1992)MBEMBE, Achille. “Provisional Notes on the Postcolony”. Journal of the International African Institute, vol. 62, n. 1, pp. 3-37, 1992., consentem com o controle estatal, reafirmando sua incontestabilidade justamente para “jogar com ele e modificá-lo sempre que possível”, fazendo desses papéis e do Direito “armas dos fracos” (SCOTT, 1987SCOTT, James. Weapons of the weak. New Haven: Yale University Press, 1987.), à semelhança do que é feito em outros contextos já descritos em outras etnografias (para um exemplo, entre tantos: FREIRE, 2015FREIRE, Lucas de Magalhães. A máquina da cidadania: Uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais. Tese (Doutorado em Antropologia Social) -Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015., pp. 83-124).

No meu campo, isso significa reconhecer aos documentos a função estratificante de fixar dois planos, um contra o outro: de um lado, o controle e a subjetivação assujeitadora empreendidos pelo poder (DELEUZE, 1988DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 101) em termos de molaridade; de outro, os rastros das autodefinições táticas realizadas pelos próprios sujeitos, que resistem molecularmente àquele poder (DELEUZE e GUATARRI, 2012DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 99) imprimindo nos documentos algo como um “mapa mnemônico” (MARQUES 2013MARQUES, Ana Cláudia. “Founders, Ancestors and Enemies: Memory, Family, Time and Space in the Pernambuco Sertão”. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 19, pp. 716-33, 2013.). Tudo isso convergindo em uma interface em cujas “molduras” se representam e se inscrevem multiplicidades: de presenças, a despeito da retórica oficial da individualidade documental (pois o pai de verdade de Kwame tanto habitava seus papéis que podia ser apagado deles), e de ausências, já que as “dividualidades” (HALL, 2003HALL, Stuart. “Pensando a diáspora: Reflexos sobre a terra no exterior”. In: HALL, Stuarte; SOVIK, Liv (orgs). Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, pp. 25-50., p. 44) não cabem todas na moldura (há parentes que ficam de fora); de relações passadas e presentes (entre pessoas e entre sujeitos e Estados); de reminiscências de relações (MARQUES, 2015MARQUES, Ana Cláudia. “Movimentos em família”. Ruris, vol. 9, pp. 13-37, 2015.) que podem porventura ser reativadas (manter o pai de verdade nos documentos de Kwame era manter a possibilidade de uma relação futura, com base em uma memória do passado); de caminhos percorridos; de emoções; e da esperança (BRAH, 1996BRAH, Avtar. Cartographies of Diaspora: Contesting Identities. Londres/Nova York: Routledge, 1996., p. 193) e do desejo (MERCER, 2008MERCER, Kobena. “Eros e diáspora”. Artafrica, Lisboa, jul. 2008.) que animam a mobilidade.

Latasha, Kwame e seus documentos, por conseguinte, recolocam Foucault na tradição foucauldiana, lembrando-nos, a partir de sua situação de migrantes internacionais, que, conquanto o poder se organize microfisicamente, em cada um dos seus capilares ele não atuará isoladamente, mas em face da resistência que se exerce também a partir dos corpos e no cotidiano. A resistência não é externa ao poder (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2015., pp. 103-105). Tudo o que persiste resiste. Até o movimento é uma persistência. E, entre os meus interlocutores, é nos interstícios do Direito que se expressa a sua resistência.

E o que será do parentesco?

Toda cena é um recorte espaciotemporal que deixa de fora o seu antes e o seu depois. A cena etnográfica com que trabalhei aqui não é diferente. Uma coisa sobre o antes, para mim, é certa: se Latasha e sua família me procuraram, faltando à escola e ao trabalho e se locomovendo em grupo da Zona Leste de São Paulo até a região central da cidade, é porque alguma solução jurídica para a sua demanda era pelo menos concebível para eles. Nenhum deles sabia exatamente o que era a paternidade socioafetiva — nem Renato, brasileiro como eu. O pai socioafetivo não era um termo de parentesco que eles compartilhavam comigo. No entanto, por mais que seus sistemas de parentesco não o previssem, esses já estavam suficientemente desestabilizados pela experiência da mobilidade (mobilidade de si e dos outros) para que algo assim fosse ao menos imaginável.

Essa foi a conclusão a que cheguei quando comecei a refletir sobre qual tinha sido meu papel nessa cena. Fui eu que falei sobre paternidade socioafetiva para eles. Acrescentei ao seu léxico de parentesco um termo, ou um significante, que definitivamente não conheciam. Mas até que ponto o significado desse termo já não era intuído pelos meus atendidos? Latasha, Renato e Kwame não o definiram para mim, embora sem nomeá-lo? Latasha não me conduziu durante toda a consulta a uma resposta que era a que ela desejava? Para pôr a questão nos termos da problemática que expus até agora: eu constituí ou declarei o pai socioafetivo?

Acredito que compreender meu papel ali passa por finalmente desestabilizar a divisão funcional dos interlocutores em uma situação de consulta, conforme eu a expressei no começo deste texto. Latasha e sua família não apenas me enunciaram a sua questão; e eu tampouco só forneci a eles uma forma jurídica. Algo como uma poética intercultural recíproca foi inaugurada naquele encontro, com reverberações para todos os lados — e talvez ainda esteja longe de acabar. Esse aglomerado de questões que expus até aqui o provam, de minha parte.

Mas, da parte dos meus atendidos, para além dos documentos, e por causa deles, o que será do parentesco? Na segunda seção desse texto defini o que o parentesco de papel é em relação ao Estado. E na terceira apresentei uma definição dúplice dos documentos migratórios que se referia tanto ao Estado quanto a meus interlocutores. Mas ainda está por se responder o que o parentesco de papel faz com a prática do parentesco em si, em relação aos migrantes.

Há evidências etnográficas já constatadas de que o parentesco de papel causa mudanças no conteúdo das relações de parentesco: Fogel (2019)FOGEL, Frédérique. Parenté sans papiers. Canadá: Dépaysage, 2019., por exemplo, indicou que entre os sans papiers, por causa da regra segundo a qual os filhos de migrantes nascidos na França são franceses (uma expressão do ius solis), acontece de seus pais, dependendo deles para a manutenção de sua estadia no país, tratarem-nos com precedência em relação aos outros filhos, nascidos fora do país. Ademais, ao cotejar as conclusões de Fortes (1983)FORTES, Meyer. Rules and the Emergence of Society. Londres: Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1983. sobre a paternidade — ou, melhor, o pater — inaugurar a ordem da norma nas relações sociais, é de se imaginar que a circunstância da duplicação virtual desse papel, no caso de Kwame, expresse ao menos a potencialidade fusionista e/ou antinômica do caso particular que descrevi aqui em relação a (pelo menos) dois sistemas de parentesco diversos — algo como a produção de uma “dupla consciência” (DuBois, 1903, p. 3) a nível local, “idiolético”, que já não pode ser subsumida ao Uno (GLISSANT, 2005GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJF, 2005., p. 72-6), à identidade absoluta ou à subjetivação total (HALL, 1996HALL, Stuart. “Identidade cultural e diáspora”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, pp. 68-75, 1996.; GILROY, 2001GILROY, Paul. O Atlântico negro: Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001., p. 171), a despeito da vontade de sobrecodificação estatal.

Contudo, com base nisso, como saber se as redes familiares e de parentesco de Kwame, Latasha e Renato foram costuradas de fato? Como saber se Kwame deixará que Renato seja seu outro pai? Ou como será a sua relação com os parentes de Renato? Ou ainda se ele desejará sair de casa ou viajar para França à procura de seu pai de verdade?

Minha cena etnográfica não pode responder a essas questões. Este é um de seus limites insuperáveis: ficar no escritório não me permitirá ver o que será dessas relações — um advogado só é procurado em vista de problemas relacionados à lei. Apesar dessa obnubilação, acredito que, pelo que mostra, ela ainda é boa para se pensar.

Notas

  • 1
    São apresentados aqui resultados parcelares de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) no processo no 2019/13162-5, orientada por Ana Cláudia Duarte Rocha Marques, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Esses resultados foram discutidos e debatidos junto ao Hybris: Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades da FFLCH/USP, a cujos membros agradeço por todos os comentários, sugestões e indicações.
  • 2
    Os termos expressos em itálico no decorrer do texto se referem a conceitos êmicos de duas ordens distintas: a das falas de meus interlocutores migrantes e a das falas dos juristas, inclusos aqui a teoria ou a dogmática jurídica e as normas e categorias jurídicas. Os termos “imigrante” e “emigrante”, assim como os termos que se referem a nacionalidades, eu os considero categorias jurídicas. Não distingo entre as duas ordens êmicas porque elas têm a mesma função e o mesmo estatuto no texto. Conceitos das ciências sociais são expressos entre aspas.
  • 3
    Todos os nomes utilizados no texto são pseudônimos criados por mim.
  • 4
    Por “individualidade” e “individualização” do processo, me refiro ao fato de que só o chamado é formalmente parte do processo administrativo, tal como entende o direito. Isso não significa, todavia, que inexistam investimentos coletivos dos parentes visando ao bom-sucesso do requerimento de um deles. A busca, a confecção e a coleção dos documentos, por exemplo, aparece, em campo, como um trabalho concertado dos grupos familiares que migram juntos. Além disso, para averiguação e comprovação dos dados necessários à tomada de decisão (inclusive a comprovação do vínculo familiar) a autoridade migratória pode exigir que sejam realizadas atividades de instrução, como as entrevistas pessoais dos familiares do chamado. Por isso é comum que os chamados sejam instruídos, em órgãos especializados como o Crai ou em ONGs que trabalham com migrantes, a comparecerem junto de seus chamantes no momento de apresentação da Solicitação de Autorização de Residência, na Polícia Federal.
  • 5
    A materialidade e a durabilidade de cada documento em campo parecem estar sempre relacionadas à precariedade do status migratório do sujeito que porta o documento. Não há, por exemplo, protocolo de pedido de refúgio que não seja emitido em folhas A4, sem plastificação, apesar do papel fundamental que esse documento desempenha na vida do migrante.
  • 6
    Refiro-me apenas às pessoas naturais (isto é, humanas), que são as únicas que nascem. Pessoas jurídicas, que também têm patrimônios e inclusive direitos da personalidade, não nascem, são constituídas; sua constituição se dá pela via de um ato jurídico (isto é, uma declaração de vontade válida emitida por outros sujeitos de direito precedentes), e não de um fato jurídico (isto é, um fato natural, independente da vontade validamente declarada, que suscita efeitos jurídicos).
  • 7
    Há, no entanto, o procedimento especial de pedido de visto e de extensão da condição de refugiado para familiares de refugiados, que torna possível o chamamento de qualquer familiar que dependa economicamente do refugiado já reconhecido segundo as normas brasileiras. A hipótese é regulada pela resolução normativa no 27/18 do Conselho Nacional para Refugiados (Conare), que nisso derroga a Portaria Interministerial no 12/18 dos ministérios de Estado, da Justiça e Extraordinário da Segurança Pública e das Relações Exteriores.
  • 8
    O cuidado com os documentos, aliás, parece implicar formas específicas de manuseio. No Crai é raro que um documento seja apresentado isoladamente sem que outros o acompanhem e que o encadeamento entre eles forme, de alguma maneira, um relato. Além disso, como já mencionei, era comum que os migrantes dispusessem, algo cerimonialmente, seus documentos sobre a minha mesa, de maneira a constituir uma “trilha” que lhes servisse, talvez, de prova das histórias que me contavam.
  • 9
    Para exemplos etnográficos nesse sentido, especialmente no que toca à migração de haitianos para o Brasil, ver Montinard (2019)MONTINARD, Melanie Véronique Léger. Pran wout la: Dinâmicas da mobilidade e das redes haitianas. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. e Handerson (2015)HANDERSON, Joseph. Diáspora: As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015..
  • 10
    Não é qualquer Cartório de Registro de Pessoas Naturais que tem a competência legal para o atendimento de imigrantes e estrangeiros. Em cada comarca, na verdade, há apenas um — seguindo nisso, as normas administrativas, uma preferência pela especialização temática. Entretanto, conforme os relatos que ouvi em campo e experiências por que passei, como a que relato aqui, essa especialização não implica qualquer adequação dos serviços prestados por essas instituições, do ponto de vista dos migrantes. Para fins de acesso a direitos, por conseguinte, a atribuição de competência a apenas um cartório da comarca acaba sendo prejudicial aos administrados, que não tem a alternativa de procurar outro cartório para deduzirem suas demandas.
  • 11
    Conforme Tércio Ferraz Sampaio Júnior (2003SAMPAIO JÚNIOR, Tércio Ferraz. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo: Altas, 2003., p. 48): “Uma disciplina pode ser definida como dogmática à medida que considera certas premissas, em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes de uma decisão) como vinculantes para o estudo, renunciando-se, assim, ao postulado da pesquisa independente. (...) Por isso podemos dizer que elas são regidas pelo que chamaremos de princípio da proibição da negação, isto é, princípio da não-negação dos pontos de partida de séries argumentativas (...). Um exemplo de premissa desse gênero, no direito contemporâneo, é o princípio da legalidade, inscrito na Constituição, e que obriga o jurista a pensar os problemas comportamentais com base na lei, conforme a lei, para além da lei, mas nunca contra a lei”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2021
  • Aceito
    29 Jun 2021
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