Acessibilidade / Reportar erro

Evidências empíricas de interação espacial das políticas habitacionais para os municípios brasileiros

Resumos

Este trabalho investiga a eventual interação estratégica das políticas habitacionais existentes entre municípios brasileiros. Utilizando dados da Munic (2004, 2005 e 2008) aplicados a modelos espaciais com dados em painel, verificou-se que há evidências de um jogo estratégico entre municípios ao decidir a provisão de bens públicos na área da habitação. Em particular, as evidências indicam que municípios respondem positivamente à quantidade de políticas habitacionais de seus vizinhos. Um aumento médio de política habitacional entre os vizinhos provoca um aumento de uma fração de 0,12 política no município sob análise. Outros testes, de autocorrelação espacial local e de evolução do índice de políticas sugerem que, de fato, existe o fenômeno de race to the bottom entre os municípios brasileiros.

Eficiência Local; Race to the Bottom; Autocorrelação Espacial


This paper aims to investigate the possible strategic behavior among municipalities using social housing policy data. Using data available in Munic (2004, 2005 and 2008) and panel data regression, the results confirmed that there is evidence of a strategic behavior between municipalities when deciding the provision of public goods in social housing. Particularly, we found evidence that municipalities respond positively to the amount of policy of its neighbors. With each additional policy of the neighbors, the municipality in question increases its own provision by about 0,12 policy. Further tests, one of local spatial auto-correlation, and another that measures the evolution of policies, suggest that there is indeed a race to the bottom between Brazilian municipalities in terms of housing provision.

Local government efficiency; Race to the Bottom; Spatial autocorrelation


ARTIGO

Evidências empíricas de interação espacial das políticas habitacionais para os municípios brasileiros

Enlinson MattosI; Mariana Suplicy II ; Rafael Terra III

IEESP-FGV. E-mail: enlinson.mattos@fgv.br

IIMestranda FEA-USP. E-mail: mariana.suplicy@usp.br

IIIUNB. E-mail: rterra@unb.br

RESUMO

Este trabalho investiga a eventual interação estratégica das políticas habitacionais existentes entre municípios brasileiros. Utilizando dados da Munic (2004, 2005 e 2008) aplicados a modelos espaciais com dados em painel, verificou-se que há evidências de um jogo estratégico entre municípios ao decidir a provisão de bens públicos na área da habitação. Em particular, as evidências indicam que municípios respondem positivamente à quantidade de políticas habitacionais de seus vizinhos. Um aumento médio de política habitacional entre os vizinhos provoca um aumento de uma fração de 0,12 política no município sob análise. Outros testes, de autocorrelação espacial local e de evolução do índice de políticas sugerem que, de fato, existe o fenômeno de race to the bottom entre os municípios brasileiros.

Palavras-chave: Eficiência Local; Race to the Bottom; Autocorrelação Espacial.

ABSTRACT

This paper aims to investigate the possible strategic behavior among municipalities using social housing policy data. Using data available in Munic (2004, 2005 and 2008) and panel data regression, the results confirmed that there is evidence of a strategic behavior between municipalities when deciding the provision of public goods in social housing. Particularly, we found evidence that municipalities respond positively to the amount of policy of its neighbors. With each additional policy of the neighbors, the municipality in question increases its own provision by about 0,12 policy. Further tests, one of local spatial auto-correlation, and another that measures the evolution of policies, suggest that there is indeed a race to the bottom between Brazilian municipalities in terms of housing provision.

Keywords: Local government efficiency; Race to the Bottom; Spatial autocorrelation

JEL classification: C21, H72, H73.

1 Introdução

Diversos países têm optado por instituições governamentais descentralizadas a fim de viabilizar melhores políticas públicas. Essa iniciativa tem fundamento na Teoria do Federalismo Fiscal, a qual defende que alguns tipos de bens seriam mais eficientemente providos pelos governos locais (bens locais), enquanto outros teriam provisão mais eficiente se realizadas pelo Governo Central (bens nacionais) (Oates 1972). Uma das discussões mais importantes nesse sentido reside na relação entre provisão de bens locais e possibilidade de migração. Quando os indivíduos são perfeitamente móveis entre jurisdições, programas de provisão de bens locais podem induzir uma forte migração (welfare migration)1 1 Migração por benefícios e bens públicos. até o ponto de se tornarem financeiramente inviáveis. Esse fenômeno, em teoria, produziria uma reação dos governos locais denominada race to the bottom.2 2 Corrida para fundo, ou race to the bottom, ocorre quando há uma queda dos benefícios até o mínimo possível. Esta expressão é utilizada aqui como um sinônimo para o viés negativo que existe na decisão da oferta de benefícios por cada município. Ver Brueckner (2000).

O objetivo deste trabalho é investigar a existência de um jogo estratégico intermunicipal incentivado pela preocupação com a migração e que produz uma "corrida para o fundo". Focamos especificamente nos programas e políticas habitacionais. A razão para a escolha desta categoria de bens reside na importância da despesa com habitação no orçamento familiar, o que a torna mais capaz de induzir a migração do que outras categorias de despesa. Este trabalho inova justamente ao investigar eventuais interações estratégicas na área de habitação aplicando o modelo de Brueckner (2000).3 3 Adaptado de Brown & Oates (1987). Se confirmada a existência desse fenômeno, cabe perguntar se não seria mais eficiente se o Governo Central ficasse responsável pela condução de programas habitacionais, ao invés dos governos locais.

Os resultados encontrados neste trabalho confirmam que há evidências de um jogo estratégico entre municípios ao decidirem sobre a provisão de bens públicos na área da habitação. As evidências encontradas mostram que os municípios respondem positivamente à quantidade de políticas habitacionais de seus vizinhos, reforçando a possibilidade de existência de race to the bottom. No entanto, essa correlação pode também implicar yardstick competition. Um teste de autocorrelação espacial local mostrou uma quantidade importante de municípios com baixos níveis de políticas habitacionais e autocorrelação espacial positiva, um indicativo de race to the bottom. Outra evidência deste fenômeno pode ser verificada pela tendência de redução nas políticas habitacionais em municípios com índices habitacionais altos entre 2004 e 2008.

Este trabalho está divido em sete seções, incluindo esta introdução. A segunda seção justifica o fenômeno de interação estratégica na provisão de bens públicos entre municípios vizinhos. A terceira seção apresenta um breve histórico recente da habitação social no Brasil. A quarta seção apresenta o modelo básico estimado de correlação espacial, a quinta seção apresenta os dados, e a sexta seção discute os resultados. Finalmente, a última seção conclui o trabalho.

2 Interações espaciais na provisão de bens públicos

A mobilidade das pessoas em virtude da oferta de bens públicos desempenha um papel central na teoria de Tiebout (1956). O autor argumenta que com a autonomia na decisão de gastos, cada município oferta uma cesta de bens públicos e, consequentemente, a população tenderia a migrar para o município que maximizasse a sua utilidade. O indivíduo escolheria a partir dos impostos cobrados e benefícios dados pelo governo local e migraria de acordo. Esta mobilidade das pessoas produziria comunidades eficientes, no sentido de que maximizariam a utilidade de seus habitantes. Esta possibilidade de migração entre comunidades também geraria certa competitividade entre governos locais no sentido de atrair contribuintes. Tal competitividade, assim como no setor privado, seria benéfica ao setor público, causando inovações. O modelo de Tiebout é associado à expressão "votar com os pés", pois as pessoas migram de acordo com suas preferências, votando efetivamente através da mudança de município.

A migração induzida pela provisão de bens locais ressaltada por Tiebout (1956) e Oates (1972) pode ser também denominada como welfare migration (migração por benefícios públicos). Ou seja, os habitantes migram em busca de jurisdições onde as cestas de bens ofertados se enquadram melhor às suas preferências, aumentando o bem-estar. A hipótese principal dos modelos de welfare competition é a de que os formuladores de políticas públicas levam em consideração essa possível migração ao definir os benefícios sociais ofertados em cada município. A estratégia ótima dos municípios em resposta a esse mecanismo seria, então, evitar um aumento dos benefícios ofertados em relação aos municípios concorrentes, formados por cidades vizinhas em termos geográficos, ou vizinhas no sentido serem muito parecidas, e.g. Rio de Janeiro e São Paulo.

Se um município oferta muito mais benefícios que os municípios concorrentes, haverá uma tendência de aumento da população pobre no município, o que levará a gastos maiores com a provisão de benefícios. Portanto, a mobilidade dos indivíduos pobres pode levar a uma suboferta de benefícios. O viés negativo da política pública poderia ser denominado race to the bottom (corrida para o fundo). De fato, a simples crença de que as pessoas migram em resposta à provisão de bens públicos (verdadeira ou não) pode ser suficiente para que os prefeitos evitem prover bens em excesso aos níveis providos pelos concorrentes.4 4 Dahlberg & Edmark (2008). Nesse sentido, a provisão centralizada dos benefícios poderia ser mais eficiente.

Essa concorrência deve ser mais forte entre cidades vizinhas, pois a informação, o trabalho e o capital se movem mais facilmente entre os municípios geograficamente próximos. Mesmo as empresas (capital), quando decidem se devem ou não mudar para outro município, tendem a se moverem para cidades próximas, uma vez que fatores como disponibilidade de mão de obra e mercado consumidor, que determinaram sua localização inicial, não se alteraram. Essa concorrência entre jurisdições vizinhas deve se traduzir em uma maior correlação espacial.5 5 Ver Brueckner (2000).

Para testar essa teoria, uma série de autores têm se dedicado à realização de estudos econométricos com uso de econometria espacial. Um índice de correlação espacial positivo indica que reduções na provisão de bens pelos municípios vizinhos devem levar a uma redução na provisão de bens do próprio município. Mas o coeficiente também pode ser interpretado de maneira contrária, i.e. um aumento na provisão dos vizinhos leva a um aumento na provisão dos bens pelos próprios municípios. No primeiro caso, temos um exemplo de race to the bottom, e no segundo, temos um exemplo de yardstick competition. Distinguir entre os dois fenômenos constitui uma difícil tarefa.

Besley & Case (1995) e Salmon (1987) definem yardstick competition em termos de um modelo político de agência. Nesse modelo, os eleitores são os principais e os prefeitos os agentes, e não há mobilidade entre os agentes. Há informação assimétrica entre governantes e eleitores, estes possuem menos conhecimento sobre os custos de provisão de bens públicos e não sabem se os governantes são bons ou ruins. Para tomar melhores decisões, os eleitores observam as políticas adotadas por jurisdições vizinhas, de onde a informação flui mais facilmente. Eles, então, comparam estas com as políticas adotadas pelos próprios prefeitos e determinam se este é competente ou não. Os prefeitos, detentores de informação perfeita, procuram então imitar o padrão de gastos, impostos e políticas de seus vizinhos para sinalizar que são tão ou mais competentes que aqueles. Com isso, observamos uma correlação espacial positiva nas políticas locais.

Desse modo, a correlação espacial positiva entre jurisdições não quer dizer, necessariamente, que há um viés negativo na provisão de bens públicos. Existe a possibilidade de jurisdições vizinhas induzirem um aumento da provisão de bens públicos, seja pela pressão política (indivíduos observam aumento da provisão de bens em localidades vizinhas e demandam mais bem públicos, consequentemente), seja pela percepção do próprio prefeito no poder.

Case et al. (1993) analisam alguns tipos de spillovers e seus efeitos na política de gastos dos estados, eles avaliam os gastos de diferentes estados em um painel para descobrir se há algum tipo de interdependência entre eles. Uma metodologia similar a de Case et al. (1993) será utilizada neste trabalho para estimar a decisão estratégica em políticas públicas.

A discussão na literatura sobre welfare migration e interação estratégica interestadual cresceu nos Estados Unidos nos últimos anos em decorrência de uma mudança na lei americana provocada pela reforma de programas de transferência, denominada welfare reform ocorrida em 1996.6 6 VerBrueckner (2000). Antes da reforma, o sistema de repasse da união aos estados era feito através de transferências com contrapartidas, chamadas de matching-grants, ou seja, o governo federal transferia uma porcentagem do orçamento e o estado arcava com o mesmo montante (contrapartida). Após 1996, entrou em vigência o sistema de block-grants, uma transferência do tipo lump sum. No sistema de block-grants (transferência em blocos), os estados devem pagar 100% dos gastos que ultrapassarem o lump sum (montante fixo), diferentemente do sistema de matching-grants. O desincentivo ao gasto resultante desta mudança na legislação levou a uma queda na oferta de bens públicos nos EUA, incitando a discussão sobre finanças locais e federalismo fiscal, e também sobre a migração induzida por benefícios. Blank (1988) estuda a existência da migração em decorrência do maior programa de distribuição de renda norte-americano: o Aid to Families with Dependent Children (AFDC), e mostra evidências de que a migração de fato ocorre, apesar de pouco importante economicamente. Isso nos leva à conclusão de que o modelo de Tiebout (1956) e o fenômeno race to the bottom podem coexistir.

Outro trabalho relevante que discute a existência de uma interação estratégica entre os estados norte-americanos é o de Brueckner (2000). Neste trabalho é discutida a teoria e a evidência do fenômeno de race to the bottom na política de benefícios. Brueckner adapta o modelo de Brown & Oates (1987) e Wildasin (1991), no qual dois estados são analisados e o efeito da migração por benefícios na decisão da política pública é medido, o equilíbrio do modelo ocorre pelo efeito salário, ou seja, a migração ocorre até que as somas do salário com o benefício de cada um dos dois estados se igualem. A implementação empírica tradicional traz problemas de endogeneidade e é tratada com variáveis instrumentais (Figlio et al. 1999), ou com modelos na forma reduzida (Saavedra 2000).

Dahlberg & Edmark (2008) também defendem a existência de uma função reação entre jurisdições na decisão de oferta de bens locais. Os autores afirmam que em estudos sobre welfare migration e race to the bottom, há um problema econométrico fundamental. Para lidar com a endogeneidade característica da função de reação espacial, devemos usar variáveis instrumentais ou métodos de máxima verossimilhança.7 7 Ver Saavedra (2000). Dahlberg & Edmark (2008) resolvem o problema de simultaneidade existente na análise utilizando um vetor de variáveis instrumentais composto por variáveis de controle dos municípios vizinhos e uma variável dummy referente a uma política para refugiados implantada na Suécia, no fim dos anos 80. A política é um exemplo de intervenção exógena que aumenta consideravelmente o número de habitantes elegíveis a programas de bem-estar social. O governo sueco subsidiava o custo do refugiado por aproximadamente três anos, portanto, os autores utilizam o número de refugiados com um lag. Após estes três anos, a municipalidade passava a arcar com os custos de bem-estar dos indivíduos, o aumento relativo a estes novos indivíduos ocorreu independente da ação dos vizinhos, foi um choque externo e, por isso pode ser utilizado para identificar movimentos exógenos na política de benefícios de bem-estar social.

Outra questão que levaria a uma subprovisão de benefícios segundo Bru-eckner (2000) seria o spilllover8 8 Spillovers são externalidades, negativas ou positivas que se "transbordam" de uma localidade à outra. entre estados/municípios. O autor afirma que ao definir sua política social, a jurisdição não leva em consideração os benefícios para jurisdições próximas. Um exemplo nesse sentido seria o caso da jurisdição vizinha que melhora a qualidade de suas estradas, causando uma pressão por parte da população local, ou de grupos políticos, para que as estradas sejam reasfaltadas de modo a manter a qualidade da rodovia ao cruzar a fronteira da jurisdição. Outro exemplo é o do município que constrói um hospital e os municípios vizinhos aumentam seus gastos para comprar ambulâncias. Nesse caso, há um budget spillover entre jurisdições.

3 Política habitacional recente no brasil

Arretche et al. (2012) traçam um paralelo entre o processo de descentralização na história brasileira recente e a política habitacional social. Com o fim em 1986 do Banco Nacional de Habitação, que controlava os recursos de poupança forçada do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e os utilizavam para prover crédito habitacional a juros subsidiados, o país ficou pelo menos até 2003 sem uma política habitacional centralizada. A Caixa Econômica Federal ficou responsável por praticamente todo o crédito habitacional, mas seu papel se assemelhava mais ao de um banco comercial do que um banco público preocupado com a provisão de habitação social. Os critérios adotados pelo banco para a concessão de crédito eram rigorosos, grande parte das pessoas que mais precisavam dos financiamentos não atendiam os critérios de renda, e portanto, não conseguiam financiamento para a casa própria.

Nesse período compreendido entre 1986 e 2003, as políticas públicas habitacionais ficaram sob responsabilidade principalmente de estados e municípios. O processo de descentralização fiscal conduzido pela Constituição de 1988 transferiu uma série de responsabilidade na provisão de bens públicos para estados e municípios. Habitação foi um desses bens públicos. Na falta de um direcionamento da política habitacional pelo Governo Central nesse período, as políticas se alteraram, tornaram-se mais inclusivas, com a promoção de mutirões e facilitando a construção para uso próprio.

Vários municípios e estados mantiveram ao longo desse período companhias de direito público voltadas à construção de habitações populares, as conhecidas Cohabs. No entanto, a velocidade de e quantidade de habitações construídas não era suficiente para zerar o déficit habitacional.

Os programas habitacionais municipais, em específico, consistiam predominantemente em construção e melhoria de unidades habitacionais, ofertas de materiais de construção, aquisição de unidades habitacionais, oferta de lotes, regularização fundiária e urbanização de assentamentos. No entanto, mesmo ao final da década de 2000 (período mais recentes com dados disponíveis) era possível observar que uma quantidade expressiva de municípios ainda não contava com vários desses programas. Arretche et al. (2012) mostra que no período 2007-2008 somente 60,5% dos municípios construíram habitações, 46,5% realizaram melhorias de unidades habitacionais, 35,7% realizaram oferta de materiais de construção, 24,6% ofertaram lotes, 20,4% realizaram regularizações fundiárias, 15,5% adquiriram habitações e 13,8% urbanizaram assentamentos.

Parte dessa falta de atuação dos municípios na área habitacional se deve à falta de capacidade técnica e administrativa, e à falta de instrumentos de política habitacional. Dentre os instrumentos de política habitacional, os principais são: 1) Órgão responsável pela habitação no município; 2) Cadastro ou levantamento de famílias interessadas em programas habitacionais; 3) Consórcio intermunicipal de habitação; 4) Conselho municipal de habitação ou similar; e 5) Fundo municipal de habitação.

Em 2009 somente 66,9% dos municípios possuíam órgão específico para tratar de políticas habitacionais, 80,8% realizavam cadastro de famílias interessadas em habitações, somente 3,1% se consorciavam com outros municípios para administrar programas habitacionais, somente 42,6% tinham conselhos municipais de habitação e 42,8% tinham fundo municipal de habitação estabelecido. Obviamente, nem todos os municípios apresentam déficits habitacionais expressivos. Em geral, são as grandes cidades e os municípios de regiões metropolitanas aqueles que mais utilizam tais instrumentos de política habitacional.

Essa falta de iniciativa local pode estar relacionada ao fenômeno de race to the bottom. Isto é, os municípios evitavam promover políticas habitacionais expansionistas para evitar influxos migratórios. Para preencher esse vácuo de política pública, em 2003, o Governo Federal criou o Ministério das Cidades, órgão que viria a ser responsável pela Política de Desenvolvimento Urbano e pela Política Setorial de Habitação. O Ministério visa a garantir a moradia de qualidade, com direito à infraestrutura e saneamento básico. O intuito desse arcabouço institucional foi o de manter a participação popular iniciada no período anterior, adicionando a ela metas concretas por meio do Plano Nacional de Habitação, plano este que foi criado em conjunto com os governos locais e a população (representada nos conselhos de habitação municipais).

O Sistema Nacional de Habitação (SNH) atual é formado por uma cúpula de gestão formada pelo Ministério das Cidades, pelo Conselho das Cidades, pelo Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, pelos Conselhos Estaduais, do Distrito Federal e Municipais, pelo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e pelos Fundos Estaduais e Municipais de Habitação de Interesse Social (FEHIS e FMHIS). Além da parcela administrativa, fazem parte do SNH agentes financeiros, promotores e técnicos (estes são agentes descentralizadores, que permitem maior abrangência à política) que têm o objetivo de implementar a Política Nacional de Habitação.

A Caixa Econômica Federal também possui papel fundamental na implementação da política criada pelo governo, sendo incumbida de operar o FNHIS e o FGTS, selecionando os candidatos que poderão tomar dinheiro emprestado, ou seja, que serão alvos da política.

O Conselho Monetário Nacional é o órgão responsável pela regulamentação do SNH e o Banco do Brasil realiza a fiscalização das instituições em consonância com o Ministério. O SNH, como se pode notar, possui uma estrutura complexa e extensa. Esta estrutura parece estar funcionando bem, pois a política de habitação social vem crescendo e se fortificando nos últimos anos. A criação do programa Minha Casa, Minha Vida em 2009 consolidou esse este esforço do governo em diminuir o déficit habitacional brasileiro que, segundo dados publicados pelo Ministério das Cidades, era de 5,546 milhões de domicílios em 2008.9 9 Informações disponíveis em: http://www.fjp.gov.br/lndex.php/component/docman/doc_download/654-deficit-habitacional-no-brasil-2008 O programa que possui estrutura de crédito parecida com aquela proposta pelo BNH possui uma vantagem: tem como foco a população que recebe menos de 10 salários mínimos, ofertando crédito também àqueles que recebem menos de três salários mínimos, parcela da população que foi negligenciada anteriormente e que constitui a maior parte do déficit (89,6%). Apesar de o programa ser federal, ele conta com a participação ativa dos municípios, que devem realizar o cadastro e escolher as famílias que terão preferência para receber o subsídio do Governo Federal.

4 Metodologia

Os modelos espaciais para previsão de variáveis econômicas se justificam pela similaridade de características entre regiões próximas. Do ponto de vista de adoção de políticas públicas, modelos espaciais podem ser justificados pela competição por base tributária ou pela tentativa de preservação da integridade de um programa de provisão de bens públicos. Além disso, a maior fluidez de informações entre regiões próximas resulta em incentivos aos políticos para usarem políticas públicas de forma similar aos vizinhos para sinalizarem que são ao menos tão competentes quanto seus pares.

A Primeira Lei da Geografia, definida por Tobler (1979), afirma que "tudo está relacionado com tudo mais, porém coisas mais próximas estão mais relacionadas do que coisas distantes". Dentro desta perspectiva, a dependência espacial é regra e sua independência seria uma exceção (Anselin & Bera 1998). A econometria espacial auxilia na identificação desta similaridade. An-selin & Bera (1998) definem autocorrelação espacial como a coincidência da similaridade de valores de uma variável e a similaridade locacional. Ou seja, valores altos ou baixos de uma variável tendem a se agrupar em clusters (au-tocorrelação positiva) ou valores altos tendem a aparecer cercado de regiões com valores baixos da mesma variável (autocorrelação negativa).

Para estimar se há interação estratégica entre as políticas habitacionais dos municípios brasileiros, é preciso identificar, primeiramente, quais são os municípios que afetam a decisão da unidade de observação. Considerou-se neste trabalho que somente os municípios contíguos podem influenciar esta decisão de política. Portanto, a matriz de pesos espaciais adotada neste trabalho segue critério QUEEN,10 10 Para identificar a possível interação espacial das políticas habitacionais, precisamos de uma matriz de pesos que defina os vizinhos de cada observação. A matriz de peso pode definir como vizinhos aqueles que possuem fronteira em comum com a observação i, ou aqueles municípios localizados em um raio de k quilômetros do município i, ou ainda os n vizinhos mais próximos. De fato, qualquer dessas matrizes de peso com base em proximidade geográfica produz resultados semelhantes, e de acordo com Lesage & Pacey (2010), a necessidade de testar vários tipos de matrizes de pesos espaciais é um mito surgido no passado decorrente da interpretação equivocada de coeficientes como efeitos marginais. , 11 11 Outra possibilidade é definir os vizinhos através de similaridades sócio-demográficas, ou seja, pela distância euclidiana da renda ou de alguma outra característica relevante para definir a proximidade entre duas observações, i.e. a proximidade não é necessariamente geográfica. A limitação dessa metodologia de definição dos pesos é a de que estes são definidos exogenamente. É possível que os pesos sejam determinados de forma endógena ao modelo, e é nesse sentido que a econometria espacial tem avançando nos últimos anos (Ver Anselin 2010). e é normalizada por linha. O modelo espacial estimado reflete a forma reduzida de um modelo de demanda e oferta de serviços de habitação considerando o efeito espacial. O modelo é dado por:

em que Bit é o índice de benefícios do município i no período t, Bjt é o índice de benefícios do município j no período t vizinhos ponderados pelo peso ωij, que é igual a para os municípios vizinhos e 0 para os demais.

As hipóteses nulas dos testes de hipótese sobre os coeficientes α, β e ρ são as usuais, i.e. de que tais coeficientes são iguais a zero. A rejeição das hipóteses nulas a um nível de significância de no máximo 10% permite concluir que tais coeficientes são estatisticamente diferentes de zero. O coeficiente ρ informa o coeficiente de autocorrelação espacial. Se este for estatisticamente significativo chega-se à conclusão de que a política do município é afetada pela política dos municípios próximos, ou seja, há interação estratégica entre os municípios na decisão da política pública habitacional. Como mencionado, isto pode ocorrer, por exemplo, devido à competição entre os prefeitos para prover menores níveis de benefícios habitacionais (race to the bottom), ou devido à competição para prover melhores serviços e conquistar o eleitor mediano (yardstick competition). O termo Xit descreve as variáveis de controle que caracterizam um modelo de demanda por bens públicos, tal como em Borcher-ding & Deacon (1972) e Bergstrom & Goodman (1973). O termo μi representa a heterogeneidade não observável fixa no tempo e potencialmente correlacionada com os regressores. Finalmente, o termo representa o efeito comum ao longo do tempo, captado por dummies de ano, e o termo representa o termo de erro, que pode ou não apresentar correlação espacial. Caso apresente correlação espacial, uma forma de representar esse erro pode ser dada por , em que uit , representa um termo aleatório de erro.

Para checar se o modelo descrito em (1) de fato descreve o processo de correlação espacial, e não um modelo de Spatial Error, foram estimados testes de Multiplicadores de Lagrange Robustos (LM robust) para as hipóteses nulas de que não existe autocorrelação na variável dependente, e de que não existe correlação espacial no termo de erro.12 12 Ver Anselin et al. (1996). A versão robusta dos teste de Multiplicadores de Lagrange informa se há autocorrelação espacial na variável dependente ou no erro controlando pelo outro tipo de correlação espacial, respectivamente no erro e na variável dependente. Também foi realizado um teste de Hausman espacial a fim de verificar se o modelo de Efeitos Fixos Espacial é de fato o mais adequado.13 13 Ver Elhorst (2003, 2010).

5 Dados

Como mencionado anteriormente, a variável de interesse no modelo é o Índice de política habitacional, este foi criado por meio de dados publicados no perfil dos municípios brasileiros de 2004, 2005 e 2008. Nesta pesquisa, algumas variáveis qualitativas sobre a gestão municipal são apresentadas, como por exemplo, características da área de habitação de cada município. Para criar um índice de política habitacional foram utilizadas as seguintes variáveis municipais; referentes a existência de:

a. conselho municipal de habitação;

b. construção de unidades;

c. oferta de material de construção,

d. oferta de lotes; e

e. regularização fundiária.

As variáveis selecionadas são qualitativas, i.e. iguais a sim ou não. Para criar o índice, foram criadas variáveis dummies (0 para não e 1 para sim) e, posteriormente, somaram-se os resultados, formando um índice que varia de 0 a 5. Desse modo, um índice igual a 0 representa um município com baixo nível de políticas públicas na área habitacional, enquanto 5 representa um município com grandes investimentos na área. A Tabela 1 abaixo apresenta o percentual de municípios que praticam algum tipo de política habitacional.

A seguir, na tabela 2, são apresentadas as estatísticas descritivas dos controles e das variáveis que compõem o índice de política habitacional utilizadas para a estimação em painel para os anos de 2004, 2005 e 2008.

O vetor X de variáveis de controle utilizado nas estimações reflete um modelo de demanda por bens públicos tal como em Bergstrom & Goodman (1973) e Borcherding & Deacon (1972). Assim, temos as variáveis que buscam captar o efeito renda tais como o PIB per capita livre de impostos, o salário médio no setor formal e a taxa de trabalho formal. Esperam-se coeficientes positivos para essas variáveis uma vez que habitação pode ser considerada um bem normal. Foi inserida também uma variável com o intuito de captar o efeito-preço do imposto (tax-share). Essa variável é obtida pela razão entre o total de impostos recolhidos na jurisdição (inclusive impostos estaduais e federais sobre o valor agregado) e o total de receitas que as prefeituras recebem coletando impostos ou recebendo transferências. Quanto maior essa razão, mais os cidadãos perceberão o custo do imposto, e tenderão a demandar menos bens.

Foram inseridas variáveis sóciodemográficas a fim de captar diferenças Hicks Neutras nos gostos da população (i.e., que não alteram o formato das preferências , os efeitos renda e substituição). Tais variáveis consistem no percentual de jovens, no percentual de idosos, no percentual de homens e na população total dos municípios. Em princípio, um maior percentual de idosos no município deveria reduzir a demanda por habitação, e aumentar a demanda por saúde. O contrário vale para o percentual de jovens. O percentual de homens não tem um coeficiente específico esperado, e o tamanho da população deve ter um sinal positivo, uma vez que municípios maiores devem apresentar terrenos com preços mais elevados e maior déficit habitacional. Finalmente, o modelo inclui a escolaridade média da população, que deve apresentar um sinal negativo uma vez que uma população mais escolarizada deve preferir gastos com educação ou gastos voltados ao aumento da produtividade e da renda.

Duas variáveis de caracterização de municípios também foram consideradas no modelo a fim de captarem especificidades das jurisdições. Uma delas, a densidade demográfica, busca captar possíveis economias de aglomeração. Nesse sentido, esperar-se-ia uma menor demanda por habitação. Por outro lado, quanto mais adensado um município, maior a escassez de terrenos e maior a demanda por habitação. A outra consiste em uma variável binária que assume valor igual a 1 para municípios exportadores e 0 caso contrário.

Foram consideradas também variáveis fiscais. Dentre elas destacam-se o montante de transferências per capita provenientes do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e a despesa per capita com habitação, das quais se esperam encontrar coeficientes positivos. Já os coeficientes das despesas per capita com urbanismo e com transporte não têm um sinal esperado, dependendo do grau de complementariedade ou substitutibilidade com o indicador de habitação tem-se um resultado diferente.

Além das variáveis que caracterizam a demanda por bens públicos, também foram inseridas variáveis políticas no modelo, as quais devem afetar a oferta de bens públicos. Uma variável dummy igual a 1 para municípios em que o prefeito é de um partido de esquerda e 0 caso contrário encontra-se no modelo para captar a preferência de partidos de esquerda por políticas so-ciais.14 14 Os seguintes partidos são considerados de esquerda: PC do B, PT, PDT, PSTU, PCB, PSB, PCO, PPS, PSOL. Uma variável binária igual a 1 para prefeitos do sexo feminino e 0 caso contrário, e o percentual de vereadores do sexo feminino buscam captar diferenças de gênero da administração municipal. Outras variáveis políticas foram incluídas para captar a qualificação dos prefeitos e demais dirigentes locais, tais como o percentual de vereadores com ensino superior, o percentual de candidatos a vereador com ensino superior e uma dummy igual a 1 para prefeitos com ensino superior. Não há um sinal esperado específico para esses coeficientes, mas é possível que dirigentes mais escolarizados também prefiram gastos voltados ao aumento da produtividade e, consequentemente, da base tributária local. As idades dos prefeitos e dos vereadores também estão contempladas no modelo, mas apenas com intuito exploratório, uma vez que não há literatura que relacione idade dos dirigentes locais com oferta de habitação.

Duas variáveis binárias de alinhamento partidário também estão incluídas no modelo. Uma delas assume valor igual a 1 se o prefeito é do mesmo partido do governador e 0 caso contrário. A outra é igual 1 se o prefeito é do mesmo partido do presidente e 0 caso contrário. Esperam-se coeficientes positivos para esses casos, pois prefeitos alinhados aos partidos dos níveis superiores de governo devem ter maior acesso a transferências intergovernamentais.

Também estão inseridas no modelo variáveis de fracionalização partidária, e de competição por vagas no legislativo e no executivo. A fracionalização partidária tende a aumentar o gasto global, mas para habitação em particular não é possível prever seu efeito. Já a competição por cadeiras no legislativo e no executivo tende a prover melhores alternativas aos eleitores, que podem optar por candidatos mais eficientes e que gastem menos.

Finalmente, a variável "lame duck" é uma dummy que assume valor igual a 1 para prefeitos no segundo mandato, e igual a 0 para prefeitos no primeiro mandato. Espera-se um efeito negativo, i.e. que prefeitos em segundo mandato tenham menores incentivos para alocar recursos visando a reeleição. A variável "maioria no legislativo" informa o percentual de cadeiras ocupadas por vereadores do mesmo partido do prefeito, igual a 1 se é maior do que 50% dos vereadores e 0 caso contrário. O apoio da maioria no legislativo tem efeito ambíguo sobre a adoção de políticas habitacionais. Por um lado, esse apoio reduz a necessidade de aprovação de emendas parlamentares para manter a base de sustentação política, reduzindo a provisão de bens públicos como habitação. Por outro, como políticas habitacionais têm alto potencial para atrair votos, um prefeito com controle da maioria das cadeiras no legislativo consegue aprovar um maior número de projetos de habitação para aumentar seus votos.

É interessante realizar uma comparação entre as variáveis de municípios cujos índices de política habitacional são iguais a zero e maiores ou iguais a 1. As tabelas 3 e 4 a seguir apresentam tais informações.

A média do indicador habitacional dos municípios vizinhos é claramente maior para municípios com algum tipo de política habitacional (tabela 4). Além disso, como esperado, os gastos em habitação e urbanismo têm médias maiores nestes municípios. A população também tem maior média, o que reflete a maior demanda por habitação em grandes centros urbanos.

6 Resultados

A seguir apresentamos os resultados tanto dos modelos convencionais (não supõem autocorrelação espacial) quanto dos modelos com autocorrelação espacial. Dos modelos não espaciais com dados em painel (seção 6.1) podem-se obter os resíduos que permitem testar as hipóteses de autocorrelação espacial na variável dependente ou no termo de erro. Uma vez decidido qual modelo explica melhor a dependência espacial, na seção seguinte são estimados os modelos espaciais com dados em painel.

6.1 Modelos não espaciais

Os resultados dos modelos não espaciais são apresentados na tabela 5. Na primeira coluna encontram-se as estimações por Mínimos Quadrados Empilhados (POLS). Ao final da tabela são apresentados os resultados dos testes LM-Lag e LM-Error robustos. Pelos resultados rejeitamos tanto a hipótese de que não há autocorrelação espacial na variável dependente, quanto a hipótese de que não há autocorrelação no termo de erro. Essas autocorrelações tanto no termo de erro quanto no regressando podem estar relacionadas à existência de efeitos fixos municipais. Por isso, realizou-se um teste de Hausman. O resultado do teste sugere que os coeficientes obtidos pelo método de efeitos fixos (estimador consistente) são estatisticamente diferentes dos coeficientes estimados pelo método de efeitos aleatórios (estimadoreficiente). Portanto, o estimador de efeitos fixos é o mais adequado para o caso. Reestimando os testes LM-Lag e LM-Error robustos usando os resíduos obtidos pelo método de efeitos fixos, rejeitamos que não haja autocorrelação espacial na variável dependente, mas não rejeitamos que não haja autocorrelação no termo de erro. Portanto, o modelo mais adequado para o problema em questão é aquele com uma defasagem espacial da variável dependente, Spatial Lag (ou Spatial Auto-correlated Model).

Os coeficientes dos modelos não espaciais não serão interpretados, pois tais modelos são auxiliares às estimações dos modelos espaciais, descritos com detalhe na próxima subseção.

6.2 Modelos Espaciais

As tabelas 6 e 7 abaixo apresentam os resultados das estimações por máxima verossimilhança dos modelos spatial lag (SAR) e spatial error (SEM). Apesar dos testes realizados na seção anterior indicarem os modelos spatial lag como mais adequados, na tabela 7 são apresentados os resultados de modelos spatial error para efeito de informação sobre o parâmetro espacial e os coeficientes do modelo.

Comparando os coeficientes de correlação espacial entre os modelos spatial error na tabela 6 e os coeficientes dos modelos spatial lag na tabela 8, nota-se uma grande similaridade entre eles. Todos positivos e estatisticamente significativos, e com magnitudes semelhantes. No entanto, conforme indicado pelos testes LM realizados na subseção anterior, o modelo spatial lag é mais adequado, e ao omitir a variável dependente espacialmente defasada, como no caso do modelo spatial error, os coeficientes estimados serão enviesados caso os regressores de cada município estejam relacionados com os indicadores de políticas habitacionais dos vizinhos.

Analisando detalhadamente os modelos da tabela 7, é possível notar que ao considerar a existência de heterogeneidade não observável fixa no tempo, tal como nos modelos SARRE (efeitos aleatórios espaciais) e SARFE (efeitos fixos espaciais), a correlação espacial reduz consideravelmente em relação ao modelo sem tal heterogeneidade SAROLS. As correlações espaciais nos modelos SARRE e SARFE são iguais a 0,114 e 0,120, respectivamente, enquanto no modelo SAROLS é igual a 0,271. Esses resultados sugerem a existência de interação estratégica em termos de política habitacional. Mas, como mencionado anteriormente, estes coeficientes podem estar relacionados tanto à existência de race to the bottom quanto à yardstick competition. Mais adiante, tentamos investigar a fonte dessa correlação positiva.

O teste de Hausman espacial mostra que os modelos SARRE (estimador eficiente) e SARFE (estimador consistente) têm coeficientes estatisticamente iguais, o que indica que o estimador SARRE é preferível, pois tem menor va-riância. Isso não quer dizer que o modelo SARFE seja inválido. Suas informações são tão válidas quanto às do modelo SARRE.

Analisando ambos os modelos SARRE e SARFE é possível notar que as despesas com habitação e urbanismo guardam uma relação positiva com o indicador de habitação. Municípios exportadores também apresentam maiores indicadores habitacionais, possivelmente por se tratarem de grandes centros urbanos. A renda medida pelo PIB aponta que habitação é um bem normal (relação positiva com o índice habitacional), mas a renda medida pelo salário do setor formal sugere que seja um bem inferior (relação negativa com o índice habitacional). De fato, qualquer uma das explicações é plausível, depende da distribuição da renda local. Considerando o PIB per capita, habitação parece ser um bem normal para a média dos habitantes.

Um maior tax share está associado a um menor índice habitacional. Esse resultado também corrobora o esperado, pois quanto maior o custo percebido para os habitantes locais da provisão de um bem, menos desse bem será demandado. Uma maior densidade demográfica também afeta positivamente a provisão de habitação. Centros urbanos mais adensados e populosos costumam apresentar preços de terrenos mais elevados, o que contribui para agravar o déficit habitacional e aumentar a necessidade de políticas públicas habitacionais.

As estimações sugerem também que municípios que recebem mais transferências do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) em termos per capita adotam um menor número de políticas habitacionais. Normalmente, os municípios que recebem maiores transferências de (FPM) per capita são os micro municípios (aqueles com menos de 5.000 habitantes). Nessas localidades, o problema de falta de moradia é menos intenso, com grande parte da população vivendo, inclusive, na área rural.

Um maior percentual de idosos está relacionado a um menor indicador habitacional. Esse resultado era esperado uma vez que idosos tendem a demandar mais gastos com saúde. A escolaridade, de acordo com as estimações, guarda uma relação negativa com número de políticas habitacionais municipais. Uma justificativa possível para esse resultado é a de que localidades com maior escolarização terão preferências por gastos que estimulem a produtividade, como educação e saúde.

O alinhamento entre os partidos do prefeito e dos governadores ou do presidente tem uma relação positiva com índice de habitação. Supõe-se que tais prefeitos gozam de maior facilidade de acesso a transferências não constitucionais. Com mais recursos, esses prefeitos têm maiores condições de investir em habitação. Adicionalmente, como previsto, partidos de esquerda tendem também a adotar um maior número de políticas habitacionais, pois são mais favoráveis à realização de gastos sociais.

Em municípios em que o percentual de candidatos a vereador com Ensino Superior ou em que os prefeitos têm diploma universitário é maior, o número de políticas habitacionais adotadas também é mais elevado. Esse resultado pode ser explicado também pela preferência de dirigentes locais mais escolarizados por gastos voltados ao aumento da produtividade. Mas também é possível que tais municípios sejam mais desenvolvidos e, portanto, haja menor necessidade de adoção de políticas habitacionais.

Por fim, municípios cujo partido do prefeito controla a maioria das cadeiras no legislativo adota um número maior de políticas habitacionais. Esse resultado é coerente com o alto potencial de atração de votos desse tipo de política e a maior facilidade para aprovação de políticas habitacionais que usufruem prefeitos cujo partido controla mais de 50% das cadeiras do legislativo.

O coeficiente da variável lame duck é positivo e significativo em ambos os modelos SARRE e SARFE. Esse resultado é contrário ao esperado. Finalmente, prefeitos mais velhos tendem a ter menor preferência por políticas habitacionais.

6.3 Race to the bottom e explicações concorrentes

As correlações espaciais positivas e significativas encontradas na seção anterior constituem uma evidência de que há uma disputa entre municípios próximos em termos de políticas habitacionais. Essa competição é mais intensa entre municípios próximos (vizinhos), pois a mobilidade dos indivíduos é maior dentro de espaços geográficos menores. Nesse sentido, essa correlação pode ser explicada pelo fenômeno race to the bottom. No entanto, há outros fenômenos que também podem produzir um resultado semelhante.

O fenômeno de yardstick competition pode ocasionar uma autocorrelação espacial positiva. A motivação nesse caso é diferente. Os prefeitos buscam sinalizar suas competências estabelecendo políticas habitacionais em níveis maiores ou iguais aos de seus vizinhos, pois os seus eleitores observam o entorno para identificar a qualidade de seus dirigentes.

Para inferir qual dos fenômenos está presente, foram calculados indicadores locais de associação espacial (LISA)15 15 Estes indicadores são a versão local do I de Moran, estimador global de associação espacial. Ele é definido como: Onde os municípios j são os vizinhos de i. , os mapas de clusters das políticas habitacionais para o ano de 2008. Os clusters identificam aglutinações de regiões com valores altos para o índice habitacional, aglutinações de regiões com valores baixos e, regiões cercadas por vizinhos com valores contrários, ou seja, uma região com valor alto cercada por regiões com valores baixos e vice-versa.

O LISA univariado, utilizando o índice de política habitacional de 2008, identificou os clusters com significancia de 5% representados na Figura 1.


O resultado quantitativo da identificação dos clusters está representado na Tabela 8:

A partir dos dados para 2008, percebemos uma maior presença de cluster com valores de política habitacional altos, o que seria um indício de que a política habitacional nos municípios brasileiros não sofre race to the bottom, ou seja, de que a correlação percebida nas estimações anteriores reflete um movimento de alta na política habitacional, mais condizente com o fenômeno de yardstick competition. Todavia, um número não negligenciável dentre o total de agrupamentos de municípios com indicadores significativos (278 de um total de 1051) e baixos. Esses casos são candidatos a praticarem essa "corrida para o fundo" de forma mais intensa.

A tabela 9 fornece uma pista sobre a evolução dos indicadores de municípios que partiram em 2004 de um patamar mais alto em termos do indicador de políticas habitacionais. Foram classificados como municípios com alto índice habitacional aqueles cujos índices eram maiores do que 3 em 2004, totalizando 246 dentre 4412. Em 2004, portanto, esses municípios com muitas políticas habitacionais apresentaram uma média igual a 3,221. Em 2008, ano em que a posição no ciclo político orçamentário é a mesma do ano de 2004, esse indicador diminuiu para 2,641. Esse é um indício de que há uma tendência de redução das políticas habitacionais entre os municípios com alto nível de provisão de habitação, característica do fenômeno de race to the bottom. Por outro lado, entre os municípios com nível de provisão de habitação mais baixo (menor do que 3), essa tendência de redução não é verificada. O indicador médio passou de 1,658 em 2004 para 1,682 em 2008, o que reforça a evidência de que há uma competição entre municípios para evitar a migração em busca de benefícios. Portanto, há evidências de que o fenômeno de race to the bottom entre municípios vizinhos para evitar influxos migratórios que destruam os programas de benefícios está presente em algum grau no Brasil. Isso não exclui a possibilidade de que outros fenômenos como yardstick competition estejam ocorrendo concomitantemente.

7 Conclusão

Este trabalho investiga a existência de interação estratégica em termos de políticas habitacionais entre municípios brasileiros. Um tipo de interação estratégica destacado na literatura é causado pela expansão das políticas de benefícios acompanhada de um movimento migratório de indivíduos pobres. Tal movimento pode arruinar tanto o programa de benefícios, fazendo com que um orçamento limitado tenha que ser dividido por um número muito grande de pessoas. Para evitar essa situação, os governos locais estabelecem níveis de provisão de benefícios mais baixos. Considerando que a mobilidade das pessoas é mais intensa em um espaço geográfico menor, os municípios passam a competir com os vizinhos para evitar a migração por benefícios e se engajam em um jogo em que os níveis de benefícios (políticas habitacionais) são reduzidos por todos os competidores. Esse fenômeno é denominado race to the bottom . Para testar essa teoria são utilizados modelos econométricos espaciais. Um índice de correlação espacial positivo indica que reduções na provisão de bens pelos municípios vizinhos devem levar a uma redução na provisão de bens do próprio município. O objetivo deste trabalho consiste justamente em identificar se esse fenômeno é verificado entre os municípios brasileiros.

Mas o coeficiente também pode ser interpretado de maneira contrária, e.g. um aumento na provisão dos vizinhos leva a um aumento na provisão dos bens pelos próprios municípios. Nesse caso temos um exemplo de yardstick competition em que há uma motivação dos prefeitos para aumentar a provisão do bem, pois seus eleitores comparam o nível de provisão de benefícios com os níveis dos vizinhos.

Os resultados apresentados confirmam que há evidências de um jogo estratégico entre municípios ao decidirem sobre a provisão de bens públicos na área da habitação. Em particular, foram encontradas evidências de que os municípios respondem positivamente à quantidade de políticas habitacionais de seus vizinhos. Um aumento médio de uma política habitacional entre os municípios vizinhos aumenta em cerca de 0,12 políticas habitacionais no município sob análise. Este resultado reforça a possibilidade existência de race to the bottom. No entanto, essa correlação pode também implicar yardstick competition. Um teste de autocorrelação espacial local sugere que 278 municípios apresentam baixos níveis de políticas habitacionais e autocorrelação espacial positiva, um indicativo de race to the bottom. Outra evidência de race to the bottom pode ser verificada pela tendência de redução nas políticas habitacionais em 246 municípios com índices altos (maiores que 3) entre 2004 e 2008. Note que esse fenômeno pode coexistir com o fenômeno de yardstick competition.

Este trabalho é pioneiro neste tipo de análise para o Brasil, sobretudo por tratar de políticas habitacionais no nível municipal e por conseguir identificar interações espaciais (estratégicas) entre municípios. Merecem destaque, entretanto, algumas limitações do modelo utilizado. Primeiramente, a matriz de pesos espaciais é tomada como exógena. Em segundo lugar, as variáveis explicativas também são tomadas como exógenas, quando isso pode não se necessariamente verdade. No entanto, para verificar o efeito causal de cada variável explicativa deveríamos ter instrumentos ou explorar descontinuidades, o que não é factível em face dos dados disponíveis.

Do ponto de vista de políticas habitacionais, os resultados encontrados indicam que tais políticas redistributivas lograriam melhores resultados se realizadas pelo Governo Central ao invés dos governos locais. Entretanto, uma provisão centralizada poderia não identificar as preferências locais e heterogêneas dos municípios, causando ineficiência. Portanto, em ambos os casos (provisão centralizada ou descentralizada) haveria ineficiência, fica em aberto a questão de qual nível de governo lograria menor ineficiência na provisão de habitação.

Recebido em 22 de novembro de 2011

Aceito em 24 de agosto de 2014

  • Anselin, L. (2010), 'Thirty years of spatial econometrics', Papers in Regional Science 89(1), 3-25.
  • Anselin, L. & Bera, A. (1998), Spatial dependence in linear regression models with an introduction to spatial econometrics, in G. D. E. ULLAH, A., ed., 'Handbook of Applied Economic Statistics', Marcel Dekker.
  • Anselin, L., Bera, A., Florax, R. & Yoon, M. (1996), 'Simple diagnostic tests for spatial dependence', Regional Science and Urban Economics 26(1), 77-104.
  • Arretche, M., Cordeiro, B., Fusaro, E., Dias, E. & Bittar, M. (2012), 'Capacidades administrativas dos municípios brasileiros para a política habitacional', Secretaria Nacional de Habitação / Ministério das Cidades e do Centro de Estudos da Metrópole / Cebrap. Trabalho apresentado na reunião anual da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia, 2003. URL: Disponível em: http://www.fflch.usp.br/centrodametropole/antigo/-static/uploads/livro_capacidades_administrativas_dos_municipios_ brasi-leiros_para_a_politica_habitacional_2012.pdf
  • Bergstrom, T. C. & Goodman, R. (1973), 'Private demands for public goods', American Economic Review 63(3), 280-296.
  • Besley, T. & Case, A. (1995), 'Incumbent behavior: Vote seeking, tax setting, and yardstick competition', American Economic Review 85(1), 25-45.
  • Blank, R. M. (1988), 'The effect of welfare and wage levels on the location decisions of female-headed households', Journal of Urban Economics 24(2), 186211.
  • Borcherding, T. E. & Deacon, R. T. (1972), 'The demand for the services of non-federal governments', American Economic Review 62(5), 891-901.
  • Brown, C. C. & Oates, W. E. (1987), 'Assistance to the poor in a federal system', Journal ofPublic Economics 32(3), 307-330.
  • Brueckner, J. K. (2000), 'Welfare reform and the race to the bottom: Theory and evidence', Southern Economic Journal 66(3), 505-525.
  • Case, A., Rosen, H. & J., H. (1993), 'Budget spillovers and fiscal policy interdependence: Evidence from the states', Journal of Public Economics 52(3), 285-307.
  • Dahlberg, M. & Edmark, K. (2008), 'Is there a "race-to-the-bottom" in the setting of welfare benefit levels? evidence from a policy intervention', Journal of Public Economics 92(5), 1193-1209.
  • Elhorst, J. (2003), 'Specification and estimation of spatial panel data models', International Regional Science Review 26(3), 244-268.
  • Elhorst, J. (2010), Spatial panel data models, in G. A. Fischer, M., ed., 'Handbook of Applied spatial analysis', Springer Berlin Heidelberg.
  • Figlio, D. N., Kolpin, V. W. & Reid, W. (1999), 'Do states play welfare games?', Journal ofUrban Economics 46(3), 437-454.
  • Lesage, J. & Pacey, K. (2010), 'The biggest myth in spatial econometrics', SSRN working paper series
  • Oates, W. (1972), Fiscal Federalism, first edition edn, Harcourt Brace Jovano-vich.
  • Saavedra, L. A. (2000), 'A model of welfare competition with evidence from afcd', Journal of Urban Economics 47(2), 248-279.
  • Salmon, P. (1987), 'Decentralization as an incentive scheme', Oxford Review ofEconomic Policy 3(2), 24-43.
  • Tiebout, C. (1956), 'A pure theory of local expenditures', Journal ofPolitical Economy 64(5), 416-424.
  • Tobler, W. R. (1979), 'Smooth pycnophylactic interpolation for geographical regions', Journal of the American Statistical Association 74(367), 519-530.
  • Wildasin, D. E. (1991), 'Income redistribution in a common labor market', American Economic Review 81(4), 757-774.
  • 1
    Migração por benefícios e bens públicos.
  • 2
    Corrida para fundo, ou race to the bottom, ocorre quando há uma queda dos benefícios até o mínimo possível. Esta expressão é utilizada aqui como um sinônimo para o viés negativo que existe na decisão da oferta de benefícios por cada município. Ver Brueckner (2000).
  • 3
    Adaptado de Brown & Oates (1987).
  • 4
    Dahlberg & Edmark (2008).
  • 5
    Ver Brueckner (2000).
  • 6
    VerBrueckner (2000).
  • 7
    Ver Saavedra (2000).
  • 8
    Spillovers são externalidades, negativas ou positivas que se "transbordam" de uma localidade à outra.
  • 9
    Informações disponíveis em:
  • 10
    Para identificar a possível interação espacial das políticas habitacionais, precisamos de uma matriz de pesos que defina os vizinhos de cada observação. A matriz de peso pode definir como vizinhos aqueles que possuem fronteira em comum com a observação
    i, ou aqueles municípios localizados em um raio de k quilômetros do município
    i, ou ainda os
    n vizinhos mais próximos. De fato, qualquer dessas matrizes de peso com base em proximidade geográfica produz resultados semelhantes, e de acordo com Lesage & Pacey (2010), a necessidade de testar vários tipos de matrizes de pesos espaciais é um mito surgido no passado decorrente da interpretação equivocada de coeficientes como efeitos marginais.
  • 11
    Outra possibilidade é definir os vizinhos através de similaridades sócio-demográficas, ou seja, pela distância euclidiana da renda ou de alguma outra característica relevante para definir a proximidade entre duas observações, i.e. a proximidade não é necessariamente geográfica. A limitação dessa metodologia de definição dos pesos é a de que estes são definidos exogenamente. É possível que os pesos sejam determinados de forma endógena ao modelo, e é nesse sentido que a econometria espacial tem avançando nos últimos anos (Ver Anselin 2010).
  • 12
    Ver Anselin et al. (1996). A versão robusta dos teste de Multiplicadores de Lagrange informa se há autocorrelação espacial na variável dependente ou no erro controlando pelo outro tipo de correlação espacial, respectivamente no erro e na variável dependente.
  • 13
    Ver Elhorst (2003, 2010).
  • 14
    Os seguintes partidos são considerados de esquerda: PC do B, PT, PDT, PSTU, PCB, PSB, PCO, PPS, PSOL.
  • 15
    Estes indicadores são a versão local do I de Moran, estimador global de associação espacial. Ele é definido como:
    Onde os municípios
    j são os vizinhos de
    i.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Recebido
      22 Nov 2011
    • Aceito
      24 Ago 2014
    Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo Avenida dos Bandeirantes, 3.900, CEP 14040-900 Ribeirão Preto SP Brasil, Tel.: +55 16 3315-3910 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: revecap@usp.br