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As estratégias discursivas e a evolução do sujeito poético feminino: de Adélia Prado a Maria Lúcia Dal Farra

Discursive strategies and evolution of female poetic subject: from Adélia Prado to Maria Lúcia Dal Farra

Resumo

O texto propõe uma linha de comunicação entre a poesia de Adélia Prado, a partir de Bagagem (1976PRADO, Adélia (1979). Bagagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), e a de Maria Lúcia Dal Farra e seu Livro de auras (1994DAL FARRA, Maria Lúcia (1994). Livro de auras. São Paulo: Iluminuras.). A intenção radica em observar como os modos de suas respectivas estratégias discursivas, além de revitalizar o código poético local, sugerem mudanças no estatuto da condição histórico-social dos agentes femininos produtores de poesia. Acreditase que isso pode assinalar uma ampliação dos rumos da poesia brasileira, como mostrar uma trajetória de evolução dessa entidade feminina na sua definição de ser social dentro das circunstâncias históricas do seu existir.

Palavras-chave:
poesia feminina; cotidiano; estratégias discursivas

Abstract

This text aims at building a line of communication between Adélia Prado’s poetry, beginning with Bagagem (1976______ (1984). O coração disparado. Rio de Janeiro: Salamandra.), and Maria Lúcia Dal Farra’s Livro de auras (1994______ (2002). Livro de possuídos. São Paulo: Iluminuras.). The intention is set on observing how the writers’ discursive strategies, in addition to revitalizing the local poetry code, suggest changes to the status of historical and social condition of female agents producing poetry. It is believed that this may indicate an expansion of the Brazilian poetry course, as well as showing an evolution path of that feminine entity as a social being within the historical circumstances of her existence.

Key words:
feminine poetry of everyday life; discursive strategies

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Através dos diversos panoramas que se interessam pelas peripécias da literatura moderna no Ocidente, podemos aceder ao entendimento das circunstâncias materiais que adensaram e aprofundaram, no recémpassado século XX, o processo de esvaziamento das ilusões iniciado um século antes. A conhecida proposta benjaminiana sobre o desvanecimento da aura ou as categorias negativas de dissonância e anormalidade que, segundo Friedrich, passam a definir a poesia moderna implicam um processo de desequilíbrio existencial ilustrado, por exemplo, no ensimesmamento do eu e sua retirada aos paraísos artificiais tão característicos dessa poesia. O que, bem olhado, nos coloca frente à condição de solidão que a poesia irá impor-se a modo de parapeito protetor.

Tema, pois, de variados projetos estéticos, por vezes arraigado na estrutura textual de tal forma a fazê-la quase incomunicável, o motivo da solidão se faz presente como condição existencial até para aquelas realizações estéticas abertas à comunicação. Nessas últimas, que se remontam aos exercícios do vanguardismo histórico de cá e de lá, percebe-se uma luta acirrada contra o isolamento e, por derivação, contra aquelas estéticas que, recolhidas à sua sombra, pensam estar se protegendo contra as rusgas da realidade. Se, de modo geral, se expressa nisso o dilema da palavra poética na modernidade, vemos também os esforços que esta tem assumido para superar essa condição de solipsismo e ceticismo, dentro de um contexto que, no entanto, continua mantendo, embora modificados, índices de segregação, discriminação, miséria, exploração e injustiça similares àqueles que no início a fizeram isolar-se em si mesma. Em relação a tal tentativa, parece-me que são as poéticas do cotidiano, com seus temas e objetos corriqueiros e aparentemente triviais, que para alguns podem até parecer “intrascendentes”, as que têm reinstaurado, nas últimas décadas, o desejo de aproximação ao outro, restabelecendo uma comunicação por identidade de temas, espaços e linguagens localizados na rotina diária do homem comum, com o que têm ensaiado uma saída possível à solidão. A esse respeito e no marco da produção poética brasileira das últimas três décadas, os anos setenta marcam o início de um processo de resgate e revitalização de um fazer interessado em trabalhar com as formas diminuídas e desbotadas que povoam o cotidiano, como uma das estratégias para alargar, ao mesmo tempo, os caminhos da criação e das fronteiras da comunicação com o leitor. Nesse entorno, poéticas voltadas ao mundo doméstico da mulher se farão cada vez mais presentes, numa demonstração de que temas a ele ligados podem constituir motivos de observação, reflexão e criação estética. Além de assinalar, logicamente, novas opções para a poesia e novas leituras estéticas sobre os desdobramentos do drama da sociedade burguesa, a iniciativa se poderá ler como tentativa de sair do retraimento, ação que, se já aparece registrada no programa de renovação da vanguarda local a partir de 22, foi ficando pouco a pouco diferida em virtude dos inéditos desalentos que a realidade ia impondo, encurralando de novo a poesia e o poeta no sacralizado espaço do recolhimento protetor.

Mas a partir da data indicada, não custa perceber, no quadro geral da poesia brasileira, a contribuição da escrita feminina para a estabilização dessas poéticas do dia a dia, acontecimento duplamente notável se considerarmos que o cotidiano, já estigmatizado como o âmbito da monotonia sem mistérios, é ainda mais menosprezado se trasladado ao mundo doméstico da mulher. Dessa feita, se, por um lado, a finalidade poética com a qual se fixa a atenção no cotidiano pode gerar o interesse de um tipo de leitor menos intelectualizado, atraído pela familiaridade que esse espaço pode lhe causar, por outro, quando determinado pelos limites domésticos, o cotidiano também pode converter-se numa das zonas mais propícias para a observação da condição social deste sujeito mulher.

Aspectos como os anotados são os que me proponho apresentar agora num duplo e acoplado movimento: perceber como são tratados formalmente os temas miúdos do dia a dia nas realizações poéticas de Adélia Prado e Maria Lúcia Dal Farra, para, a partir daí, esclarecer a relação que ambas as poéticas estabelecem com essa aludida condição de ensimesmamento da poesia moderna. E observar como os correspondentes processos discursivos, ensaiando específicas estratégias comunicativas, estariam assinalando, desde o campo da criação literária, a evolução existencial desse específico sujeito nas condições do seu viver social.

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Quando a mineira Adélia Prado publica em 1976 seu primeiro livro, Bagagem, o contraste de seus poemas com as tendências construtivas, que até anos antes tinham esquentado o cenário literário nacional, vai ser gritante. Tal oposição de estéticas deixa transparecer o esgotamento das poéticas de cunho racional, as quais, conquanto abriram caminhos de experimentação notáveis, terminaram por se fechar no claustro do formalismo verbal. Embora não seja em absoluto usual encontrar referências que relacionem o livro inaugural de Prado às tendências poéticas que eclodem na década de setenta, e que, conhecidas com a denominação geral de poesia marginal, resultam uma forma beligerante de oposição às tendências formalistas, acredito que Bagagem encarna uma das realizações mais bem logradas dessa proposta desliteraturizada, que pugna por uma poesia “pé no chão”, como reclama este paradigmático poema de Ângela Melim (1995MELIN, Ângela (1995). “Coisas assim pardas”. In: CAMPIDELLI, Samira. Poesia marginal dos anos 70. São Paulo: Scipione. p. 29.), uma das vozes ligadas ao movimento:

Canário-da-terra, marreco, chinfrim coisas assim, nomes - Rita coisas assim pardas, mestiças de pequeno porte coisas de fibra embora os jeitos desvalidos coisas pardas vivas pulsantes um poema assim

De maneira que não é temerário pensar que o surgimento de Bagagem é consequência de um desconforto de amplo espectro que alude ao aparecimento de uma sensibilidade que, de maneira geral, passa a reivindicar um lugar poético para as “coisas de pequeno porte”. E aí está “Com licença poética”, o poema inicial do livro, concretizando “poemas assim”, de “coisas pardas e mestiças”, como é a própria condição da mulher em seu mundo doméstico. O poema resulta em muitos sentidos emblemático: pelo jeito do seu eu lírico reconhecer a condição genérica da mulher, “essa espécie ainda envergonhada”; pela curiosa oposição à figura masculina, da qual se aproxima sem ocultar sua subjugada condição histórico-social, mas fazendo dela sua grande vantagem: “Mulher é desdobrável. Eu sou”; pela forma, enfim, de compor uma linguagem original, manhosamente acomodada em cima da primeira estrofe de um dos poemas ícones da poesia brasileira do século XX, o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade, com quem dialoga abertamente para dele se soltar com sutil ironia e cavar seu próprio e pessoal território:

Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira Cargo muito pesado pra mulher. esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos (dor não é amargura). Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida, é maldição para homem Mulher é desdobrável. Eu sou.

O texto constitui um espaço repleto de argúcias, a começar pelo caráter dúbio do título que no início parece introduzir um reconhecimento reverente e ao mesmo tempo a sugestão de alguma discordância. É a ambiguidade funcionando a modo de salvo-conduto para penetrar em domínio alheio - a própria poesia, espaço de um fazer precipuamente masculino

- e, já dentro dele, ocasionar uma reviravolta de notáveis dimensões. A alteração para registro positivo do verso inicial do aludido “Poema de sete faces”, assim como a negação da sentença mote - “vai ser gauche na vida”-, que fez do poema de Drummond um dos exemplos mais gritantes do sentimento de desproteção do homem, aludem de maneira sutil no poema de Adélia a uma inicial postura de desacato, à reivindicação de um modo próprio de pensar e de sentir que, sem embargo, vão se expressar ainda dentro dos limites dessa aparente sutil reverência. Estratégia, ou subterfúgio, na qual subjaz a condição concreta de existência de uma mulher interiorana disputando um lugar no espaço literário nacional, mas sujeita à situação histórico-social vigente nos anos setenta, momento no qual a mulher continua sendo “essa espécie ainda envergonhada”.

Esta condição geral da mulher (gênero) define ao mesmo tempo a condição específica do sujeito produtor (poetisa) e uma de suas opções possíveis: decidir se emancipar de certo modo de dizer pela via da diferença (“Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem”) e não da confrontação direta. E nisso temos um modo originalíssimo de agir, pois não se coloca como gesto de ruptura ou negação e sim de apropriação e transformação da herança que se recebe. O fato, junto à aceitação da prática do subterfúgio, permite trazer à cena a densidade existencial que se esconde por trás desse cinza aparente do universo da mulher comum e, desse modo, sem estardalhaços, inaugurar linhagens e fundar reinos. Ou seja, o contexto menoscabado do doméstico, com sua protagonista principal, a mulher dona de casa, nem escamoteado ou maquiado eleva-se a lugar de vivências importantes, muitas das quais merecem ser comunicadas pela própria voz daquela que as experimenta.

De modo que a definição dessa subjetividade passa não apenas pela opção reafirmadora dessa condição doméstica como pela decisão de fazê-la comunicável aos outros. Logo após o poema inicial, encontra-se “Grande desejo”, em que isso se pode perceber claramente no tom familiarmente declarativo e confessional que o caracteriza:

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia, sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia. Faço comida e como. Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro e atiro os restos. Quando dói, grito ai, quando é bom, fico bruta, as sensibilidades sem governo. Mas tenho meus prantos, claridades atrás do meu estômago humilde e fortíssima voz pra cânticos de festa. Quando escrever o livro com o meu nome e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja, a uma lápide, a um descampado, para chorar, chorar, e chorar, requintada e esquisita como uma dama.

Neste, como em muitos outros dos seus poemas, é importante atentar para além dos conteúdos temáticos, e fixar o que poderia chamar de a ordem textual do subterfúgio, que acredito consiste na mescla ou alternância de afirmações de semântica diversa postas quase em paralelo, o que contribui a morigerar a contundência, de qualquer tipo, que por acaso se instale em alguma delas. Vejamos. O sujeito Adélia, que se declara “mulher do povo” e que tal como qualquer uma delas faz uso da forma coloquial “pra”, deixa escapar, no entanto, certo conhecimento intelectual quando menciona as figuras históricas dos Graco; no fim do poema, quando já reconhecera que “fico bruta”, nos comunica seu desejo de escrever um livro. Mulher do povo, de “estômago humilde”, mas que tem lá suas “claridades” e “fortíssima voz” para dizer o que pensa (“Eu gosto de metafísica, só pra depois/pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz” - “Clareira”). Assim, essa maneira de compor o poema, essa alternância da que falei, parece expor uma das chaves de apreensão dessa escritura poética, que acredito se encontra não no que se diz como na maneira de dizê-lo. Obviar este fato pode levar a entender essa oscilação de posições, que se descobre na aludida alternância, como impostura, simulação que ocultaria um sujeito deveras culto fazendo-se passar por “mulher do povo”, dessas que colocam “obturação amarela” no dente (“Sensorial”). A interpretação pode bem ser outra se se pensa que o mencionado mecanismo de alternância, que também prefigura um sujeito deslizante ou deslocando-se (por algum entrelugar?), pode estar desmantelando consabidos estereótipos sociais para os quais uma mulher do povo, dona de casa, não chega perto do conhecimento. De modo que essa “mulher do povo” pode sim ser, também, “requintada e esquisita como uma dama”.

Este subterfúgio, que é um procedimento textual (o sujeito poético destes textos parece ter isso em consideração quando expressa: “Não me importa a palavra, essa corriqueira/Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, /os sítios escuros, onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível/muleta que me apoia” - “Antes do nome”), se corrobora já nos primeiros três versos de “Com licença poética”, os quais reafirmam positivamente a imagem desse sujeito, mas são quase que neutralizados pelos dois seguintes. Técnica de composição que se repete em praticamente o poema todo, para terminar nesse contundente “Eu sou”: eu sou a maneira deslizante de dizer, e esse modo deslizante de dizer me permite dizer o que quero sem muita exposição.

A aceitação, então, de uma condição existencial de “pequeno porte” (“Não sou tão feia que não possa casar”; “Minha tristeza não tem pedigree”, “vai carregar bandeira, /Cargo muito pesado pra mulher”) é o recurso que permite reconfigurar não apenas a postura do eu lírico como também variar a trajetória de uma poesia que, embora participando do “sentimento do mundo”, ainda se amarra à percepção soturna de um sujeito gauche, uma das variantes do anti-herói moderno. De modo que, negando-se a adotar a pele do anti-herói, o eu lírico adeliano abandona um dos clássicos expedientes através do qual a literatura moderna pôde expressar a solidão existencial do homem no mundo, e, assim procedendo, Bagagem dá entrada a uma poesia responsavelmente alentada numa “vontade de alegria”, o que quer dizer de esperança - “dor não é amargura”. Com o qual, ao mesmo tempo, se emancipa de um modo de dizer preexistente e planta bandeira no seu próprio, o que é uma maneira de se constituir como sujeito.

Rejeitar a figura do anti-herói não significa neste caso a reposição da carnatura do herói, gesto impensável desde que, como se proclama no poema, se trata de um sujeito definido como uma espécie “ainda envergonhada”, para quem “carregar bandeira” é “cargo muito pesado”. A ação inédita presente em Bagagem se materializa quando se nos apresenta um sujeito intermediário entre uma figura e outra. Como se disse, um sujeito ostensivamente feminino, à procura de sua definição e se deslocando através de algo como uma brecha, um entrelugar, espaço transitório, envolvido por uma atmosfera temporal textualmente contida no advérbio “ainda”, que se anuncia um estado de coisas presente, é também sugestão do que não é eterno e, portanto, passível de mudar em algum momento. O mencionado entrelugar conforma, então, na tessitura do poema uma dimensão espaço-temporal que expressa um estado mental - o ser desdobrável - que, além de situar as alternativas de subsistência criadas pelo próprio sujeito (aceitar os subterfúgios para decidir sua emancipação pela via mais sutil e conveniente da diferença), traz à tona sua particular localização histórico-social: mulher, espécie ainda envergonhada. Assumir plenamente sua constrangedora condição social significa apropriar-se dela, o que pode abrir canais para intervir transformadoramente nela. É o que faz o sujeito adeliano quando consegue reverter essa condição menoscabada na sua grande vantagem: “Mulher é desdobrável”: pare filhos e livros, fica bruta e requintada.

É necessário, a partir do que aponto, fixar o lugar de residência no poema desse entrelugar . Desta feita, acreditamos encontrá-lo textualmente materializado em dois aspectos: na ação narrativa que nos conecta ao espaço miúdo e de pouca visibilidade do mundo caseiro, modo que atinge densidão nos subsequentes poemas do livro, e no sujeito lírico “desdobrável”, esse oposto do anti-herói e que parece expressar um modo ardiloso de enfrentamento não direto.

Parece-nos que é na opção narrativa, na clara intenção de um contar em estilo direto (“Hoje acordei normal, como antes de fazer treze anos” - “Uma forma para mim”; “Quando o homem que ia casar comigo / chegou a primeira vez em casa, / eu estava saindo do banheiro, devastada / de angelismo e carência” - “Os lugares comuns”), que resgata e reconstitui o tom coloquial da fala comum, com sua simplicidade linguística acessível a muitos, em que radica o ânimo de comunicação descortinado por este sujeito lírico feminino, interessado em nos assinalar e fazer partícipes da densidade de sua vivência doméstica e da profundidade existencial e emocional do ser que a realiza. A esse respeito, a decisão de articular um contar em inegável tom menor, que leva a autora a aproveitar formatos usuais da comunicação rotineira como cartas ou mesmo mais exíguos como bilhetes de recados1 1 Por exemplo em “Bilhete em papel rosa”: “Ao meu amado secreto, Castro Alves./Quantas loucuras fiz por teu amor, Antonio./Vê estas olheiras dramáticas,/este poema roubado:/ “o cinamomo floresce/em frente do teu postigo./Cada flor murcha que desce,/morro de sonhar contigo”./Ó bardo, eu estou tão fraca/e teu cabelo é tão negro,/eu vivo tão perturbada,/ pensando com tanta força/meu pensamento de amor,/que já nem sinto mais fome,/o sonho fugiu de mim. Me dão mingaus,/caldos quentes, me dão prudentes conselhos,/eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,/a tua boca de brasa, Antonio, as nossas vidas ligadas/Antonio lindo, meu bem,/ó meu amor adorado,/Antonio, Antonio./Para sempre tua”. E também em “Medievo”: “Senhor meu amo, escutai-me,/a donzela espera por vós, no balcão./Cuidai que não acorde os fâmulos/a paixão que estremece o vosso peito./Os galgos estão inquietos, a alimária pateia./Rogo-vos que os apresseis”. , afasta sua poesia de toda abstração para aproximá-la ao universo dos sentimentos espontâneos, de modo que por mérito daquelas “sensibilidades sem governo” muitos poemas nos fazem retornar à naturalidade inicial de episódios do comportamento humano desacreditados pela ideologia do bom comportamento burguês como lascivos ou licenciosos. É o que acontece com boa parte do peculiar erotismo presente em sua poesia.

Assim, pois, a falência do contar que, segundo Walter Benjamin, impede transmitir a outros a experiência adquirida parece aqui conjurada. E essa tarefa volta a se ativar mediante a tonalidade muitas vezes confessional destes poemas, nos quais a marcada presença do eu que conta passa longe de uma inflexão exibicionista, mostrando-se, contrariamente, como uma das formas talvez mais proveitosas de lidar com as condições culturais que o momento poético local impunha: por um lado, dar resposta aos ensaios de poéticas cerebrais que já mostravam os limites da sua oposição às anteriores vertentes intimistas. Mas, também, a opção que creio identificar na poética de Adélia Prado não deixa de incidir, por outra parte, nas circunstâncias de uma realidade sociocultural mais geral, se lembrarmos que partilhar a experiência significa um gesto enfático contra o isolamento de que falei no início e se levarmos em conta o particular nível de exigência criativa que naquele momento ainda se impõe a esse sujeito feminino quando busca fazer-se presente num mundo de ordenamento notoriamente masculino.

O entrelugar, que, como dito, expressa um estado mental, constituído, como todo estado mental, por formas ideológicas de perceber e sentir que definem a posição do sujeito no mundo, adquire, então, sua forma textual mais visível no ato de narrar. O contar “miúdo” significa, pois, reivindicar a importância da vivência doméstica como uma dimensão propícia à exploração sensível. Um espaço-tempo no qual ainda é possível dedicar-se ao devaneio, à contemplação de si e do mundo, fora da aceleração imposta pela sociedade produtivista2 2 Esse tempo compassado da casa, ainda experimentado nas pequenas cidadezinhas, aparece muito claro em “Para comer depois”: “Na minha cidade, nos domingos de tarde,/ as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas./Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,/a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:/ “Eh, bobagem!”/Daqui há muito progresso tecno-ilógico,/quando for impossível detectar o domingo/pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,/em meu país de memória e sentimento, basta fechar os olhos:/é domingo, é domingo, é domingo”. , para a qual, aliás, esse entrelugar é desprovido de toda qualidade, o mesmo acontecendo com o sujeito que o habita - a mulher, dona de casa -, a quem atira no vazio da quase inexistência. No poema “Resumo”, Adélia parece perceber bem a cruel condição do anonimato imposta a este tipo de mulher:

Gerou os filhos, os netos, deu à casa o ar da sua graça e vai morrer de câncer. O modo como pousa a cabeça para um retrato é o da que, afinal, aceitou ser dispensável. Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição: 1906-1970 SAUDADE DOS SEUS, LEONORA.

Pôr em evidência as diversas potencialidades sensíveis deste mundo à margem e, ao mesmo tempo, ser consciente da tremenda empreitada que, sob as condições discriminatórias da sociedade materialista e falocêntrica, significa chamar a atenção sobre ele, parecem motivar a invenção desse subterfúgio que é ser “desdobrável”. E digo invenção porque se trata da criação de um recurso que lhe permite a este sujeito feminino expressar sua situação no mundo com uma originalidade que é só sua. Vejamos a razão.

Em “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade”, as “extraordinárias semelhanças” entre a mulher do poema e o citado poeta não neutralizam, contudo, “o incômodo do seu existir junto com o dele”. A “raiva insopitada quando citam seu nome, lhe dedicam versos” e a reconhecida inveja que a mulher admite em relação a ele são decisivas para o entendimento dessa estratégia, que não é apenas expressiva como de sobrevivência. Olhando a partir de “Com licença poética”, o expediente clareia no ardil do reconhecimento - por isso a raiva, por isso a inveja - que, por ser dissimulação, não apaga o incômodo (o ardil permite que o incômodo se torne ao menos funcional) e permite, seguidamente, o passo da discordância (“E exigiram a língua estrangeira que não aprendi, o registro do meu diploma extraviado no Ministério da Educação” (“Alfândega”). O estado mental de se conceber “desdobrável” (da maneira como já foi explicado) possibilita, como se disse, que a dissensão se realize aparentemente sem grandes rupturas; com isso, enquanto se aceita a bagagem da tradição, sub-repticiamente se coloniza um lugar nela, o que quer dizer: um lugar-no-mundo. Eis o dado original, pois este sujeito não segue os passos desse outsider que é o anti-herói - o gauche drummondiano - mas cria, ao sabor da sua periférica condição sociocultural, um lugar de moradia próprio, que lhe permite sair da marginalidade existencial e desenvolver a capacidade de ser múltipla para enfrentá-la: “Mulher e desdobrável. Eu sou”.

Para o encerramento disto que me propus explorar há ainda um aspecto na poesia da mineira de necessária menção aqui, pois que ajuda a melhor entender esse recurso ao “desdobrável”, no que se refere a sua procedência histórico-cultural. É o sentimento de culpa. Presente em diversos poemas de vários dos livros da autora - inclusive na sua novela de 1999, Manuscritos de Felipa, se torna ostensivo -, tal estado psicológico permite interpretações críticas que veem essa produção como uma “poesia de purgação”3 3 A definição é de Felipe Fortuna (2009), que afirma, entre outras coisas: “E, ao contrário do que ainda se supõe, a mulher revelada por Adélia Prado não consagra libertação alguma - revela, sim, a mulher provinciana, repetitiva, cuja eroticidade só se torna conhecida por resultar de conflitos e paradoxos”. Maria Lúcia Dal Farra (2005), em artigo que dedica aos “Manuscritos”, assinala várias vezes o estado de culpa da personagem, mas também a sua busca de cura pela palavra. . Há nisso também uma remissão à forte presença do elemento religioso tão característico dessa poesia, que como substrato ideológico fundamental estaria condicionando essa forma de se posicionar frente ao mundo. Todavia, embora admitindo a pertinência desse parecer e considerando a crença da própria autora na condição de pecado inerente ao homem4 4 Numa das tantas entrevistas de Adélia Prado (2009), ela admite, por exemplo: “Eu sou o pecado. A criatura é o pecado (...) A condição humana histórica é uma condição de pecado. O mal me habita, assim como o bem”. No plano da sua poesia, vários são os versos que recolhem tal sentimento, por exemplo: “Nós não somos capazes da verdade” (Prado, 1984); “Nada, nada que é humano é grandioso” (Prado, 1986). , devo reparar na existência de certos momentos muito curiosos nesse universo de convicções teológicas e louvação a Deus, pois que eles poderiam redirecionar o olhar para sentidos bastante mais proveitosos.

Refiro-me às ocasiões em que o eu lírico reconhece o rosto cruel de Deus, manifestando-se-lhe como entidade de punição. Lidando com a anfibologia da entidade divina, o eu lírico adeliano evidencia, pois, os traços da sua convivência com a própria interioridade oscilante, o que nos devolve de novo à condição desdobrável deste eu. Se for assim, a libertação que se manifesta na figura deste sujeito - “mulher provinciana” - procede precisamente de ser capaz de efetivar o reconhecimento da sua situação oscilante, de seus paradoxos e contradições.

Deste modo, a condição “desdobrável”, sendo um original recurso da autora, pode estar materializando, ao mesmo tempo, a “solução” imaginária (criativa) para uma conjuntura sócio-histórica que entrava as expectativas do sujeito. A conformação desse inventivo expediente discursivo nos estaria dando, então, pistas sobre a situação de tal sujeito social no contexto material específico que habita e, de igual forma, nos indicando a fecunda disposição criativa de que é capaz para redefinir sua identidade frente a tais limitações.

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De Bagagem a Livro de Auras, o primeiro da paulista Maria Lúcia Dal Farra5 5 A autora tem uma reconhecida trajetória acadêmica como estudiosa de diversos temas literários, tanto brasileiros como portugueses. Também compõem sua produção literária Livro de possuídos (2002) e o volume de relatos Inquilina do intervalo (2005b). , transcorrem quase vinte anos, de maneira que é lógico pensar na ocorrência de potenciais transformações tanto no âmbito da produção poética como na situação desse sujeito social específico - a mulher - durante esse período. Portanto, proponho a fusão desses dois fatores - as modificações na produção poética e na condição da mulher - para rastrear agora, a partir de Livro de Auras, o que pode ter-se alterado no fazer da mulher produtora de poesia. A ideia é que aquele sujeito feito “desdobrável” pelos condicionamentos nos quais se situa daria passagem, em Livro de Auras, a uma poesia “desdobrável” (Cabañas, 2005CABAÑAS, Teresa (2005). “A razão construtiva e o rendilhado poético de Maria Lúcia Dal Farra”. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis. dez. v. 13, n. 3. p. 545-66.), cuja dinâmica discursiva, acredito, se efetiva através de um esforçado vasculhar a palavra, ação que desabrocha os múltiplos sentidos não evidentes que nela se encontram e os conduz à superfície do poema. Desse modo, o procedimento mencionado vai fazer sombra à figura do sujeito da experiência para acentuar a própria ação do seu trabalho através de uma apurada imbricação de sentidos: remetendo tematicamente aos afazeres do lar que resultam, em últimas, sugestão do fazer poético. Ou seja, trazendo à cena a suposta trivialidade do serviço caseiro, quase sempre inserido no ambiente despojado da vida provinciana, (no que prossegue a consideração do espaço miúdo do lar como âmbito do poético: uma das seções do livro é “Lição de Casa”, com sua dupla possibilidade semântica), se introduz através dele, e a propósito dele, a transfiguração do mundo pelo trabalho poético.

Creio que esse deslocamento - do sujeito “desdobrável” para a poesia “desdobrável”se faz visível na esmerada técnica descritiva que aqui se utiliza, mesmo que ela não negue a existência de momentos narrativos reservados sobretudo à rememoração. O recurso à descrição outorga densidade ao sentido dos diferentes motivos escolhidos, pelo menos em duas direções: por um lado, instaurando o tempo da contemplação, já que a descrição dela procede, convoca o tempo interior, pois embora o elemento de observação pertença à exterioridade, a ação que o nomeia resulta da ativação que o detalhismo da contemplação incute nas frestas da imaginação. Observemos um exemplo. No poema “Casa”, que inicia “Viveiro”, título da primeira seção do livro, a descrição de uma simples mesa nos introduz na sua “memória de árvore”. De maneira que esse objeto utilitário, inanimado, ingressa ao mundo sensível do imaginário a partir de onde, já modificado pelo devaneio que o “abstrativiza” e permite agir poeticamente sobre ele, pode retornar à vida sensível e abandonar o espaço anódino do uso pragmático. Por outro lado, vemos como este primeiro momento da observação convoca a ação reflexiva, que amplia os limites de sentido do objeto quando dá lugar a uma, digamos, conclusão, que é, justamente, o conteúdo inédito que o poema incorpora e que é de natureza diversa daquela do objeto exterior ao qual se dedica: recuperada a sua condição primeira, a mesa insufla os antigos méritos da casa - lugar de resguardo de momentos íntimos - através de uma articulação discursiva que termina fundindo as duas numa só e única coisa:

Redonda, uma mesa cogita sua memória de árvore enquanto o nó central se amplia pela luz que a retira da morte. Esse arbusto cresce e engole a lâmpada elétrica: os galhos já resplandecem filtrados de sol. Do chão o assoalho estremece e revive (através da cera recém-acumulada) os momentos íntimos das coisas da casa no seu tempo de floresta.

Recordemos agora que a ação reflexiva é também uma condição do tempo interior, de modo que a partir daqui se pode vislumbrar o perfil desse eu lírico meio esquivo e reticente à plena aparição. Trata-se de um sujeito observador e reflexivo que nessa tarefa ocupa seu tempo existencial, por isso só tangencialmente se mostra no ato de selecionar os seres (gatos, bois, vacas, galos, árvore), as personagens (a nona, a mãe, a tia, a empregada doméstica ou mesmo dona de casa) e episódios, as mais das vezes do mundo interiorano, nos que centrará o empenhado esforço de sua nomeação. E esta nomeação acontece através de uma palavra devassada, indagada até que deixe aflorar de novo, como acontece no poema anterior, a matéria que foi posta no esquecimento pelo pragmatismo que instrumentaliza a vida humana. O arranjo discursivo que sustenta a mencionada opção descritiva parte de uma muito ordenada vinculação dos momentos ou fases do poema, responsável pelo aparecimento desse procedimento conclusivo lógico e que afasta esta poética do espontaneísmo6 6 Entendo que o espontaneísmo referido não comporta descuido ou desleixo. Trata-se, pelo contrário, de um procedimento formal que procura tal efeito. presente na de Adélia Prado. Um dos vários exemplos possíveis é este belíssimo “Culinária frugal”, cuja arquitetura textual se ajeita no seguimento da metódica ordem temporal que marca a dinâmica da cozinha, da casa e do próprio fluir natural do dia:

Na cozinha os utensílios aquietados no seu canto ainda aguardam (sigilosos) o uso que fizemos deles. Desenham areados a geografia do dia: a luz solar do ovo estampado no prato logo de manhã, a trama do espaguete à hora do almoço, o recheio oculto da berinjela ao cair da noite. Fogão? Esfera onde se tempera o tempo.

Assim como a mesa, que deixa de ser um objeto meramente utilitário pela ação reflexiva do sujeito que observa, o fogão se preenche de sentidos inabituais para ganhar a densidade de um laborioso mister que não só dirige o tempo como lhe dá gosto, o suaviza. Isso suscita, na conclusão do poema, a transfiguração do fogão em elemento capaz de alterar o sabor do tempo (da vida?). Por isso, esse utensílio, que é emblema do afazer doméstico, se agiganta com importância plena e metonimicamente sugere a relevância de quem o conduz - ser dotado de método e discernimento.

Há ainda um detalhe importante a explorar nesse procedimento: tratase, como se vê, de um poema sobre objetos, no qual a presença humana é discretamente introduzida só uma vez (“o uso que fizemos deles”) e pela via de um indeterminado e implícito “nós”. Ou seja, o sujeito lírico, concentrado no observar, se retira a um lado, enquanto sua ação reflexiva vai carregando os objetos de energia pulsante, energia humana depositada neles pelo “uso que fizemos deles”. A técnica discursiva implica, então, a necessária ausência da figura humana, que estorvaria com sua demasiada corporeidade a “materialização” do que quer ser apenas uma sensação, um vestígio, uma esteira fugidia e tenuemente perceptível, que é essa energia aludida. Como toda energia, ela é em si mesma intangível, de modo que o que nos chega dela é sua vaporosa impressão (no sentido de marca, mas principalmente de efeito) sobre os seres de dentro e de fora do poema. Estamos muito próximos da aura benjaminiana, da aparição de “algo” misterioso, perceptível e intransponível ao mesmo tempo, cuja consequência sobre a leitura é a cativante possibilidade das suas várias virtualidades. Atributo que, apesar da nossa ciência analítica, torna o poema inesgotável.

Mas, insisto, o entendimento da técnica aqui evidenciada é imprescindível para a indagação a que me proponho. Assim, se a coincidência com o projeto adeliano se faz notória na decisão de dar visibilidade ao espaço das coisas e eventos domésticos como adequado habitáculo para a poesia, os procedimentos textuais são, contudo, diferentes. Estes, além de serem, sim, opções estilísticas pessoais, entranham pistas que nos possibilitam entender, a partir do fazer literário, a(s) maneira(s) como se está redefinindo a situação social do sujeito feminino no mundo, o que permitirá atentar para a possível evolução que, creio, modifica as condições de produção social de tal sujeito.

Se em ambas as autoras encontramos a diligente tarefa de nos apresentar o mundo doméstico, não esqueçamos da naturalidade7 7 Veja-se “A formalística”, de A faca no peito (1988), diatribe contra o poeta cerebral que “pelejador, não entende/quer escrever as coisas com as palavras”. (coloquialidade e espontaneísmo) que passeia pela poesia adeliana, como resultado daquelas “sensibilidades sem governo” - maneira peculiar de encobrir o trabalho poético, que é uma das alternativas para lidar com a racionalidade da poesia do momento e também com o direcionamento do bom comportamento burguês -, e voltemos agora o olhar para a “atenção vertiginosa” que orienta a reflexividade no modo poético de Dal Farra.

A reposição da contemplação é um dos resultados de Livro de auras, em cuja mão nos ausentamos do tempo cronometrado e alienado da produtividade burguesa para ingressar na vivência do tempo interior, da imaginação, do ócio criador. Tal como nos mostra o procedimento discursivo que estamos abordando - o aludido “desdobramento” da palavra -, o “ócio criador” resulta um dos personagens principais do livro, materializado no vagaroso olhar lírico que sem açodamento se pousa em seres e coisas para observá-los e descrevê-los através da laboriosa ação de descascar a palavra. Podemos voltar àquele tempo no qual fazedor e objeto se identificavam no trabalho criador.

Tentarei explicitar isso em “Rito”, um dos poemas da seção “Coisas de mulher”. Neste, uma vez mais o eu lírico observa sem intervir: observa a ação doméstica de cortar legumes e verduras executada por Antônia. O ato simples e mecânico, corriqueiro no mundo doméstico feminino, vai permitir o transluzimento de toda sua ossatura poética através da descrição da destreza do gesto,

Quando Antônia corta a abobrinha põe em cada golpe a decisão. da concentração no trabalho que modifica a matéria-prima, Os fiapos trabalhados por lâminas e concentração estremecem na panela trabalho que a esta altura já é duplo: o de Antônia e o do eu lírico, descascando as palavras como aquela faz com os vegetais: e de cima a faca tomba sobre o cilindro macio vasculhando seu diâmetro em toda a volta e extensão De modo que esses “fiapos trabalhados” com competência e habilidade -“Legume a prumo” - acomodam a nova existência que brota do fazer e que já é coisa diversa da original: despede-se da coisa inteira. Legume em extinção.

Assim, pois, se o mundo feminino que Livro de Auras carrega aparece de maneira óbvia em muitos de seus motivos (quarar a roupa, cozinhar, trabalhar no tear), esse âmbito da mulher se faz mais contundente na maneira como os pormenores do lar são tratados pela escolha discursiva. A contemplação reflexiva de que venho falando, e que valida a existência do ócio criador, a possibilidade de usufruir um tempo fora das regras da pragmática produtiva, reivindica um espaço para si na fatura de cada poema8 8 O leitor também poderá corroborar isso em Livro de possuídos (2002). Neste, o procedimento talvez seja ainda mais explorado na série de poemas que recriam os quadros de Van Gogh e Kilmt, ou na descrição de frutas e legumes, de árvores e flores. Os poemas sobre as obras pictóricas parecem nos instalar na atmosfera contemplativa própria do museu. . Mas isso só é possível pela disposição para se dedicar com acuidade ao trabalho da formalização poética, pela tamanha concentração do fazer que essa escrita nos apresenta e pelo esforço na procura da precisão da forma perfeita. Artes:

Evito rimas, recuso acrobacias Apenas do frugal me ocupo inteira Tomo como medida o arame do varal E entremeio nele (sensual, promíscua) Toalha de mesa com lençol. A casa deságua no quintal, Alta se amolda aos ramos das mangueiras. De quando em vez faz rumo, sai pra rua (sem pejo) presa pela lua cheia Ou terna atrás de longe realejo. Fica tudo quarando enquanto Cozinho ou vasculho a cumeeira (esteio onde é mais vivo o espírito do meu pai) E escapa das molduras uma aura, um certo enleio Com que apanho luz para as candeias, Com que canto funcionando este tear.

O poema se esmera no ajustamento dos elementos sonoros, esses que, como se sabe, compõem o plano formal talvez mais palpável do poema. A maneira apurada como os traz à tona, evitando a evidência da comodidade das rimas, instaura uma misteriosa sonoridade, uma musicalidade que envolve a descrição da cena, a rotina doméstica, num suave letargo, numa como suspensão do tempo que propicia a revelação da energia contida nas coisas e que amavelmente o eu colhe numa aprazível simbiose de sujeito e objeto. Veja-se como, de novo, o verso final conclusivo amalgama o que sabemos foi dissociado com o advento da sociedade industrial, e imaginamos a partir dele o sentimento de completude do artesão em cada peça elaborada. Assim, o trabalho depositado no tear se irmana ao canto do poema, e ambos são ofertados ao mundo sensível do sujeito.

Por isso, o que cativa nessa poesia de mulher, inexplicavelmente negligenciada pela crítica nacional, é a inteligência com a qual se preserva toda a delicadeza de uma toalha de crochê através do laborioso empenho formal que organiza seus elementos numa estrutura de equilibrada beleza (Veja-se “Parca doméstica”). Desse modo, se a toalha de crochê nos remete de imediato ao mundo feminino, já quase um estereotipado bibelô, a precisão construtiva da estrutura foi sempre tradicionalmente atribuída ao poderio masculino. Portanto, penso que a sutileza que nasce desse refinamento formal manifesta no âmago de cada um desses poemas a desapropriação da ratio construtiva do exclusivo domínio masculino. A prática do que chamei de “desdobramento da palavra”, tal como tentei explicitar, pode estar nos colocando, então, frente a uma modificação na mentalidade feminina, que, sem precisar pedir licença nem usar subterfúgios, dá-se agora a liberdade de se pôr em condições sociais igualitárias ao lado do homem.

Sobre esta ideia, valeria a pena tecer um último comentário. Há duas epígrafes do poeta português Herberto Helder9 9 A primeira epígrafe aparece na seção “Viveiro” de Livro de auras e diz: “É tão belo agarrar com os ossos/que há dentro das mãos/na ponta de um nome, e desdobrá-lo. /Arrancar essa alma apertada”. A segunda encontra-se em Livro de possuídos e expressa: “Talvez esta laranja me dotasse de uma atenção vertiginosa”. que nos podem ajudar a direcionar, pelo menos da perspectiva que proponho, o modo como a poetisa paulista se adentra na tradição poética à qual quer se filiar. Isso porque nesses versos aparece o que acredito serem as duas motivações centrais do exercício poético de Maria Lúcia: a ação do “desdobramento” da palavra, que ocupa a centralidade dos versos da primeira epígrafe, e a concentração engastada na “atenção vertiginosa”, da segunda. Acredito que o destaque dado a esses versos na própria obra assinala na poética de Dal Farra a discreta naturalidade com a qual se reconhece a inscrição numa certa genealogia lírica. O que bem pode aludir ao grau de amadurecimento atingido pela prática estética deste sujeito que, “domesticando a letra com fervor de ritmo” (“Definição imprópria”), não se abate pela afirmação dos predecessores, antes lhes reconhece o tributo. Assim, a consciência de autonomia que ora se instala desobriga-se de confrontos mais ou menos implícitos ou mais ou menos evidentes. Não há como não lembrar neste momento do caso diverso ilustrado pela poesia de Adélia Prado, cujo eu lírico, no seu particular momento de afirmação individual e histórica, vai reconhecer apenas uma Linhagem “ginecológica” e/ou o débito com o sagrado, se repararmos na procedência das epígrafes dos seus primeiros livros. Contudo, como já foi exposto, não se esqueça que essas opções pessoais carregam o “sinal dos tempos” e que, consequentemente, não obedecem tão só à vontade particular do indivíduo.

4

Creio poder expor, finalmente, minha ideia em relação à linha de evolução que acredito a junção dessas duas poéticas torna visível. Se o relevo dado ao espaço íntimo da vida doméstica, com seus pequenos causos, sua particular temporalidade e dicção, constitui nos dois casos decidido aceno em prol de uma abertura comunicativa a públicos mais amplos, com o qual se reafirma o compromisso da poesia com a vida factual, as opções estilísticas escolhidas trazem as marcas históricas das condições sociais que possibilitam em diferente medida a transformação da mentalidade social em determinado momento. As “sensibilidades sem governo”, invocadas por Adélia Prado como recurso para consolidar o livre-arbítrio de um fazer poético que se pretende espontâneo, mas ainda preocupado em amortecer seus débitos com a tradição (entenda-se masculina), evoluem para a “atenção vertiginosa”, necessária a um exercício poético que, sem importar-se em tributar suas dívidas, procura, através da concentrada indagação da palavra, a desapropriação do espírito analítico do exclusivo domínio masculino. Por tal razão, enquanto os temas introduzidos pela poetisa mineira buscam reivindicar o espaço do cotidiano doméstico e o sujeito que o habita como lugar e entidade aptos ao aparecimento e à experimentação da vivência poética, em Maria Lúcia Dal Farra eles se reinstalam convertidos, respectivamente, em âmbito favorável à realização de um concentrado trabalho formal e como entidade que se aboca a uma intensa indagação intelectiva sobre os possíveis sentidos da palavra poética.

Entretanto, embora a poética de Dal Farra permita ver a superação de subterfúgios e estratagemas anteriores, com a qual se desenha um novo estágio no processo de afirmação deste sujeito feminino produtor de poesia, deve-se lembrar de que tais artifícios são recursos motivados pelas exigências concretas da hora, sendo que a sua superação procede em parte da convergência no espaço histórico-social de aspectos de variada índole. No caso de que se trata, um deles é, sem dúvida, o próprio caminho aberto pela mineira à poetisa paulista, como também a reviravolta ocasionada no panorama da literatura nacional pelas poéticas dos anos setenta, nas quais várias dicções femininas reivindicam um lugar.

Essas condições específicas de produção pulsam, com maior ou menor intensidade, nas técnicas discursivas que cada projeto estético adota, de modo que a obra assim se conecta a sua existência histórica. Na consideração disso, gostaria de fazer uma última projeção, a modo de indagação: pelo acontecer paradoxal do mesmo tempo histórico no qual se situa, o trajeto percorrido pela poesia de Dal Farra, e que aqui desenhei como conquista, não anunciaria já o nascimento de uma nova incompatibilidade? Pois, ao colonizar para si papéis que tradicionalmente a sociedade reservou ao contingente masculino, o sujeito feminino não ficaria exposto às mesmas calamidades que a sociedade burguesa impôs àquele como ser produtivo fora da esfera doméstica e assim ao padecimento de novos conflitos sociais e existenciais? Talvez caminhe por aí a enigmática angústia que desponta nos versos de “Retrato”:

De que me vale a herança do saber se atrelá-la devo a meu viver e se o que escrevo é pó, unguento e em nada mudo aquela que em si já era farta?

Referências bibliográficas

  • CABAÑAS, Teresa (2005). “A razão construtiva e o rendilhado poético de Maria Lúcia Dal Farra”. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis. dez. v. 13, n. 3. p. 545-66.
  • DAL FARRA, Maria Lúcia (1994). Livro de auras. São Paulo: Iluminuras.
  • ______ (2002). Livro de possuídos. São Paulo: Iluminuras.
  • ______ (2005a). “Manuscritos de Felipa”. Revista Ártemis. Paraíba. dez. n. 3. Disponível: www.prodema.ufpb/revistaartemis. Acesso em: 18 maio 2008.
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  • ______ (2005b). Inquilina do intervalo. São Paulo:Iluminuras. 143p
  • FORTUNA, Felipe (2009). As contradições de Deus. Disponível em: Disponível em: www.felipefortuna.com/contradiçõs.html Acesso em 9 jul 2009.
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  • MELIN, Ângela (1995). “Coisas assim pardas”. In: CAMPIDELLI, Samira. Poesia marginal dos anos 70. São Paulo: Scipione. p. 29.
  • PRADO, Adélia (1979). Bagagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • ______ (1984). O coração disparado. Rio de Janeiro: Salamandra.
  • ______ (1986). Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro: Guanabara.
  • ______ (1988). A faca no peito. Rio de Janeiro: Rocco.
  • ______ (2009). A experiência do prazer (Entrevista). Disponível em: www. medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevista/prado.htm. Acesso em 20 jun. 2009
    » www. medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevista/prado.htm
  • 1
    Por exemplo em “Bilhete em papel rosa”: “Ao meu amado secreto, Castro Alves./Quantas loucuras fiz por teu amor, Antonio./Vê estas olheiras dramáticas,/este poema roubado:/ “o cinamomo floresce/em frente do teu postigo./Cada flor murcha que desce,/morro de sonhar contigo”./Ó bardo, eu estou tão fraca/e teu cabelo é tão negro,/eu vivo tão perturbada,/ pensando com tanta força/meu pensamento de amor,/que já nem sinto mais fome,/o sonho fugiu de mim. Me dão mingaus,/caldos quentes, me dão prudentes conselhos,/eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,/a tua boca de brasa, Antonio, as nossas vidas ligadas/Antonio lindo, meu bem,/ó meu amor adorado,/Antonio, Antonio./Para sempre tua”. E também em “Medievo”: “Senhor meu amo, escutai-me,/a donzela espera por vós, no balcão./Cuidai que não acorde os fâmulos/a paixão que estremece o vosso peito./Os galgos estão inquietos, a alimária pateia./Rogo-vos que os apresseis”.
  • 2
    Esse tempo compassado da casa, ainda experimentado nas pequenas cidadezinhas, aparece muito claro em “Para comer depois”: “Na minha cidade, nos domingos de tarde,/ as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas./Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,/a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:/ “Eh, bobagem!”/Daqui há muito progresso tecno-ilógico,/quando for impossível detectar o domingo/pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,/em meu país de memória e sentimento, basta fechar os olhos:/é domingo, é domingo, é domingo”.
  • 3
    A definição é de Felipe Fortuna (2009FORTUNA, Felipe (2009). As contradições de Deus. Disponível em: Disponível em: www.felipefortuna.com/contradiçõs.html . Acesso em 9 jul 2009.
    www.felipefortuna.com/contradiçõs.html...
    ), que afirma, entre outras coisas: “E, ao contrário do que ainda se supõe, a mulher revelada por Adélia Prado não consagra libertação alguma - revela, sim, a mulher provinciana, repetitiva, cuja eroticidade só se torna conhecida por resultar de conflitos e paradoxos”. Maria Lúcia Dal Farra (2005______ (2005a). “Manuscritos de Felipa”. Revista Ártemis. Paraíba. dez. n. 3. Disponível: www.prodema.ufpb/revistaartemis. Acesso em: 18 maio 2008.
    www.prodema.ufpb/revistaartemis...
    ), em artigo que dedica aos “Manuscritos”, assinala várias vezes o estado de culpa da personagem, mas também a sua busca de cura pela palavra.
  • 4
    Numa das tantas entrevistas de Adélia Prado (2009______ (1986). Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro: Guanabara.), ela admite, por exemplo: “Eu sou o pecado. A criatura é o pecado (...) A condição humana histórica é uma condição de pecado. O mal me habita, assim como o bem”. No plano da sua poesia, vários são os versos que recolhem tal sentimento, por exemplo: “Nós não somos capazes da verdade” (Prado, 1984______ (1988). A faca no peito. Rio de Janeiro: Rocco.); “Nada, nada que é humano é grandioso” (Prado, 1986______ (2009). A experiência do prazer (Entrevista). Disponível em: www. medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevista/prado.htm. Acesso em 20 jun. 2009
    www. medei.sites.uol.com.br/penazul/gera...
    ).
  • 5
    A autora tem uma reconhecida trajetória acadêmica como estudiosa de diversos temas literários, tanto brasileiros como portugueses. Também compõem sua produção literária Livro de possuídos (2002) e o volume de relatos Inquilina do intervalo (2005b).
  • 6
    Entendo que o espontaneísmo referido não comporta descuido ou desleixo. Trata-se, pelo contrário, de um procedimento formal que procura tal efeito.
  • 7
    Veja-se “A formalística”, de A faca no peito (1988), diatribe contra o poeta cerebral que “pelejador, não entende/quer escrever as coisas com as palavras”.
  • 8
    O leitor também poderá corroborar isso em Livro de possuídos (2002). Neste, o procedimento talvez seja ainda mais explorado na série de poemas que recriam os quadros de Van Gogh e Kilmt, ou na descrição de frutas e legumes, de árvores e flores. Os poemas sobre as obras pictóricas parecem nos instalar na atmosfera contemplativa própria do museu.
  • 9
    A primeira epígrafe aparece na seção “Viveiro” de Livro de auras e diz: “É tão belo agarrar com os ossos/que há dentro das mãos/na ponta de um nome, e desdobrá-lo. /Arrancar essa alma apertada”. A segunda encontra-se em Livro de possuídos e expressa: “Talvez esta laranja me dotasse de uma atenção vertiginosa”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010

Histórico

  • Recebido
    Fev 2010
  • Aceito
    Mar 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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