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O conto brasileiro durante a ditadura

The Brazilian short story during the dictatorship

El cuento brasileño durante la dictadura

Resumo

O chamado boom do conto brasileiro dos anos 1970 marcou um momento de efervescência do gênero até hoje não igualado. O artigo discute as circunstâncias em que ele ocorreu, tanto econômicas quanto políticas. Forma breve, de produção e de consumo muito mais rápidos que o romance, o conto adaptava-se bem às urgências de um tempo em que escritores queriam usar sua arma, a palavra, para se somar à luta contra a ditadura e expor as desigualdades que nos formam.

Palavras-chave:
conto; literatura e política; literatura brasileira contemporânea; ditadura

Abstract

The so-called Brazilian short story boom of the 1970s marked a moment of effervescence for the genre, which has not been equaled until today. The article discusses the circumstances in which it took place, both economic and political. A brief narrative, of production and consumption much faster than the novel, the short story was well suited to the urgencies of a time when writers wanted to use their weapon, the word, to join the fight against dictatorship and expose the inequalities that shape us as a society.

Keywords:
short story; literature and politics; contemporary Brazilian literature; dictatorship

Resumen

El llamado boom del cuento brasileño de la década de 1970 marcó un momento de efervescencia para el género, que no ha sido igualado hasta hoy. El artículo analiza las circunstancias en las que se produjo, tanto económicas como políticas. Forma breve de producción y consumo mucho más rápido que la novela, el cuento se adaptaba bien a las urgencias de una época en la que los escritores querían utilizar su arma, la palabra, para sumarse a la lucha contra la dictadura y exponer las desigualdades que nos configuran como sociedad.

Palabras clave:
cuento; literatura y política; literatura brasileña contemporánea; dictadura

INTRODUÇÃO

Nos anos 1970, em plena ditadura, o Brasil viveu um período de efervescência literária e editorial, impulsionada também pelo “milagre econômico” - o acelerado crescimento da economia do país, louvado como a grande realização do regime. Baseado numa elevada taxa de exploração da força do trabalho, o milagre ampliou a concentração da renda no topo da pirâmide social. Embora a classe trabalhadora tenha sido a maior prejudicada, até porque a repressão inibia qualquer atividade reivindicatória, as camadas médias experimentaram relativa prosperidade. Era uma parcela reduzida da população, mas, com a expansão do ensino universitário, foi suficiente para que o mercado livreiro tivesse um aquecimento expressivo. Se em 1971 foram lançados cerca de 80 milhões de livros no país, em 1979 eles somaram 223 milhões de exemplares1 1 Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), reunidos e discutidos em Reimão (1993). . Nunca se publicou tanto. Nunca tantos escritores foram apresentados ao público. Concursos, jornais, revistas especializadas e antologias divulgavam novos autores, criavam renomes passageiros e consagravam alguns. Só como exemplo, a revista carioca Ficção, que circulou mensalmente durante quatro anos, de 1976 a 1979, abrigou em suas páginas 350 contistas brasileiros contemporâneos, boa parte deles desconhecida até então. Com raras exceções, a revista publicava exclusivamente contos, dez a 15 por edição - e chegou à tiragem de 15 mil exemplares, vendidos em bancas.

Levando em consideração o clima repressivo em que o país estava imerso, não é de estranhar que boa parte desse espaço fosse utilizado por autores engajados, gente que acreditava ter como denunciar, por meio da literatura, os abusos do poder ou as dificuldades enfrentadas por determinados grupos sociais. E o conto prestava-se bem a essa tarefa. Breve, rápido de escrever e de ler, ele transitava com facilidade pelo grande número de publicações que lhe abriam as portas, atingindo um público amplo e diversificado. Talvez também fosse o gênero mais adequado a mulheres e trabalhadores, que costumam ter menos tempo para se dedicar à escrita. E aos inúmeros jornalistas combativos e experientes que iam se acomodando como podiam ou então sendo expurgados das grandes redações - lembrando que a imprensa estava sob rígido controle, mas que foram poucos, relativamente, os livros de ficção vetados ou recolhidos pela censura.

PERFIL DOS AUTORES: E POÉTICAS DO CONTO

Retomando o exemplo da Ficção, dois em cada cinco autores publicados pela revista eram jornalistas. Em outro projeto importante do período, a coleção de livros “Autores Brasileiros”, da editora Ática, que publicou quase cem títulos entre 1976 e 1986, divididos praticamente meio a meio entre coletâneas de contos e romances, a proporção de autores que atuavam como jornalistas era ainda maior, alcançando os 45%2 2 Os dados sobre a coleção “Autores brasileiros” foram levantados e discutidos por Nóbrega (2004) e posteriormente voltaram a ser analisados por Dantas (2009). . Embora ambas as publicações anunciassem buscar uma pluralidade de perspectivas, as escritoras eram apenas 7,5% da coleção “Autores Brasileiros” e um quarto dos publicados na Ficção - que, aliás, contava com duas mulheres (Eglê Malheiros e Laura Sandroni) entre seus cinco editores. Já os autores negros são uma ausência ainda mais significativa. Nenhum foi identificado na coleção da Ática, que incluía foto do escritor em cada um de seus livros. Na Ficção é mais difícil fazer esse levantamento, mas, entre os nomes conhecidos que aparecem em seus sumários, não há nenhum negro.

Em 1978 surgiram os Cadernos Negros, espaço editorial importante que, enfim, deu visibilidade e consolidou autores que encontravam dificuldade para ser publicados em outros lugares3 3 Para uma história do surgimento dos Cadernos Negros, ver Costa (2008). . Como era lançado apenas um número por ano, alternando poesia e prosa, até o fim da ditadura foram editados quatro volumes de contos, reunindo cerca de 60 narrativas, de 31 autores diferentes. Destes, apenas sete eram mulheres (Antonio, 2005ANTONIO, Carlindo Fausto (2005). Cadernos Negros: esboço de análise. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).

Essas discrepâncias espelham as assimetrias da sociedade brasileira, que distribui de forma desigual não só as ferramentas (como tempo livre e domínio da palavra escrita), mas também a legitimidade para produzir literatura. São a regra, não a exceção, e, apesar de terem diminuído nos últimos anos, elas ainda marcam toda a produção literária brasileira. A ausência de autores de determinado grupo leva à ausência de suas perspectivas sociais nas obras, mas não necessariamente de preocupações relativas a eles, que podem ser assumidas, com menor ou maior sensibilidade, por escritores com outro perfil - sobretudo quando são engajados e combinam literatura com compromisso político. O que, é claro, não elimina a ausência inicial. De qualquer forma, é importante observar a discussão feita no interior das próprias narrativas sobre a ausência de diferentes grupos sociais ou sobre os problemas relacionados a sua representação. Combina-se a isso a necessidade de refletir sobre os recortes efetuados, os estilos e linguagens utilizados para problematizar essas e outras questões.

Talvez o primeiro ponto a ser levantado nessa discussão seja o vínculo estabelecido entre a produção do período e o realismo, lembrando que nossas relações com o mundo são quase sempre mediadas pelas representações, mas que a representação literária da realidade jamais pode ser confundida com a própria realidade - sempre mais complexa, abrangente e imprevisível do que qualquer forma de arte pode ter a ambição de ser. No caso da literatura brasileira dos anos 1970, em que as preocupações políticas e sociais emergiam com mais força pela necessidade de resistir à ditadura (especialmente entre autores engajados, mas também entre seu público leitor), tais problemas colocam-se com ainda maior urgência.

Parte da questão liga-se às dificuldades cognitivas próprias da espécie humana, o que podemos denominar de “as dificuldades de ver”. Por um lado, tendemos a organizar nossa percepção para adequá-la àquilo que já esperamos do mundo - o que pode ser ilustrado graficamente pelo ponto cego que temos bem no centro de nossa visão, mas que não enxergamos porque o corrigimos automaticamente. Por outro lado, há o fenômeno da atenção seletiva, que faz com que, focados em alguns aspectos do mundo que nos cerca, deixemos de enxergar, literalmente, outros, ainda que eles possam ser ruidosos e de grande porte (Chabris e Simons, 2011CHABRIS, Christopher; SIMONS, Daniel (2011). O gorila invisível e outros equívocos da intuição.. Rio de Janeiro: Rocco.).

São constrangimentos simultaneamente biológicos e sociais. Falando sobre perspectiva, o crítico de arte Ernst Gombrich (1995GOMBRICH, Ernst H. (1995). Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes., p. 264) chamava a atenção para o fato de que “o olhar não dobra esquina”. Por isso, ou se imagina o que está lá do outro lado ou é preciso se deslocar ao encontro do desconhecido. E esse é apenas um dos movimentos em direção ao que se pretende representar. Uma vez que tudo que existe no mundo já foi nomeado, descrito, moldado por outras falas, qualquer novo discurso sobre um objeto, uma situação, uma relação tem que entrar em diálogo com o já dito. Ele terá de ingressar em uma rede de julgamentos e entonações prévios, como observava Mikhail Bakhtin (1988BAKHTIN, Mikhail (1988). O discurso no romance. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Unesp, Hucitec. p. 71-210., p. 86), seja para confirmar, seja para discordar ou mesmo para acrescentar algo à discussão.

Assim sendo, nunca é demais lembrar que toda construção literária é artifício, que o escritor fabrica sua realidade com base no que encontra do lado de fora - no mundo ou em outras representações -, descartando, aumentando, sintetizando, dissimulando. Com isso, ele consegue manipular também as emoções do leitor, fazê-lo sentir empatia por determinada personagem, ter raiva de outra, desconfiar daquele que narra ou aderir a seu discurso. O que depende, é claro, da familiaridade do escritor com o universo mental de seu público, a fim de que forneça os gatilhos corretos para as reações que deseja promover. E esse jogo torna-se ainda mais complexo uma vez que o leitor - como já se percebe em Machado de Assis - é constantemente alertado da necessidade de suspeição sobre o que está sendo narrado. Uma suspeição que as narrativas dos anos 1970 trabalham de múltiplas formas e que se estende, cada vez mais, para o próprio escritor, compreendendo-se que sua perspectiva é, necessariamente, limitada.

UM REALISMO A SER PROBLEMATIZADO

O realismo das narrativas da década de 1970, portanto, precisa sempre ser problematizado, mesmo quando nos pegamos reconhecendo personagens e situações descritas, quase exclamando “é assim mesmo” diante delas. Dois dos mais consagrados nomes do conto do período, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, por exemplo, filtram a realidade pelo viés da violência e do cinismo, respectivamente. Os volumes Feliz ano novo, de 1975FONSECA, Rubem (1989a). Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras., e O cobrador, de 1979FONSECA, Rubem (1989b). O cobrador. São Paulo: Companhia das Letras., de Fonseca, são emblemáticos. A brutalidade atravessa todas as suas páginas, mas há diferenças na construção das personagens violentas, de acordo com a classe social a que elas pertencem. Quando o executivo de “Passeio noturno I” e “Passeio Noturno II”, de Feliz ano novo (Fonseca, 1989aFONSECA, Rubem (1989a). Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras.), sai para matar com seu carro luxuoso, descrevendo calmamente cada movimento seu e exaltando a própria perícia para atingir o alvo aleatório sem marcar o carro, ele pode ser rapidamente identificado pelos leitores como um psicopata. O passo seguinte seria imaginá-lo pelas lentes do cinema, como um serial killer, alguém que costuma merecer até alguma simpatia distorcida. Afinal, ele caracteriza-se pela inteligência, ainda que a serviço do mal, e a exibe burlando as investigações de policiais em geral apresentados como meio apatetados.

Já os garotos pobres que vão assaltar, estuprar e assassinar em uma festa de réveillon no conto “Feliz ano novo”, do mesmo livro, são apresentados por um deles mesmo como sujos, barulhentos e animalescos. Não há sofisticação, não há inteligência, só barbárie em estado puro. Tão realistas em seu contexto, os contos remetem-nos diretamente ao noticiário policial. Embora sejam todos eles representações literárias, teoricamente livres de um cotejamento com a realidade, os dois contos dos “passeios noturnos” levam-nos de volta à ficção, ao mundo dos vilões de Hollywood, enquanto “Feliz ano novo” nos encaminha para a experiência do mundo real - ou ao menos do que os jornais nos apresentam da realidade cotidiana de uma vida urbana degradada, como a brasileira. Seria bem diferente se o executivo aparecesse destruindo vidas ao derrubar o mercado financeiro, por exemplo.

Dalton Trevisan, por outro lado, trabalha o cinismo em suas narrativas, fazendo dele uma marca de seu estilo. Suas personagens são um pouco vítimas, um pouco depravadas, um pouco perversas, mas também patéticas. Circulam por um mundo violento, carregando suas frustações e ressentimentos, sua cobiça, mas parecem construídas para que nos sintamos diferentes delas, de alguma forma superiores - nós, leitores, que não vivemos existências tão desprovidas de tudo: de conforto, de intelecção, de sentido. As personagens de Trevisan funcionam, assim, como veículos para o exercício do deboche. São narrativas curtas ou curtíssimas - em geral, de três ou quatro páginas; às vezes, como em 234TREVISAN, Dalton (1997). 234. Rio de Janeiro: Record. (1997), meia dúzia de linhas. Praticamente não é necessário esforço de contextualização para que o leitor situe o ambiente social em que as histórias se desenrolam. Hábil manipulador dos preconceitos compartilhados com seu público, Trevisan insere em cena um objeto, aplica um adjetivo, emprega um substantivo e com isso já localiza suas personagens. Basta um “cachacinha” colocado no momento certo para que, diante do leitor, se evidencie um cenário suburbano estereotipado.

Há, é claro, um narrador intermediando nosso olhar, mas o jogo pactuado com o leitor não é o de estranhamento crítico com relação ao que ele fala. A possível contraposição ao discurso que reifica e naturaliza as hierarquias sociais não se estabelece no próprio texto, dependendo exclusivamente do eventual empenho de quem lê. É assim que a “criadinha”, de “Os três presentesTREVISAN, Dalton (1968b). Os três presentes. In: TREVISAN, Dalton. Mistérios de Curitiba. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record. p. 118-119.”, sofre uma tentativa de estupro e em seguida se entrega ao agressor em troca de “radinho de pilha, caneca de letreiro Parabéns, pacote de bala Zequinha” (Trevisan, 1968bTREVISAN, Dalton (1968b). Os três presentes. In: TREVISAN, Dalton. Mistérios de Curitiba. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record. p. 118-119., p. 119). O diminutivo que qualifica a vítima já sinaliza o desprezo do narrador, que dá ao drama de sua vida um tom indisfarçadamente jocoso. Além de “criadinha”, ela é “doentinha”. É ainda “bobinha”, por alimentar a esperança, obviamente irrealizável para alguém de sua condição, de se casar de branco. Ao mesmo tempo, os produtos pelos quais se vende (rádio, caneca, balas) indicam um universo de consumo barato, carente de toda sofisticação. Não é diferente a moça “vesguinha” que é assediada por um homem casado, em “CertidãoTREVISAN, Dalton (1968a). Certidão. In: TREVISAN, Dalton. Mistérios de Curitiba. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record. p. 79-81.”, também do livro Mistérios de Curitiba. Ela é apenas o mote para fazer graça com o assediador, que em seu depoimento à polícia vai se enredando nas desculpas mais absurdas.

A falta de empatia e mesmo a perversidade presentes nesses contos, e em vários outros livros dos mesmos autores, mantêm os leitores a uma distância segura do objeto da narração. O que não quer dizer que a afeição pelas personagens não possa causar o mesmo efeito, exotizando o outro e marcando sua diferença em relação ao leitor. Isso pode ser observado em um escritor como João Antônio, outro grande nome do conto dos anos 1970, por exemplo. A crítica costuma indicar, com razão, a simpatia profunda com que ele trata o material humano de suas obras: malandros, prostitutas, pequenos traficantes. Isso não impede que, em algumas de suas narrativas, ele recaia no sentimentalismo de classe média, presente quando se trata de integrantes do submundo urbano que não se constituem como ameaças à vida pacífica e confortável das elites.

As personagens de João Antônio não são desvalidas e carentes de vida interior como as de Trevisan. Muito menos são perigosas como as de Fonseca. São sofredoras e bonachonas, dotadas da esperteza prática comum aos pobres e despossuídos que precisam se virar em meio a um mundo social que lhes é hostil. O que dá força a sua obra é a habilidade com que coloca em movimento todo esse arsenal humano. Suas personagens ocupam botequins, ruas e praças, enchem com seu burburinho os espaços por onde trafegam. Os dramas que vivenciam - a miséria, o alcoolismo, o jogo - servem para impulsioná-las em meio à torrente, mas muitas vezes permanecem como mero pano de fundo.

Os melhores momentos de João Antônio são aqueles em que, em vez de apenas compor um painel da fauna urbana brasileira, ele se dedica a conferir substância a suas personagens. São, em geral, contos que contam com a presença de narradores intermediários, que, estando mais próximos do universo narrado, transformam a perspectiva. É o caso “Meninão do Caixote” (1963)ANTÔNIO, João (1963). Meninão do Caixote. In: ANTÔNIO, João. Malagueta, perus e bacanaço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 81-89., incluído no volume Malagueta, perus e bacanaço - obra de estreia que permanece como ponto alto da carreira do escritor. O conto é narrado em primeira pessoa pelo “meninão” do título, um garoto que faz sua transição da infância para a adolescência em volta das mesas de sinuca da Lapa paulistana. Vitorino, um profissional do taco já decadente, fascina e explora o garoto. Apresentado pelo olhar do menino, ele no começo aparece cercado de glamour, em seguida é exibido em sua pobreza e solidão. Mas o protagonista é o jovem, filho de uma costureira e um caminhoneiro. É ele que conta sobre sua própria formação, entre saudoso e benevolente. Mais do que sobre Vitorino, o conto é sobre o impacto do jogador de sinuca - e do ambiente de malandragem decadente que ele personifica - no amadurecimento do protagonista.

O MUNDO DO TRABALHO

Além desse universo de marginalizados, alguns autores buscaram também expor a vivência dos trabalhadores, muitas vezes aspirando a uma representação realista. A categoria “trabalhador”, tal como mobilizada nas representações de escritores vindos de outros espaços sociais, corre sempre o risco de funcionar como abstração, condensando uma multiplicidade de experiências diversas. A sensibilidade à variedade das vivências é maior quanto mais próximo se está daquele estrato social. Assim, enquanto as pequenas variações na vida das classes médias são amplificadas, os mais pobres são vistos como uma massa indiferenciada. É como se a distância que separa as vidas de um médico e de um advogado fosse mais importante do que aquela que há entre um chapista de lanchonete, um cobrador de ônibus ou um pintor de paredes. Para escapar disso é preciso um esforço maior, tanto na percepção das particularidades da vivência das personagens quanto nas escolhas sobre o que e como se quer narrar.

Em “A maior ponte do mundo”, de Domingos Pellegrini (1977PELLEGRINI, Domingos (1977). A maior ponte do mundo. In: PELLEGRINI, Domingos. O homem vermelho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 99-111.), por exemplo, conta-se a história de um grupo de eletricistas convocado a trabalhar sem descanso na iluminação da ponte Rio-Niterói, prestes a ser inaugurada. Da mesma forma que em João Antônio, temos no texto uma profusão muito bem construída de deslocamentos e ruídos, a constatação da violência e da exploração, a descrição de detalhes que acrescentam significado à narrativa, a empatia em relação aos trabalhadores, mas nem a narração em primeira pessoa feita por um deles amplia a ressonância de suas próprias existências enquanto indivíduos. De algum modo, eles acabam se escondendo atrás da categoria: no caso, os eletricistas. Não há exatamente um problema aí, mas uma escolha.

Outros contos da mesma época apontam para possibilidades diversas, ainda que também escritos por autores que, pertencentes à elite intelectual, com profissões de classe média, partem de posição social muito diversa da de suas personagens. Em “Boa de garfoVILELA, Luiz (1979). Boa de garfo. In: VILELA, Luiz. Lindas pernas. São Paulo: Cultura. p. 101-114.”, de Luiz Vilela (1979VILELA, Luiz (1979). Boa de garfo. In: VILELA, Luiz. Lindas pernas. São Paulo: Cultura. p. 101-114.), ou em “Sem rumo”, de Salim Miguel (1973MIGUEL, Salim (1973). Sem rumo. In: MIGUEL, Salim. O primeiro gosto. Porto Alegre: Movimento. p. 61-74.), ambos jornalistas, somos colocados diante de homens desempregados que procuram trabalho. Em suas conversas com ouvintes interessados, eles vão nos revelando seus fracassos e seus sonhos, trazem seu passado e suas particularidades. A relação entre as circunstâncias socialmente estruturadas em que se encontram e a individualidade de suas trajetórias é apresentada de maneira mais aprofundada, revelando novas facetas da situação de privação a que as personagens estão submetidas.

Já em um autor que se tornou jornalista, mas que antes foi operário, como Roniwalter Jatobá, é possível encontrar outra aproximação ao tema. Publicado em 1978, o livro Crônicas da vida operária é todo ele sobre a vida miserável de trabalhadores da indústria, sempre esfolados pelos patrões, oprimidos pelos capatazes, sempre aguardando a próxima demissão. Em meio ao cansaço e ao desânimo, à fofoca nos banheiros e à expectativa de uma vida melhor, eles vão tocando os dias, que se grudam uns nos outros, sem folga. Em poucas páginas, com relatos breves e linguagem enxuta, o autor abre os portões e coloca o leitor dentro da fábrica, acompanhando a perspectiva dos operários, sentindo seus calos, a dor nos músculos no final do dia, a vontade de fazer um serviço bem-feito. É quente, é barulhento e conturbado, é desgastante, mas também muito concreto e humano. E as narrativas incluem ainda suas vidas do lado de fora, a ansiedade com os filhos, os sonhos divididos, a esperança que insiste em perturbar (Jatobá, 2006JATOBÁ, Roniwalter (2006). Crônicas da vida operária. São Paulo: Lazuli.).

As narrativas sobre a experiência negra também se aproximam, muitas vezes, dessa mesma abordagem, enfocando o mundo do trabalho, as dificuldades do desemprego, a fome que ronda, a violência e o racismo que envolvem cada uma das vidas descritas, incluindo as das crianças. É assim no conto “Lembrança das lições”, de Cuti (2016CUTI (2016). Lembrança das lições. In: CUTI. Contos escolhidos. Rio de Janeiro: Malê. p. 103-208.), por exemplo. Publicada originalmente nos Cadernos Negros, em 1981, a história começa em uma sala de aula, com o discurso insensível da professora sobre a escravidão no Brasil, somado aos risos de deboche da turma, e termina com o menino tornado homem, chorando no banheiro da fábrica enquanto lê no jornal a notícia sobre a prisão do único amigo negro dos tempos da escola. Mas também em “Civilização”, de Oswaldo Camargo - igualmente publicado nos Cadernos Negros em 1972 -, em que um músico negro se deixa arrastar para o mundo branco, sempre ciente do preconceito nos olhos dos outros e da exploração do que seria o exotismo de sua presença ali: “Às vezes uma treva me assaltava e eu ficava mais escuro. Tenho fases dessas: sou um sujeito espontâneo na multidão, dou meus gritos contra o ar e cumprimento as coisas; súbito fico preto, no sentido defeituoso; sou um sem-irmão, solitário entre o povo, na rua que gera tumultos, sou um moço desgraçado...” (Camargo, 2016CAMARGO, Oswaldo de (2016). Civilização. In: CAMARGO, Oswaldo de. O carro do êxito. 2ª ed. São Paulo: Córrego. p. 105-115., p. 228).

PERSPECTIVAS DE GÊNERO

O sentimento de ambiguidade e de desconforto com relação aos papéis a que as mulheres estão condicionadas também alimenta parte significativa de sua produção sobre mulheres no período - a começar pelo emblemático conto “Amor”, de Clarice Lispector, publicado bem antes, em 1960, e que continua ecoando na década de 1970. Ali, uma dona de casa interroga-se sobre sua existência, mesmo sem explicitar o problema em palavras, ao sair para as compras e protelar o retorno. Sentimos sua angústia; compartilhamos, ainda hoje, de algumas de suas dúvidas. O conto retrata experiências que, de alguma maneira, são comuns às mulheres numa sociedade como a brasileira, mesmo para aquelas que, ao contrário da protagonista, estejam também submersas na luta diária para conseguir o sustento ou para escapar à violência. Em “Amigas ou a liberdade secreta”, de Sônia CoutinhoCOUTINHO, Sônia (2007). Amigas ou a liberdade secreta. In: SANCHES NETO, Miguel (org.). Ficção: histórias para o prazer da leitura. Belo Horizonte: Leitura. p. 17-24., publicado originalmente na revista Ficção, em 1976, o dilema persiste, agora expresso no encontro de duas amigas de infância em uma cidade grande, para onde uma delas se mudou em busca de liberdade e de independência da família. A tensão do conto estabelece-se nas expectativas que a amiga que ficou no interior, se casou com alguém de recursos e teve filhos deposita sobre a outra, solteira, sozinha e pobre, mas também no discreto prazer que ela parece sentir pelo que entende como o fracasso da outra.

Se no conto de Lispector (2009LISPECTOR, Clarice (2009). Amor. In: LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco. p. 29-41.) as indagações ainda eram internas, aqui o confronto com os diferentes papéis possíveis para a mulher nos anos 1970 estabelece-se de forma mais concreta - elas estão frente a frente, têm um passado em comum, algum afeto, e nenhuma das duas parece estar exatamente feliz. Afinal, as barreiras impostas às mulheres vão além das imposições do casamento e da família. Em “O espartilhoTELLES, Lygia Fagundes (1991). O espartilho. In: TELLES, Lygia Fagundes. A estrutura da bolha de sabão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 37-79.”, de Lygia Fagundes Telles, de 1978, o conflito é ainda mais explícito e dá-se entre avó e neta, com a presença de uma terceira, a empregada doméstica, uma jovem negra que vem de gerações de outras empregadas domésticas da família. O conto, com extensão maior e desenvolvimento de tramas paralelas (que abarcam, tenuamente, as histórias das empregadas e da mãe judia da protagonista), potencializa a tensão entre esses papéis, defendidos pelas próprias mulheres. Nessa narrativa, somam-se os dilemas geracionais, de classe e raciais. A avó, que recebe a menina após a morte do filho e da nora, é a guardiã da moral patriarcal e burguesa. Presa para sempre em seu espartilho, ela tenta controlar a neta e a empregada, mas vai perdendo sua influência. Primeiramente a empregada, que, nascida ali, simplesmente vai embora, sem lhe dar qualquer satisfação, “uma ingrata”. Depois a neta, que não parte, mas deixa claro para si e para a avó que seu poder sobre ela acabou e que novos tempos virão. O futuro da jovem permanece em aberto, para ser compartilhado com outras mulheres e experiências.

Talvez com a Diana de Márcia Denser, que reaparece aqui e ali na obra da autora - às vezes nomeada, às vezes, não - como uma mulher sexualmente liberada que sai em busca de prazer, mesmo que a frustação a acompanhe. São contos em que, sob outra perspectiva e com outras modulações, o debate sobre o lugar da mulher na sociedade brasileira se expande. Em “Hell’s Angels”, de 1981, por exemplo, Denser (2000DENSER, Márcia (2000). Hell’s angels. In: MORICONI, Italo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva. p. 426-433.) coloca em cena uma mulher de 30 anos que, em meio ao trânsito, se depara com o olhar guloso de um belo motoqueiro de 19. Antes de se sentir envaidecida, porém, ela se imagina do lado de fora do carro, no lugar do garoto, “do outro lado da juventude”:

Quando desviei o rosto tinha envelhecido o suficiente a ponto de fixar os olhos embaçados nos ponteiros luminosos mas, empurrando a dor para baixo, sete palmos no inconsciente, senti só irritação pela intromissão do rapazinho que perturbava meus pensamentos, minha solidão, minha maturidade, espiando, sem mais sem menos, para dentro do carro, com a mesma sem-cerimônia que um bebê, escondido debaixo da mesa, espiaria as calcinhas das senhoras (Denser, 2000DENSER, Márcia (2000). Hell’s angels. In: MORICONI, Italo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva. p. 426-433., p. 427).

Eles estabelecem uma relação, mas é ela quem toma as decisões. Mais ainda, parece se enxergar o tempo todo à distância, zombando de si e do rapaz, reposicionando-se em seu papel de gênero como a caçadora, não a caça. A graça do conto está justamente no fato de ela estar ciente da situação, ironizando os próprios movimentos e discurso, sem dar espaço para a culpa ou para a pieguice.

Já os papéis da masculinidade são discutidos, também de forma realista, por Caio Fernando Abreu. Naquele que talvez seja seu livro mais importante, Morangos mofados, de 1982, o conto “Aqueles dois” mostra a intimidade entre dois homens, causando preconceito e deboche na repartição onde trabalham. A possibilidade de uma relação homossexual é apenas latente, mas sua sombra abala todos ao redor, fazendo com que ambos percam o emprego. O conto termina com os dois partindo juntos em um táxi, enquanto o ódio continua sendo alimentado no escritório: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram” (Abreu, 1982aABREU, Caio Fernando (1982a). Aqueles dois. In: ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Brasiliense. p. 126-135., p. 142). Em “Sargento Garcia”, do mesmo livro, um jovem é iniciado sexualmente por um sargento, logo após sua avaliação para o alistamento militar. Entre medo, algum nojo e desejo, o garoto revela-nos mais sobre as dificuldades do sargento de lidar com seu papel de macho do que de sua própria iniciação homoafetiva (Abreu, 1982bABREU, Caio Fernando (1982b). Sargento Garcia. In: ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Brasiliense. p. 71-83.).

SOBRE A DITADURA

Outro tema frequente nos contos do período - como não poderia deixar de ser - foi a ditadura, que se combinava com e refletia em outras formas de autoritarismo. Na maior parte das vezes, o estilo era direto, focando uma situação específica e fazendo com que ela se estendesse para um cenário, político e emocional, mais amplo e compartilhado. É assim em “Alguma coisa urgentemente”, de João Gilberto Noll (1980NOLL, João Gilberto (1980). Alguma coisa urgentemente. In: NOLL, João Gilberto. O cego e a dançarina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 11-19.), por exemplo. O conto, publicado em 1979 na revista Ficção, traz a história em primeira pessoa de um menino que, após uma temporada em um colégio interno, se reencontra e passa a morar sozinho com o pai, um militante de esquerda que aparece e desaparece de tempos em tempos, seja por passar à clandestinidade, seja por estar preso. Um dia o pai volta, anunciando que vai morrer. E acompanhamos o mundo do garoto ruindo de vez em meio ao apartamento sujo e com cheiro de morte. Não há futuro previsto, só um sentimento de absoluto desamparo e a certeza, dele próprio, de que precisa fazer “alguma coisa urgentemente”.

Em “A última palavra”, de Flávio Aguiar (1979AGUIAR, Flávio (1979). A última palavra. In: AGUIAR, Flávio. Os caninos do vampiro. São Paulo: Ática. p. 29-47.), o protagonista também é um menino; mas a trama volta no tempo, instala-se em um colégio de padres no pós-guerras e, ali dentro, em meio às brincadeiras e chacotas, reproduz o aparelho repressivo que permanece ativo no país quando o conto é escrito. Narrado em primeira pessoa pelo garoto já crescido, poderia ser mais uma história de formação sobre as intempéries escolares, as disputas entre amigos e as dificuldades ligadas ao amadurecimento. No entanto, Pedro (o narrador) e Cristiano resolvem mexer com um professor alemão - ao que tudo indica um nazista refugiado no país - fazendo com que salte de seu livro, no meio da aula, uma suástica cuidadosamente dobrada. Pedro denuncia-se, por não conter a gargalhada, e é levado para dar explicações e incriminar o amigo, pois sabem que ele não teria preparado tudo sozinho. Insinuam que os dois têm uma relação “pecaminosa”, ameaçam de expulsão, exibem imagens de tortura, chegam a espremer um de seus dedos com uma máquina até arrancar sua confissão e acabam exigindo silêncio. Os pais ficam sabendo, arma-se um escândalo, os padres são expulsos do colégio, mas a amizade entre os dois garotos encerra-se ali.

Se podemos pensar a existência desses garotos em sua relação com o momento político é porque bastam uns poucos elementos para que a conexão se faça: no primeiro conto, a necessidade do silêncio, do segredo, o pai que desaparece e volta sem um braço; no segundo, o interrogatório, os instrumentos de tortura, os dedos esmagados. Os autores contam com a interpretação do leitor para que as entrelinhas sejam preenchidas, quantas vezes foram necessárias. Se é assim para os textos realistas, é ainda mais verdade para aqueles que fazem uso da alegoria, também bastante mobilizada pelos contistas dos anos 1970. Só que remeter determinadas imagens a algumas situações não significa, na literatura, uma via única. Ou seja, como já dizia Luiz Costa Lima (1983LIMA, Luiz Costa (1983). O conto na modernidade brasileira. In: PROENÇA FILHO, Domício (org.). O livro do seminário. São Paulo: LR. p. 173-218., p. 207), se a alegoria se tornar uma transcrição do tipo “isso significa aquilo”, a narrativa perde sentido. A possibilidade de múltiplas interpretações, até mesmo em diferentes tempos históricos, é o que garante o diálogo com as novas gerações e a permanência do texto para além de seu próprio tempo.

Um exemplo bem concreto disso é o conto “Quando a terra era redondaVEIGA, José J. (1980). Quando a terra era redonda. In: VEIGA, José J. De jogos e festas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 71-80.”, de José J. Veiga, publicado em 1980. Trata-se do relato de um cientista que reflete sobre os indícios - bastante controversos - de que a Terra e tudo o que havia sobre ela um dia tenha tido formato arredondado, e não achatado como no presente da narrativa. Como quase tudo na obra de Veiga, passamos da graça ao horror. Citando especialistas e polêmicas, achados antropológicos e explicações científicas, o narrador chega à teoria aventada por um professor de que a Terra sempre foi redonda e continuava sendo. O fato de tudo ser visto como chato não passaria de uma ilusão de ótica incutida nas pessoas desde o nascimento.

É uma teoria revolucionária. Se verdadeira, abre perspectivas também revolucionárias. Supondo que o que foi feito artificialmente pode ser desfeito, podemos sonhar com o dia em que pessoas de corpo roliço habitarão uma Terra redonda como antes e andarão por ela cada qual com o seu passo, indiferentes a supostos feitos de armas e barões antigos, vendo coisas redondas ou sob as formas reais que tiverem, e talvez também pensando ideias redondas. É uma perspectiva tão alucinante que chega a causar vertigem.

A não ser que - essa ideia me ocorre agora, por influência de Emílio Sorensen e Urbano Santiago - a Terra é redonda desde os primórdios, e ninguém a está vendo chata; todo mundo finge estar acreditando na chatice geral apenas por cansaço e também por preguiça de contestar o que foi decretado (Veiga, 1980VEIGA, José J. (1980). Quando a terra era redonda. In: VEIGA, José J. De jogos e festas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 71-80., p. 80).

O conto, lido hoje, parece uma distopia sobre a vida após a vitória dos terraplanistas, mas certamente não era essa a intenção inicial do autor. Afinal, nos anos 1970 e 1980, essa não era uma questão em debate. Já o autoritarismo, a negação das evidências, o cansaço e a preguiça de contestar o decretado, o “natural”, são discussões bem mais abrangentes e, por isso, a narrativa pode se adaptar aos novos tempos - sem perder sua referência aos mais antigos impasses. “Quando a terra era redonda” é um conto alegórico porque transmite outros sentidos além do literal, mas também é um conto fantástico, uma vez que extrapola os limites da realidade4 4 Para uma discussão sobre o fantástico, ver Todorov (1994). Já para uma tentativa de diferenciação entre o fantástico, o realismo mágico e o realismo maravilhoso na literatura, ver Chiampi (1980). . É muito comum que as duas coisas andem juntas. Essa relação já era aproveitada por Murilo Rubião, que publicou seu primeiro livro em 1947 e prosseguiu nos anos 1970 com O pirotécnico Zacarias (1974), O convidado (1974) e A Casa do Girassol Vermelho (1978). Suas narrativas, concisas, bem-humoradas e constantemente reescritas, trazem o sobrenatural para o cotidiano de suas personagens, revelando um pouco do desencantamento do mundo - o que já é explicitado em “O ex-mágico da taberna minhota” (1998)RUBIÃO, Murilo (1998). O ex-mágico da taberna minhota. In: RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. São Paulo: Ática. p. 7-13., do volume de estreia, quando um homem, enfastiado da magia e sem conseguir se matar, decide se tornar funcionário público.

FANTASIA, ALEGORIA, IRONIA

Outros autores também incorporaram o fantástico em suas obras, ainda que de maneira mais esporádica. É o caso de Lygia Fagundes Telles, por exemplo, que reuniu no volume Mistérios, de 1981TELLES, Lygia Fagundes (1981). Mistérios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., um conjunto de 19 contos do gênero, alguns publicados anteriormente, outros inéditos. Estão ali tanto narrativas claramente influenciadas pelo terror de Edgar Allan Poe, como “Venha ver o pôr-do-sol” (publicado originalmente em 1958), com a história de um homem que marca um encontro com a ex-namorada em um cemitério e aos poucos a conduz para um jazigo e a prende ali dentro. Estão também, todavia, contos como “A caçada” (de 1965), em que um homem vê uma tapeçaria representando uma caça em uma loja de antiguidades e vai se lembrando de sua presença em seu interior, até que é reincorporado ao tecido. Ou “As formigas” (já de 1977), quando o sobrenatural invade o quarto de pensão de duas jovens por intermédio de pesadelos e se materializa nas formigas que remontam, durante as noites, o esqueleto de um anão deixado ali pelo inquilino anterior. Um pouco diferente é o alegórico “Seminário de ratos” (de 1977), que fala mais diretamente ao momento político ao fazer ruir, com humor, a burocracia militar que organiza um grande evento internacional no campo para debater o fim dos ratos - mas são eles, os ratos, que acabam tomando conta do lugar e realizando seu próprio encontro.

Também a ironia, figura de linguagem que nos permite dar um sentido diferente ou mesmo oposto ao que se espera do uso mais comum de um conjunto de palavras ou de situações descritas, é um recurso importante para a literatura. Justamente por conta da torção que exerce, costuma ser acompanhada do humor, mesmo que um pouco sádico, e precisa contar com a cumplicidade do leitor para se efetivar. Se essa conexão falha, o objetivo do texto esfacela-se para aquele que não entendeu a estratégia. Em tempos de censura e de enfrentamento, pode ser um dispositivo inteligente na elaboração discursiva, seja pela possível vedação à compreensão daquele que é o alvo da ironia, seja pelo deboche que continua atingindo-o. Seu uso é muito frequente nos contos do período, abrangendo diferentes situações e marcando a complexidade das relações estabelecidas tanto nos espaços mais íntimos quanto na vida em sociedade.

Luiz Fernando Emediato, no conto “O pastor”, por exemplo, leva-nos de madrugada para a frente de um palanque, junto de “aleijados, cegos, entrevados caquéticos, cancerosos e tristes” (Emediato, 1978EMEDIATO, Luiz Fernando (1978). O pastor. In: EMEDIATO, Luiz Fernando. Os lábios úmidos de Marilyn Monroe. São Paulo: Ática. p. 66-75., p. 67), a fim de ouvir as palavras trovejantes de um pastor que passa o dia berrando sobre o amor de Deus e sobre a necessidade de sofrimento para entrar no reino dos céus. Daí a seção de horrores contra os “impuros e possessos” que, para terem o demônio expulso de seus corpos, são empurrados e açoitados pelos que estão presentes. No final do dia, embora os aleijados não andem e os cegos não vejam, o pastor continua prometendo a cura e amaldiçoando aqueles que “roubam o pão dos humildes” (Emediato, 1978EMEDIATO, Luiz Fernando (1978). O pastor. In: EMEDIATO, Luiz Fernando. Os lábios úmidos de Marilyn Monroe. São Paulo: Ática. p. 66-75., p. 71), ao mesmo tempo que passa a sacola para recolher a contribuição dos crentes. Em alguns aspectos, o conto parece apenas reproduzir um discurso pronto, que se repete incessantemente país afora há bem mais do que as quatro décadas que nos separam de sua publicação; mas é exatamente no intervalo entre o mundo real e sua representação que a ironia se instala e o absurdo se expõe. E, para o leitor mais desavisado, o narrador em terceira pessoa deixa algumas pistas. Ao longo do texto, ele diz que o pastor falou, depois que o pastor gritou e, então, berrou, ganiu, latiu, grunhiu, cacarejou...

Algo semelhante acontece com o conto “Eu, um homem correto”, de Murilo Carvalho, de 1977CARVALHO, Murilo (1977). Eu, um homem correto. In: CARVALHO, Murilo. Raízes da morte. São Paulo: Ática. p. 58-69.. Nesse caso, porém, temos a narração em primeira pessoa de um sujeito que entra em um ônibus e começa a falar de um jovem negro que embarca depois e que, segundo ele, estaria olhando de forma gulosa para as pernas da “professorinha” de uma escola rural. Depois que ela desembarca, seguida do rapaz, o homem incita passageiros, motorista e cobrador a retornar e salvar a moça do ataque que todos passam a ver como certo. A história termina com o linchamento do rapaz negro e com a imagem da professora, rodeada de seus alunos, sem entender o que está acontecendo. Embora pareça que só temos acesso aos acontecimentos pela perspectiva do “homem correto”, o autor insere em seu próprio discurso as informações necessárias para contradizê-lo. Sua narrativa possui como que duas camadas: em uma delas vemos suas opiniões e julgamentos, na outra a descrição do que acontece em volta. Ao leitor, cabe a responsabilidade de interpretar o discurso por inteiro, observar suas ranhuras e contradições, a ironia e a denúncia que brotam desse descompasso.

Um terceiro exemplo seria “O japonês de olhos redondos”, de Zulmira Ribeiro Tavares. Um homem (que narra) recebe a visita de um amigo em sua casa. Enquanto conversam, eles observam os movimentos de um vizinho tintureiro do outro lado da rua. Do nada, o amigo comenta que o vizinho tem um sorriso dissimulado, “como todos os japoneses” (Tavares, 1982TAVARES, Zulmira Ribeiro (1982). O japonês de olhos redondos. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva. p. 488-496., p. 489). Embora o dono da casa vá apontando para o outro o absurdo de sua afirmação, nada o demove. Não importa que os olhos do vizinho sejam azuis e redondos, que seus cabelos sejam ruivos, que seu nome seja Marcus Czestochowska, que ele seja um brasileiro de ascendência polonesa. A tranquilidade com que o sujeito desfia seus preconceitos, expondo estereótipos muito enraizados, é a representação de um determinado modo de olhar e interpretar o mundo, mas é também a construção irônica de um discurso cheio de certezas que não se move um milímetro diante dos fatos e que não se cala diante de nenhuma evidência - discurso que se fortalece e foi ampliado nos últimos anos.

A ironia pode também ser bem mais autorreferencial, ainda que contemple o mundo do lado de fora. Sérgio Sant’Anna, que começou a publicar contos em fins dos anos 1960 e seguiu trabalhando neles até 2020, quando faleceu vítima da COVID-19, é um dos nomes mais representativos quando se pensa em uma ironia que se faz deboche - especialmente voltado para o narrador, mas às vezes também para a própria narrativa, que se desmonta diante do leitor como o artifício que efetivamente é. Em contos como “O espetáculo não pode pararSANT’ANNA, Sérgio (1973b). O espetáculo não pode parar. In: SANT’ANNA, Sérgio. Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 207-212.” e “Marieta e FerdinandoSANT’ANNA, Sérgio (1973a). Marieta e Ferdinando. In: SANT’ANNA, Sérgio. Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 81-89.”, ambos de 1973, por exemplo, as personagens entram em cena como personagens, falam e gesticulam denunciando a farsa que são. No primeiro caso, um ator fica em uma cama no palco, sofrendo com a traição da mulher, em um espetáculo que descreve como vulgar e grotesco e que é aplaudido entusiasticamente há dois anos. No segundo, um casal decide trocar os papéis todos os dias quando o relógio bate meia-noite. Aos poucos, Marieta vai tirando a maquiagem, arrancando a peruca, tornando-se um pouco grosseira, enquanto Ferdinando afina a voz, recolhe a revista feminina que ficou pelo caminho e lamenta o marido que sempre chega atrasado do trabalho. A reiteração dos papéis de gênero, mesmo com a troca entre eles, joga o foco para o absurdo da situação.

HERMETISMO E SILÊNCIO

Há ainda toda uma produção mais hermética, contos que se fecham sobre si para reelaborar a própria linguagem, buscando dar conta de experiências intraduzíveis, de sentimentos que parecem não caber no escopo da narrativa usual das coisas. É assim com Hilda Hilst, quando resolve deixar de lado os poemas e começar a escrever prosa. No conto “Fluxo”, de 1970, por exemplo, vamos sendo engolfados por palavras. Palavras desencontradas, abusadas, meio sujas até, palavras que revelam angústia e dor para logo em seguida virar deboche amargo outra vez. Estamos, afinal, diante de um escritor perdido, ou preso na página, encarando para sempre o filho morto:

Eu sempre disse a Ruisis que não devíamos ter filhos. Que fatalmente morreriam. Não sei, de encefalite, de tédio, não sei. Ruiska, por que você inventou esse filho? E por que resolveu matá-lo tão depressa? Os laços de carne me chateiam. São laços rubros, sumarentos, são laços feitos de gordura, de náusea, de rubéola, de mijo, são laços que não se desatam, laços gordos de carne. O galo está cantando, o carneiro está balindo, a vaca está mugindo, Ruisis está chorando e meu filho está deitado mudo, no seu pequeno caixão, no centro do pátio de pedras perfeitas. Vou à cozinha, tomo um copo d’água, como um pedaço de bolo, quero dizer, mastigo um pedaço de bolo não que eu esteja comemorando, apenas mastigo um pedaço de bolo, pedaço de bolo que o meu filho gostaria de mastigar, mastigo por ele e olhem, comemoro sim, comemoro essa pequena vida que de tão perfeita exauriu-se, de tão perfeita... (Hilst, 2018HILST, Hilda (2018). Fluxo. In: HILST, Hilda. Da prosa. São Paulo: Companhia das Letras. p. 13-53.).

Já Samuel Rawet - que publicou seu primeiro livro, Contos do imigrante, em 1956RAWET, Samuel (1956). Contos do imigrante. Rio de Janeiro: José Olympio. e prosseguiu com narrativas curtas até o fim de sua vida -- modula suas histórias não pelo fluxo ininterrupto de palavras, mas justamente por sua contenção. Suas personagens quase não falam, mesmo que imersas na dor ou na raiva, e seus narradores tampouco tentam explicá-las, apenas mergulham em busca de seus sentimentos, trazendo sua perspectiva muitas vezes confusa e desencontrada. Em “O riso do rato”, publicado em 1976, na revista Ficção e depois no volume Que os mortos enterrem seus mortos, de 1981, um homem sai para matar outro. Ele tem certeza do que precisa fazer e, como o narrador nos descreve a possível vítima com a repugnância que a personagem sente por ele, só aguardamos que nos revelem a razão concreta para o ato. Seu filho, amigo do filho do outro e de seu irmão mais novo, um rapaz com retardo mental, relata, abalado, ter visto o homem abusar sexualmente do garoto. Sentado diante do abusador em um restaurante, olhando-o enquanto ele, com seu sorriso de rato, “cortava mais uma fatia de maminha de alcatra e revolvia-a na farofa”, a personagem dá-se conta de que não iria matá-lo, que não havia o que fazer, porque “a vingança só tinha sentido quando envolvia a condição humana” (Rawet, 1981RAWET, Samuel (1981). O riso do rato. In: RAWET, Samuel. Que os mortos enterrem seus mortos. São Paulo: Vertente. p. 7-16., p. 11).

Por fim, a própria estrutura do texto pode, de algum modo, aprisionar ou dar abrigo ao leitor. Osman Lins, em Nove, novena, publicado em 1966, já experimentava diferentes possiblidades nesse sentido. Num dos contos do volume, “Retábulo de Santa Joana Carolina”, texto relativamente longo que conta a difícil história de vida de uma mulher no sertão nordestino, o autor recorre à arte e aos mitos, compondo uma narrativa em 12 mistérios que percorrem as estações e os meses, anos e décadas, do nascimento de Joana até sua morte. Não há exatamente tensão ou unidade de efeito, como defendia Edgar Allan Poe (1976POE, Edgar Allan (1976). Review of Twice told tales. In: MAY, Charles E. (org.). Short story theories. Atenas: Ohio University Press. p. 218-231.), pois a narração muda de lugar e de pessoa. O que a organiza é a busca de um encantamento que impeça o leitor de se afastar. Isso porque a história de Joana Carolina (inspirada na avó do autor) vai se descolando de sua realidade bruta, para enfim se tornar literatura:

Quantas vezes o mundo, para ela, foi estéril e cegante, uma cidade de sal, com casas de sal, fontes salgadas e avenidas de sal? Quantas vezes dar um passo à frente, viver mais um ano, um dia, um instante, foi como avançar sobre afiadas lâminas de faca? Quantas vezes sua vida pareceu um rio nas primeiras chuvas, cheio de árvores arrancadas, de baronesas vindas de açudes e remansos, laçando pés e mãos, entrando pela boca? E sempre conseguiu entrever afinal por entre as malhas de cegueira, fincar os pés sobre o aço cortante, desenredar-se das águas, dos enleios (Lins, 1994LINS, Osman (1994). Retábulo de Santa Joana Carolina. In: LINS, Osman. Nove, novena. São Paulo: Companhia das Letras. p. 72-117., p. 115).

De forma semelhante, mas lidando com outros elementos, Roberto Drummond, em “A morte de D. J. em Paris”, de 1975, faz seu protagonista, um professor de francês, viver entre a Paris e a Belo Horizonte dos anos 1960. O conto, que começa após sua pretensa morte, é dividido em sete atos. Conta com a participação de depoimentos de amigos e da irmã, com as cartas e telegramas que ele teria enviado de Paris, celebrando a vida e o encontro com a Mulher Azul, que “fala com uma voz de frevo tocando” (Drummond, 1975DRUMMOND, Roberto (1975). A morte de D. J. em Paris. In: DRUMMOND, Roberto. A morte de D. J. em Paris. São Paulo: Ática. p. 73-99., p. 75) e com quem ele sonha desde sempre. Ao penetrar no conto, o leitor precisa decidir se quer acreditar que D. J. realmente foi para Paris, perdendo-se em ruas e cafés e pontes e jardins, ou se apenas se trancou em seu sobrado, colando cartazes turísticos e pôsteres da cidade pelas paredes. Entretanto, também é possível deixá-lo ali, entre um lugar e outro, sempre na expectativa do vir a ser.

O REFLUXO

Depois dessa onda dos anos 1970, que chegou até o início da década de 1980, o conto, por alguma razão, foi desaparecendo das livrarias. Os editores falavam da falta de interesse dos leitores e estes, talvez, julgassem que não estavam encontrando mais nada de muito relevante nas prateleiras. Aos poucos o cenário foi mudando, mas o retorno das narrativas curtas só se tornou realmente visível a partir da metade da década de 1990, encerrada a ditadura e com o cinema nacional também sendo retomado. Até Lygia Fagundes Telles, que não lançava um volume de contos desde 1978, publicou o belo A noite escura e mais euTELLES, Lygia Fagundes (1995). A noite escura e mais eu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. em 1995. Fora os veteranos, que aqui e ali ensaiavam uma reentrada no gênero - como Silviano Santiago, que estreou com um livro de contos em 1970, chamado O banqueteSANTIAGO, Silviano (1970). O banquete. Uberaba: Saga., e que só em 1996 voltou às narrativas curtas com Keith Jarrett no Blue NoteSANTIAGO, Silviano (1996). Keith Jarrett no Blue Note. Rio de Janeiro: Rocco.; ou Rubem Fonseca, que estendeu um intervalo de mais de dez anos (e muitos romances) entre O cobrador (1979)FONSECA, Rubem (1989b). O cobrador. São Paulo: Companhia das Letras. e Romance negro (1992)FONSECA, Rubem (1992). Romance negro. São Paulo: Companhia das Letras. -, um número expressivo de novos contistas foi entrando no mercado. Em 1998 surgiu até uma nova revista dedicada ao gênero, Ficções, que mimetizava o modelo da Ficção dos anos 1970, ainda que não reivindicasse a continuidade. Mais tímida que sua antecessora, era publicada pela editora Sette Letras, com periodicidade semestral, e vendida apenas em livrarias. Alguns anos depois se tornou online e desapareceu.

Outro sinal do fortalecimento do gênero no Brasil a partir de meados de 1990 foi o sucesso da antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, organizada por Italo Moriconi e publicada em 2000MORICONI, Italo (org.) (2000). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva.. O livro, dividido por períodos, abre-se com “Pai contra mãe” de Machado de Assis, publicado originalmente em 1906, e encerra-se com o até então inédito “Cenas de descobrimento de Brasis”, de Fernando Bonassi. A publicação de texto inédito é algo inusual para uma coletânea que se propunha trazer os “melhores” contos dos últimos cem anos, mas certamente assinala o esforço para dar destaque a novos escritores. No ano seguinte, Nelson de Oliveira, ele próprio um jovem contista que se destacara com a publicação de suas primeiras coletâneas (Os saltitantes seres da lua, em 1997, e Naquela época tínhamos um gato, em 1998), lançou Geração 90: manuscritos do computadorOLIVEIRA, Nelson de (org.) (2001). Geração 90: manuscritos do computador. São Paulo: Boitempo., apresentado como uma reunião dos “melhores contistas brasileiros surgidos no final do século XX” e que trazia nomes como Marçal Aquino, Amilcar Bettega Barbosa, Marcelino Freire e Marcelo Mirisola. Entre os 17 autores contemplados, aparecia uma única mulher, Cíntia Moscovich.

A ausência das mulheres foi rapidamente apontada pela crítica e Luiz Ruffato, que também fora incluído na antologia de Oliveira, lançou, em 2004, a coletânea 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileiraRUFFATO, Luiz (org.) (2004). 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de Janeiro: Record.. O sucesso da publicação permitiu que ele organizasse, em 2005, Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileiraRUFFATO, Luiz (org.) (2005). Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de Janeiro: Record., incluindo desde nomes de algum modo já conhecidos do público leitor, como Adriana Lisboa e Elvira Vigna, por exemplo, até outros que ganhariam destaque nos anos seguintes, como Andréa del Fuego, Maria Valéria Rezende e Tatiana Salem Levy. A grande maioria segue produzindo e publicando, mesmo que em outros gêneros e ainda que com alguma dificuldade de divulgação.

Na esteira do sucesso dessas antologias, muitas outras foram surgindo - fosse para retomar o que havia sido feito antes, como no volume Ficção: histórias para o prazer de leitura, organizada por Miguel Sanches Neto em 2007SANCHES NETO, Miguel (org.) (2007). Ficção: histórias para o prazer da leitura. Horizonte: Leitura., que reunia 50 contos publicados na revista Ficção dos anos 1970 (e os sumários de todos os números da revista), ou a coletânea dos Cadernos Negros, organizada por Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa (2008RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.) (2008). Cadernos Negros: três décadas. São Paulo: Quilombhoje/Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.) (que incluía também ensaios e poemas); fosse para contemplar temas específicos ou a perspectiva de grupos sociais com pouca visibilidade no campo literário, como a comunidade LGBT, as autoras mulheres ou os escritores que vivem nas periferias, por exemplo. Seleções de contos sobre a ditadura de 1964-1985 - ou, mais recentemente, sobre o golpe de 2016 ou mesmo sobre a pandemia de coronavírus - também têm espaço.

Hoje, muito antes de aparecer em uma edição impressa, os contos podem circular pelas redes sociais, serem abrigados em sites ou revistas online, enviados por e-mail ou WhatsApp. A ideia é que recebam, assim, um primeiro olhar dos leitores. É possível que alguns se percam neste trânsito, esvaziando-se de sentido conforme os dias passam, tornando-se desnecessários, caricatos, datados. Não obstante, há aqueles que resistem, que vão acumulando significados enquanto atravessam as telas, as vidas dos outros. Talvez esse seja, afinal, um talento que sempre foi necessário para um bom contista, mas que agora assume contornos mais precisos - a capacidade de reconhecer que nem tudo que ele produz exige a permanência.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), reunidos e discutidos em Reimão (1993REIMÃO, Sandra Brasil (1993). Brasil, anos 70: mercado editorial e literatura ficcional brasileira. Comunicação e Sociedade, n. 20, p. 75-88. https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v0n20p73-88
    https://doi.org/https://doi.org/10.15603...
    ).
  • 2
    Os dados sobre a coleção “Autores brasileiros” foram levantados e discutidos por Nóbrega (2004NÓBREGA, Renata (2004). A narrativa brasileira dos anos 1970: um mapeamento a partir da coleção “Autores Brasileiros”. Relatório final de Iniciação Científica. Brasília: Universidade de Brasília.) e posteriormente voltaram a ser analisados por Dantas (2009DANTAS, Larissa de Araújo (2009). Espaços de visibilidade: trajetórias possíveis no campo literário brasileiro. Dissertação (Mestrado em Literatura) - Universidade de Brasília, Brasília.).
  • 3
    Para uma história do surgimento dos Cadernos Negros, ver Costa (2008COSTA, Aline (2008). Uma história que está só começando. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (org.). Cadernos Negros: três décadas. São Paulo: Quilombhoje/Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. p. 19-39.).
  • 4
    Para uma discussão sobre o fantástico, ver Todorov (1994TODOROV, Tzvetan (1994). Introdução à literatura fantástica. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva.). Já para uma tentativa de diferenciação entre o fantástico, o realismo mágico e o realismo maravilhoso na literatura, ver Chiampi (1980CHIAMPI, Irlemar (1980). O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2022
  • Aceito
    13 Out 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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