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Délcio Teobaldo - Pivetim São Paulo: Edições SM, 2009.

Teobaldo, Délcio. - Pivetim São Paulo: Edições SM, 2009

Pivetim, romance de estreia do mineiro Délcio Teobaldo, vencedor do 4º Prêmio Barco a Vapor de 2008 e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) 2009, na categoria Literatura Infantil e Juvenil, é um livro cujo título antecipa ao leitor o teor narrativo. Por ele pode-se intuir que o autor se propõe a denunciar as condições desumanas de muitas crianças que moram nas ruas das grandes cidades brasileiras. É de conhecimento geral, em razão da flagrante realidade social, o sentido mais corrente da palavra pivete: “menino ladrão e/ou que trabalha para ladrões”, de acordo com o Aurélio. Contudo, o diminutivo-singular do substantivo que dá título ao texto evidencia o foco particularizado adotado pelo ficcionista na abordagem do tema e, de saída, o põe a salvo do tom panfletário, encontradiço em projetos muitas vezes bem intencionados mas frustrados quanto à substância literária.

A narrativa em questão mescla um ponto de vista de nuance documental, denunciando o problema da fome e da violência física e moral que acomete grande parte da sociedade urbana, à perspectiva ingênua da criança ao lidar com a realidade. Pivetim traz passagens de sarcástica ironia assim como de crítica evidenciada no discurso e direcionada a um alvo específico. Para o primeiro caso, um bom exemplo é a passagem que trata do garoto cujo apelido é Craque Quente, e que chega a surpreender o leitor. Como a expressão nomeia o capítulo, poder-se-ia pensar que aí teríamos posta em questão a realidade dos moradores de rua usuários de craque, porém ela diz respeito a um dos truques muito usados pelos garotos de rua, o de trocar imediatamente a roupa após algum delito, para não ser pego pela polícia. A referência à personagem Super-Homem deve-se à rapidez do garoto na troca de roupa e à agilidade na fuga, mas sua sina nem de longe é a de salvar o mundo, tampouco a de ser salvo de sua irremediável condição. A referência à ficção de cunho fantasioso reitera o matiz que delineia a vida de Pivetim, consequentemente o conflito que sustenta a narrativa, assim como a oscilação entre realidade e fantasia imprime ao texto certo afrouxamento.

O contraste fortuito próprio da ironia se faz ver também nas cores das camisetas usadas pela personagem Craque Quente, numa franca referência à bandeira nacional, na cena de sua morte: “A bala acertou o peito, mas, antes de atingir o coração, furou quatro camisetas: verde, amarela, branca e azul” (p. 36). Mais contundente e sem qualquer capa semântica é a crítica à polícia: “Com os home é assim: primeiro batem, depois apuram” (p. 37), ou a percepção do protagonista: “Das duas, uma: ou a gente vira cidadão, ou acaba bandido” (p. 160). Há também a referência manifesta ao sociólogo Betinho, defensor dos direitos humanos e conhecido pelo trabalho social contra a fome, materializado principalmente na campanha “Ação da cidadania contra a miséria e pela vida”, que no romance comparece como “São Betinho”, apelido daqueles que gostam de fazer caridade, alimentando os pobres. Certamente por considerar que se trata de obra que tem no horizonte o público juvenil, os editores inseriram uma nota de rodapé explicitando a citação ao sociólogo. Um pouco mais velada é a possível alusão, assim ao leitor é facultado interpretar, a outra figura brasileira, D. Zilda Arns, pediatra, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, personificada, no romance, na psicóloga Maria Zilda Couto, coordenadora da ONG “Ó que saudades que eu tenho da aurora da minha vida”, cujo foco é o trabalho infantil (p. 127).

A abordagem, pela literatura, da infância sofrida em decorrência da orfandade, da pobreza ou da vida nas ruas não é novidade. Oliver Twist encarna essa personagem e, apesar de ter vindo à cena literária há mais de um século, ainda comove leitores literários e espectadores da sétima arte, o que pode ser confirmado com a última versão cinematográfica na lente do diretor Roman Polanski, em 2005. O que faria manter aceso o interesse por questões humanas já retratadas, senão o trabalho estético engendrado sobre elas? Como já foi dito, o título da obra objeto desta resenha adianta a matéria social da narrativa, mas a linguagem adotada pelo autor, que recupera com propriedade a dicção dos moradores de rua, bem como o uso da perspectiva narrativa em primeira pessoa estabelecem um jogo de aproximação e distanciamento que, consequentemente, faculta a experiência estética do leitor. Como as personagens Pivetim e Oliver Twist, infelizmente, há muitas crianças no mundo, mas a transposição da realidade para a ficção e o uso da substância simbólica para retratar o real permitem ao leitor alcançar o protagonista em sua subjetividade e construir, mediante essa relação, uma visão do outro e do mundo.

Mas como tratar de assunto tão pungente como a fome de uma criança sem cair no pieguismo, consequentemente, sem perder as tintas da ficção e agradar ao jovem leitor? As incursões do personagem no universo da fantasia - não como resultado do uso de substâncias alucinógenas, mas como vazão à necessidade de devaneio própria da infância - vêm marcadas no discurso poético, dando relevo ao universo infantil. Uma passagem narra o encanto com os cacos de vidro pontudos e de todos os tamanhos e cores, refletindo sob o sol e guardando o lado mais bonito da fantasia dos moleques. O capítulo intitulado “Pipa voada” explica, por meio de uma comparação com significativa força lírica, que para uma criança deixar a casa é tal como uma pipa desgarrada, depois do corte do cerol: “Ela vai pra lá, vem pra cá, cai aqui, cai ali (...) Depois fica sabendo que foram levadas pelo destino. Alguém pegou pra empinar noutro lugar ou caíram no asfalto e foram estraçalhadas pelos carros” (p. 39). O diálogo com a literatura comparece na referência à história de tradição oral “Joãozinho e Maria” (p. 124), numa cena que causa mal-estar tanto no protagonista quanto no leitor. Rememorada a história que lhe fora contada pela avó num momento em que ganhara uma refeição caprichada, a lembrança faz Pivetim associar o intento da bruxa - alimentar os irmãos para devorá-los na ceia de Natal - à sua situação de desgarrado da família e refém na selva da cidade grande, e isso o faz vomitar tudo o que comera.

Mas a necessidade de comida é o grande problema de Pivetim, o que o obrigou a sair de casa, como Joãozinho e Maria. Não é possível permitir-se nenhum outro desejo a não ser o de matar a fome. Essa é a lei da rua, todavia, desde antes, quando ainda tinha uma família e um barraco para morar, o alimento do corpo era o determinante para a felicidade, substantivo abstrato e próprio, porque nome da avó, que com sua pensão garantia a comida da família. Desde cedo aprendera que “se a felicidade existe, ela se esconde nas bolsas” (p. 15). A bolsa da avó foi a garantia de comida e felicidade, até que ele, Pivetim, incorresse na falta que se transformaria em peso de consciência, única tralha que carregava consigo, certamente para o resto de sua vida: em troca de um pedaço de doce, facultara ao cunhado a posse da bolsa da avó e a consequente desgraça da família, da qual decorreram a morte daquela que mais o amava, a avó, e o abandono dos pais.

A fome perpassa toda a narrativa, é o mote, introduz o leitor na narrativa: “- Assó, a gente faz o cerco. Não tem cão, maluco! Confia não? Tô aqui, mermão, Limpeza!” (p. 7). Essa fala, que abre o texto, é da própria fome, gritando com o moleque. E a capacidade de alimentar é dada aos velhos, que aparecem em várias situações como coadjuvantes e parceiros da criança. Há o velho que alimenta os pombos; há a Dona Alfredinha, a Santa Betinha dos gatos, que para o protagonista “é uma gata colorida que o domingo criou pra alegrar a vida da gente” (p. 152); há o Pernambuco, cozinheiro mais velho do restaurante Adegas; por fim, há Seu Nini, dono da banca de revistas, que franqueia jornais e alguns livros a Pivetim, os primeiros, para a informação mais urgente - a ação da polícia nas ruas -, os outros, para que ele alimente o espírito, adquira conhecimentos sobre algo que o atormenta, a transformação da criança em homem.

Associado ao medo de não conseguir comida, há o seu maior conflito: o medo de crescer, de virar sujeito-homem, daí o receio de encontrar pelos no rosto, pois não se sente preparado para crescer: “Se a vida de um de menor é barra, a de um de maior é pior ainda Você tem que se entender com os home, perde o São Betinho e paga dobrado pelo que faz” (p.159). Seguido à barba, vem o gogó, o engrossamento da voz, as espinhas, informara-o Maravilha. Depois, a descoberta da sexualidade, nos livros dados por Seu Nini e no lençol sujo de manhã. Resta a Pivetim aceitar que está se tornando sujeito-homem, com a crença de que não está sozinho. Há no protagonista a consciência de que a maldade resulta da falta de carinho, ao narrar o caso do garoto gordo e malvado que só teria ganhado sobras de carinho, e no fecho de sua história: “Sozinho? Duvido. De algum ponto desta cidade, Carol olha por mim.” (p. 174).

Cumpre uma última observação: a rua também está no projeto gráfico da capa, elaborada a partir de um trabalho de um grafiteiro. Essa observação interessa, uma vez que Pivetim é uma narrativa que compõe um projeto de formação do leitor juvenil. Assim o esperamos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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