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Apresentação

E que cada lavadeira
E cada intelectual
Desmantelem as fronteiras
Que tanto nos fazem mal
Que cada doido ou minino
A cada bater do sinal
Anuncie o carnaval!
Salete Maria da Silva

Poéticas da oralidade são, antes de tudo, expressões que, compostas dentro do suporte corpo, se espalham pelos espaços até onde a voz consegue ecoar. Mas a voz não para por aí. Ela passa a outros corpos que ecoam mais uma vez a voz escutada e presenciada. E assim a voz primeira vai sendo transmitida, e muitas vezes recriada, de boca em boca, de ouvido em ouvido. De corpo a corpo. São assim as cantorias, os repentes, os aboios, os cocos, os cordéis. E é também o corpo que se inscreve como suporte dessas poéticas que as escreve em folhas manuscritas, em folhetos, em livros.

Depois que saem do corpo e ganham o mundo, essas poéticas defrontam-se e confrontam-se com outras, vindas de diferentes corpos, lugares e tradições. São encontros que poderiam ser valorizados até pela sua diversidade e sua capacidade de transformação, mas muitos limites e interdições se impõem aí - construídos por um campo de controle, avaliação e legitimação. Uma das fronteiras impostas é a que separa a voz da escrita, que faz com que as produções advindas da escritura sejam sempre consideradas superiores àquelas que reverberam a voz.

Para além da desvalorização da oralidade no contexto da literatura, ainda há a desqualificação dessas poéticas, adjetivadas como populares não para reforçar a importância da poesia e da produção artística do povo - que, longe de um contexto de produção hegemônica, existe e resiste -, mas para mantê-las à margem da cultura legitimada e, assim, dos estudos acadêmicos, ainda bastante avessos à abertura de seus parâmetros críticos.

No rastro dessas poéticas nômades que viajam da boca para os ouvidos e da mão para os olhos, dentro de seus múltiplos suportes, nasceu o Colóquio internacional sobre poéticas da oralidade e cordel, uma tradição que se refaz, realizado na Universidade de Brasília em março de 2010. O encontro foi organizado pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea - que tem como uma de suas linhas de atuação a análise dos mecanismos de inclusão, exclusão, valorização e desvalorização no campo literário brasileiro - e reuniu alguns(mas) dos(as) mais importantes pesquisadores(as) da área, vindos de várias instituições do Brasil e do exterior, um segundo grupo que compartilha as dificuldades e alegrias do estudo dessa poética.

O objetivo era justamente estabelecer uma discussão sobre os novos paradigmas para os estudos na área, bem como a respeito dos deslocamentos de uma tradição que vem se apoderando de variados suportes para perpetuar-se.

Este número da revista apresenta-se, então, como resultado desse Colóquio, abrangendo diferentes enquadramentos teóricos e diferentes modos de pensar as poéticas da oralidade. Diferenças essas que se encontram e convergem na preocupação de pensar essas expressões artísticas a partir de outros pressupostos teóricos e metodológicos, que incluam a escuta das vozes dos(as) poetas e que assinalem - por que não? - um compromisso com espaços de produção poética e acadêmica mais amplos e abrangentes.

Nesse sentido, Ria Lemaire abre a discussão a respeito do cordel como uma tradição que se refaz ao longo dos tempos, por meio das mudanças de seus suportes, desde a oralidade, passando pelo manuscrito e chegando à escrita. Paralelamente a essas mudanças, tem-se uma outra tradição sendo construída: a dos estudos sobre o cordel, que foram sendo refeitos por uma elite intelectual para, muitas vezes, cercear e dominar a voz popular.

Um outro olhar sobre a produção de folhetos marca o texto de Maurílio Antonio Dias. A partir do estudo das práticas nas gráficas de folhetos e da observação da centralidade da figura do poeta-editor no processo de produção, ele nos mostra que a editoração dos folhetos não é “inculta” ou “improvisada”, como já defenderam muitos pesquisadores, mas possui uma complexidade própria, que implica a organização das relações de produção de seu mercado editorial. Ainda quanto à editoração do folheto, mas atenta à questão do cordel dentro de um sistema editorial, Vilma Mota Quintela trabalha o apoderamento dos recursos tipográficos pelos poetas, o que lhes permitiu a inserção no mercado cultural nacional de publicações e, com isso, o desenvolvimento tanto de sua poética quanto de seu sistema literário.

Bulindo nos discursos de intelectuais a respeito do cordel, Bruna Paiva de Lucena problematiza a construção de cânones a partir da análise da Coleção Biblioteca de Cordel da editora Hedra, observando as marcas das exclusões sempre presentes, mas alcançando também a ideia de apoderamento dos poetas de um suporte hegemônico e oficial para a publicação de sua obra. Processo semelhante ao da utilização das tipografias.

Estendendo a discussão à questão da migração, Luciany Aparecida Alves Santos trabalha cordéis produzidos em São Paulo e Rio de Janeiro, entre as décadas de 1950 e 1980, por poetas migrantes nordestinos. Tendo como norte a relação entre deslocamentos geográficos e deslocamentos culturais, a autora revela que o cordel como tradição se refaz em diferentes espaços junto com seus poetas. Rosilene Alves de Melo também acompanha os trânsitos do cordel, adentrando nos processos “envolvidos na feitura do cordel como arte e como linguagem que se desdobra - posto que é camaleoa - em múltiplos suportes, usos e lugares”.

Joseilda de Sousa Diniz, pesquisando a poesia e a trajetória de José Alves Sobrinho, debruça-se sobre a relação entre oralidade e escrita e entre memórias e testemunhos, que nos contam a respeito de um dos mais importantes capítulos da história do cordel e da cantoria brasileiros, tanto em relação ao suporte dessas poéticas quanto às habilidades dos poetas. Voltando-se para o cordel em outro suporte, a película cinematográfica, Sylvie Debs, traz uma discussão a respeito do filme O romance do vaqueiro voador, de Manfredo Caldas, que foi construído a partir do cordel homônimo de João Bosco Bezerra Bonfim, que, por sua vez, inspirou-se no documentário Brasília segundo Feldman, de Vladimir Carvalho. São estudadas as trocas e as interfaces entre os gêneros poéticos.

A análise do discurso também se faz presente em dois trabalhos. Simone Mendes trabalha o conceito de cordéis midiatizados em folhetos que versam sobre a temática da morte a partir de conceitos como ethos, pathos e lógos. Já João Bosco Bezerra Bonfim investiga a utilização de diversas vozes no texto do cordel como um recurso da linguagem para conferir maior dramaticidade e vivacidade às narrativas.

Por fim, quatro artigos lançam discussões a respeito da cantoria. Com um trabalho mais teórico, João Miguel Manzolillo Sautchuk investiga as habilidades de repentistas nordestinos, em especial o improviso, as regras e o ritmo poéticos, que culminam no encanto e no encontro entre os poetas e seus ouvintes. Andréa Betânia da Silva, por sua vez, investiga os festivais como outro suporte à cantoria, que transitou inicialmente apenas entre os pés de parede, mas que agora participa de novas dinâmicas culturais.

Retomando uma longa e distante tradição, Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne caminha entre as trovadoras provençais e as repentistas nordestinas atuais, refletindo sobre as poéticas do desafio, sejam elas da cantoria ou do repente. Já Francisca Pereira dos Santos constrói uma historiografia até então subterrânea: a das cantadoras-repentistas do século XIX, que, a despeito de situações de adversidade, existiram e cantaram, desafiando o paradigma estabelecido às mulheres desse tempo.

Para encerrar a conversa, ou para abrir novas frentes de discussão, temos os versos do poeta José Alves Sobrinho, que nos alerta sobre a difícil relação estabelecida desde sempre entre poetas e pesquisadores, essa “gente de fora” que “já pergunta insinuando/o que é que quer saber”. O poeta vislumbra, ao lado de novos interlocutores - já empenhados em construir novas maneiras de se pensar essa produção -, a possibilidade de se estabelecer um outro universo de trocas com os pesquisadores, um espaço onde a relação sujeito-objeto seja abandonada, para que se permita o surgimento de uma relação efetiva entre sujeitos das palavras.

Brasília, maio de 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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