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Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo iconográfico e lexical

Resumos

A língua brasileira de sinais (Libras) utilizada pela comunidade surda no Brasil é uma língua de modalidade espaço-visual cuja representação gráfica comumente se dá por meio de imagens em dicionários impressos e em meio digital. No Brasil, o primeiro dicionário de língua de sinais de que se tem notícia é a Iconographia dos signaes dos surdos-mudos, que data de 1875. A partir da elaboração dessa obra, outras surgiram e foram se constituindo como materiais de referência para o ensino e o aprendizado da língua em questão. O presente trabalho objetiva, com base em dicionários de Libras que servem de referência, analisar e discutir a constituição histórica do gênero no Brasil a partir da identificação de características e fragilidades em relação à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem interferir no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de graduação. Do ponto de vista da abordagem do problema, esse estudo é qualitativo e caracteriza-se como documental. Foram selecionados cinco dicionários de Libras, pautando-se no critério da indicação bibliográfica em disciplinas de Libras em cursos de graduação. As categorias estabelecidas para a análise priorizaram a questão da representação das imagens (a iconografia) e os aspectos lexicais que as compõem. Por meio do estudo, observou-se que as obras analisadas apresentavam características bastante semelhantes em relação à apresentação, à constituição das imagens e aos aspectos lexicais, desafiando os profissionais que trabalham com esse gênero de ilustração.

Língua brasileira de sinais; Surdez; Dicionários


Brazilian sign language as used by the deaf community in Brazil is a visual spatial modality language; graphic representations of this language usually consist of images in printed and digital dictionaries. In Brazil, the first known sign language dictionary is the Iconographia dos Signaes dos surdos-mudos printed in 1875. After this work, other dictionaries followed and they became part of the reference materials used for teaching sign language. Based on the Libras dictionaries that serve as references, the present study aims to analyze and discuss the historical constitution of this publication genre in Brazil. Characteristics and weaknesses related to the iconography and lexicography of these publications are identified as aspects that may interfere with learning signs in undergraduate courses. Regarding how we have approached the theme, this is a qualitative study, supported by documentary methodology. Five Libras dictionaries were selected, based on the criteria that these publications have been selected as bibliographic references in Libras courses at the undergraduate level. The categories for analysis mainly focus on issues related to the representation of the images (iconography) and to the lexical aspects that make up the signs. We were able to see that the selected works present similar characteristics, regarding their presentation, the constitution of the images and lexical aspects that make up the signs, but the dictionaries challenge professionals that work with this genre of illustration, because reading the images is not always easy to accomplish.

Brazilian sign language; Deafness; Dictionaries


ARTIGO

Dicionarização da língua brasileira de sinais: estudo comparativo iconográfico e lexical

Brazilian sign language dictionaries: comparative iconographical and lexical study

Cássia Geciauskas SofiatoI; Lucia Helena ReilyII

IUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: cassiasofiato@gmail.com

IIUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. Contato: lureily@terra.com.br

RESUMO

A língua brasileira de sinais (Libras) utilizada pela comunidade surda no Brasil é uma língua de modalidade espaço-visual cuja representação gráfica comumente se dá por meio de imagens em dicionários impressos e em meio digital. No Brasil, o primeiro dicionário de língua de sinais de que se tem notícia é a Iconographia dos signaes dos surdos-mudos, que data de 1875. A partir da elaboração dessa obra, outras surgiram e foram se constituindo como materiais de referência para o ensino e o aprendizado da língua em questão. O presente trabalho objetiva, com base em dicionários de Libras que servem de referência, analisar e discutir a constituição histórica do gênero no Brasil a partir da identificação de características e fragilidades em relação à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem interferir no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de graduação. Do ponto de vista da abordagem do problema, esse estudo é qualitativo e caracteriza-se como documental. Foram selecionados cinco dicionários de Libras, pautando-se no critério da indicação bibliográfica em disciplinas de Libras em cursos de graduação. As categorias estabelecidas para a análise priorizaram a questão da representação das imagens (a iconografia) e os aspectos lexicais que as compõem. Por meio do estudo, observou-se que as obras analisadas apresentavam características bastante semelhantes em relação à apresentação, à constituição das imagens e aos aspectos lexicais, desafiando os profissionais que trabalham com esse gênero de ilustração.

Palavras-chave: Língua brasileira de sinais — Surdez — Dicionários.

ABSTRACT

Brazilian sign language as used by the deaf community in Brazil is a visual spatial modality language; graphic representations of this language usually consist of images in printed and digital dictionaries. In Brazil, the first known sign language dictionary is the Iconographia dos Signaes dos surdos-mudos printed in 1875. After this work, other dictionaries followed and they became part of the reference materials used for teaching sign language. Based on the Libras dictionaries that serve as references, the present study aims to analyze and discuss the historical constitution of this publication genre in Brazil. Characteristics and weaknesses related to the iconography and lexicography of these publications are identified as aspects that may interfere with learning signs in undergraduate courses. Regarding how we have approached the theme, this is a qualitative study, supported by documentary methodology. Five Libras dictionaries were selected, based on the criteria that these publications have been selected as bibliographic references in Libras courses at the undergraduate level. The categories for analysis mainly focus on issues related to the representation of the images (iconography) and to the lexical aspects that make up the signs. We were able to see that the selected works present similar characteristics, regarding their presentation, the constitution of the images and lexical aspects that make up the signs, but the dictionaries challenge professionals that work with this genre of illustration, because reading the images is not always easy to accomplish.

Keywords: Brazilian sign language — Deafness — Dictionaries.

A consulta a dicionários dos mais variados tipos, quando necessária, é uma prática corrente dos usuários de uma língua, assim como das pessoas interessadas em algum assunto específico. Em relação aos dicionários de línguas, estes têm se constituído na cultura ocidental, de acordo com Bagno (2011, p. 119), como "um dos principais instrumentos de descrição, prescrição, codificação e legitimação do modelo idealizado de uma língua correta".

Da mesma forma que as línguas orais, as línguas de sinais, línguas de modalidade espaço-visual utilizadas pelas comunidades surdas no mundo todo, foram demandando registros ao longo da história, quer para seu ensino, quer para difusão entre surdos e ouvintes interessados. O sentido atribuído por Bagno (2011) pode ser observado também nos dicionários de línguas de sinais, apesar das peculiaridades estruturais que apresentam. Cada vez mais, e principalmente após a homologação da Lei nº 10.436 em 2002, que reconhece a língua brasileira de sinais (Libras) como língua da comunidade surda do Brasil, a publicação de dicionários tem sido promovida no país.

Historicamente, o primeiro dicionário de língua de sinais que surgiu no Brasil foi a Iconographia dos signaes dos surdos-mudos, de autoria de Flausino da Gama, em 1875. O autor era surdo e estudante do Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, localizado na cidade do Rio de Janeiro. A obra foi produzida por meio de litografia, técnica de gravura muito utilizada no Brasil no século XIX. Trazia como conteúdo 382 verbetes ilustrados, classificados por meio de indexação semântica, e estampas que apresentavam uma descrição verbal correspondente aos verbetes listados, com o intuito de auxiliar o leitor/aprendiz na realização dos sinais propostos. De acordo com Leite (apud GAMA, 1875, p. 2), Flausino, ao visualizar a obra de um surdo francês chamado Pierre Pélissier, que fora professor no Instituto de Paris, "manifestou o interesse de reproduzir as estampas para os falantes conversarem com os surdos-mudos". A obra de Pierre Pélissier foi determinante e funcionou como referência para a elaboração do dicionário de Flausino. Em estudo recente (SOFIATO, 2011), verificou-se que a obra de Flausino é uma cópia direta do original de Pélissier, trazendo o mesmo léxico, traduzido da língua francesa para a língua portuguesa. À época, tal dicionário foi produzido com o auxílio de influentes litógrafos, entre eles Eduard Rensburg, e com a cessão da Typographia Universal dos irmãos Eduard e Heinrich Laemmert para a realização das litogravuras.

Após a elaboração do dicionário de Flausino, outros surgiram ao longo da história da educação dos surdos no Brasil. Entretanto, observa-se um longo período de tempo entre a primeira publicação e as demais que foram ganhando visibilidade, o que se deve, provavelmente, à inibição no uso de sinalização na educação de surdos após o Congresso de Milão, em 1880. Felipe (2000) refere que em 1969 foi publicado outro material sobre Libras, o dicionário intitulado Linguagem das mãos, de Eugênio Oates. Tal material, assim como o de Flausino da Gama, sofreu influência de outra língua de sinais – nesse caso, a americana –, embora tenha sido elaborado no Brasil por meio de uma pesquisa realizada pelo autor.

Esses dois livros foram, durante décadas, o material didático utilizado pelos instrutores surdos para ensinarem sua língua e, talvez por essas obras trazerem uma seleção de fotografias ou desenhos de sinais da LIBRAS com explicações, a metodologia que vem sendo utilizada para ensinar esta língua tem sido somente a apresentação de sinais e tradução dos mesmos. (FELIPE, 2000, p. 1)

Na atualidade existem diversos dicionários impressos de Libras distribuídos pelo território nacional, elaborados basicamente por meio do uso de imagens. Nosso interesse no gênero de dicionários de sinais surgiu quando verificamos as dificuldades de interpretação das imagens de dicionários de Libras por parte de alunos dos cursos de pedagogia e Fonoaudiologia em disciplina de Libras. A princípio, imaginávamos que a produção manual de sinais a partir das imagens seria fácil, mas vimos que pessoas com pouco contato com surdos revelaram dificuldades em entender as imagens e, consequentemente, em realizar a configuração manual e os movimentos previstos nos sinais.

Por se tratar do ensino de uma língua, a adoção de dicionários na referida disciplina é uma prática comum que tem por finalidade oferecer um material de apoio ao professor e um material de consulta ao aluno. Após a obrigatoriedade do oferecimento da disciplina de Libras nos cursos de formação de professores e de fonoaudiologia por meio do Decreto-Lei nº 5.626 de 2005, a busca por boas referências bibliográficas tem sido uma constante e, ao mesmo tempo, algo desafiador, tendo em vista a variedade de obras presentes no mercado nacional e a forma de constituição de algumas delas.

Para ouvintes que se utilizam dos dicionários de línguas de sinais, os verbetes podem servir como suporte de memória, principalmente quando o professor fluente em Libras, seja ele surdo ou ouvinte, apresenta sinais novos em contexto de conversação. Os alunos podem praticar os sinais aprendidos e explorar o léxico novo. Entretanto, é importante lembrar que os dicionários contêm palavras isoladas e não combinadas em construções frasais específicas da língua. A tentativa de formar frases semelhantes ao português com sinais de Libras gera equívocos gramaticais, pois Libras e português são línguas de estruturas diferentes.

Já no caso dos surdos, que podem estar mais familiarizados com a interpretação de sinais desenhados, os dicionários podem funcionar para a aprendizagem de sinais novos ou para tirar dúvidas, mas, ainda assim, a consulta a um usuário com maior domínio pode se fazer necessária para se confirmar a correta realização dos movimentos ou o significado dos verbetes escritos em português. Mesmo na era da imagem digital, os dicionários de Libras impressos ainda são bastante consultados, com edições novas mais atualizadas e completas em construção a cada ano, o que demonstra a pertinência de analisá-los.

O presente trabalho objetiva, com base em dicionários de Libras que servem de referência, analisar e discutir a constituição histórica do gênero no Brasil a partir da identificação de características e fragilidades em relação à iconografia e à lexicografia de tais obras, fatores que podem interferir no ensino e no aprendizado dos sinais nos cursos de graduação.

Para Turazzi (2009, p. 50), iconografia:

compreende tanto a(s) arte(s) e a técnica de representação através da imagem, quanto a própria documentação (um conjunto de imagens) resultantes dessa atividade.

No presente estudo, faremos uso desse termo para designar as representações visuais encontradas nos dicionários de Libras. Já o termo lexicografia aqui empregado se refere, de acordo com Borba (2003, p. 15),

[...] à técnica de montagem de dicionários, que se ocupa de critérios para a seleção de nomenclaturas ou conjuntos de entradas, de sistemas definitórios, de estruturas de verbetes, de critérios para remissões, para registro de variantes, etc.

Não será realizada uma comparação de itens lexicais entre os dicionários, nem uma análise da pertinência das escolhas; o léxico é indicado para situar a natureza de cada obra.

Método

Ghedin e Franco (2008, p. 26) pontuam que o método, numa perspectiva filosófico-epistemológica, "propõe os fundamentos para o exercício de uma investigação". Do ponto de vista da abordagem do problema, este estudo é qualitativo e caracteriza-se como documental, sendo o documento aqui entendido em seu sentido mais amplo (KOSSOY, 2012), transmitido em forma de texto e também de imagem.

A fim de selecionar as obras para a análise, foram levantados com quatro docentes de três universidades (uma pública e duas privadas da cidade de Campinas) os dicionários de referência utilizados nos últimos cinco anos na disciplina de Libras nos cursos de pedagogia e de fonoaudiologia. Com base nas indicações dos docentes, selecionaram-se as seguintes obras: Linguagem das mãos (1969); Livro ilustrado de língua brasileira de sinais: desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez (2009); Comunicando com as mãos (1987); e Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue: língua de sinais brasileira (2001). A obra Iconographia dos signaes dos surdos-mudos (1875) foi incluída como um parâmetro histórico para verificarmos uma possível constituição de tradição iconográfica, já que 10% dos verbetes nela presentes ainda compõem o léxico da Libras (SOFIATO, 2011).

Alguns docentes mencionaram que, a partir da publicação do Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue, dicionários como Linguagem de sinais, publicado pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, deixaram de ser utilizados como recurso didático. Outra obra não analisada foi o Dicionário língua de sinais: a imagem do pensamento, devido ao fato de apresentar outra lógica de indexação, qual seja: por configuração de mão, destoando marcadamente dos dicionários selecionados.

Para nortear as análises, foram estabelecidos os seguintes eixos:

a) Informações gerais: ano de publicação, autor/ilustrador/fotógrafo, local de publicação, quantidade de sinais apresentados, forma de indexação, léxico, textos introdutórios e textos complementares.

b) Tratamento dado à informação visual: sistema de representação, características da figura-referência (gênero, aspecto e destaque às expressões faciais) e uso de recursos gráficos.

Com base nos dados apresentados, partiu-se para as análises em busca de um entendimento do processo de constituição de uma iconografia para a língua de sinais brasileira por meio dos trabalhos produzidos após a primeira obra no país, em 1875, e de seu impacto no processo de ensino e aprendizagem da Libras.

A partir do delineamento de categorias formadas por núcleos de sentido, a intenção foi estabelecer as relações entre os dados apresentados e os referenciais teóricos estabelecidos para a pesquisa. Andrade (1999, p. 136) refere que

[...] os dados não apresentam importância em si mesmos; a relevância está no fato de, através dos dados, chegar-se às conclusões, procedendo-se a avaliações e generalizações; inferências de relações causais que conduzem a interpretação.

Dados coletados nas obras

Obra 1: Iconographia dos signaes dos surdos-mudos

Ano de publicação: 1875

Autor e ilustrador: Flausino José da Costa Gama

Local de publicação: Rio de Janeiro (Tipographia Universal de E. & H. Laemmert)

Quantidade de sinais apresentados: 382

Forma de indexação: Semântica

Léxico: Alfabeto manual dos surdos-mudos (datilologia), alimentos e objetos de mesa, bebidas e objetos de mesa, objetos para escrever, objetos de aula, individualidade e profissões, animais, pássaros, peixes e insetos, adjetivos, pronomes e os três tempos absolutos do indicativo, verbos, advérbios, preposições e conjunções, interjeições e interrogações.

Textos introdutórios: A obra de Flausino da Gama apresenta um breve prefácio com os objetivos pelos quais foi elaborada. O prefácio foi escrito por Tobias Leite, diretor do Instituto Imperial dos Surdos-Mudos na época em que Flausino da Gama foi aluno.

Textos complementares: A obra de Flausino da Gama, após a apresentação de cada estampa, contém uma página com explicações sobre a forma de realização dos sinais apresentados. Essas explicações são numeradas de acordo com os respectivos sinais, descrevendo-os e auxiliando o leitor no entendimento e na produção manual dos mesmos.

Sistema de representação: Desenho linear em litografia (ocasionalmente de corpo inteiro, de acordo com a especificidade do sinal, e destacando algumas partes do corpo, tais como: cabeça, tronco, mãos, dedos). Apresenta a representação pictórica da forma de realização do sinal.

Características da figura-referência:

Gênero: Masculino. Não há presença de figura feminina na obra.

Aspecto: Não há um padrão. A figura-referência se apresenta jovial em determinados sinais e mais velha em outros. Em alguns, ainda, apresenta traços de uma criança.

Destaque às expressões faciais: Há uma tentativa de representar expressividade nos rostos correspondendo ao significado do sinal.

Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.


Obra 2: Linguagem das mãos

Ano de publicação: 1969

Autor: Eugênio Oates

Fotógrafo: Esdras Batista

Local de publicação: Aparecida do Norte (SP)

Quantidade de sinais apresentados: 1.258

Forma de indexação: Semântica

Léxico: Alfabeto manual, verbos, substantivos, cores, homem e família, alimentos e bebidas, animais, o mundo e a natureza, religião, o tempo, regiões do mundo (alguns países, nacionalidade), estados brasileiros (territórios federais e capitais), vestuário e acessórios, esportes e jogos recreativos, antônimos, e números.

Textos introdutórios: A obra de Eugênio Oates apresenta um prefácio com algumas orientações para o leitor. A apresentação foi escrita pelo Padre Vicente de Paula P. Burnier.

Textos complementares: Após a apresentação de cada verbete, o material de Oates inclui uma legenda que tem por finalidade explicar a forma de realização do sinal.

Sistema de representação: Por meio da fotografia, apresenta a representação da forma do sinal (composição quirêmica) e dá destaque a algumas partes do corpo – tais como cabeça, tronco, mãos e dedos – quando estas são relevantes para a produção do sinal em questão.

Características da figura-referência:

Gênero: Masculino. Não há presença de figura feminina na obra.

Aspecto: Há um padrão. A figura-referência é a mesma para todos os sinais. Um senhor de meia-idade vestido com um terno preto.

Destaque às expressões faciais: Não há tentativa aparente de representar expressividade no rosto correspondendo ao significado do sinal.

Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.


Obra 3: Livro ilustrado de língua brasileira de sinais: desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez (volume 1)

Ano de publicação: 2009

Autor e ilustrador: Márcia Honora e Mary Lopes Esteves Frizanco. Revisão especializada: Flaviana Borges de Silveira Saruta (surda)

Local de publicação: São Paulo

• Quantidade de sinais apresentados: 1.247

• Forma de indexação: Semântica

Léxico: Alfabeto manual, números, calendário, identidade, pessoas/família, documentos, pronomes, lugares, natureza, cores, escola, casa, alimentos, bebidas, vestuário/objetos pessoais, profissões, animais, corpo humano, higiene, saúde, meios de transporte, meios de comunicação, lazer/esportes, instrumentos musicais, verbos, negativos, adjetivos/advérbios, localidades, países/continentes.

Textos introdutórios: Essa obra apresenta vários textos introdutórios. Inicia-se com uma apresentação que aborda os conteúdos contidos na obra. A seguir, há um texto que apresenta o conceito de surdez e, sumariamente, as abordagens educacionais da surdez (Oralismo, Comunicação Total e Bilinguismo); outro texto destaca a história da educação dos surdos no mundo com base nos períodos históricos (Antiguidade, Idade Moderna e Idade Contemporânea, especificamente o século XX). Finaliza esse tópico com a educação de surdos no Brasil. Por fim, apresenta as Leis em vigência no Brasil relacionadas à surdez (com ênfase no Decreto-Lei nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005) e encerra com a conceituação de língua de sinais e língua brasileira de sinais.

• Textos complementares: Após a apresentação de cada verbete, há a descrição da forma de realização de cada sinal, tomando-se como base os parâmetros que constituem as línguas de sinais, a saber: configuração de mãos, ponto de articulação, movimento e orientação.

Sistema de representação: Desenho linear. Apresenta a representação pictórica da forma do sinal (composição quirêmica) e, ao lado, a representação pictórica do significado do sinal (desenho naturalista). É feito destaque a algumas partes do corpo da figura-referência, tais como cabeça, tronco, mãos e dedos.

• Características da figura-referência:

Gênero: Masculino e feminino, mas há predominância da figura masculina.

Aspecto: Observamos que há um padrão. A figura-referência apresenta-se jovial em alguns sinais e mais velha em outros (homens e mulheres).

Destaque às expressões faciais: Há uma ênfase maior na expressão facial das figuras-referência cujo sinal necessita mais da expressão facial.

Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.


Obra 4: Comunicando com as mãos

• Ano de publicação: 1987

• Autor e ilustrador: Não há menção de autor. A ilustradora é Judy Ensminger.

• Local de publicação: Piracicaba (SP)

• Quantidade de sinais apresentados: 574

• Forma de indexação: Há evidências de indexação semântica, mas a obra não possui subdivisões.

Léxico: Alfabeto manual, números, família, objetos de casa, bebidas, frutas, alimentos, verbos, natureza, adjetivos, meios de transporte, animais, cores, pronomes pessoais, pronomes possessivos, profissões, locais, substantivos comuns, pronomes interrogativos, calendário e religião.

Textos introdutórios: O material apresenta um prefácio que faz comentários sobre a surdez e dá algumas orientações sobre a aprendizagem da criança surda; também contém um texto denominado Instruções, que tem por finalidade orientar os pais de crianças surdas, escrito por John E. Peterson.

Textos complementares: Não apresenta.

Sistema de representação: Desenho linear. Apresenta a representação pictórica referente ao significado do sinal e também a representação pictórica da forma do sinal (composição quirêmica). O ilustrador destaca algumas partes do corpo – tais como cabeça, tronco, mãos e dedos – quando estas são relevantes para a produção do sinal.

Características da figura-referência:

Gênero: Em muitos sinais, o gênero é indefinido, pois o rosto da figura-referência não aparece de forma completa. Em outros, parece ser masculino.

Aspecto: Nesse material, segue-se um padrão. Algumas vezes a figura-referência aparece com o rosto completo e outras vezes não, havendo uma ênfase maior a outras partes do corpo.

Destaque às expressões faciais: Não há uma preocupação com esse aspecto, pois a figura-referência aparece muitas vezes sem o rosto e sem a cabeça.

Uso de recursos gráficos: Utiliza setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas e linhas curvas.


Obra 5: Dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue: língua de sinais brasileira (volumes I e II)

Ano de publicação: 2001

Autores: Fernando César Capovilla e Walkíria Duarte Raphael

Ilustradora: Silvana Marques

Local de publicação: São Paulo

Quantidade de sinais apresentados: 9.500

Forma de indexação: A indexação é realizada por ordem alfabética.

Léxico: Alfabeto manual, numerais, verbos, adjetivos, substantivos (comuns, abstratos e concretos), advérbios, pronomes (pessoais, possessivos e interrogativos).

Textos introdutórios: Destacam-se como elementos pré-textuais: o sumário, os agradecimentos, a dedicatória, a apresentação feita por Oliver Sacks, a apresentação realizada pelo presidente da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Antônio Campos de Abreu) e por seu coordenador nacional de cursos de Libras (Eduardo Sabanovaite). Além disso, consta uma apresentação feita por Valerie Sutton. Em seguida, há o resumo, o abstract e um prefácio escrito pelos autores, que contempla os aspectos da obra em questão; na sequência, a apresentação do léxico do dicionário (volume I: A-L; volume II: M-Z).

Textos complementares: Ao final da obra, os autores apresentam Capítulos de indexação, em que constam o Thesaurus: English-Portuguese (dicionário de inglês-português) e um índice semântico dos sinais de Libras; em seguida, Capítulos de educação em surdez e Capítulos de tecnologia em surdez.

Sistema de representação: Desenho linear. Apresenta a representação pictórica do significado do sinal e a representação pictórica da forma do sinal (composição quirêmica). Além disso, inclui a escrita visual direta da forma do sinal (sistema Sign Writing).

Características da figura-referência:

Gênero: Masculino.

Aspecto: A figura-referência é sempre a mesma.


Destaque às expressões faciais: Há uma tentativa de evidenciar a expressão facial que acompanha alguns sinais.

Uso de recursos gráficos: Faz uso de setas, pontilhados, zigue-zagues, linhas retas, linhas curvas e outros símbolos gráficos próprios do Sign Writing.

Análise e discussão

Autoria das obras e ilustrações

Nessa categoria, destaca-se a menção feita aos ilustradores ou fotógrafos responsáveis pelas obras analisadas, tendo em vista que os dicionários de Libras se diferenciam dos dicionários de línguas orais por serem quase em sua totalidade ilustrados. Quando uma obra sobre a língua de sinais vai ser elaborada, uma das prioridades a ser pensada pelo autor é a escolha de um profissional competente que realize a ilustração do material, respeitando todas as características intrínsecas a essa língua espaço-visual. A escolha precisa ser criteriosa, pois, além da liberdade poética conferida a cada um durante a preparação de uma obra, tem-se, nesse caso, que levar em consideração a função do trabalho, o desenho de uma informação estabelecida por uma convenção. Ao nos depararmos com tal necessidade, percebemos que não se trata de uma tarefa simples, como alguns autores parecem acreditar.

Quando nos referimos às imagens que têm por finalidade a instrução, ou seja, a explicação para o uso dirigido de algo, notamos a necessidade de uma reprodução que seja o mais real possível, de forma a facilitar a leitura e a apreensão da mensagem. Nesse sentido, a imagem instrucional e a imagem publicitária têm algo em comum: uma certeza intencional; portanto, elas devem ser essencialmente comunicativas e destinadas à leitura pública (JOLY, 1996).

Por meio do inventário realizado, pudemos ver que, em algumas obras, o nome do ilustrador aparece, mas nem sempre em posição de destaque; entretanto, a presença de um ilustrador é condição sine qua non para a elaboração de uma obra dessa natureza. Sem a participação do referido profissional não é possível fazer esse tipo de trabalho.

Na obra de Gama (1875), quem assume a autoria e a ilustração é o surdo Flausino da Gama. Nas obras de Oates (1969), Honora e Frizanco (2009) e Capovilla e Raphael (2001), a autoria é assumida por pessoas ouvintes; entretanto, na obra de Oates (1969), temos a menção ao nome do fotógrafo responsável pelas imagens no interior da obra. Na obra de Honora e Frizanco (2009), o nome do ilustrador é citado, porém não na capa, onde há menção ao nome de uma revisora especializada, identificada como surda. A obra de Esminger (1987) não apresenta o nome do autor, somente o do ilustrador do material. No dicionário de Capovilla e Raphael (2001), os nomes dos autores estão presentes na capa e o da ilustradora encontra-se no interior da obra. Além disso, há menção a nomes de surdos que participaram da elaboração do material.

Pelo que pudemos observar, nem sempre o nome do ilustrador do material aparece na capa juntamente com o do autor. Entretanto, também verificamos que há a participação de surdos em três das obras analisadas: em uma, na qualidade de autor e ilustrador; nas outras, como participantes da elaboração das obras. Em se tratando de obras de línguas de sinais, a presença de surdos na condição de revisores ou autores parece ser interessante em razão de pelo menos dois aspectos: primeiro, porque a língua de sinais é considerada língua natural da pessoa surda; segundo, como consequência do primeiro, por poderem avaliar com maior legitimidade alguns níveis linguísticos que compõem tal língua, como o fonológico. O nível fonológico da Libras compreende os seguintes parâmetros, de acordo com Fernandes (2003): configuração das mãos (forma que a mão assume ao realizar o sinal); localização do sinal; movimento das mãos e orientação da(s) palma(s) da(s) mão(s). Ao ser representado pictoricamente, esse parâmetro precisa ser o mais preciso possível para garantir a boa compreensão do sinal. Dessa forma, presume-se que um nativo na língua tenha melhores condições de fazê-lo do que um ouvinte que aprende Libras.

Capovilla e Raphael (2001, p. 30), ao se referirem à elaboração de um dicionário de língua de sinais, destacam que não são os ouvintes

[...] os conquistadores que dominam e desvendam os mistérios do sinal dos surdos; mas são eles, os Surdos, que [...] nos concedem a revelação dos segredos mais íntimos do seu Sinal.

Dessa forma, reiteramos que a participação do surdo é fundamental. Todavia, com base nas obras analisadas, percebemos que nem sempre isso acontece.

Apresentação do alfabeto manual (datilologia)

Durante a análise, observou-se que o primeiro conteúdo apresentado nos dicionários selecionados é o alfabeto manual ou datilologia. Quando se adota um dicionário como apoio para o trabalho pedagógico, o alfabeto manual constitui-se como uma espécie de introito para os estudos sobre a língua de sinais, pois é o primeiro conteúdo a ser apresentado. Gesser (2009) define o alfabeto manual como um código que representa as letras alfabéticas. Geralmente tal alfabeto é utilizado para soletração de nomes próprios de pessoas, lugares e também para os casos em que ocorre a falta de determinado sinal. Na língua brasileira de sinais, existem 27 formatos de mãos (considerando-se o ç) que compõem o alfabeto manual, cada um representando uma letra do alfabeto da língua portuguesa. O uso da soletração supõe o letramento, pois, se o soletrador não for alfabetizado, não conseguirá entender o significado de tal código e fazer uso do mesmo.

Das cinco obras estudadas, quatro apresentam o alfabeto manual representado por meio de desenho linear de contorno; apenas na obra de Oates (1969) o alfabeto foi fotografado. Verifica-se nas representações, tanto nas desenhadas quanto nas fotografadas, que cada ilustrador ou fotógrafo faz uma escolha em relação à posição das mãos ao representá-las. Constatamos que a representação correta das configurações de mãos constitui-se um problema, pois há várias maneiras de representar uma mesma configuração, isto é, a posição de determinada mão não é a mesma, dependendo do ilustrador, de sua posição diante do sinal e do material gráfico escolhido para o desenho. Alguns optam por desenhar ou fotografar a mão vista conforme a posição que ela assume ao ser sinalizada; outros já preferem desenhá-la sob outro ângulo de visão que facilite o aprendizado do sinal. Por vezes, essas escolhas constituem um impasse para o aprendiz de Libras se não houver a presença de um mediador que possa esclarecer qual é a posição correta para a produção manual do sinal. Esse aspecto denota que a representação das configurações de mãos correspondentes ao alfabeto manual não é fácil de ser produzida, necessitando-se de um ilustrador qualificado que seja capaz de expressar os detalhes que compõem as mãos de acordo com a convenção estabelecida para esse alfabeto específico.

A fim de exemplificar tal ocorrência, mencionamos a dificuldade de representação da posição de dedos para algumas letras do alfabeto manual. Há ilustradores que desenham determinadas letras com os dedos mais abertos, enquanto outros representam as mesmas letras com os dedos mais fechados ou em posições diferentes (palma da mão para frente ou de perfil). Isso ocorre principalmente na representação das letras F, H, Q, e T. Como resultado, o leitor não sabe ao certo qual é a maneira correta de realizar tais sinais. Sem a presença de um mediador fluente em Libras, fica difícil a interpretação correta das imagens produzidas.

Forma de indexação e composição dos verbetes

Buscato, Garcia e Pelachin (1998) acreditam que é comum as pessoas pensarem num dicionário como uma lista de palavras e suas acepções. Entretanto, a partir de informações sobre como um dicionário se organiza, os autores mostram que é possível consultá-lo de forma mais eficaz. A rigor, nos dicionários de língua portuguesa, a indexação é feita por ordem alfabética.

A indexação das obras de Gama (1875), Oates (1969), Honora e Frizanco (2009) e Esminger (1987) obedece a outro critério. Por meio do estudo, percebe-se que o critério para a indexação das obras citadas é o agrupamento semântico. Cada grupo semântico escolhido pelo autor do dicionário é apresentado por meio de verbetes, que não apresentam acepções, usos, derivações e classificação gramatical, como ocorre comumente nos dicionários de línguas orais. Somente no dicionário de Capovilla e Raphael (2001) a indexação obedece ao critério de ordem alfabética e, nesse caso, tem-se a apresentação da acepção de cada verbete. Além disso, nessa mesma obra, o verbete é também apresentado em inglês. Introduz-se ainda o Sign Writing, que é um sistema de escrita visual direta utilizado para ler e escrever os sinais de Libras.

Os referidos autores propõem uma nomenclatura específica para a descrição das diferentes formas de apresentação dos sinais:

1. A representação pictórica do significado, que retrata aquilo a que o sinal se refere; 2. A Representação pictórica da forma do sinal, que retrata a composição quirêmica dos sinais [...]; 6. A descrição da forma do sinal, que descreve, de modo detalhado e sistemático, a articulação das mãos e dos braços, a orientação das palmas, o tipo, a direção, a freqüência e a amplitude do movimento envolvido, e a expressão facial associada. (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001, p. 40)

Para a compreensão da forma de indexação de cada dicionário analisado, apresenta-se o quadro a seguir:

Quadro 1


Nota-se que a obra de Capovilla e Raphael (2001) contempla todos os aspectos listados e objetiva apresentar a Libras de forma bastante variada. A obra de Honora e Frizanco (2009) segue a mesma tendência, porém de forma mais simplificada se a compararmos com a obra anterior. Constata-se que todas as obras estudadas apresentam a representação pictórica da forma do sinal. Tal fato é, de certa forma, esperado em se tratando de uma língua de modalidade espaço-visual.

A obra de Gama (1875) não apresenta a representação pictórica do significado do sinal. Ao que parece, essa forma de representação, numa tentativa de tornar o significado do sinal mais claro para o leitor não letrado, aparece nos dicionários mais tardiamente. Entretanto, isso não significa que a forma de representação do significado do sinal, realizada por meio de desenhos, consiga expressar exatamente aquilo a que se refere o sinal. No exemplo que se segue (figura 6), podemos verificar a dificuldade de entender o sentido que a imagem traz segundo a forma apresentada pelo ilustrador. Haveria múltiplas maneiras de interpretar as imagens do urso diante de um menino com braços erguidos.


Vejamos agora, por meio do emprego da hibridização dos recursos, como interpretamos o sentido:


Nesse caso, a hibridização tenta facilitar a compreensão, representando a ideia abstrata da coragem por meio de um contexto narrativo em que uma criança enfrenta com coragem um animal muito maior do que ela.

As obras analisadas, em sua maioria, também apresentam a descrição da forma do sinal. Esse aspecto aparece para complementar a informação, auxiliando o leitor em seus esforços de interpretar as instruções contidas nas imagens de cada verbete. A associação da imagem ao texto explicando a forma de realização do sinal é vista como uma espécie de solução interpretativa nesse tipo de material por parte de quem o organiza. O leitor que teve acesso à linguagem escrita pode se beneficiar com tal recurso, contudo não terá a mesma possibilidade o leitor não alfabetizado.

De qualquer forma, percebemos que a hibridização de recursos visuais e textuais se faz presente em todas as obras analisadas.

A constituição das imagens e o uso de recursos gráficos específicos

As imagens das obras de Gama (1875), Honora e Frizanco (2009), Esminger (1987) e Capovilla e Raphael (2001) constituem-se por desenhos lineares. A obra de Oates (1969, p. 27) é a única que apresenta imagens fotografadas. Segundo Reily (2004), a imagem visual "é um veículo sígnico e dessa forma, como instrumento, a mesma pode veicular conhecimento de alta ou baixa qualidade". Ressaltamos o papel do ilustrador de dicionários ou manuais de língua de sinais, material cuja característica é instrucional. É de sua responsabilidade promover e facilitar o aprendizado por meio da elaboração de figuras instrucionais. A rigor, os dicionários contemplados neste estudo elegem uma figura-referência, que é uma espécie de modelo para a demonstração da forma de realização dos sinais que compõem a obra. Essas figuras-referência, em sua maioria, são do sexo masculino. Somente na obra de Honora e Frizanco (2009) há também a figura feminina, que aparece alternada com a masculina.

Observa-se nas obras analisadas o uso abundante de recursos gráficos. Isso se justifica, no caso da Libras, pelo fato de que quase todos os sinais são compostos por movimentos iniciais ou contínuos. A representação gráfica do movimento é um grande desafio para os ilustradores e fotógrafos dos materiais em questão. Gombrich (1999) já dizia que essa tarefa é dificultada porque o desenhista necessita transformar os fluxos de movimentos presentes numa sequência de posições fixas. Quando o material é produzido por meio da fotografia, existe a dificuldade de se captar o movimento realizado pelas mãos e de se demonstrar o efeito de sua continuidade nas imagens, pois estas ficam congeladas.

Passar do plano tridimensional para o plano bidimensional exige o uso de técnicas próprias da área do desenho e da fotografia. Nesse caso, as soluções encontradas pelos ilustradores ou fotógrafos de materiais de Libras estão relacionadas ao uso de recursos gráficos que, acoplados à imagem, teriam a finalidade de elucidar a direção e a qualidade do movimento. Assim, setas são incluídas em muitas ilustrações e também fazem o papel de vetores, com a função de indicar a direção que se deve obedecer para se realizar corretamente o sinal. Existem também outros recursos que são incorporados à imagem com a finalidade de demonstrar a movimentação, tais como curvinhas, zigue-zagues, círculos e desenhos de trajetória de movimento com o uso de pontilhados. Por vezes, o recurso do pontilhado pretende demonstrar qual é o ponto inicial do movimento a ser realizado para a produção do sinal e assim sucessivamente, numa sequência de imagens.

O uso desses recursos gráficos não garante a eficácia durante a tentativa de interpretação e realização dos sinais manuais por parte do aprendiz em Libras, pois, no caso dos sinais, o repertório do leitor em relação à leitura dos códigos visuais, assim como sua interpretação individual, conta muito no momento de realização de um sinal a partir de um modelo gráfico.

Outro parâmetro que foi incorporado à língua brasileira de sinais é a expressão facial (movimentos de cabeça, olhos, boca, sobrancelha etc.), segundo Gesser (2009). A expressão facial e também a corporal são elementos gramaticais que compõem a estrutura dessa língua e que podem funcionar como elementos lexicais, modificando o significado do sinal de acordo com a necessidade. Nas obras de Gama (1875), Honora e Frizanco (2009), Esminger (1987) e Capovilla e Raphael (2001), a figura-referência, por meio do uso da expressão facial, tenta enfatizar o significado correspondente a cada sinal apresentado. Entretanto, na obra de Oates (1969), percebe-se que a figura-referência não esboça as expressões faciais que acompanham os sinais, o que dificulta a interpretação e a tentativa de realização do sinal por parte de um aprendiz. Ao que parece, alguns ilustradores ou fotógrafos contratados para a elaboração de obras sobre língua de sinais desconhecem a importância da expressão facial e corporal durante a utilização da língua. Esse aspecto é muito relevante e está presente em qualquer situação comunicativa. Podemos dizer que quando os usuários da língua de sinais, o surdo ou o ouvinte, estão se comunicando, a compreensão da mensagem também depende da composição cênica presente. As mãos sinalizam e o corpo, por intermédio da expressão corporal e facial, confirma o sentido atribuído ao sinal efetuado. Assim sendo, salientamos a necessidade de o ilustrador ou fotógrafo conhecer os parâmetros que compõem a língua em questão para que possa representá-la de forma adequada.

Inserção de textos introdutórios e outros nos dicionários de Libras

As obras analisadas contêm, na maioria das vezes, textos introdutórios que versam sobre assuntos relacionados à surdez, mas a natureza desses textos varia de acordo com a obra. Nas obras de Gama (1875), Oates (1969) e Esminger (1987), existem prefácios que têm por finalidade apresentá-las e dar pistas para facilitar a comunicação entre surdos e ouvintes, pais ouvintes e filhos surdos. Também incluem termos que não são mais utilizados na área da surdez, tais como mímica, surdo-mudo, pessoas infelizes, gestos, linguagem mímica, entre outros. Isso até se justifica se levarmos em consideração a época em que foram criadas. Por meio de muitos estudos e investimento de pesquisadores na área da surdez, hoje se considera que esses são termos inapropriados para a área, ainda que utilizados no senso comum. Com base em Gesser (2009, p. 21), quando as pessoas fazem uso de termos como esses, está implícito um preconceito associado à

[...] ideia que muitos ouvintes têm sobre os surdos: uma visão embasada na anormalidade, segundo a qual o máximo que o surdo consegue expressar é a forma pantomímica indecifrável e somente compreensível entre eles. Não à toa, as nomeações pejorativas anormal, deficiente, débil mental, mudo, surdo-mudo, mudinho têm sido equivocadamente atribuídas a esses indivíduos.

As obras de Honora e Frizanco (2009) e Capovilla e Raphael (2001) apresentam um diferencial nesse sentido. Os textos de apresentação, além de trazerem a terminologia correta para se referirem aos surdos e a aspectos que concernem à sua língua, examinam variados assuntos. Na obra de Honora e Frizanco (2009), existe uma menção à história da educação dos surdos em nível mundial e nacional; as autoras apresentam abordagens educacionais existentes na área da surdez e descrevem algumas políticas públicas relevantes na área. Ao final, oferecem uma relação de sites, filmes e livros que tratam da questão da surdez.

A obra de Capovilla e Raphael (2001), além do prefácio e das apresentações feitas por profissionais da área, tem dois capítulos com a finalidade de auxiliar o uso do dicionário. Ao final, inclui capítulos sobre educação em surdez e tecnologia em surdez.

É interessante observar que todas as obras analisadas contêm textos introdutórios e que tal aspecto se perpetuou e foi se aprimorando se levarmos em consideração a primeira obra produzida no Brasil. Surge, então, o questionamento: por que as obras destinadas ao ensino da Libras apresentam esses textos e qual seria a finalidade deles? Ao que parece, além da pretensa intenção de ensinar a língua brasileira de sinais, os autores assumem que existe a necessidade de instruir o leitor a respeito da história da educação de surdos e das características da língua considerada alvo, o que sugere que a função dos dicionários está ligada à intenção de ensinar e divulgar a Libras.

Ainda com relação aos textos introdutórios, gostaríamos de fazer um paralelo com outro gênero de material instrucional. Tomemos como base alguns livros destinados à prática do origami, técnica japonesa que, segundo Jackson e A'Court (1996), consiste na arte de dobrar papel. Muitos trazem instruções que explicam como dobrar o papel das mais variadas formas.

Jackson e A'Court (1996) explicam os diversos símbolos utilizados nessa técnica e acrescentam que eles podem ser encontrados na maioria dos livros de origami, não importando a língua em que estejam escritos. Tal padronização pretende tornar universais os procedimentos para a realização da técnica para que os entusiastas de todo o mundo possam fazer dobraduras, usando qualquer livro com seus mais variados modelos e sequências.

Como pudemos ver, toda a exploração dos procedimentos para o uso do material ocorre antes de o leitor manusear a obra e tem por finalidade oferecer a maior autonomia possível a qualquer pessoa que queira fazer uma dobradura, tarefa nem sempre muito fácil, a depender da escolha do objeto ou tema.

Em relação à língua brasileira de sinais, percebemos que a inclusão de legendas para interpretação de marcas gráficas – como pontilhados e flechas – e de marcas onduladas não é valorizada, excetuando-se a obra de Capovilla e Raphael (2001), que apresenta o sistema Sign Writing. Não encontramos um glossário com explicações referentes ao significado dos recursos gráficos e ao seu uso nas obras em questão, como acontece nas obras destinadas ao ensino do origami, que também são produzidas por meio de imagens. Percebemos uma defasagem na apresentação ou introdução dos materiais da língua brasileira de sinais, pois não há uma padronização de indicadores gráficos que poderiam auxiliar na interpretação da intensidade de movimentos dos sinais e nas posições iniciais e finais durante sua realização.

A partir da análise dos trabalhos desenvolvidos ao longo do tempo, percebe-se que existe a tendência de deixar os dicionários de Libras cada vez mais completos, com a inserção de textos como os descritos anteriormente. Por se tratar de materiais com objetivos instrucionais e pelo fato de a Libras ser uma língua que se apresenta em forma de outra modalidade se comparada às línguas orais, a inserção desses textos tem uma finalidade didática aparente: instruir o leitor a respeito das peculiaridades linguísticas e da complexidade da língua em questão para além de um mero léxico. Capovilla e Raphael (2001, p. 31) pontuam que "dicionaristas têm uma nobre e espinhosa tarefa". Em se tratando de Libras, o desafio aumenta devido à forma de constituição dessa língua e aos aspectos já apresentados.

Considerações finais

A adoção de dicionários de Libras ocorre com a finalidade didática em cursos de formação de professores e de fonoaudiologia, em que pesem as dificuldades que possam surgir apresentadas ao longo deste estudo em relação à leitura e à produção dos sinais por parte dos aprendizes de tal língua. Apesar de já contarmos com outras formas de apresentação de dicionários, tais como os virtuais, parece que a preferência ainda recai sobre os impressos pelo fato de serem mais fáceis para consultar e transportar.

O uso de tais obras justifica-se por serem um apoio para a construção de uma nova rede de conhecimentos linguísticos, como afirma Coroa (2011), embora, no caso da Libras, apresentem apenas o léxico em forma de representação pictórica na maioria dos casos observados.

Neste estudo, buscou-se demonstrar a constituição histórica do gênero e revelar quais são as fragilidades e os desafios que se colocam para os aprendizes de Libras no que se refere ao aprendizado dos sinais apresentados nos dicionários e, por outro lado, demonstrar as soluções encontradas e as não encontradas por autores e ilustradores para darem conta da imagem instrucional relacionada à língua de sinais. As questões explicitadas ao longo do trabalho podem servir de parâmetros para a escolha e a avaliação dos melhores dicionários de referência para interessados em geral e para cursos de graduação que tenham a disciplina de Libras.

Reitera-se, a partir dos resultados do estudo, que a elaboração de dicionários para democratizar o acesso das pessoas ao léxico da Libras é algo desafiador, dada a complexidade do gênero, conforme lembram Capovilla e Raphael (2001, p. 31):

Transmitir e compreender, com precisão, o significado e o uso lingüístico de milhares de sinais são realizações complexas que demandam muitas aproximações e abordagens, tentativas e quase acertos, edições e reedições em busca da correção, precisão e completude.

A elaboração de dicionários de línguas de sinais é um problema que vem sendo enfrentado desde as primeiras formas de representação dessa língua e, portanto, trata-se de um desafio histórico. Tal desafio evidencia-se quando os aprendizes de Libras tentam fazer os sinais de forma autônoma, sem sucesso. Observa-se que, sem a presença de um mediador, a leitura da imagem e a produção dos sinais podem ficar muitas vezes comprometidas.

O estudo indica que se configurou ao longo da história uma tradição iconográfica para o design de dicionários da língua brasileira de sinais independentemente das diferenças nos estilos dos ilustradores, observando-se características do dicionário de Gama (1875) que perduram em novos dicionários de Libras. Evidenciam-se, nesse sentido, além da figura-referência sempre presente, a apresentação inicial do alfabeto manual, as semelhanças em relação aos critérios de indexação, a inserção de textos introdutórios, o uso da representação pictórica do significado do sinal, da representação gráfica da forma de realização do sinal e a inserção de recursos gráficos com a finalidade de mostrar o parâmetro movimento nos sinais.

Os fatores que interferem diretamente na iconografia da língua de sinais merecem atenção especial por parte dos envolvidos com a questão da representação pictórica ou fotográfica na elaboração de dicionários, pois se acredita que cada vez mais o uso de tais obras será implementado nos cursos de graduação, dada a obrigatoriedade da disciplina de Libras, e nas escolas que possuem alunos surdos, principalmente as de educação bilíngue, nas quais a língua brasileira de sinais e a língua portuguesa são consideradas línguas de instrução. Tendo em vista todas as discussões que envolvem a área da surdez e que primam por uma melhor qualidade de ensino, acredita-se que o investimento na elaboração de bons dicionários, considerando-se suas limitações, pode contribuir significativamente para o aprendizado da Libras por parte dos futuros educadores e profissionais da saúde.

Esperamos que essa discussão sirva de motivação para futuros investimentos na dicionarização da Libras aos artistas que se aventuram nessa delicada tarefa e que isso se reverta em benefícios para quem deseja ensinar e aprender a língua.

Recebido em: 25.02.2013

Aprovado em: 14.08.2013

Cássia Geciauskas Sofiato é mestre e doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).

Lucia Helena Reily é doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) e docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2014
  • Data do Fascículo
    Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2013
  • Aceito
    14 Ago 2013
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