Open-access Gestão educacional e materialização do direito à educação: avanços e entraves

Educational administration and the materialization of the right to education: advances and obstacles

RESUMO

O artigo problematiza, a partir de informações do Censo Escolar da Educação Básica de 2016, se e como a gestão educacional tem materializado o direito à educação consagrado na Constituição Federal de 1988. Parte-se do princípio de que proclamar direitos é distinto de efetivá-los. O estudo compõe pesquisa que investiga perspectivas e nuances da garantia do direito à educação, com ênfase na educação básica. O texto recupera a trajetória da vicissitude do direito à educação nas constituições brasileiras e analisa dados recentes referentes ao atendimento escolar na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino médio no país. Conclui que, embora tenhamos avançado em alguns aspectos da efetivação do direito à educação, ainda temos um longo caminho a ser trilhado para o cumprimento integral do disposto na Carta Magna de 1988, especialmente em relação ao acesso à educação infantil e ao ensino médio e à permanência e sucesso escolar no ensino fundamental.

Palavras-chave: Gestão educacional; Direito à educação; Legislação.

ABSTRACT

The article questions, based on information from the 2016 School Census of Basic Education, whether and how educational management has materialized the right to education enshrined in the 1988 Federal Constitution. It is assumed that proclaiming rights is distinct from guaranteeing its effectiveness. The study composes a research that investigates perspectives and nuances of the guarantee of the right to education, with emphasis on basic education. The text recovers the trajectory of the vicissitude of the right to education in the Brazilian constitutions and analyzes recent data referring to school attendance in early childhood, elementary education and secondary education in the country. It concludes that, although we have advanced in some aspects of the realization of the right to education, we still have a long way to go for the sake of full compliance with the provisions of the Charter of 1988, especially regarding access to early childhood and secondary education, and permanence and success in elementary school.

Keywords: Educational administration; Right to education; Legislation.

Introdução

Ao reinaugurar o Estado Democrático de Direito no Brasil, a Constituição Federal de 1988 proclamou a educação como direito social no artigo 6º e enfatizou que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” no artigo 205. Dessa forma, estabeleceu o direito à educação como condição de cidadania e obrigação do Estado.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996, oito anos após a vigência da Constituição Federal de 1988, ao disciplinar a educação escolar, reforçou a educação como direito de cidadania e dever do Estado, determinando os princípios basilares do ensino e as obrigações do Estado na efetivação e garantia do direito à educação.

No entanto, há que se realçar que a proclamação de direitos é distinta de sua efetivação, conforme assevera Saviani (2013, p. 745). Embora seja significativa a consagração legal do direito à educação, uma vez que é ela que impulsiona e obriga a realização desse direito, é necessário implementar políticas públicas para que o direito à educação se concretize e se torne efetivo. Nesse sentido, com base nos dados do Censo Escolar 2016, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira - INEP (BRASIL, 2017a, 2017b), observa-se, ainda, um longo caminho a ser trilhado na efetivação dos direitos declarados na Carta Magna de 1988, mesmo depois de quase 30 anos de sua vigência.

Assim, este artigo tem o objetivo de apontar os avanços detectados no cumprimento da garantia e da efetivação do direito à educação no nível da educação básica e, também, problematizar evidências de entraves que ressaltam o que ainda está por ser feito no sentido de cumprir o disposto na legislação nacional.

Com o objetivo de circunscrever o debate, tendo em vista os limites impostos para este texto, privilegiou-se abordar o direito à educação na história das constituições nacionais, em detrimento de outros dispositivos legais que versam sobre o tema e reforçam as obrigações e garantias do direito à educação, como as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e os Planos Nacionais de Educação.

Apontamentos da trajetória da proclamação do direito à educação

A literatura que versa sobre a história e a constituição dos direitos nas sociedades é eloquente ao afirmar que o nascimento e crescimento dos direitos humanos são construções históricas e estão diretamente relacionados às transformações da sociedade. Reitera Bobbio que:

O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. (BOBBIO, 2004, p. 18).

Nas sociedades ocidentais, a década de 1940 é um marco expressivo na defesa e garantia dos direitos sociais. O flagelo de duas guerras mundiais levou um conjunto de países a criar, no ano de 1945, a Organização das Nações Unidas - ONU com a finalidade de trabalhar pela resolução de conflitos de forma pacífica, preservando a paz, e pela promoção do desenvolvimento econômico e social de todos os povos. Em 1948 foi aprovada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos do Homem, sendo um marco jurídico, político e social, enquanto documento orientador dos estados signatários para a promoção da paz.

A materialização dos direitos políticos e sociais exige o poder do Estado. Dessa forma, a institucionalização do estado de direito foi um construto histórico fundamental para a promoção e efetivação dos direitos humanos. Embora o Estado de Direito seja o Estado dos cidadãos, de acordo com Bobbio (2004, p. 58), o problema maior relacionado aos direitos humanos não está em justificá-los, mas em protegê-los e tutelá-los.

Assim, a Declaração Universal dos Direitos do Homem buscou garantir o direito à educação, preconizando, no artigo 26, a gratuidade e a obrigatoriedade da educação básica, considerando a não discriminação das crianças em relação ao acesso à escola pública e ao caráter social que a constitui:

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

No Brasil, a constituição do direito à educação nos textos legais, especialmente no que diz respeito à gratuidade e à obrigatoriedade, é marcada por uma trajetória sinuosa e errática que alterna avanços e retrocessos, refletindo as transformações sociais, políticas e econômicas do país.

A gratuidade da instrução primária foi determinada, pela primeira vez, ainda no século XIX, no artigo 179, da Constituição Imperial de 1824, a qual dispunha sobre a “inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos cidadãos Brazileiros”. Com o Ato Adicional de 1834, as províncias assumiram a competência de legislar sobre a instrução pública e promovê-la em estabelecimentos próprios, gerando desconforto entre os governantes provinciais que questionavam a ausência de responsabilidades do Poder Central em matéria de educação básica (OLIVEIRA, 1999b).

A obrigatoriedade escolar foi objeto de calorosos debates entre políticos e intelectuais preocupados com o tema ao final do período imperial. Segundo Horta (1998), para os críticos, a obrigatoriedade do ensino era vista como um atentado às liberdades individuais, além da falta de escolas para o atendimento da demanda potencial de alunos. De outra forma, para os defensores da obrigatoriedade do ensino, essa seria um expediente para a formação de homens e mulheres livres ao garantir os conhecimentos indispensáveis para a vida cidadã. Aponta o autor que a descentralização da educação, promovida pela legislação imperial, favoreceu a difusão de normativas provinciais na área da educação que passaram, em alguns lugares, a incorporar a obrigatoriedade. No entanto, esta se referia às famílias e/ou responsáveis e não ao dever do poder público na sua garantia. Citando discurso de Rui Barbosa em 1947, o qual afirmava ser “a escola gratuita sem a frequência imperativa (...) uma instituição mutilada”, Horta (1998, p. 14) justifica a associação entre gratuidade e obrigatoriedade do ensino ao considerar a instrução primária do indivíduo como um direito individual e coletivo e que garante os elementos necessários para a constituição do homem responsável pela convivência social.

A primeira Carta Constitucional Republicana, em 1891, foi omissa em relação à educação, não contemplando a gratuidade e a obrigatoriedade, limitando-se em determinar a competência do Congresso Nacional em legislar sobre o ensino superior na capital e a laicidade do ensino público (CUNHA, 1986).

Influenciada pelos movimentos reformistas do início da década, em especial o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, a Constituição Republicana de 1934 dedicou um capítulo à educação e à cultura, determinando no artigo 146 que:

A educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana.

Todavia, Horta (1998, p. 18) ressalta que este texto constitucional permitiu uma dubiedade de interpretação relativa à obrigatoriedade, pois, apesar de determinar o dever dos poderes públicos para ministrar a educação, também explicitava a “frequência obrigatória” do aluno, deixando indefinido o dever do Estado na oferta de escola para toda a população.

A Constituição da Ditadura Vargas, em 1937, manteve a gratuidade e obrigatoriedade com ressalvas, conforme o artigo 130:

O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar.

A gratuidade ficou comprometida considerando a possibilidade de pagamento de mensalidade, mesmo que de forma dissimulada, nas instituições públicas. De outra forma, o caráter suplementar da ação do poder público ficou expresso no artigo 125:

A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular.

Assim, o poder público se eximia de garantir o direito à educação, ainda que expresso o seu dever para com a oferta da educação, ou seja, a proclamação do direito não se traduzia em obrigações do Estado para a sua materialização.

Com a redemocratização do país foi elaborada a Constituição de 1946 que reafirmou a educação como direito de todos, sendo ministrado pelos “Poderes Públicos” (BRASIL, 1946, Art. 167), dispondo como princípios o ensino público obrigatório e a gratuidade do “ensino primário oficial” (BRASIL, 1946, Art. 168). Para Romanelli, essa Carta caracterizou-se por

(...) aliar garantias, direitos e liberdade individuais, com intervenção do Estado para assegurar essas garantias, direito e liberdade a todos, a Constituição de 1946 fugiu à inspiração da doutrina econômica liberal dos séculos anteriores para inspirar-se nas doutrinas sociais do século XX. (ROMANELLI, 2002, p. 171, grifo da autora).

O golpe civil-militar de 1964 impeliu a elaboração de uma nova Constituição no ano de 1967 e, em seguida, a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, alterou significativamente o texto original. O artigo 176 dispunha a educação como dever do Estado, definindo como princípio o ensino primário para todos, dos 7 aos 14 anos, bem como sua gratuidade nos estabelecimentos de ensino oficiais. Em que pese o regime ditatorial do momento histórico, Horta (1998) salienta que foi a primeira vez que uma constituição apresentou de forma explícita o dever do Estado para a educação e, ao mesmo tempo, retomou a delimitação de uma faixa etária para o atendimento escolar obrigatório.

A promulgação da Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, marcou a significativa e almejada passagem do Estado Ditatorial, no qual imperava arbitrariedades e autoritarismo, para o Estado Democrático de Direito, baseado nos princípios da soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político (BRASIL, 1988, artigo 1º).

No que diz respeito à educação, a Constituição a proclamou como direito social (BRASIL, 1988, artigo 6º), estabeleceu que sua realização é condição para o exercício da cidadania (BRASIL, 1988, artigo 205), garantiu a gratuidade e a obrigatoriedade da educação pública (BRASIL, 1988, artigo 206, 208), explicitou as obrigações do Estado no cumprimento do direito à educação e a qualificou como direito público subjetivo (BRASIL, 1988, artigo 208, inc. VII, § 1º), o qual refere-se ao “poder de ação que a pessoa possui de proteger ou defender um bem considerado inalienável e ao mesmo tempo legalmente reconhecido” (CURY; HORTA; FÁVERO, 2005, p. 25). Além disso, inovou ao criar mecanismos para garantir o direito à educação, como o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção e a ação civil pública (OLIVEIRA, 1999a, p. 65).

No artigo 208, estão explicitadas as obrigações do Estado mediante o cumprimento do direito à educação, reforçando a importância individual e social da educação, conforme determinado no parágrafo 1º, do inciso VII, do referido artigo, “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Duarte explica que direito público subjetivo

Trata-se de uma capacidade reconhecida ao indivíduo em decorrência de sua posição especial como membro da comunidade, que se materializa no poder de colocar em movimento normas jurídicas no interesse individual. Em outras palavras, o direito público subjetivo confere ao indivíduo a possibilidade de transformar a norma geral e abstrata contida num determinado ordenamento jurídico em algo que possua como próprio. A maneira de fazê-lo é acionando as normas jurídicas (direito objetivo) e transformando-as em seu direito (direito subjetivo). (DUARTE, 2004, p. 113).

A Carta Magna de 1988, além de estabelecer a educação como um direito social, sustentou que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, imputou aos poderes públicos um conjunto de responsabilidades com vistas à garantia dos direitos de todos os seus cidadãos, uma vez que neste modelo de Estado:

(...) é a elaboração e a implementação de políticas públicas - objeto, por excelência, dos direitos sociais - que constituem o grande eixo orientador da atividade estatal, o que pressupõe a reorganização dos poderes em torno da função planejadora, tendo em vista a coordenação de suas funções para a criação de sistemas públicos de saúde, educação, previdência social, etc. (DUARTE, 2007, p. 694).

As políticas educacionais, recorte das políticas públicas voltadas para a educação, são o conjunto de ideias, propostas e ações que se consubstancia na intervenção do poder público e são materializadas no âmbito da gestão educacional, entendida como:

(...) um amplo espectro de iniciativas desenvolvidas pelas diferentes instâncias de governo, seja em termos de responsabilidades compartilhadas na oferta de ensino, ou de outras ações que desenvolvem em suas áreas específicas de atuação (VIEIRA, 2007, p. 63).

Prestes a completar 30 anos, há que se apreciar evidências das efetivas mudanças provocadas pela promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Sabe-se que a promulgação de direitos não garante sua efetivação (SAVIANI, 2013), a concretização do direito se dá por meio da ação do Estado, na implantação e na gestão de políticas públicas. Assim, há que se destacar o significado político, social e até simbólico da proclamação dos direitos sociais, entretanto, a efetivação desses direitos requer a atuação do Estado na formulação e implementação de políticas educacionais que operacionalizem e deem concretude aos direitos expressos nos textos legais.

Dados da efetivação do direito à educação

Dados baseados no Censo Escolar de 2016, divulgados pelo INEP (BRASIL, 2017b), fornecem um panorama nacional sobre a efetividade da gestão educacional da educação básica na concretização do direito à educação e evidenciam avanços realizados e entraves que até então não foram enfrentados. Para efeitos deste artigo, compreende-se “a garantia de oportunidade de acesso e a possibilidade de permanência na escola, mediante educação com nível de qualidade semelhante para todos” (ARAÚJO, 2011, p. 287) como efetivação do direito à educação. Cabe salientar que a Constituição definiu que a educação básica, dos 7 aos 14 anos, que corresponde ao ensino fundamental, é obrigatória. Posteriormente, por emenda constitucional (EC 59/2009) a obrigatoriedade foi estendida para a população de 4 a 17 anos, abarcando as faixas etárias correspondentes à parte da educação infantil, ensino fundamental e ensino médio.

Antes, cabe sublinhar a dimensão e as condições das redes de escolas no país. Em 2016, verificam-se 186,1 mil estabelecimentos escolares que atendem 48,8 milhões de estudantes na educação básica. Destes, 61,7% (aproximadamente 115 mil escolas) estão sob a responsabilidade dos municípios, 16,5% dos estados, 0,3% da federação e 21,5% compõem as instituições privadas. Isso significa que as escolas públicas representam 78,2%, ou seja, mais de 145 mil estabelecimentos de educação básica. Somente 50,5% do total de escolas de educação básica possuem bibliotecas e/ou sala de leitura. Observando separadamente as escolas por nível de atendimento, ensino fundamental e ensino médio, verifica-se a existência destes equipamentos em 53,7% nas primeiras e 88,3% nas segundas; 33,9% estão localizadas na zona rural; 23,8% têm até 50 matrículas; 95,3% têm esgoto sanitário; 97% possuem energia elétrica e 96,3% dispõem de abastecimento de água (BRASIL, 2017b).

Esses números indicam a grandeza e a variedade de situações que podem ser encontradas nas redes de ensino, o que demanda maior necessidade de organização e orquestração das ações da gestão educacional no país para efetivar o direito à educação, neste sentido:

A garantia do direito à educação de qualidade é um princípio fundamental para as políticas e gestão da educação, seus processos de organização e regulação, assim como para o exercício da cidadania. A despeito dos avanços nas políticas e gestão da educação nacional, o panorama brasileiro é marcado por desigualdades regionais no acesso e permanência de estudantes à educação, requerendo mais organicidade das políticas educacionais (FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2013, p. 13).

Embora a Constituição tenha tratado as etapas de ensino - educação infantil, ensino fundamental e ensino médio - de forma unificada (BRASIL, 1988, art. 208), englobando-as na concepção de educação básica, o desenvolvimento da garantia do direito à educação, compreendidos como acesso, permanência e qualidade de ensino, de cada uma delas não se deu de forma única, ao contrário, observa-se, como veremos em seguida, grande disparidade nas formas e nos números do atendimento de cada nível, isso porque:

A constituição e a trajetória histórica das políticas educacionais no Brasil, em especial os processos de organização e gestão da educação básica nacional, têm sido marcadas hegemonicamente pela lógica da descontinuidade, por carência de planejamento de longo prazo que evidenciasse políticas de Estado em detrimento de políticas conjunturais de governo. Tal dinâmica tem favorecido ações sem a devida articulação com os sistemas de ensino, destacando-se, particularmente, gestão e organização, formação inicial e continuada, estrutura curricular, processos de participação (DOURADO, 2007, p. 925).

O atendimento em creches, destinado às crianças com menos de 3 anos, teve um aumento de 56,6% no período de 2011 a 2016, saiu de pouco mais de 1,7 milhões e chegou em mais de 3,2 milhões. Entretanto, isso representa somente 25,6% das crianças nesta faixa etária. A educação infantil, etapa que acolhe crianças de 4 e 5 anos, registra significativa ampliação nos últimos anos. Em 2008 quase 7 milhões de crianças estavam matriculadas na educação infantil, em 2016 esse contingente subiu para pouco mais de 8 milhões, ainda assim, apenas 84,3% da população de 4 e 5 anos estão dentro da escola, sendo que na faixa etária de 4 anos este percentual é de 77,3% e na de 5 anos é de 91,4% (BRASIL, 2017a).

Uma forte hipótese para explicar o reduzido atendimento na educação infantil, especialmente nas creches, é a instituição do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), por meio da Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996, que alterou o artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e foi regulamentado pela Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996. O Fundef, fundo de natureza contábil com vigência de 10 anos, vinculou os gastos do orçamento da educação priorizando o atendimento do ensino fundamental em detrimento do atendimento à educação infantil e ao ensino médio. Logo após a implantação do Fundef, Davies analisou que o fundo enfraqueceu e desarticulou o sistema de ensino, uma vez que

(...) as matrículas da educação infantil, de jovens e adultos (supletivo) e do ensino médio não são consideradas para efeitos de redistribuição dos recursos. Como só as matrículas no ensino fundamental regular valem para a obtenção de recursos do Fundef, as autoridades tenderão a privilegiar tais matrículas e deixar de lado as dos demais níveis de ensino. (DAVIES, 1999, p.17).

O diagnóstico do Plano Nacional de Educação (2001/2011) corrobora a afirmação de Davies (1999) e conclui, com base na Sinopse Estatística da Educação Básica/1999, que houve um decréscimo nas matrículas na pré-escola com a redução de 200 mil no ano de 1998 para 158 mil em 1999. De acordo com o documento,

esta redução deve-se à implantação do FUNDEF, que contemplou separadamente o ensino fundamental das etapas anterior e posterior da educação básica. Recursos antes aplicados na educação infantil foram carreados, por Municípios e Estados, ao ensino fundamental, tendo sendo fechadas muitas instituições de educação infantil. Na década da educação, terá que ser encontrada uma solução para as diversas demandas, sem prejuízo da prioridade constitucional do ensino fundamental (BRASIL, 2001, p. 10).

Constatar o atendimento de 27,5 milhões de estudantes no ensino fundamental, em 2016, aproximadamente 97,8% do total da população na faixa etária correspondente a esta etapa do ensino (BRASIL, 2017a), reforça a hipótese do impacto negativo do Fundef na educação infantil por meio da prioridade na destinação de recursos financeiros para esta etapa da educação básica. Todavia, os entraves nesta etapa de ensino estão associados à qualidade. Analisando o tema, Oliveira e Araújo (2005, p. 17) ressaltam que, em 2001, a média de anos de estudo da população com 10 anos ou mais era de 5,8 anos, significando “que muitos brasileiros até conseguem o acesso à etapa obrigatória de escolarização, mas não conseguem finalizá-la”. Apesar da extensa literatura que investiga os efeitos nocivos da reprovação, os dados do INEP (BRASIL, 2017a) indicam que tal prática não foi abolida. Em 2015, a média de aprovação nos anos iniciais do ensino fundamental foi de 93,2% e nos anos finais de 85,7; 2,3% das crianças de 6 anos que ingressaram nas escolas foram reprovadas e 11,4% dos alunos de 9º ano também. O percentual pode parecer reduzido, entretanto, o primeiro caso refere-se a pouco mais de 67.000 crianças e, no segundo, mais de 320.000 estudantes.

O ensino médio, último nível da educação básica, possui indicadores muito aquém dos preceitos constitucionais de garantia e obrigatoriedade de acesso e permanência como uma condição de efetivação do direito à educação. Em 2015, aproximadamente 8 milhões de estudantes frequentavam este nível da educação básica. No entanto, destes, apenas pouco mais de 5 milhões (62,7%) correspondiam a alunos com idade entre 15 e 17 anos, ou seja, mais de um terço dos jovens em idade escolar estão fora da escola. As taxas de aprovação, na média, foram de 81,7%; a taxa de insucesso (soma da reprovação e do abandono) foi de 27,5% no primeiro ano do ensino médio, 18,1% no segundo e 11,9% no terceiro (BRASIL, 2017a).

Os dados denotam que, enquanto o entrave no ensino fundamental concerne à questão da qualidade, na educação infantil e no ensino médio, ainda há muito o que ser feito para efetivar a primeira condição para a garantia do direito à educação: o acesso. Mesmo tendo sido obrigatória a frequência à escola da população de 4 aos 17 anos, conforme Emenda Constitucional nº 59/2009, nota-se que este direito foi promulgado, entretanto, há um árduo caminho a ser percorrido para sua efetivação.

Há que se registrar, ainda, um avanço em relação ao atendimento de alunos na educação especial. Em 2008, 31% das escolas recebiam esses alunos; em 2016, esse percentual saltou para 57,8% (BRASIL, 2017b). Em que pese a importância de investigações que tenham como foco imersões nas escolas para conhecer como se tem dado, na prática, a inclusão dos alunos com deficiência, não deixa de ser significativa e relevante essa ampliação.

As matrículas na modalidade Educação de Jovens e Adultos têm diminuído gradativamente, representam 3,4 milhões de alunos em 2016; esse contingente era de quase 5 milhões em 2008. Nota-se decréscimo no ensino fundamental, eram mais de 3 milhões em 2008 e menos de 2 milhões em 2016, e ampliação no ensino médio de 5,7%. Esses números refletem a trajetória histórica do atendimento nos ensinos fundamental e médio. As políticas de expansão de matrículas fizeram com que o primeiro fosse praticamente universalizado desde os anos de 1990 (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2005, p. 08), enquanto o segundo ainda carece de investimentos e políticas para chegar nesse patamar.

Longe de explorar todas as análises que as informações dos documentos (BRASIL, 2017a; 2017b) permitem, tendo em vista os limites deste artigo, os dados do Censo Escolar 2016 apreciados revelaram que - quando se toma o acesso, a permanência e a qualidade como referências do direito à educação - se, por um lado, há avanços alcançados, estes estão muito aquém das garantias legais. Por outro, os entraves na garantia do direito à educação impõem desafios robustos a serem enfrentados na gestão da educação pública.

Considerações finais

Ao finalizar este debate em torno da efetivação do direito à educação, no nível da educação básica, vale ressaltar que a inconstância da materialidade legal desse direito é uma destacada peculiaridade da sua trajetória nas constituições brasileiras, pois observa-se momentos de alargamento e de recuo do direito à educação. Também é perceptível, em alguns períodos, a inscrição do direito à educação nos textos legais sem a devida condição para sua real efetivação.

A Constituição Federal de 1988 é, sem dúvida, o texto legal - de todos já promulgados no país - que mais especifica as garantias do direito à educação, além de inovar inscrevendo mecanismos jurídicos para sua efetivação. Assim, pode-se registrá-la como um expressivo aperfeiçoamento na conquista do direito à educação, entretanto, há que se implementar políticas públicas que reflitam de forma equânime essa conquista.

Por fim, com base nos dados apresentados, ressalta-se que a efetivação do direito à educação não só precisa ainda percorrer um longo caminho para cumprir o disposto de garantia do direito à educação na legislação, como também exige que sejam feitos investimentos na implementação de políticas diferenciadas para superar as desigualdades geradas historicamente no atendimento aos diversos segmentos populacionais no país.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2018
  • Aceito
    30 Jan 2018
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