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Há docentes à escuta? O devir-pergunta de uma criança que ensina a ensinar

Are there teachers listening? The becoming-question of a child who teaches how to teach

RESUMO

A presente escrita surgiu de uma irradiação a partir de experiências com três crianças reais - a Lara, o Luiz e o Tomás - e a inspiração de um menino ficção. Começamos com duas perguntas infantis sobre a tensão que atravessa o dentro e o fora do pensamento, buscando quebrar barreiras entre um sujeito pensante e um mundo circundante. Devemos essa quebra a José Gil (2009), ao seu devir-criança do pensamento, que traz um devir-animal e um devir-pergunta da escrita. Partimos, também, da inspiração trazida pelo menino ficcionado de um conto de Mia Couto (2021), que experimenta a escuta como divergência e diferença e desafia formas adultocêntricas de exclusão e de repressão. Escutamos, depois, as perguntas de duas crianças, colocando-nos o desafio de equacionar um dentro e um fora do pensamento. Seguimos para uma experiência de encontro com o fora como distância sem medida, que desmonta a divisão entre uma individualidade e o seu entorno. Terminamos como começamos - entre as vozes que se escutam e as palavras que se dizem -, encontrando na afetividade do corpo infantil a abertura ao irradiar das intensidades do mundo. Quem sabe seja uma oportunidade para (re)pensarmos a formação docente e, em particular, o lugar da escuta nela. O exercício é um convite docente aos e às docentes a escutar expressões de um filosofar menino que põem em marcha o avesso do pensamento como a sua potência mais íntima.

Palavras-chave:
Infância; Formação Docente; Escuta; Filosofar Menino

ABSTRACT

The present writing was born in an irradiation from experiences with three real children - Lara, Luiz, and Tomás - and the inspiration of a fictional child. We started with two questions of children about the tension that crosses the inside and outside of thinking, seeking to break barriers between a thinking subject and a surrounding world. We owe this break to Jose Gil (2009), to his becoming-child of thinking, which brings a becoming-animal and a becoming-question of writing. We thus start from the inspiration brought by the fictionalized boy in a short story by Mia Couto (2021), who experiences listening as divergence and difference and challenges adult-centric forms of exclusion and repression. We then listen to the questions of two children, posing us the challenge of equating an inside and an outside of thinking. We move on to an experience of encountering the outside as distance without measure, which dismantles the division between an individuality and its surroundings. We end as we began - between the voices that are heard and the words that are said - finding in the affectivity of the child’s body an opening to the irradiation of the intensities of the world. It maybe, who knows, a perspective to (re)think about teacher education and, in particular, the place of listening in it. The exercise is a teaching invitation to the teachers to listen to expressions of a childlike philosophizing that set in motion the other side of thought as its most intimate power.

Keywords:
Childhood; Teacher Training; Listening; Childlike Philosophizing

Há docentes à escuta? O devir-pergunta de uma criança que ensina a ensinar

Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora?

Pergunta feita pela Lara, menina que frequenta a Escola Francisco Medeiros Garoupa, nos Açores, em 29 de novembro de 2021, numa atividade do projeto “filosofâncias” (Santos et al., 2022SANTOS, Auxiliadora; VIEIRA, Fernando; CANHÃO, Joana; VIEIRA, Paula Alexandra; CABRAL, Silvina; LOURENÇO, Constança. Filosofâncias de uma escola que junta a filosofia e as crianças: brincolandiamos?. In: COSTA CARVALHO, Magda; VIEIRA, Paula Alexandra (Org.). (A)riscar-se na filosofia, (a)colhendo infâncias: encontros com Gabriela Castro. Ponta Delgada: Letras Lavadas, 2022. p. 315-327.)

Tia, como é falar de dentro para fora?

Pergunta feita pelo Luiz, menino que frequenta a Escola “Municipal Joaquim da Silva Peçanha, Duque de Caxias, RJ”, em 29 de março de 2022SILVA, Osvaldo Luiz da. O corpo do educador da Educação Infantil lido como uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: NEFI, 2022., a Melissa, professora que participa do Projeto “Em Caxias a filosofia en-caixa?” (Kohan, 2012KOHAN, Walter Omar. Sócrates e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.)1 1 Estas perguntas irradiaram, para o autor e a autora do texto, como tantas vezes acontece quando pensamos com as crianças. Respeitando esse movimento, pedimos autorização ao Luiz (e à Melissa) e à Lara para que a nossa escrita pudesse partir das suas inquietações. O mesmo aconteceu com o Tomás, de quem falaremos adiante. Aos três, expressamos o nosso mais profundo agradecimento e desejamos que continuem a desassossegar outras escutas docentes pela vida afora. O recurso ao nome real das crianças com quem a pesquisa se cruza tem sido tópico de interessantes debates nos últimos anos. Esta é uma questão que o autor e a autora do texto consideram pertinente, sobretudo no âmbito de pesquisas com infâncias, tendo em conta um balanceamento necessário entre a proteção da identidade e a valorização da agência das crianças. Seguimos a posição de autoras como Despret (2011), segundo a qual o anonimato protetor na pesquisa pode funcionar como desencadeador do “efeito sem nome”, silenciando os sujeitos de fala e acentuando a assimetria entre o “especialista” (cujo nome deve ser sempre referenciado nos resultados da pesquisa) e todos os outros implicados (com quem aquele pesquisou). No caso específico da pesquisa com crianças, seguimos também as posições de Kramer (2002), que entende as crianças como autoras das pesquisas nas quais estão envolvidas e que, sem negligenciar os cuidados que todos os implicados numa pesquisa merecem, sublinha como o anonimato pode conduzir à consideração da infância em termos abstratos, dissimulando as suas singularidades, invisibilizando as reais desigualdades e expropriando as crianças do que elas têm de íntimo. Enquanto pesquisador e pesquisadora, entendemos importante, acima de tudo, não aceitar inquestionadamente a prerrogativa de anonimizar as crianças, devendo cada caso ser devidamente considerado com elas e a partir do que elas entendem poder ser os seus contributos e posições nas escritas que decorrem de cada pesquisa.

Da des-escuta das vozes

O sentido principal do presente texto2 2 Pesquisa realizada no âmbito dos seguintes projetos de investigação: escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a política, financiado pelo Governo dos Açores, Portugal (M1.1.C/C.S./031/2021/01); “Uma pedagogia menina da pergunta: princípios, sentidos e desdobramentos” (FAPERJ Processo: E-26/201.039/2022); “A Filosofia na infância da vida escolar” Programa CAPES-PRINT (Processo Nº 88881.311741/2018-01) e “A vida (política) do mestre numa educação filosófica: Paulo Freire” (CNPq Processo: 307724/2019-0). é convidar a escuta docente e, quem sabe, oferecer uma perspetiva para a formação docente. Ele pode também, talvez, acompanhar os movimentos sociais na sua dimensão formativa, com seu modo de afirmar práticas educativas e de pesquisa, assim como também na sua relação com a infância. Nós, formadores docentes, trabalhando em Universidades públicas do Brasil e de Portugal, vivemos a formação docente sensível às perguntas meninas. Não tanto no sentido de objetos de estudo, mas como fonte de inúmeras inquietações que podem elas próprias orientar os rumos da pesquisa. Deixamo-nos perturbar pelo modo como as crianças e as infâncias estão presentes nas instituições de educação e de pesquisa, sempre mais como aquelas a quem se referem os discursos e para quem se planificam as práticas, do que como legítimas portadoras de vozes próprias3 3 Sobre o modo como as crianças podem influenciar as pesquisas, veja-se Magda Costa Carvalho (2022). . Quem sabe, o presente texto instigue a escutar o que ainda não escutamos e, assim, a repensar o modo como habitamos a formação docente. Quem sabe ele também convide a escritas mais infantis, inclusive escritas de si, docentes e infantis (Kohan; Costa Carvalho, 2021KOHAN, Walter Omar; COSTA CARVALHO, Magda. Atrever-se a uma escrita infantil: a infância como abrigo e refúgio. Childhood & Philosophy, v. 17, p. 1-30, 2021 http://doi.org/10.12957/childphilo.2021.59827
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). Para tanto, faremos isso convidando e escutando um escritor, um filósofo e algumas crianças, ou seja, figuras infantis de diversas idades4 4 Neste artigo, usamos os termos “criança” e “menino” para nos referirmos a pessoas-de-pouca-idade (Costa Carvalho; Almeida; Taramona, 2023). Já o termo “infância” diz respeito ao tempo da vida e não à idade. Sobre a distinção entre infâncias e crianças/meninos, na sua relação com os tempos aión e khrónos, bem como a relação da prática docente com essas temporalidades, temos escrito reiteradamente em Walter Omar Kohan (2004, 2019, 2021). .

Primeiro, um escritor. Assim, um dos contos mais perturbadores de Mia Couto intitula-se “A culpa” e fala de um menino torto e desajeitado (Couto, 2021COUTO, Mia. O caçador de elefantes invisíveis. Lisboa: Caminho, 2021.). Um menino sábio. Tão sábio que “só tinha virtudes que não serviam para nada” (e o escritor sublinha como isso é muito difícil). Uma das virtudes do menino sábio era escutar mal as palavras que lhe eram dirigidas. O “menino escutava mal e mal escutava” a voz humana, sobretudo quando esta se dava na forma de palavras. As palavras que o menino sábio des-escutava eram sobretudo as de seu pai: palavras que o maltratavam violentamente e que eram o rasto de uma desconsideração permanente. Mas des-escutar não era, para o menino desajeitado, não ouvir essas palavras. Era ouvi-las, sim. Mas, uma vez ouvidas, as palavras eram escutadas de modos muito diferentes daqueles com que pareciam ter sido pronunciadas. “Quando o pai o chamava de ‘burro’, o menino escutava ‘barro’. E quando a mãe era insultada, ele convertia o insulto em silêncio” (Couto, 2021, p. 105).

De tanto des-escutar ou re-escutar, o menino sábio trocou a escuta da voz humana pela escuta dos pássaros. E, à força de escutar os pássaros, o menino torto e desajeitado passou a gorjear. Gorjeava o canto de aves que existiam e até de aves que não existiam (antes). O pai, claro, mais uma vez procurou interromper a vida que pulsava no menino e transformou-o em atração de feira. Tirou-o da escola e, durante algum tempo, vendeu, de terra em terra, as suas habilidades sonoras. Quanto mais o pai percebia que o menino “deixava de ser pessoa”, mais se insurgia violentamente sobre ele, vociferando que “tudo, neste mundo, é negócio”.

Desse modo, as palavras ameaçadoras do pai pareciam aproximar cada vez mais o menino da animalidade e logo lhe nasceram um penacho, uma penugem, muitas penas. Numa noite, o menino “despediu-se de vez da palavra”, conta-nos Mia Couto (2021COUTO, Mia. O caçador de elefantes invisíveis. Lisboa: Caminho, 2021., p. 107). Ganhou bico, asas, unhas estreitas e curvas, um farfalhar de penas cobriu-lhe o corpo todo. O menino-pássaro assobiou. A mãe, que presenciara a transformação, ficou em cuidados com a possibilidade de o pai descobrir o filho pássaro e disparar sobre ele um mortal tiro de caçadeira. Mas isso já não seria possível, conta Mia Couto aos seus leitores, porque enquanto o (corpo do) filho ganhava as formas de uma majestosa ave de rapina, o (rosto do) pai perdia os olhos… misteriosamente devorados. O menino ganhava corpo, o pai perdia corpo.

E nós, leitores e leitoras, chegamos justo no meio: surpreendemo-nos e surpreendemos, ao mesmo tempo, os dois sentidos do movimento que circula entre a transformação do menino e a transformação do pai.

O conto termina com a descrição da paisagem que o pai teria visto se os olhos não lhe tivessem sido vazados: uma mulher sorridente que saía de casa com a bagagem numa mão e uma ave majestosa no ombro. Ao seu lado, um menino alegre corria.

Este conto pode inquietar-nos de muitas e diferentes maneiras. A começar pelo título: “A culpa”. A quem se refere? Ao pai abusador do seu filho e da sua companheira que, num volte-face moralmente reparador, é consumido pela sua própria culpa? A todos nós, adultos professores e educadoras que não paramos para escutar as crianças e as insultamos de muitas e diferentes maneiras? Que as catalogamos em categorias rígidas e expropriantes? Que o fazemos sobretudo quando lhes impomos os nossos ritmos? Quando as tratamos debaixo da lógica da produtividade e do negócio? Quando as des-qualificamos?

Mas talvez haja outras formas de sermos perturbados por este conto de Mia Couto. A ideia de infância que o atravessa não deixa de nos surpreender. A sua analogia com o barro não será, certamente, novidade. À semelhança desse material bruto e moldável, tendemos a considerar as crianças - a infância cronológica - simultaneamente como infinita potencialidade e matéria informe. Esta visão adequa-se à perspectiva formalista que entende as crianças como material moldável e em falta, fragilidade em processo de constituição futura (Kohan, 2004KOHAN, Walter Omar. A infância da educação: o conceito devir-criança. In: KOHAN, Walter Omar. Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 51-68.). O conto de Mia Couto surpreende precisamente por descrever o barro de outras formas: não enquanto coisa que é isto ou aquilo e que pode ser moldada desta ou daquela forma à vontade do seu criador (terra usada na fabricação de objetos, por exemplo), mas enquanto acontecimento em que se encontram dinâmicas e forças tão diferentes e díspares.

Quando o pai insultava o menino, chamando-o “burro”, ele sorria porque entendia “barro”. Em vez da cristalização da estupidez, escutava a potencialidade infinita. E, segundo conta o escritor, assim o menino evitava conflitos porque “chegava ao ponto de acolher a ofensa como se fosse uma prenda. E tinha razão. Há neste mundo melhor que o barro? O que mais pode ser, ao mesmo tempo, terra e água, mão, sede e cântaro?” (Couto, 2021COUTO, Mia. O caçador de elefantes invisíveis. Lisboa: Caminho, 2021., p. 105). O barro como composto, intermezzo entre terra, água, mão, sede e cântaro. O barro como movimento disperso entre uma interioridade sedenta, uma mão voluntariosa, uma forma cântaro, forças da terra e da água. O barro - e o menino que des-escutava - como desafios informes a um certo modo de pensar formatado.

Haverá na escuta desta mãe e deste pai duas possibilidades distintas para a escuta docente? Haverá docentes lendo este texto que se identificam, na sua leitura deste conto, com a atitude do pai ou com a atitude da mãe do menino? Haverá pesquisadores que, como o autor e a autora deste texto, se perguntam pelas vezes que podem ter experimentado uma ou outra? Haverá docentes que (des)escutam como escuta o pai do menino? Haverá docentes que escutam como escuta a mãe do menino? Haverá quem des-escuta como des-escutava o menino? Certamente há uma questão de gênero envolvida, na qual não queremos entrar, mas também não queremos deixar de sinalizar uma possível reflexão a partir do que o texto possa sugerir para docentes leitores e leitoras preocupados e preocupadas em (re)pensar a sua relação com a infância, seja a infância das crianças, seja a infância de todas as idades.

Contudo, não é só o pai ou a mãe que podem nos ajudar a pensar. O menino, diz o escritor moçambicano, escutava mal e mal escutava. E, curiosamente, isso não é entendido como motivo de mal-entendidos ou discórdias. Muito pelo contrário. Escutar mal e mal escutar fazem parte de uma certa sabedoria infantil. São atributos - ou virtudes - diferentes. A primeira (escutar mal) tem a ver com uma certa dissonância ou distorção entre o falado e o escutado: não é escutado o que é dito, mas outras coisas, traindo-se a semântica inicial dos enunciados; a segunda (mal escutar) é uma diferença alcançada com base num excesso de sensibilidade em relação com o dito. É ainda mais difícil. A primeira é dissonância, a segunda é diferença. Uma e outra têm a ver com um certo devir-criança ou bloco de infância (Deleuze; Guattari, 2007DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.)5 5 Sobre o conceito devir-criança e bloco de infância, ver Kohan (2004). . A infância, associada desde a etimologia à ausência/impossibilidade de fala, afirma-se aqui como uma des-escuta, uma não escuta escolhida ou uma escuta propositalmente negada. E, nesse entendimento, o menino do conto cresce não para aprender a escutar, para se apurar na arte de reconhecer os sentidos do já dito ou, de um modo mais geral, para tornar real uma possibilidade, mas precisamente para perder essa escuta, para dispersar-se no radicalmente novo. Para des-escutar.

No conto, a perda da escuta é acompanhada da perda da fala: o menino despede-se da palavra e na boca fica só um assobio… até que a boca, enquanto órgão, também se perde e se torna bico de pássaro. O menino fala mal e mal fala. Aprende a fazer da fala também uma experiência estranha de dissonância e de diferença. Cresce para ser cada vez mais infante. Sai de si, recusa uma interioridade consonante ou uma identidade do mesmo. Instala-se no que Gilles Deleuze chamou de “fora”:

No momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado, quando se aventura para fora do reconhecível e do tranquilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se […] um “ato arriscado”, uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo (Deleuze, 2017DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 132).

Da culpa ao barro, do mal escutar à despedida da palavra, o conto de Mia Couto apresenta uma transição ou metamorfose dos registros de uma interioridade humana onde princípio e fim coincidem, para uma fuga às formas de uma normalidade insuportável e invivível. O menino resiste à brutalidade do falocentrismo paterno, fugindo para fora de sua moral, de sua estética e de sua epistemologia. Escapa das cadeias de uma política da representação em que outro decidia por ele, em que outro falava por ele, em que outro lhe fixava sentidos. Para tanto, rejeita as formas adquiridas e exerce uma potência que lhe permite criar novos conceitos e novas forças de vida. O pai queria que ele fosse burro - animal pesado e preso à terra - mas ele desobedece e torna-se animal leve, alado, indomável.

E, assim, o menino devém pássaro. Ele entra e é tomado por um devir-pássaro. Há um devir-pássaro do menino. O devir-pássaro tem uma materialidade: um corpo menino que entra numa zona de indeterminações, micromoléculas: ganha partículas e transforma seus órgãos, des-organizando-se como corpo humano e tomando materialidade animal, ganha bico e pronuncia novos sons, assobia, ganha penas e com isso voa, aprende a passarear com um corpo que é tomado por um bloco de animalidade (Deleuze; Guattari, 2007DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.).

O menino se torna uma espécie de corpo sem órgãos (Deleuze; Guattari, 2007DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.) que vibra, voa e dança nos ritmos do pássaro que o toma. Uma espécie de bloco único de infância-pássaro, uma máquina a dois, em que se combinam os ritmos, as partículas, as vibrações de uma criança que devém pássaro e de um pássaro que também devém criança: um devir-criança do pássaro; um devir-pássaro da criança: indiscerníveis, indissociáveis.

E talvez, assim, a maior perturbação do conto do moçambicano Mia Couto - escritor cujo nome, lembremos, não pode ser dissociado dos sons de um gato (Nordlund, 2019) - venha do bloco de imanência no qual a sua escrita nos convida a entrar. José Gil, filósofo também nascido em Moçambique, pode ajudar neste ponto:

É inútil […] perguntar […] se o devir-animal transforma realmente o corpo em um animal ou se se trata de uma analogia. Nem uma coisa nem outra: o devir apenas é real por si e a individuação que aí se constrói não implica nem sujeito nem indivíduo, mas hecceidades, singularidades de “partículas de uma matéria anónima” (Gil, 2009GIL, José. “A reversão”. In: LINS, Daniel (Org.). O devir criança do pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 19-33., p. 20).

Voltemos ao conto. Esta não é uma história sobre indivíduos e subjetividades. É uma história em que indivíduos e subjetividades se dissolvem em movimentos e corpos sem órgãos (esse corpo que se des-organiza como corpo humano e toma outra materialidade e outras formas). Um conto que recusa a linguagem empedernida das formas cristalizadas, que se rebela e desobedece. O importante serão, então, os fluxos e aquilo que neles é irradiação, precisamente porque é aí que podemos entrar na “zona de osmose”, surpreender as forças pelo meio. O momento em que, des-subjetivados, podemos ser tomados pelo devir animal da criança.

Lemos o conto de Mia e somos contagiados pelas potências de um menino literário de quem pouco ou nada sabemos. É de longe que imaginamos a sua transformação, experimentamos a sua zona de impacto do lado de cá, através das letras impressas num livro. Mas é através da sua proposta da escuta enquanto exercício de divergência e diferença que nos questionamos sobre estes movimentos de rebeldia do pensamento. Não poderemos, nós também, ser surpreendidos por esses devires? Existirão por aí? No chão das escolas? Nas vozes e inquietações de crianças reais? Quando é que a escuta de uma pergunta nos pode arrastar para o jogo?

Há docentes escutando? Há docentes escutando o devir pássaro de uma criança e o bloco de infância onde ela habita? Pode o devir pássaro de uma criança ser escutado como uma inspiração para a prática docente? Há docentes des-escutando um devir? Há docentes dispostos a devir? Devir-escuta? Devir-escuta de um docente? Devir-docente de uma escuta? Podemos pensar uma formação docente sensível às possibilidades que oferecem esses conceitos para nossas práticas?

O que as crianças dizem

As crianças dizem o que fazem e o que tentam fazer: exploram meios e traçam mapas correspondentes, afirma Deleuze (1997DELEUZE, Gilles. O que as crianças dizem. In: DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 73-79.): “Não existe momento algum em que a criança não esteja mergulhada num meio atual que ela percorre, em que os pais como pessoas só desempenham a função de abridores ou fechadores de portas, guardas de limiares, conectores ou desconectores de zonas” (Deleuze, 1997, p. 74). O filósofo parece dizer-nos que, na fala das crianças, tudo é meio, tudo é campo imanente através do qual elas se espraiam e ensaiam as suas trajetórias. E, assim, mais do que qualquer outra função, talvez aquilo que nos compete seja escutar o que as crianças dizem.

Por isso, colocamos como epígrafes deste texto duas perguntas de crianças que participam em projetos de filosofia em escolas nos Açores e no Brasil. São crianças de carne e osso que vivem mundos muito diferentes, em muitos sentidos. Mas as frases parecem conter algo em comum, algo que também ressoa no menino do conto de Mia Couto, porque parece convidar à entrada numa zona de osmose, à produção de outras multiplicidades. Pensemos nelas novamente. Façamos estas perguntas - cada um e uma de nós que as reescrevemos e quem as leem - com as nossas próprias vozes. Paremos a leitura silenciosa deste texto e leiamos agora essas duas perguntas em vozes altas. Sejamos também surpreendidos, arrastados para um certo plano em comum:

Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora? (Lara).

Tia, como é falar de dentro para fora? (Luiz).

O que poderá ser esse algo comum que conecta fortemente as duas frases?

O mais evidente parece-nos ser uma preocupação com o dentro e com o fora. E essa preocupação se expressa diversamente: no caso da Lara, é com o ouvir de fora em relação com o ouvir de dentro; no caso do Luiz, é com a fala que vem de dentro para fora. Ambos se inquietam pela relação do dentro com o fora. Ambos parecem surpreender as suas forças pelo meio.

Lara quer saber se a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora. A sua pergunta sugere algo nada evidente - que cada pessoa tem um ouvido interior, uma escuta de si - e quer saber se essa escuta de si coincide com o ouvido que as outras pessoas dão ao que dizemos. Em outras palavras, se somos ouvidos como nos ouvimos, se a escuta de si e a escuta dos outros coincidem.

Já Luiz está preocupado com um tipo especial de fala, aquela que vai de dentro para fora. E também faz-nos pensar algo nada evidente: que há falas que saem de dentro e outras que não saem de dentro, que chegam ao fora quando pronunciadas, talvez, de um outro fora. Um fora diferente da exterioridade das formas. Sob pena de sermos estritamente lógicos - pelo que pedimos, de antemão, a indulgência das/os nossas/os leitores -, poderíamos afirmar que Luiz nos deixa com quatro possibilidades de combinar o dentro e o fora na fala: falas que vão de fora para fora, outras que vão de dentro para dentro; outras ainda que vão de fora para dentro e, finalmente - as que ele quer mesmo entender -, as que vão de dentro para fora.

O que essas duas crianças, menina e menino de carne e osso, têm em comum com o menino torto e desajeitado, o menino-pássaro do conto de Mia Couto? Para que devir essas três crianças nos arrastam?

O menino do conto, enquanto menino, des-escutava as palavras que o maltratavam. Ouvia palavras ofensivas como se fossem uma prenda, um presente. Era chamado de burro e escutava “barro”. Sua mãe era insultada e ele re-escutava silêncio. Este menino, diria a pergunta da Lara, ouvia por dentro. Este menino, diria a pergunta do Luiz, ouvia de dentro para fora.

Mas a história não fica por aí porque “devir é produzir multiplicidades” (Gil, 2009GIL, José. “A reversão”. In: LINS, Daniel (Org.). O devir criança do pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 19-33., p. 20), dissolver e estilhaçar formas e sujeitos. Depois, o menino passou a andar à espreita de um fora para afirmar uma outra vida e resistir à brutalidade do normal. Assim começou a escutar pássaros em vez de seres humanos. E passou a gorjear, como os pássaros. E gorjeava mesmo de dentro para fora, gorjeando até o canto de pássaros que não existiam, ou nos quais ninguém tinha ainda reparado. Como a violência dos seres humanos não parava, o menino despediu-se de vez das palavras humanas e tornou-se pássaro, quem sabe se para poder cantar e escutar de dentro para fora? Ou de fora para fora, ou até para inaugurar novos foras? Quem sabe para confirmar se as vozes que ouvia por dentro eram as mesmas que se poderiam ouvir no fora? Para isso, o menino deixa de ser menino e entra num devir-pássaro. Atraído pelo fora, abandona uma interioridade constituinte e entrega-se à metamorfose ambulante6 6 Convidamos os leitores e as leitoras a cruzarem aqui a leitura com a escuta de “Metamorfose ambulante”, canção escrita pelo brasileiro Raul Seixas e incluída no seu álbum Krig-ha, Bandolo!, de 1973. (Metamorfose ambulante, 1973). .

Um adulto pode entender o enredo do conto com um foco edipiano que procura psicologizar indivíduos e suas identidades familiares. Ou ainda com um foco ontológico-moral substancialista que se perturba com a violência e até talvez alguma demonização das personagens. Mas também aqui José Gil pode-nos ajudar: “A criança não vive o seu corpo orgânico como um objeto cortado do exterior” (Gil, 2009, p. 23), mas é multiplicidade deslizante que nenhuma categoria consegue definir ou caracterizar. O corpo da criança compõe com o exterior um plano de imanência e, com ele, perfaz a textura do mundo. A metamorfose do conto, o devir-pássaro, não se refere ao abandono de uma forma (humana) por outra forma (alada). Não é isso que nos faz pensar. Antes, diz algo do movimento que leva de uma a outra, da troca de formas por forças. E, sendo assim, o que nos resta? De que escuta do fora poderão falar as perguntas da Lara e do Luiz? O que escuta um/a docente nas perguntas de Lara e de Luiz? Escuta-se a si próprio? Des-escuta-se? Até que ponto a escuta consiste sempre num reenvio a si? (Nancy, 2013NANCY, Jean-Luc. À escuta (parte I). Outra Travessia, n. 15, p. 160-172, 2013. https://doi.org/10.5007/2176-8552.2013n15p159
https://doi.org/10.5007/2176-8552.2013n1...
). E, no caso da escuta das crianças, de que modos ela poderá reenviar quem escuta a uma infância? E qual infância? Quais movimentos infantis, blocos de infância, essa escuta pode propiciar?

A violência do encontro com o fora

Será que uma pergunta sem sentido tem sentido sem saber o saber?

Pergunta feita pelo Tomás, menino de 11 anos, num encontro online dos Conselheiros do programa ¿filo…quÊ?7 7 “¿filo…quÊ?” foi uma rubrica emitida semanalmente pela televisão pública da Região Autónoma dos Açores (RTPAçores) entre outubro de 2020 e junho de 2021 quando, devido à pandemia da COVID-19, foi emitido o programa “Aprender em Casa” (Educação, 2020). Este programa era da responsabilidade da Secretaria Regional da Educação, do Governo dos Açores, e incluía rubricas destinadas a áreas curriculares distintas (matemática, língua portuguesa, música), visando compensar as crianças dos Açores pela impossibilidade de frequentarem as suas escolas físicas durante aquele período. A rúbrica “¿filo…quÊ?” dedicava-se à filosofia com crianças, foi escrita e dinamizada por quatro professoras (de Educação Infantil, Ensino Fundamental I e II, Ensino Médio e Ensino Superior) e contava com um grupo de crianças conselheiras de diferentes ilhas dos Açores. Estas crianças reuniam-se regularmente com as quatro professoras, por Zoom, para prepararem os programas. Os episódios estão ainda disponíveis para visualização no canal de YouTube “Filosofia para Crianças na Universidade dos Açores”. (Filosofia Para Crianças, 2023). , em 2021.

Escutamos agora a voz do Tomás. Também ele anda às voltas com uma pergunta inquietante, também ele é posto à prova por algo que ultrapassa a brandura interior do sujeito pensante. Já irradiado outro movimento de forças, agora já acompanhados pelo canto do menino pássaro de Mia Couto e pelas vozes de Luiz e de Lara, prosseguimos na escuta.

O fora não é o mundo (fisicamente) exterior das formas, como se vivêssemos aprisionados numa mente, como se houvesse sujeitos e mundo separados uns dos outros. O fora é irredutível às formas e opera num espaço diferente delas (Deleuze, 2020DELEUZE, Gilles. Foucault. Lisboa: Edições 70, 2020., p. 117). Tempestade abstrata, no fora não há princípio nem fim coincidentes: ele não tem unidade ou coerência própria. No fora, as forças são soberanas. Forças de agitação e mutação. É “o que é mais longínquo do que qualquer mundo interior e o que está mais próximo do que qualquer mundo interior” (Deleuze, 2017, p. 141), é a nossa relação com uma linha em que se jogam vida e morte, loucura e razão (Deleuze, 2017, p. 133). O fora surpreende-nos na figura do paradoxo que, de um só golpe, “destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas” (Deleuze, 1975, p. 8).

Nesse sentido, o pensar não é a prática de uma faculdade inata, não é o exercício de uma estrutura cognitiva, não se diz como predicado de um sujeito. O pensar é verbo sem sujeito porque sobrevém (Deleuze, 2020DELEUZE, Gilles. Foucault. Lisboa: Edições 70, 2020., p. 118): ele é o enfrentar dessa experiência de um ar rarefeito que torna insuportáveis as condições regulares de sobrevivência de um ser humano qualquer. Dito assim, o pensar baralha as distinções entre a interioridade do pensamento e a exterioridade do mundo, instaura um fora mesmo fora dessa exterioridade, recusa pensar no fora como conjunto de formas. O que acontece nesse encontro do pensar com o fora - como força e não como forma - não é a saída de uma consciência para lá de si mesma, a descoberta de um entorno. O que acontece é a suspensão daquilo que Foucault chama a “dinastia da representação” (Foucault, 1986FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors. Montpellier: Fata Morgana, 1986., p. 12), o desaparecimento, na própria palavra falada, do sujeito que fala. O pensamento é transportado aos limites do mundo, não para um exercício interior de fundamentação metafísica ou de procura da origem, mas precisamente para se instalar na distância - dissonância e diferença - entre a interioridade da reflexão e a positividade do mundo.

O fora chega como atração de uma extremidade onde o pensamento, rendido a um lugar de vazio, sempre se desafia. Este é o pensamento como ato ontologicamente arriscado (antes mesmo de o ser politicamente), um pensamento da erosão, da reformulação, do esquecimento:

é sentir subitamente o deserto a crescer dentro de si próprio, no outro extremo do qual (mas esta distância sem medida é tão fina como uma linha) há um vislumbre de uma língua sem um sujeito atribuível, uma lei sem um deus, um pronome pessoal sem personagem, um rosto sem expressão e sem olhos, um outro que é o mesmo (Foucault, 1986FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors. Montpellier: Fata Morgana, 1986., p. 48).

Encontro com o puro novo, com o que não tem ligação de semelhança nem de continuidade com nada, com o que apaga toda a significação anterior determinada e até ameaça sugar para o esquecimento o ser de quem fala, daquele que pensa. O fora destrói o sentido único, o fora destrói as identidades fixas, o fora mostra os limites dos sentidos atribuídos. O encontro com o fora não se nomeia a si mesmo como “encontro com o fora”. Podemos falar dele depois, podemos presenciá-lo em outros ou, até, sermos arrastados por ele. Sugados pelo seu vórtice.

As crianças são exímias nestes encontros e têm (ainda?) a plasticidade para saírem deles praticamente ilesas. Relembramos José Gil (2009GIL, José. “A reversão”. In: LINS, Daniel (Org.). O devir criança do pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 19-33.): a criança foge às estratificações e, por isso, brinca com a imanência.

Assim vimos precisamente acontecer ao Tomás num encontro filosófico online, numa plataforma digital de encontros síncronos. A conversa andava em torno da procura filosófica como um encontro infindável com inquietações que não encontra sossego. Várias crianças presentes burilavam palavras a partir da inquietação trazida pela filosofia enquanto aposta nas perguntas, mais do que nas respostas. Parece que nunca se chega a uma solução final, diziam os companheiros de Tomás no diálogo. “Chegamos à conclusão de que não sabemos”, afirmava Luzia, explicando que, nas viagens filosóficas do pensamento, o resultado não se cifra num cumulativo que transforme o não saber inicial num saber pleno. Chegamos ao fim sem saber, dizia a menina.

Tomás continuava calado. “Não tenho nada para dizer”, respondia-nos quando o procurávamos incluir no diálogo do grupo. Observávamos os seus grandes olhos na tela, brilhando desde a retina nos movimentos rasantes do diálogo. A certa altura parecia animar-se e estar prestes a ganhar asas. A exploração dos colegas continuava: reforçavam que nada sabíamos, mas também que queríamos cumprir o caminho. Entre a escrita no chat e a oralidade das trocas verbais, as crianças não paravam de dizer, de explorar os meios, de traçar os mapas correspondentes:

Saber tudo é mau? Saber nada é bom? Ninguém sabe tudo: há sempre alguma coisa para explorar e as palavras não acabam, os pensamentos não se esgotam. E ninguém pode afirmar nada saber, pelo menos em absoluto. Sabemos sempre alguma coisa, nem que seja que não sabemos nada. Será que “saber mais ou menos” é que é bom?

E foi então que aconteceu o encontro. Movido pelas trocas orais e escritas, cada vez mais acesas, entre as pessoas presentes, Tomás escreveu no chat:

Será que uma pergunta sem sentido tem sentido sem saber o saber?

Os seus olhos brilhavam mais do que nunca! Faíscas coloridas saltavam em todas as direções e Tomás parecia ter encontrado um tesouro. Ao mesmo tempo, sentíamos que o menino contemplava o que lhe estava acontecendo com um misto de êxtase, temor e incredulidade.

- Tomás, queres explicar a tua pergunta? - Convidamos.

- Não, não consigo explicar… - dizia-nos, enquanto o seu rosto ficava translúcido e seus grandes olhos verdes ficavam cada vez mais abertos. - Não sei o que quer dizer esta pergunta.

E continuava a escrever no chat, como que tomado por um estado febril e arrebatado. Foi o João que continuou:

- Há perguntas que têm sentido lógico, que chegam a uma conclusão direta. Mas há outras que podem ter outros sentidos.

Tomás parecia estar agora num frenesi espiralado de pensamento, pensando enquanto teclava e teclando enquanto pensava as palavras que sobrevoavam os discursos rápidos dos amigos. Ia colocando algumas dessas palavras ao lado de outras nas perguntas que formulava por escrito, descobria que se acionavam novos sentidos para as suas frases. Era isso que o parecia deixar em estado de maravilhamento arrebatador. Mas parecia que não era só isso que acontecia: ao juntar as palavras (palavras que, na linguagem dos discursos comuns, pareciam contraditórias) criavam-se fendas e fugas de novos sentidos. E Tomás parecia descobrir outras lógicas e ficava assombrado:

- Eu até estou a ficar assustado com estas perguntas!

- Porquê, Tomás? - Perguntamos.

- São perguntas interligadas. São monstruosas.

Seriam prodígios que nasciam? Emergiam da desconstrução que suas perguntas operavam nos sentidos habituais das coisas? Estaria Tomás trocando as formas pelas forças? As perguntas interligadas exerciam uma força de atração que parecia levar Tomás para fora de si mesmo. Entre um saber e um não saber, seduziam porque já não se mostravam como opostos inconciliáveis. Eram perguntas que exploravam outros modos de ser, que desafiavam o pensar tal como anteriormente estruturado. Eram monstruosidades que assombravam, perturbavam e, ao mesmo tempo, fascinavam. Monstruavam e mostravam. Mo(n)str(u)avam. Devir-monstro das perguntas. Não parecia ser só um maravilhamento exterior de contemplação, mas também um arrebatamento experiencial com sentidos subterrâneos.

Teria Tomás encontrado o fora? Teria sido seu pensamento encontrado ou tomado pelo fora? Pelo reino das coisas sem limite e sem freio, pelo radicalmente novo, pelo vazio de todos os sentidos comuns, pelo des-consertado ou des-controlado (ou incontrolado), pelo des-concertante, movimento de rebeldia à linguagem? As suas palavras - as que compunham as perguntas que o assolavam e as que acompanhavam a experiência dessa perguntação - pareciam abrir portas por onde entravam tempestades desgovernadas. Mas talvez já ninguém estivesse no timão e portas se abriam por onde suas palavras entravam como tempestades desgovernadas. Afinal, tudo poderia ser diferente, não era preciso escolher apenas uma das margens do rio: Tomás poderia entrar no movente e experienciar o “tornando-se”, o gerúndio, o impermanente. O devir. Experimentá-lo impermanentemente. Monstruosamente. O risco seria abandonar o bom senso, essa “afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável”, substituindo-o pelo paradoxo, ou seja, “a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo” (Deleuze, 1975DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1975., p. 7). O sentido enquanto força do fora, incontrolada, que sempre toma conta de nós.

O assombro perante o paradoxo é um puro devir sem medida, o devir-louco que transformou o rosto do Tomás e que, através da sua experiência, nos permite ligar a inquietação do Luiz, o enigma da Lara e a transformação do menino-pássaro de Mia Couto. Essa é a experiência que descobre, em movimento, uma dualidade mais profunda e mais secreta, o fluxo subterrâneo às coisas ou das coisas. “Eu até estou a ficar assustado com estas perguntas”, dizia o Tomás. Mas não parava de as escrever, como se estivesse movido por alguma coisa para além de si próprio, para além do seu próprio susto ou de uma identidade estanque. A incerteza tornava-se a textura do que (lhe) acontecia.

Será que presenciamos e fomos testemunhas do que aconteceu com o Tomás? Será que fomos encontrados pelo sentido insuspeitado daquela experiência? Ou então fomos contagiados pelo movimento dos fluxos que emanaram daquelas perguntas? Tomás entrou num devir-pergunta ou num devir-monstro das perguntas. Há um devir-pergunta do Tomás, um devir-monstro de suas perguntas. Também ele se tornou uma espécie de corpo sem órgãos (Deleuze; Guattari, 2007DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.) que vibra e dança nos ritmos das perguntas, monstruosas, que o tomam. Seu corpo entra numa zona de osmose, de indeterminações em que já não se sabe se é ele que pergunta ou se são as perguntas que tomam suas palavras para se expressarem por meio delas. Uma espécie de bloco único de infância-pergunta, uma máquina a dois, em que se combinam os ritmos, as partículas, as vibrações de uma criança que devém pergunta e uma pergunta que devém criança: um devir-criança das perguntas monstruosas; um devir-pergunta monstruosa da criança - indiscerníveis, indissociáveis.

Estar à escuta do devir-pergunta das crianças (assim como do devir-criança das perguntas) tem a ver com uma transitividade entre o dentro e o fora: “[…] é estar ao mesmo tempo no fora e no dentro, estar aberto de fora e de dentro, portanto de um a outro, de um no outro” (Nancy, 2013NANCY, Jean-Luc. À escuta (parte I). Outra Travessia, n. 15, p. 160-172, 2013. https://doi.org/10.5007/2176-8552.2013n15p159
https://doi.org/10.5007/2176-8552.2013n1...
, p. 167, grifos nossos). Por isso, a escuta permite-nos percorrer essa transitividade. Ou, talvez mais do que isso e ainda na senda de Nancy, permite-nos participar e irradiarmo-nos: pelo que se escuta, mas sobretudo por todos os movimentos que a própria escuta convoca.

Haverá docentes à escuta dos movimentos do Tomás? Haverá docentes vibrando com as possibilidades de um devir-pergunta? É o devir-pergunta uma possibilidade de uma docente sensível às potências do perguntar infantil? Há docentes vibrando na perspectiva de um corpo sem órgãos tomado por uma monstruosidade ou indeterminação perguntante? É possível uma formação docente inspirada nesses conceitos?

Devir, reverter…

José Gil tem mostrado o papel principal da reversão no devir-criança e no nascimento do pensar (Gil, 2009). Sintetizamos seu argumento: na relação de um corpo com outros corpos, o interior não é a sensação direta desse interior, mas pensamento puro. A reversão desdobra as intensidades desse pensamento interior para o exterior, vira-se do avesso, libertando-o desse modo dos órgãos corporais nos quais se encontrava dobrado. Desse modo, isso acontece a partir de duas condições companheiras: a) o sentido que se desprende do estado de coisas; b) um trajeto unívoco que o sentido percorre emanando do corpo e retornando ao corpo. Aponta Gil que as crianças, à diferença dos adultos, não precisam operar a reversão porque:

O seu corpo está em reversão, é o seu estado primeiro. O que significa o corpo-em-reversão de uma criança? Que as intensidades afetivas que emanam dos seus órgãos, do seu corpo sem interior, se investem imediatamente no exterior. A criança não vive, pois, um interior separado do exterior, mas investe e molda as coisas do mundo da mesma maneira que investe o seu corpo. Este é sem sujeito e sem os limites orgânicos de um corpo próprio. Sem um fundo interno abissal. Pelo contrário, é uma coisa do mundo, no mundo, com uma característica que a criança possui e desconhece: a de ser uma pura potência de vida que irradia as suas intensidades por todo o espaço. Por isso o vive também como espaço de irradiação de vida. É isso que faz a candura das crianças (Gil, 2009GIL, José. “A reversão”. In: LINS, Daniel (Org.). O devir criança do pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 19-33., p. 31-32).

É prístino o texto de Gil, que percebe o corpo das crianças como foco emissor de vida e como “contínua emanação e disseminação de intensidades” (Gil, 2009, p. 32). E acrescenta que, por isso, o corpo da criança se confunde com o mundo. O menino de “A culpa” que o diga. Tomás que testemunha sua dificuldade para se separar das perguntas que o acometiam. Lara e Luiz que nos mostram como as perguntas sobre o fora invadiram o seu discurso. Para Gil, o modo em que o corpo da criança está em reversão com o mundo sustenta-se num bloco afetivo que a criança lança e que a une a outros corpos e coisas do mundo. Gil chama esse bloco ou laço afetivo primeiro - elo da criança com o mundo - deplasma: uma força de vida, uma alma afetiva com intensidades variadas que se projetam no devir da criança. Assim elas pensam, com sua “alma afetiva corporal” (Gil, 2009, p. 33).

É uma alma afetiva infantil que faz comunhão com um pássaro para afirmar os sentidos de uma vida outra daquela proposta pelo pai castrador e explorador. É uma outra alma afetiva infantil que se pergunta se a voz que ouvimos por dentro, nesse corpo sem órgãos, é a mesma que as pessoas que andam pelo mundo ouvem por fora. É ainda uma alma afetiva infantil diferente que pergunta como é falar de dentro de um corpo sem órgãos para fora. Finalmente, uma alma infantil que fica tomada e assustada pela monstruosidade das perguntas que tomam conta do seu corpo sem órgãos.

As crianças investem e moldam as coisas do mundo da mesma maneira que investem seu corpo: a partir de sua alma afetiva corporal, como pura potência de vida, como uma literatura menor (Silva, 2022SILVA, Osvaldo Luiz da. O corpo do educador da Educação Infantil lido como uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: NEFI, 2022.)… em reversão com o mundo, com as suas perguntas, seus pássaros, suas palavras, suas vozes, suas escutas. As crianças projetam e injetam intensidades no mundo, extraem e enchem o mundo de vida. E, assim, o mundo é uma irradiação de vida infantil.

Neste texto, tentamos testemunhar alguns movimentos de um filosofar menino que não cessa de irradiar intensidades de vida. Trouxemos para o encontro os devires de uma criança literária, inspiradora de nossos encontros filosofantes. São apenas amostras de exercícios de um filosofar menino que partilhamos e compartilhamos entre o Brasil e os Açores. Amostras da infinita alma afetiva que povoa as crianças e do pensamento e dos devires que dela emanam. Sentimo-nos grata e grato, privilegiado e privilegiada, por participar da infinita candidez das crianças.

Para finalizar, gostaríamos apenas de sugerir algumas possibilidades vindas dessas amostras aqui apresentadas. Elas têm a forma de perguntas, em sintonia com o que a nós mesmos a escuta de vozes meninas tem nos provocado a pensar: que forças nossos corpos docentes afirmam quando entramos em relação pedagógica? Qual é a potência de vida que nossas práticas irradiam? As intensidades de uma vida infantil poderão não ser exclusividades das pessoas de pouca idade? A infância de uma professora poderá não estar na sua idade, mas na forma em que ela se relaciona com essa tarefa impossível de viver e criar um tempo para perguntar, criar, amar e sonhar na relação pedagógica? (Kohan, 2021KOHAN, Walter Omar; COSTA CARVALHO, Magda. Atrever-se a uma escrita infantil: a infância como abrigo e refúgio. Childhood & Philosophy, v. 17, p. 1-30, 2021 http://doi.org/10.12957/childphilo.2021.59827
http://doi.org/10.12957/childphilo.2021....
). Pode a candidez de uma criança que devém pergunta inspirar uma formação docente em tempos de necropolítica (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018.) e desassossego?

Referências

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  • FILOSOFIA para Crianças na Universidade dos Açores. Canal do YouTube. https://www.youtube.com/@filosofiaparacriancasnauni5157/featured
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  • MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018.
  • METAMORFOSE ambulante. Intérprete: Raul Seixas. Compositor: Raul Seixas. In: KRIG-HA, Bandolo! Rio de Janeiro: Philips Records, 1973. Lado A, faixa 3.
  • NANCY, Jean-Luc. À escuta (parte I). Outra Travessia, n. 15, p. 160-172, 2013. https://doi.org/10.5007/2176-8552.2013n15p159
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  • NORDLUND, Solveig. Sou Autor do Meu Nome - Mia Couto. Documentário. Produção Real Ficção (Jacinta Barros, Rui Simões). 2019. https://www.realficcao.com/sadmn-miacouto.html
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  • SANTOS, Auxiliadora; VIEIRA, Fernando; CANHÃO, Joana; VIEIRA, Paula Alexandra; CABRAL, Silvina; LOURENÇO, Constança. Filosofâncias de uma escola que junta a filosofia e as crianças: brincolandiamos?. In: COSTA CARVALHO, Magda; VIEIRA, Paula Alexandra (Org.). (A)riscar-se na filosofia, (a)colhendo infâncias: encontros com Gabriela Castro. Ponta Delgada: Letras Lavadas, 2022. p. 315-327.
  • SILVA, Osvaldo Luiz da. O corpo do educador da Educação Infantil lido como uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: NEFI, 2022.
  • APOIO/FINANCIAMENTO

    Pesquisa realizada no âmbito dos seguintes projetos de investigação: escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a política, financiado pelo Governo dos Açores, Portugal (M1.1.C/C.S./031/2021/01); “Uma pedagogia menina da pergunta: princípios, sentidos e desdobramentos” (FAPERJ Processo: E-26/201.039/2022); “A Filosofia na infância da vida escolar” Programa CAPES-PRINT (Processo Nº 88881.311741/2018-01) e “A vida (política) do mestre numa educação filosófica: Paulo Freire” (CNPq Processo: 307724/2019-0).
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo
  • 4
    O presente artigo foi revisado por Arthur Henrique Fernandes de Almeida. Após ter sido diagramado, foi submetido para validação da autoria antes da publicação.
  • 1
    Estas perguntas irradiaram, para o autor e a autora do texto, como tantas vezes acontece quando pensamos com as crianças. Respeitando esse movimento, pedimos autorização ao Luiz (e à Melissa) e à Lara para que a nossa escrita pudesse partir das suas inquietações. O mesmo aconteceu com o Tomás, de quem falaremos adiante. Aos três, expressamos o nosso mais profundo agradecimento e desejamos que continuem a desassossegar outras escutas docentes pela vida afora. O recurso ao nome real das crianças com quem a pesquisa se cruza tem sido tópico de interessantes debates nos últimos anos. Esta é uma questão que o autor e a autora do texto consideram pertinente, sobretudo no âmbito de pesquisas com infâncias, tendo em conta um balanceamento necessário entre a proteção da identidade e a valorização da agência das crianças. Seguimos a posição de autoras como Despret (2011DESPRET, Vinciane. Leitura etnopsicológica do segredo. Revista de Psicologia, v. 23, n. 1, p. 5-28, 2011. https://doi.org/10.1590/S1984-02922011000100002
    https://doi.org/10.1590/S1984-0292201100...
    ), segundo a qual o anonimato protetor na pesquisa pode funcionar como desencadeador do “efeito sem nome”, silenciando os sujeitos de fala e acentuando a assimetria entre o “especialista” (cujo nome deve ser sempre referenciado nos resultados da pesquisa) e todos os outros implicados (com quem aquele pesquisou). No caso específico da pesquisa com crianças, seguimos também as posições de Kramer (2002KRAMER, Sônia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, n. 116, p. 41-59, 2002. https://doi.org/10.1590/S0100-15742002000200003
    https://doi.org/10.1590/S0100-1574200200...
    ), que entende as crianças como autoras das pesquisas nas quais estão envolvidas e que, sem negligenciar os cuidados que todos os implicados numa pesquisa merecem, sublinha como o anonimato pode conduzir à consideração da infância em termos abstratos, dissimulando as suas singularidades, invisibilizando as reais desigualdades e expropriando as crianças do que elas têm de íntimo. Enquanto pesquisador e pesquisadora, entendemos importante, acima de tudo, não aceitar inquestionadamente a prerrogativa de anonimizar as crianças, devendo cada caso ser devidamente considerado com elas e a partir do que elas entendem poder ser os seus contributos e posições nas escritas que decorrem de cada pesquisa.
  • 2
    Pesquisa realizada no âmbito dos seguintes projetos de investigação: escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a política, financiado pelo Governo dos Açores, Portugal (M1.1.C/C.S./031/2021/01); “Uma pedagogia menina da pergunta: princípios, sentidos e desdobramentos” (FAPERJ Processo: E-26/201.039/2022); “A Filosofia na infância da vida escolar” Programa CAPES-PRINT (Processo Nº 88881.311741/2018-01) e “A vida (política) do mestre numa educação filosófica: Paulo Freire” (CNPq Processo: 307724/2019-0).
  • 3
    Sobre o modo como as crianças podem influenciar as pesquisas, veja-se Magda Costa Carvalho (2022).
  • 4
    Neste artigo, usamos os termos “criança” e “menino” para nos referirmos a pessoas-de-pouca-idade (Costa Carvalho; Almeida; Taramona, 2023). Já o termo “infância” diz respeito ao tempo da vida e não à idade. Sobre a distinção entre infâncias e crianças/meninos, na sua relação com os tempos aión e khrónos, bem como a relação da prática docente com essas temporalidades, temos escrito reiteradamente em Walter Omar Kohan (2004KOHAN, Walter Omar. A infância da educação: o conceito devir-criança. In: KOHAN, Walter Omar. Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 51-68., 2019, 2021).
  • 5
    Sobre o conceito devir-criança e bloco de infância, ver Kohan (2004KOHAN, Walter Omar. A infância da educação: o conceito devir-criança. In: KOHAN, Walter Omar. Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 51-68.).
  • 6
    Convidamos os leitores e as leitoras a cruzarem aqui a leitura com a escuta de “Metamorfose ambulante”, canção escrita pelo brasileiro Raul Seixas e incluída no seu álbum Krig-ha, Bandolo!, de 1973METAMORFOSE ambulante. Intérprete: Raul Seixas. Compositor: Raul Seixas. In: KRIG-HA, Bandolo! Rio de Janeiro: Philips Records, 1973. Lado A, faixa 3.. (Metamorfose ambulante, 1973).
  • 7
    “¿filo…quÊ?” foi uma rubrica emitida semanalmente pela televisão pública da Região Autónoma dos Açores (RTPAçores) entre outubro de 2020 e junho de 2021 quando, devido à pandemia da COVID-19, foi emitido o programa “Aprender em Casa” (Educação, 2020). Este programa era da responsabilidade da Secretaria Regional da Educação, do Governo dos Açores, e incluía rubricas destinadas a áreas curriculares distintas (matemática, língua portuguesa, música), visando compensar as crianças dos Açores pela impossibilidade de frequentarem as suas escolas físicas durante aquele período. A rúbrica “¿filo…quÊ?” dedicava-se à filosofia com crianças, foi escrita e dinamizada por quatro professoras (de Educação Infantil, Ensino Fundamental I e II, Ensino Médio e Ensino Superior) e contava com um grupo de crianças conselheiras de diferentes ilhas dos Açores. Estas crianças reuniam-se regularmente com as quatro professoras, por Zoom, para prepararem os programas. Os episódios estão ainda disponíveis para visualização no canal de YouTube “Filosofia para Crianças na Universidade dos Açores”. (Filosofia Para Crianças, 2023).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2022
  • Aceito
    13 Dez 2023
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