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Uma contribuição ao estudo da representação social da educação escolar no meio rural

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Uma contribuição ao estudo da representação social da educação escolar no meio rural

José Alberto Pedra

Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de Planejamento e Administração Escolar do Setor de Educação da Universidade federal do Paraná

I - Introdução

Este artigo está inteiramente lastreado em dados obtidos em um estudo de caso desenvolvido junto a uma comunidade de trabalhadores rurais ao sul do Estado do Espírito Santo.

O estudo de caso tinha duplo objetivo:

a) verificar, investigando um objeto social específico - no caso, a educação escolar no meio rural -, as hipóteses sugeridas por Moscovici (1961), Herzlich (1969) e Kaes (1968) em seus estudos sobre a representação social; e

b) como decorrência, tinha-se também por objetivo descrever a representação da educação escolar tal como se organiza e se manifesta no discurso do trabalhador rural.

Pretende-se, com este artigo, expor de forma sumária o que se conseguiu em torno do segundo objetivo.

O termo "representação" está presente nas investigações filosóficas desde a antiguidade grega, com os mais diversos sentidos.

Moscovici desejava responder a questão: em que se transforma uma disciplina científica quando passa do domínio dos especialistas para o grande publico? Seu trabalho teve tão grande importância que extrapolou à resposta obtida e marcou uma mudança fundamental nas análises teóricas dos determinantes do comportamento social.

Os objetivos de Moscovici eram bem mais amplos do que a busca de uma resposta satisfatória para a questão que havia colocado.

Queria redefinir os problemas e os conceitos da Psicologia Social a partir desse fenômeno (a representação social), insistindo sobre sua função simbólica e seu poder de construção do real

.

A grande maioria dos estudos que sucederam ao de Moscovici, como o dele próprio, utilizaram o conceito de representação social em uma perspectiva bastante particular e distinta da concepção de Durkheim. Primeiramente, não se tem confundido o fenômeno da representação social com sua determinação (econômica, ideológica, etc.); em segundo lugar, a adjetivação que acompanha o substantivo representação não tem sido utilizada como indicativo de origem, mas de função. Semelhante postura não pode ser confundida com uma forma ingênua ou reacionária (na pior das hipóteses) de compreender-se o fenômeno em questão, tampouco como sutileza por pôr em duvida, negar ou acobertar a base material que define concretamente o indivíduo ou a classe social e que inegavelmente dá sentido e direção as representações.

Evidentemente existe, no caso das representações, uma realidade material à qual importa referir-se, quando menos por ser aí seu local e espaço de ocorrência. Importa mais, todavia, referir-se a tal realidade enquanto realidade significada pelo sujeito ou por uma classe. O que se tem buscado é um enfoque significativo da representação social mesma, em vez de ater-se a descrição das condições materiais e objetivas nas quais os sujeitos ou as classes sociais elaboraram suas representações. Assim, em vez de descrever, por exemplo, as praticas ideológicas do aparelho escolar, parece mais fundamental descobrir em que se transformam tais práticas e como são representadas ao se confrontarem com a realidade que pretendem negar.

Uma representação social, diz Kaes, "não é o puro reflexo das determinações objetivas, ela é um sistema de interpretação de uma relação".

Kaes compreende que as representações não são tanto definidas pelo sistema cultural dominante quanto pela reação do indivíduo ou da classe a este sistema. Em outras palavras Chombart de Lauwe (1971) diz que a representação social exprime, fundamentalmente, o modo como o indivíduo ou a classe toma consciência e responde à própria estrutura social.

No que tem sido possível observar, os sujeitos elaboram representações distintas para objetos idênticos, de acordo com suas próprias e particulares condições culturais e materiais de vida. Ocorre que, ao se constituírem, as representações sociais põem em jogo tanto o acervo de "conhecimentos à mão"

III - Metodologia da Investigação

A) A escolha da unidade de investigação

A escolha da unidade de investigação recaiu sobre uma povoação localizada no Município de Itapemirim, ao sul do Estado do Espírito Santo.

A primeira iniciativa tomada foi a de entrevistar a diretora da escola local, a fim de obter informações sobre o funcionamento da escola (turnos, séries, número de alunos, atividades curriculares, cursos de alfabetização de adultos, etc.) e sobre os domicílios dos pais dos alunos.

Procedeu-se, depois, junto à Prefeitura Municipal, um levantamento sócio-econômico da região.

B) Métodos e Instrumentos de Coleta de Dados

Um dos problemas não inteiramente resolvidos no estudo das representações sociais refere-se exatamente à forma instrumental para apreendê-las. Na falta de um instrumento que permita alcançar as representações da maneira mais fiel possível, tem sido comum o uso de entrevistas ou de questionários ou a conjugação de ambos os instrumentos.

De qualquer forma, uma investigação orientada para a representação impõe conceder aos sujeitos um alto grau de liberdade discursiva, na medida em que é o discurso mesmo que está sendo objeto da observação, fato que interdita os recursos oferecidos pelos métodos de observação nos quais os sujeitos têm poucas oportunidades de organizarem seu proprio discurso.

A entrevista livre parece ser a técnica mais indicada e foi a que se utilizou para a coleta de dados, que foi realizada em duas etapas:

1 - Etapa extensiva, durante a qual entrevistou-se:

a) a diretora da escola local e

b) os sujeitos relacionados no estudo preliminar (pais e mães de alunos).

Não se privilegiou, nesta etapa, a figura do pai ou a da mãe. Foi entrevistado o progenitor presente por ocasião das visitas domiciliares.

Para a realização das entrevistas, organizou-se um guia de temas a explorar. Procurou-se evitar o usual de questões a serem respondidas em determinada, seqüência. O esforço principal no decorrer das entrevistas foi o de ajustar os temas à problemática de cada um dos entrevistados.

Na medida do possível, buscou-se dirigir as entrevistas para os rumos que os próprios entrevistados indicavam através do discurso que iam elaborando.

Faz parte ainda desta etapa uma analise dos textos escolares na escola local.

Todas as entrevistas foram gravadas em MK-7 com utilização de microfone de alta sensibilidade.

Ainda nesta etapa, redigiu-se um diário de campo no qual foram anotadas as condições sobre as quais se realizaram as entrevistas, o aspecto geral das moradias dos entrevistados, suas reações (as observáveis) ã situação de entrevista e outras informações que, na época, foram consideradas de importância.

2 - Etapa intensiva

A análise preliminar das entrevistas mostrou que o conteúdo dos discursos superaram as expectativas do entrevistador.

Uma variedade de temas não previstos se fez presente. Observou-se, também, que as respostas dadas ao tema "A escola c o faturo pioflsstonai dos filhos" discrepavam dos resultados obtidos em outros estudos sobre a escola no meio rural, particularmente no que se refere as aspirações profissionais.

Estas constatações (tanto quanto as variações temáticas) indicaram a necessidade de retomar, com os entrevistados. o discurso anteriormente formulado.

c) Análise do Material

Devido à extensão e heterogeneidade do material coletado procurou-se inicialmente, por acreditar-se ser mais adeqüada, proceder a uma análise seletiva. Considerouse, porém, que a investigação pretendida referia-se a um conjunto de dados e relações ainda não inventariadas. Desse modo, a seletividade poderia ter efeitos indesejáveis. Decidiu-se, por esta razão, proceder a uma análise exaustiva de todo o material.

O esquema analítico utilizado foi tomado de Filloux

Procedeu-se de início a uma análise horizontal e vertical do conteúdo das entrevistas. Na análise vertical, tomou-se cada entrevista uma a uma, isolando-se cada um dos temas surgidos no seu interior. Anotou-se, também, em lugar apropriado, a freqüência de suas ocorrências em cada entrevista e, cumulativamente, foram anotadas as afirmações que se apresentavam.

A seguir, fez-se uma análise horizontal, ou seja, os temas foram reagrupados em categorias mais amplas. O critério para o reagrupamento foi o de proximidade conceitual.

A dupla análise (vertical e horizontal), visando organizar e descrever a estruturação do conteúdo das entrevistas deu origem a um sumário de análise,' que mostra o conteúdo de temas e a freqüência de sua ocorrência.

IV - Os Sujeitos e a Cena Rural

A maioria dos sujeitos entrevistados (50%) não era natural do lugar, mas aí residia há mais de 20 anos.

A povoação encontra-se sob a dominância da sede municipal, da qual dista 15 kms aproximadamente. A interligação da povoação com os outros centros urbanos mais próximos é feita por estrada municipal macadamizada e uma trilha vicinal. A disponibilidade do transporte coletivo e pouca, sendo necessário percorrer longo trecho (de 7 a 10 kms) em trilhas para se alcançar os pontos de parada dos coletivos que levam aqueles centros urbanos.

Os sujeitos investigados, em sua grande maioria, são proprietários de pequenas extensões de terra (de 1/2 a (1 ha.), nas quais edificaram suas casas e cultivam pequenos pomares e plantações de milho e mandioca, cujos produtos são, via de regra, utilizados para consumo familiar e, em baixa escala, comercializados, particularmente a farinha, o "bijou" e a paçoca, oriundos da polpa de mandioca.

A renda familiar e garantida por três tipos de atividade:

a) venda da força de trabalho aos latifúndios locais;

b) venda do produto da terra ou do resultado de sua transformação;

c) venda de objetos artesanais.

A escola é atendida por três professores normalistas não concursados. Os professores, contudo, não se fixam por muito tempo, o "turn-over" é alto e a escola é normalmente considerada como emprêgo provisório.

Em termos de equipamento e recursos, a escola possui uma biblioteca COLTED e um conjunto de livros didáticos, além de atlas geográfico e plantas cartográficas.

As taxas de evasão e repetência, na escola local, diferem pouco das taxas obtidas em outras escolas rurais do Município, e mesmo dos índices nacionais.

Ao contacto com a povoação, o que de imediato se percebe e a forma dispersa como os grupos residenciais se organizam. Não existem ruas ou avenidas e as residências não são identificadas pelos numerais, mas pelos prenomes de seus proprietários.

Não é possível, por exemplo, localizar a casa nº 50, 112 ou 310, mas sim a casa do "seu Manoel", do "seu Antonio" ou de "dona Leocádia". O proprietário é o marco, a referência de sua propriedade.

Ate a escola local não é conhecida pelo seu nome oficial, mas recebe o nome de sua diretora: "a escola de dona Maria".

Observa-se também, não tão imediatamente cofttudo, uma grande valorização da palavra falada, da oralidade. À palavra dita é atribuído um valor significativo e a confiança nela depositada é sensível. Os compromissos oralmente assumidos recebem uma carga valorativa maior do que aqueles que tomam a forma escrita.

O estilo de vida de cada um conta com o respeito dos demais, desde que tal estilo não interfira ou crie desconforto na vida do grupo.

Não se procura argumentar com o fim de convencer ou de alterar a opinião de outrem.

A tradição da conversa na soleira das portas ou nos campos é preservada e se reveste de nuances cuja finalidade é a de se buscar em comum uma verdade, uma saída que não ultrapasse os esquemas da vida local.

As questões educacionais dos filhos são assumidas indiferentemente tanto pelo pai como pela mãe. Suas razões são, no entanto, distintas. Os pais tendem a exercer vigilância sobre a vida escolar de seus filhos com um objetivo imediato: o domínio da leitura, da escrita e das operações matemáticas, que significa para eles quase tudo o que se pode esperar do processo de escolarização. As maes, por seu lado, embora não explicitassem os motivos pelos quais mantinham seus filhos na escola, deixaram entrever uma certa esperança de que a aprendizagem escolar venha a redimi-los da ãrdua vida no campo.

V - Os Resultados

A) - A Presença da Educação Escolar

A análise do conteúdo das entrevistas indicou que a educação escolar nem sempre foi tema privilegiado na conversação e nas preocupações do grupo de trabalhadores rurais investigado.

Ainda hoje é com certa cautela que se pode incluir a educação escolar entre as preocupações do trabalhador rural. As campanhas oficiais de expansão escolar no meio rural e as intensivas propagandas governamentais, a reboque dos cursos de alfabetização de adultos ou dos cursos supletivos via radiodifusão, levaram para o campo a presença física e ideolõgica da escola, ampliando a quantidade de informação sobre a escola, a escolarização e suas vantagens.

A presença da instituição escolar e a disponibilidade de informação agem como reforçadores da presença do conceito e dos valores da educação escolar no cotidiano do homem do campo.

No meio rural investigado, a escola é hoje valorizada, já se percebendo nela alguma razão e significado. Embora faltem dados e meios para uma análise comparada* * Na ausência de estudos mais extensivos, utilizamos como referência o trabalho "Aspirações à Educação", de Silke Weber. 1978. , poder-se-ia sustentar - com as necessárias reticências - que a valorização da escola pela população rural assume direção e significado diverso da valorização a ela atribuída pela população urbana.

No meio rural, a alta valorização escolar faz-se acompanhar de uma baixa aspiração e expectativa quanto ao rendimento escolar. Essa contradição encontra seu fundamento nas contradições do sistema sõcio-econômico que, ao mesmo tempo em que difunde a idéia da educação como meio primordial à ascensão social, não modifica as condições objetivas das relações de produção do meio rural e são justamente estas condições que acabam por manter indefinidamente o trabalhador rural em posição inferior no jogo das forças econômicas.

A valorização da educação escolar, nestas circunstâncias, não passa da reprodução daquilo que socialmente encontra-se difundido. Tal valorização, entretanto, revela-se no discurso do homem do campo, não como algo em que realmente se acredite, mas porque é usual fazê-lo ou porque poderia parecer estranho não atribuir ã educação escolar algum mérito.

Supõe-se que a proliferação de escolas no meio rural, difundindo idéias e conceitos sobre as vantagens da escolarização, assim como a intensa divulgação de informações e apelos a alfabetização, deveriam repercutir de modo acentuado nas representações da educação escolar elaboradas pelo homem do campo. E realmente repercutem, mas as mistificações difundidas sobre a educação escolar não se reproduzem claramente no discurso do trabalhador rural. A mensagem escolar não é captada nos termos em que é proposta, mas passa por toda uma reformulação para integrar-se no estilo de vida da população rural.

B) - A Educação Escolar e seus Sujeitos:

Ao discursar sobre a educação escolar, o homem do campo lança mão de um conjunto de imagens, das quais duas assumem dimensões especiais: o aluno e o professor.

Na relação professor-aluno, este encontra-se em posição dominada; é uma relação de força ou de poder, segundo MOLLO (1978) , na qual o aluno é sempre o sujeito mais frágil.

Em termos de "bom" ou "mau" aluno, a obediência ao professor é, isoladamente, o indicador mais privilegiado na identificação do bom aluno, sendo, portanto, o comportamento mais desejado pela população.

Em sala de aula há um desequilíbrio de forças, uma desigualdade marcante: de um lado, o aluno que deve obedecer e respeitar e, de outro, o professor que deve "agir", corrigir e ensinar. A este último, todos os poderes são dados e, portanto, todos os seus erros passam desapercebidos. O aluno não aprende porque não tem "dom", não tem "queda", é preguiçoso, ou simplesmente porque não gosta de estudar. A professora recebe dos pais a autoridade que lhe garante imunidades diante do fracasso escolar. A ela só é negada a possibilidade de usar a coação física.

Tais concepções em torno das relações professoraluno são transposições da representação social da criança, presente na população investigada, e das concepções de como devem ser as relações adulto-criança. Em seu trabalho "Um Monde kutre: L'Enfance", Chombart de Lauwe

A criança é, para os trabalhadores rurais investigados, antes de tudo, uma "tola", alguém que não ¡sabe, propensa a brincadeiras, irresponsabilidades e rebeldia, exigindo portanto o uso da disciplina, da "correção", para que se transforme em adulto trabalhador, responsável e respeitado. As relações familiares entre pais e filhos (até que estes últimos comecem a trabalhar) são relações autoritárias, embora não violentas. As crianças são repreendidas e castigadas, mas o castigo corporal não é bem aceito; na verdade, é rejeitado como forma de educação. Costuma-se dizer em Piabanha do Sul que o pai que educa direito faz-se obedecer pelo olhar. É exatamente este tipo de autoritarismo e seu mecanismo de exercício que é transferido para a relação pedagógica. A relação familiar é, assim, identificada com a relação escolar.

Entretanto, pode-se afirmar que a tendência ao autoritarismo como método educacional começa a dar lugar a concepções mais democráticas. Da população investigada, 21.371 afirmaram que a relação professor-aluno deve estar baseada na cooperação, na compreensão da professora pelos problemas das crianças.

A redução do autoritarismo não aparece como resultado de um modo novo de ver as relações pedagógicas, nem emerge de concepções modernizadoras, mas deriva antes de um receio latente de que a rigidez das relações estabelecidas entre professor-aluno acabe por despertar o temor, a insegurança no aluno, transformando a educação escolar em uma atividade extremamente desagradável e ameaçadora, levando o aluno a afastar-se da escola ou criando bloqueios à aprendizagem.

A imagem do bom aluno se contrapõe a imagem do bom professor. O professor é sempre o que sabe, o que detem a razão e a verdade, mas suas qualificações profissionais, o domínio do conteúdo e seus métodos não são cogitados no discurso do trabalhador rural, a não ser de passagem, em frases soltas do tipo "as professoras hoje são mais preparadas" ou "Se não tiver prepara, não passa no concurso". Mesmo assim, tais observações são raras.

Os entrevistados tendem a avaliar os professores a partir de um conjunto de indicadores relativamente estruturados. A Figura 1 mostra a organização de tais indicadores e a posição ocupada pelo que se considera um bom professor.


Com a inversão do grafico não se obtém a imagem do mau professor; ou seja, pelos dados coletados, o mau professor não é pouco exigente e muito paciente e carinhoso. Os trabalhadores rurais não fizeram referências ao que se poderia chamar de mau professor.

Apesar da grande margem de autoridade atribuída ao professor, do fato de se reconhecer mérito na função que ele exerce, e mesmo do fato de se identificar sua tárefa com a dos pais, o professor, enquanto categoria socio-profissional, não goza de prestígio na população investigada. Os pais entrevistados não desejam que suas filhas sejam professoras e quando aceitam esta hipótese, ela é considerada "um mal menor".

Não se apurou nas verbalizações da população rural estereotipes tais como "o magistério é um sacerdócio", "a professora deve trabalhar por um Ideal", ou semelhantes. O trabalhador rural interpreta o trabalho da professora como qualquer outro trabalho, que exige sacrifício e que deve ser remunerado.

VI - O Lugar da Escola no Futuro Profissional

Se o magistério, como atividade profissional, não representa para a população rural o tipo de atividade a que se aspira para os filhos, outras categorias profissionais também não despertam interesse especial. As profissões usualmente valorizadas no meio urbano, tais como medicina, direito ou engenharia, no discurso do trabalhador rural apenas recebem o qualificativo de "boas profissões". Ao se indagar qual atividade gostariam que seus filhos assumissem no futuro, os entrevistados relutavam em nominar qualquer uma das profissões conhecidas.

Grande parte dos entrevistados (62.50%) recusa-se a projetar o futuro de seus filhos.

Essa recusa à elaboração de determinado projeto profissional a longo prazo tem sua sustentação na prática, usual na população investigada, de não retardar a emancipação dos filhos. Essa prática, por sua vez, tem raízes na própria estrutura familiar e sõcio-econômica do meio rural. Sendo numerosas e com baixo rendimento salarial, as famílias rurais vêm a independência (particularmente econômica) de seus filhos como algo extremamente desejado, tanto como forma de redução das despesas familiares, quanto pela possibilidade de aumentar a renda familiar com o produto do trabalho dos filhos. Não fazer projeções a longo prazo, ou projetar modestamente, pode ser a forma pela qual o trabalhador rural expressa um outro tipo de aspiração: a de que seus filhos, no mais breve espaço de tempo, ingressem no mercado de trabalho. Pode também refletir a consciência que o trabalhador rural tem da posição que ele ocupa no sistema econômico. Esta recusa em formular claramente uma aspiração profissional denota, de certo modo, a sua descrença na escolarização como meio de ascenção social.

Ao verbalizarem sobre a educação escolar os entrevistados lançam mão de uma seriei de qualificativos a ela favoráveis e chegam a dar a impressão de que a escola, como instituição, é altamente valorizada, considerada imprescindível para o futuro de seus filhos. No entanto, quando passam a projeção do futuro profissional de seus filhos, os trabalhadores rurais não tomam a educação escolar como referência fundamental.

VII -A Representação Social da Educação Escolar

Na população rural investigada, o campo de representação emgloba juízos sobre o valor da educação escolar, afirmativas sobre os seus sujeitos e suas relações, explicações sobre o sucesso ou insucesso escolar e também verbalizações sobre o futuro profissional. O que transforma esse conjunto em "campo de representação" é a ordenação e estruturação que sugere.

A Figura II apresenta um esquema de tal campo.

É a partir dos seis temas envolvidos na Figura 2 e suas inter-relações que a representação social da educação escolar se organiza, na população investigada. Professor e aluno são postos como sujeitos da escolarização, mantendo-se, contudo, eqüidistantes, e ocupando posições diferentes no espaço escolar. O significado da educação escolar se atualiza na expectativa do sucesso ou insucesso escolar, pelos quais o aluno é o principal responsável. A expectativa sobre o futuro profissional desloca-se de todo o contexto e surge como elemento de reavaliação do significado da educação escolar.


- A educação escolar apareçe em um primeiro momento como altamente valorizada. As verbalizações feitas a seu respeito levam a crer que ela é percebida como fundamental.

- Os sujeitos envolvidos no processo são claramente definidos, delineando-se uma imagem compatível com o que se espera da escola.

- Paulatinamente, a educação escolar vai perdendo seus valores iniciais e assumindo um caráter de realidade, à medida em que os entrevistados passam a avaliar suas próprias expectativas em relação a ela e as aspirações profissionais que têm para seus filhos. Educação escolar e aspiração profissional não mais se coadunam. Na verdade, a segunda surge como independente da primeira. As verbalizações passam a traduzir uma tomada de consciência da condição social e das reais possibilidades oferecidas pela escola. As vicissitudes geradas pela sua posição nas relações de produção reaparecem no discurso do trabalhador rural, redimensionando sua expectativa e redefinindo o seu lugar nos projetos de vida.

- Essa reavaliação no interior da representação traduz a dinâmica, o confronto dialético que se estabelece entre as concepções ideológicas difundidas sobre a educação escolar e a experiência concreta do grupo social. A reavaliação critica está vinculada as condições de existência da população rural: é a prática real do homem do campo que define suas possibilidades de auto-consciência.

- Embora a população investigada tenda a reconhecer o mérito da educação escolar, esta atitude não se estende a toda educaçãc escolar. O homem do campo reage positivamente a um aspecto particular da escola: o que se refere as necessidades imediatas. Enquanto a educação escolar oferece meios de dominar as técnicas da comunicação escrita recebe do trabalhador rural um valor positivo. Entretanto, embora não desvalorize a educação de 2º e 3º graus, esta colocase além das suas necessidades vitais e por esta razão não surge no horizonte da população rural: sequer é cogitada.

VIII - Considerações Finais

As ciências da educação lucraram muito quando integraram em suas pesquisas a dimensão sociológica.

Na verdade, toda uma corrente da Sociologia vem revelando a função real que a escola tem cumprido, função esta dissimulada, de reprodução das desigualdades sociais, de legitimação e inculcação do sistema de valores das classes dominantes. Mas este determinismo sociológico não esgota, todavia, o panorama da relação escola-sociedade.

A ação, o impacto escolar, dinamiza-se não somente a partir de intencionalidade do agente da educação. De fato, são múltiplas (e nem sempre convergentes) as formas de intencionalizar a realidade educativa, as quais dão à relação escola-sociedade a dimensão fenomenal e caracterizam a sua complexidade. Não é, seguramente, por puro acaso que a escola, ao mesmo tempo em que £era consciências alienadas, gera também consciências capazes de desmistificar o ideológico do seu discurso. Não será também por mero acaso que a ideologia que o professor, com seus discursos e textos, tentou inculcar, vê-se substituída ou abandonada quando, em confronto com a realidade que pretende negar, se torna insustentável.

Estudos recentes sobre o fenômeno das representações sociais têm demonstrado que os grupos sociais organizam particulares e diferenciadas representações sobre fatos e objetos que de alguma forma colocam-se no horizonte de seus projetos de vida. As representações oferecem ãs ideologias um espaço privilegiado para o seu aparecimento, mas aí também estão presentes elaborações críticas, contradições e, por vezes, uma completa reconstrução da realidade.

Do que foi possível observar no presente estudo, ressalta-se por exemplo, a significativa valorização da escola entre os trabalhadores rurais, mas não como uma adesão a idéia de que mais educação corresponde necessariamente a possibilidades maiores de ascenção social. Valoriza-se a escola porque ela se apresenta como um meio eficaz, se não o único, para a aprendizagem da leitura e da escrita. Foi possível observar, ainda, que no conteúdo dos livros textos (conteúdo ideológico ou técnico) não se percebe a intenção subjacente. Os textos são compreendidos fundamentalmente como "materiais" neutros que ajudam nos exercícios de ler, contar e escrever. O conteúdo da educação escolar é, por esta via, sutilmente descaracterizado para integrar-se nas necessidades emergentes do homem do campo nos seus proprios termos.

Inverter o pólo da investigação - ou seja, substituir o agente pelo sujeito, discurso oficial pelo pensamento social sobre a educação, valorizando-se a consciência do homem sobre sua vida e sobre a realidade em que vive - pode oferecer subsídios fundamentais a um maior conhecimento do fenômeno educativo e, sobretudo, oferecer por decorrência - pontos de apoio para transformar este fenômeno no sentido da promoção humana.

NOTAS

Outras Referências Bibliográficas

  • 1 Uma exposição ampla pode ser encontrada em: José Alberto Pedra - "Uma Contribuição ao Estudo da Representação Social da Educação Escolar no Meio Rural: Análise do discurso de um grupo de trabalhadores Rurais sobre a Educação Escolar". Tese de Doutorado. Depositada na Biblioteca da PUC/SP e da UFPr.
  • 2 Ver José Ferrater Mora - "Dicionário de Filosofia". Sudameris, Buenos Aires.
  • 3 Conferir para maiores detalhes: Denis e Dubois - "La Representation Cognitive: quelques modèles recents" in: Année Psychologique 76, 541-562, 1976.
  • 4 Cf. MOSCOVICI, S. - "A Representação Social da Psicanálise". Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979, p. 14.
  • 5 Cf. KAES, R. "Images de la Culture chez le Ouvriers Français". Paris, Cujas, 1968. p. 67.
  • 6 Cf. CHOMBART DE LAUWE, P. H. - "La Représentation de la Culture comme médiation des Comportaments. Psych. Franç. 1971. 16/3-4) p. 115-123.
  • 7 "Conhecimento à mao" - Expressão tomada de A. SCHULTZ. Cf. "El problema de La Realidad Social" e "Estúdios sobre Teoria Social". Buenos Aires, Amarrortur ed.
  • 8 Citação de. Silva Lone in: "Uma Redefinição da Psicologia Social", São Paulo, PUC - Mimeo. 1979.
  • 9 Ver para maiores detalhes: Filloux J. - "Du Contrat Pédagogique", Paris, Dunod, 1974.
  • 10 Cf. CHOMBART DE LAUWE, M. J. "On Monde Autre: L'Enfance", Paris, Payot, 1979.
  • 1 - MOSCOVICI, S. "La Psychanalyse, son Image e son Public." Paris, P.U.F., 1961.
  • 2 - HERZELICH, C. "Santé et Maladie: Analyse d'une Représentation Sociale". Paris, Monton, 1969.
  • 3 - DURKHEIM, E. "Representações Individuais e Representações Coletivas" - in: Sociologia e Filosofia, Rio de Janeiro, Forense, 1970.
  • 1
    II - O conceito de representação social
  • 2
    A Psicologia Clássica a êle dedicou atenção especial e, hoje, é um dos conceitos centrais na Psicologia Genética da Escola de Genebra.
  • 3
    A expressão
    "representação social", no entanto, tem uma história bem mais recente. Na Sociologia, surgiu com Durkheim por volta de 1897. Na Psicologia Social, o interesse pelo fenômeno descrito por Durkheim como representação coletiva surgiu com a investigação de Moscovici (1961) :
    "La Psychanalyse: son Image e son Public".
  • 4
    Com efeito, tanto o seu estudo quanto o daqueles que o sucederam abandonaram deliberadamente a análise das características objetivas ou formais de uma situação e valorizaram o processo de assimilação e construção da realidade pelo sujeito, ou seja, a variável fundamenta a tal conjunto de elementos.
  • 5
  • 6
  • 7
    a respeito do objeto ou situação em questão, quanto à intencionalidade do sujeito. Isto torna possível compreender que, não obstante seja a
    tepresentação social
    "explicações e afirmativas do que se acredite ser a realidade, as quais são produzidas pelas relações sociais"
  • 8
    , tanto podem reproduzir tais relações como também supera-las e (menos provavelmente) transforma-las.
  • 9
    , com algumas alterações para melhor adapta-lo aos objetivos do estudo.
  • 10
    já havia demonstrado que, em cada época, cada sociedade tem um modo particular de representar a criança, representação esta que traduz o sistema de valores e aspirações nem sempre conscientes, mas que tem conseqüências tanto para a criança, quanto para o adulto e suas relações recíprocas.
  • *
    Na ausência de estudos mais extensivos, utilizamos como referência o trabalho
    "Aspirações à Educação", de Silke Weber. 1978.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1982
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