Acessibilidade / Reportar erro

Qualidade em educação: uma questão de consciência crítica

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Qualidade em educação: uma questão de consciência crítica

Mary Terezinha Paz Brito

Mestre em Educação - Departamento de Planejamento e Administração Escolar-

Antes de se falar sobre qualidade em educação, é necessário se situar, desvendar os termos a que se refere, a fim de que se possa deparar com os mesmos conceitos referenciais.

Ao se falar em educação, deve-se pensar em um processo de desenvolvimento de capacidades (morais, físicas, sociais, e emocionais) que visa a interação do indivíduo no contexto social. Deve-se referir, então ao processo de transmissão da cultura elaborada, movimento histórico-dialético (FERREIRA, 1975).

Por qualidade, deve-se entender o conceito básico da diferença comparativa, que parte de uma escala de valores pré-determinados, sob um processo de aceitação; isto é: a condição, a posição e a função dos fatos em suas análises. Aqui se faz mister frisar que a compreensão da qualidade como conceito pode ter diferentes formas a partir dos diferentes contextos, nos quais esta se insere (ex. radiologia, acústica, engenharia, etc.). Logo, falar em qualidade é falar em superação da cultura e de suas dimensões (CHAMBERS, p. 262).

Qualidade em educação, é antes de tudo, disposição para considerar três aspectos educacionais associativos como inquestionáveis: a carência, a deficiência, e a privação, como ressalta Drouet, em Distúrbios da Aprendizagem- Introdução-, sobretudo, quando refere-se aos recursos técnicos, administrativos, financeiros, psicopedagógicos e estruturais do ensino, esta situação ao ser considerada, faz concluir que "mudança" é a exigência para a busca de soluções, no processo educacional.

Experiências pessoais, pesquisas, e a realidade atual, conduz a observação a respeito da "falha da qualidade no ensino", que pode ser avaliada como conseqüência de muitos fatores a serem questionados.Entretanto, não se pode deixar de considerar, a princípio, que nossa cultura parece se apresentar sob uma diversidade muito grande de identidades educacionais, o que dificulta a adoção de posturas mais definidas de ensino, aonde propósitos e objetivos possam ser comuns e nacionais.

Quando a tendência Liberal adota por princípios a liberdade para todos, a igualdade de direitos e deveres, a convicção de talentos individuais, preparando o indivíduo para papéis sociais; em contraposição a tendência Progressista que tem por princípios a análise crítica das realidades sociais, sustentando finalidades sócio-políticas, cuja educação é um instrumento de luta de prática social, está se falando de um ensino que não se apresenta com propósitos comuns nacionais. Isso sem entrar no mérito da questão, de que as tendências, ainda se apresentam em escolas como o caso da tradicional, renovada, e tecnicista que fazem parte da tendência Liberal, e das escolas libertadora, libertária, e crítico-social, da tendência pedagógica Progressista.

O papel do professor de expor a matéria, recortá-la impondo sua autoridade, através de conhecimento centrado nele, em contraposição ao papel do professor mediador, mobilizador da participação do aluno, exigente do esforço, muitas vezes não coaduna com um único propósito, o que preocupa, sob o ponto de vista da qualidade de ensino. Este é, com certeza um desafio, cuja resposta deve necessariamente ser discutida com maior abrangência.

Ao se familiarizar com a Teoria de W. Edwards Deming, que aparece com uma condição fundamental, nas questões da qualidade do ensino, percebemos que os fatos falarão por si só, e justificarão esta consideração de exigência teórica.

Deming, como comumente é tratado nos meios especializados, nasceu em 1900, nos EUA.

Em 1917, entrou para a Universidade e Ulyoming e formou-se em 1921. Lecionando matemática, engenharia e física.

Em 1923, tornou-se mestre em matemática e física, e posteriormente PHD em física.

Por volta dos 80 anos de idade, pode-se dizer que foi reconhecido como autoridade em qualidade, pelos EUA, no que convém ressaltar: teve como início de seus estudos de pesquisa e ensino "o controle estatístico do processo" e " os princípios da administração da qualidade".

Em 1951, foi reconhecido pelo Japão como maior autoridade em qualidade, baseada em quatorze pontos, os quais se procura abordar de forma a inter-relacioná-los à educação.

Mas, antes de entrar nos quatorze pontos propriamente ditos, se faz de suma importância, conhecer um pouco da trajetória do mestre, no Japão.

Em 1946, Deming começa a lecionar sobre Qualidade, na Universidade de Nova Iorque; até então sem qualquer notoriedade.

Em 1947, é recrutado pelo Comando Supremo das Potências Aliadas, para ajudar no censo japonês de 1951.

Retifica-se, aqui, que o Japão estava em ruínas, com baixa produtividade, sem bens de consumo e sem alimentos, com suas cidades praticamente destruídas; foi o preço pago por ter entrado na Segunda Guerra Mundial.

Observem o que Deming escreveu em seu diário sobre a situação do Japão:

"...Desgraçados, miseráveis em farrapos, quase todos morrendo de fome. Seres humanos, definhando..."(DEMING, p.11)

Parece soar estranho, ao se referenciar-se ao Japão de nossos dias, imaginar que, um dia a expressão "Made in Japan" foi sinônimo de má qualidade. Na época o Japão tinha que exportar produtos, para conseguir comprar alimentos. E nessa situação irônica de caos nacional, surge no Japão dos Cientistas e Engenheiros", sob o propósito da reconstrução nacional.

Abre-se aqui um parêntese, para falar da experiência de Deming no Ministério da Agricultura (com o estudo do nitrogênio e seus efeitos)., e no Ministério do Comércio Americanos, especialista em censo. Nesta fase de sua vida, Deming nas horas vagas estagiava em uma fábrica (Hawthore), com cerca de 46 mil operários, que viviam em condições miseráveis de trabalho (local sujo, quente). Onde se acredita, tenha experienciado sua teoria sobre administração da qualidade, em seus primórdios.

Voltando à questão anterior da reconstrução nacional japonesa, a entidade criada para tal fim contacta os EUA, com interesse em conhecer melhor o sistema de produção americano. O governo americano se propõe ajudar, e contacta a Universidade onde Deming trabalhava. E Deming, também se propõe a ajudar o Japão, graciosamente.

Em 1950, Deming chega no Japão, e após cerca de três anos o povo japonês já tinha alimentos, roupas, trabalho, e esperança...

Mas o que fez Deming, de fato como contribuição à qualidade?

Deming, sem sombras de dúvidas, acreditou na reeducação do Japão, atingindo a administração de quase todas as grandes empresas, e lecionando para quase vinte mil engenheiros, os seus métodos da qualidade.

Os pontos básicos que Deming defendia, sem entrar na questão das "Doenças e Obstáculos", por ele também colocadas em Deming, "O método de Administração"- 1989, p. 24-38, eram:

1. estabelecer uma constância de propósitos;

2. adotar uma nova filosofia;

3. acabar com a dependência da inspeção;

4. cessar práticas de avaliar apenas com base nos preços;

5. melhorar sempre o sistema de produção e serviço;

6. instituir o Treinamento;

7. instituir a Liderança;

8. afastar o medo;

9. eliminar as barreiras entre áreas de apoio;

10. eliminar "slogans", exortações e metas;

12. remover barreiras ao orgulho da execução;

13. instituir um sólido programa de reeducação;

14. agir no sentido de concretizar;

Note que a qualidade no Japão, como propósito nacional, surge, sobretudo, por uma necessidade de sobrevivência, frente ao caos. E talvez seja uma situação de sobrevivência, frente ao caos educacional nacional, que se faça realmente iniciar o processo de qualidade de ensino, enquanto metodologia de processo filosófico.

Então, ao se utilizar a teoria de Deming, pode-se concluir que para falar da qualidade na educação é acreditar na necessidade de mudança radical dos papéis do professor e da escola; considerando sempre o sentido de inovação, de pesquisa e aperfeiçoamento constante. Portanto, rever estes papéis, parece tarefa primordial.

Pode-se, ainda, dizer que os erros passam a ser condição inaceitável, dentro dos padrões que deverão ser pré-estabelecidos, que o negativismo não pode ser admitido, sob nenhum pretexto, e que o mau desempenho do professor e/ou do aluno são questões inaceitáveis.

Falar em qualidade de ensino, é passar a acreditar que a dependência em massa não funciona, na medida em que, é o aperfeiçoamento do processo da educação que garante a qualidade, e não sua inspeção. É acreditar que o produto (bom desempenho dos professores e dos alunos) tem que ser inspecionado durante o processo e não no final (do ano letivo e/ou do bimestre com testes, fórmulas, provas...).

Educação e qualidade, só parece um binômio viável, quando se para de usar a falta de verba como desculpa, e quando se começa a procurar a melhoria do processo da qualidade, na certeza de que a tarefa é árdua e longa, e que requer dedicação, muita paciência, e sobretudo coragem e disposição. Quando se começa exigir das instituições que formam a mão-de-obra (no caso do professor), maior qualidade na sua prestação de serviços.

Qualidade de ensino, é também reeducação de todos os profissionais envolvidos no processo educacional, orientando- os sobre os métodos, as técnicas de controle estatístico, a nova filosofia. É oferecer instruções inteligíveis. É ter profissionais com experiência apropriada para ensinar a fazer.

Portanto, entrar na questão fundamental da liderança, em educação.Coordenadores de áreas devem ser identificados e preparados para auxiliar os profissionais de ensino a fazerem qualidade.

Educação e qualidade é não ter medo de tomar posições dentro e fora da sala de aula; é perguntar sempre, questionar constantemente. É poder viver num clima de segurança para exercer a consciência crítica.

O conceito de equipe deve ser desenvolvido em todos os departamentos, pois a noção de propósito único deve ser estabelecida. O processo de convencimento da necessidade da qualidade de ensino deve ser individual, sobretudo de suas implicações, pois é importante admitir que nem todos querem essa qualidade sob as formas de sacrifícios que ela se apresenta.

Qualidade em educação, é aceitar que os números são um meio e nunca um fim. Quando se considera o índice de 75% (setenta e cinco por cento) de aprovação escolar como meta, estamos avaliando a "competência" do ensino (este índice poderia até fazer parte do processo, mas atrelado a outras variáveis.

É necessário, para a qualidade ensino, um sólido programa de treinamento, bem como a remoção de barreiras (como é o caso de professores despreparados, dos materiais didáticos inexistentes/inadequados...).

Educação e qualidade, requer a melhoria contínua do sistema de produção e serviços.

Por serviços devemos entender: a aula que o professor ministra, o sistema de avaliação empregado, o material didático adotado, os profissionais de apoio que intervém na educação (psicólogos, faxineiros, administração e outros).

Por produção devemos entender: o processo de aprendizagem, o desempenho do aluno, o processo de desenvolvimento de capacidades, a interação do indivíduo social e vice-versa, o aperfeiçoamento do professor e sua atualização, as relações interpessoais (com destaque e relação professor-aluno), e outros.

Mas, sem dúvida, falar em qualidade na educação é falar em coragem e disposição. É, antes de qualquer coisa, estar disposto a questionar questões fundamentais, como por exemplo: quem é nosso cliente em educação?

Se é como Yshikawa, coloca seu livro TQC- Total Quality Control, 1984, que a realidade parte da remissa da satisfação do cliente, pode-se, numa resposta imediatista dizer que o cliente em educação é o aluno. Só que é preciso vermos a problemática sob um ponto de vista mais abrangente. Talvez, pudéssemos considerar o aluno como nosso cliente direto e o mercado como indireto. Afinal é o mercado que com seu poder econômico, absorve mais cedo ou mais tarde, esse contingente; fazendo, assim, suas exigências.

Então, parece possível afirmar que agir para concretizar a transformação em educação, é, através desse processo de exigência do mercado, nomear e autorizar uma equipe de profissionais de ensino para coordenar a implantação, o controle e a manutenção desse processo.

E, assim, outra questão aparece: quem seria essa autoridade com poder capaz de autorizar e nomear essa equipe? Quem seria capaz de viabilizar esse processo?

Discutir esse novo aspecto é polemizar a questão das responsabilidades. Responsabilidades estas que atingem direto a problemática "do caos educacional", correndo-se o risco de se nomear apenas culpados...Por isso, responsabilizar os órgãos governamentais, não passa de uma atitude desgastada, simplista demais, que induz a aceitação de que tal superficiabilidade não justifica a falta da qualidade de ensino.Portanto, ir mais além e pesquisar mais a fundo o problema, ainda se apresenta como a melhor solução.

O processo da qualidade na educação, está a espera de pessoas críticas, capazes de realizar tal façanha com eficiência e eficácia. Logo, em sua definição clássica, não há meia qualidade, qualidade não é o "mais ou menos": ou se tem ou não se tem qualidade".Tem que ser qualidade de serviços, produto, processo, de pessoas...(YSHIKAWA, 1981,43 p.).

Em meio a esta proposta inovadora e árdua, um grupo mostra-se em destaque ao pensar em qualidade na educação: a Comissão Nacional de Reformulação dos cursos de Formação do Educador (CONARCFE). Com o objetivo de envolver docentes, e discentes na reflexão, sobretudo em relação à preparação dos recursos humanos, além da intenção de revisarem o currículo de pedagogia e demais licenciaturas, vêm acontecendo encontros, debates, neste sentido, desde 1983. Recentemente, pode-se destacar o V Encontro da CONARCFE, como marco inicial de uma caminhada de crescimento e inovações. Trazendo como proposta a Base Comum Nacional na formação dos profissionais de Educação, tal movimento demonstra resultados na avaliação crítica do sistema atual, propondo mudanças sólidas que carregam a noção fundamental da viabilidade de se investir na qualificação do sistema formador, como um dos meios de se combater a crise educacional.

Quando, mais especificamente, trata-se da qualidade de currículo, mão-de-obra, e conteúdo observa-se que:

a qualidade de currículo deve ser vista sob o ponto de vista da dependência(depende a quem/a que objetivos o currículo vai servir). Sua unidade depende da unidade de propósitos da própria educação, que deve sobretudo representar a cultura do cotidiano.Assim, pode ser percebida nas várias tendências pedagógicas como canalizado para o atendimento das necessidades de cada época.

Já, a qualidade de conteúdo deve estar vinculada ao saber científico, articulado a todas as questões (políticas, econômicas, culturais) que o homem estabelece entre si. Traduzida por um processo de crítica do saber popular.

E, finalmente, a qualidade de mão-de-obra, deve exigir acima de tudo a questão da competência, dada a exigência do momento histórico. Deve-se estar preparado para correr riscos, cuja meta é o desafio constante do "enxergar além".

Por tudo ora exposto, e por muito mais, falar da qualidade e educação é estar preparado para uma longa conversa, na qual as complexidades dos conteúdos pesquisados desembocarão, sem dúvida em um brilhante, desafiante e atuante processo de consciência crítica, do qual não se pode mais ficar ausente.

Nota: A partir do V. Encontro Nacional, em 1990, a CONARCFE passa à condição de Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação(ANFOPE).

EQUIPE DE TRABALHO:

Alunos do Mestrado em Educação- Disciplina : EPB

Professora Mary Therezinha Paz Brito

LIBLIK, Ana Maria Petraites. Bacharel e Licenciatura em Matemática. Mestranda do curso de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná.

MAKISHIMA, Isabel Cristina M. G.. Licenciada em Psicologia. Mestranda do curso de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

REBÊLO, Margarida de Oliveira. Licenciada em Pedagogia. Mestranda do curso de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

RIECHI, Tatiana Isabelle J.S.. Licenciada em Psicologia. Mestranda do curso de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

  • ALVES, Nilda. A formação de profissionais de ensino e a nova LDB. Ande, São Paulo, 1988, n.13, p. 30-39.
  • CHAMBERS, Edinburgh. Dictionary of science and technology. Great Britain : Hazell Watson & Viney Ltd., 1296 p., p. 262-263.
  • COMISSÃO NACIONAL DE REFORMULAÇÃO DOS CURSOS DE FORMAÇÃO DE EDUCADORES. V. Encontro documento final. Belo Horizonte. 1990.
  • COMISSÃO NACIONAL DE REFORMULAÇÃO DOS CURSOS DE FORMAÇÃO DE EDUCADORES. Coletânea de documentos coordenação nacional. 1988.
  • CROSBY, Philip B. Qualidade : falando sério. São Paulo : Mc Graw Hill, 1990. 201 p.
  • DEMING, W. Edwards.O método Deming de administração. Rio de Janeiro : Marques Saraiva, 1989. 264 p.
  • DROUET, Ruth Caribé da Rocha. Distúrbios da Aprendizagem. São Paulo : Ática S.A., 1990. 248p.
  • EVANGELISTA, Olinda. Em busca da qualidade de ensino : o conteúdo e as condições concretas da escola. Escola Aberta, São Paulo, n.abr/mai., p.6, 1987.
  • FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1975. 1517p.
  • ISHIKAWA, Dr. Kaoru. TQC-Total quality control: estratégia e administração da qualidade. São Paulo : IM&C Internacional.
  • LIBÂNIO, José Carlos. Democratização da escola pública: pedagogia crítico social dos conteúdos. São Paulo : Loyola, 1984.
  • LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da Educação. Cortez Editora, 1990.
  • MELLO, Guiomar N. de . A pesquisa educacional no Brasil. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n. 46, p.62-72, agosto, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1993
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br